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Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
Introdução ao Estudo do Direito I
Professor Regente: Luís Lima Pinheiro
Professor Assistente: João Pedro Marchante
Mafalda Luísa Condelipes Boavida
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17/ 09/2019
1º Semestre:
à ordem jurídica: o que é?
à caracterização das ciências do direito: como estuda-lo cientificamente?
à teoria geral do direito;
à a solução do caso por vias não normativas;
à fontes do direito.
Prova escrita em Dezembro.
2º Semestre:
à Sistemática Jurídica: como é que o Direito se organizou?
à A regra jurídica;
à A determinação e aplicação das regras.
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Capitulo I
O Direito como fenómeno humano e social
O Direito é um fenómeno humano e não um fenómeno da natureza. O
Direito surge com os seres humanos e destina-se principalmente a regular a sua
vida de relação.
O Direito é um fenómeno social e não um fenómeno do homem isolado.
Coisas e animais podem ser contemplados pelo direito, mas não se
relacionam em termos do direito. Há sim, regas e condutas humanas referentes
a coisas e animais.
Não há Direito sem sociedade, por isso se diz ubi ius, ibi societas.
Mas também não há sociedade sem Direito. Ubi societas, ibi ius.
Grupo e sociedade A sociedade pressupõe a existência de um grupo de pessoas (nem todo o
aglomerado é um grupo. O grupo pressupõe uma finalidade comum).
A sociedade é um grupo social, i.e., formado por pessoas que estabelecem
entre si relações sociais.
Nos grupos sociais mais vastos, que já não correspondem a meios de
convivência direta, salienta-se, como fator agregador do grupo, a finalidade
comum.
Nem todos os grupos sociais são sociedades. A sociedade é um grupo
estável e organizado.
Os grupos podem ser formais ou informais, sendo que o Direito se ocupa dos
grupos formais.
A família, quadro imprescindível da conservação e propagação da espécie,
terá sido a primeira forma social. Terá sido mesmo resultado de uma evolução
da autoridade familiar que se formou o Estado, elemento característico das
sociedades gerais de hoje.
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Classificações de sociedade:
à sociedade perfeita, global ou de fins gerais (engloba todos os aspetos da
vida social. Tem elevado grau de autossuficiência – capacidade de satisfazer
necessidades autonomamente) e sociedade imperfeita, particular ou de fins
específicos (são sociedades menores; limitam-se a certos aspetos da vida social
e têm menos autonomia);
à sociedade civil (esfera da vida social relativa a instituições não políitcas,
ex: família) e sociedade política (formada por partidos);
à Comunidades (sociedades organizadas de acordo com laços afetivos e
não racionais) e associações (orientadas por motivos racionais com um
determinado fim, ex: movimento anti touradas);
à sociedades maiores (igreja), sociedades estaduais (critério de
subordinação ex: comunidade internacional subordina a estadual – é
supraestadual), sociedades menores (conjugação de pessoas para a
persecução de fins culturais) e sociedades paralelas ou para estaduais (estão
ao mesmo nível do estado).
Os três elementos do conceito de sociedade perfeita ou global são:
à um grupo de pessoas que prossiga determinados fins comuns;
à a estabilização, a institucionalização das relações que transforma um
grupo numa sociedade, institucionalização que se traduz na existência de uma
organização e de uma ordem social;
à um alto nível de auto suficiência relativamente ao ambiente que a rodeia.
Ordem social
A ordem social é a ordem das condutas humanas que se expressa através
de normas relacionais, pois te por objeto regular a atividade do homem e as
relações entre os membros da comunidade.
Nas sociedades humanas há necessariamente uma certa ordem - embora
também haja, em maior ou menor grau, conflito e instabilidade.
Não é uma ordem de necessidade, mas de liberdade.
Separa -se em:
à Ordem fáctica;
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à Ordem técnica;
à Ordem normativa:
à Ordem do trato social;
à Ordem religiosa;
à Ordem moral;
à Ordem Jurídica.
A ordem social assenta na institucionalização a dois níveis:
à institucionalização de valores ou comunhão de fins – tem de haver um certo
consenso sobre um núcleo básico de valores;
à a estabilização, a institucionalização das relações que transforma um grupo
numa sociedade, que exige normas de conduta, definição de papéis ou posições
sociais e a formação de organizações sociais.
Na aceção de Direito que nos interessa agora, O Direito também é uma
ordem, que faz parte da ordem social. Mas a ordem a social tem outros
componentes fácticos e normativos além do Direito.
Componentes fáctico e normativo da ordem social
Uma realidade diz-se normativa quando só se compreende do ponto de
vista do “dever ser”. Não se cifra numa mera descrição, antes se dirige a orientar
a conduta humana.
A norma tem que ver com normalidade e com normatividade.
A norma ou regra pode ser normalidade, mas é mais do que isso, é
também normatividade. Ela não se limita a descrever os comportamentos das
pessoas, é um critério de apreciação destes comportamentos e tem a pretensão
de os orientar.
A norma exprime um dever ser, designadamente pretende vincular os
seus destinatários a uma determinada conduta.
Por exemplo, deve-se respeitar a vida e a integridade física; deve-se
respeitar a propriedade alheia.
A ordem normativa da sociedade não existe só no plano do dever ser.
Também se projeta no plano do ser. A ordem normativa é realidade social porque
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é um conteúdo da consciência comum a uma pluralidade de pessoas que atua
como motivação da sua conduta coordenada. A ordem normativa cria padrões
sociais de comportamento. Mas toda a ordem normativa é violável.
Por outras palavras, a ordem normativa da sociedade tem de assentar num
mínimo de efetividade das regras e princípios de conduta que a integram,
considerados no seu conjunto. Só assim a ordem social pode realizar a sua
missão institucionalizadora da sociedade.
Em suma, a ordem normativa é um ser efetivamente, mas um ser que tem o
sentido de um devido, de um dever ser. Nenhuma combinação de causas e
efeitos é suscetível de absorver em si a riqueza das ordens normativas.
Ordem social, natureza e cultura
Na aceção mais lata (abrangente) cultura designa o conjunto das
realizações humanas e contrapõe-se à natureza.
Perante esta aceção ampla de cultura, a ordem social e, no seu seio, o
Direito, é parte da cultura. O direito é neste sentido uma realidade cultural.
As observações têm demonstrado que a natureza se rege por
determinadas leis e que existe uma certa ordem.
A nossa observação da natureza, as ciências da natureza,
designadamente a física, a química, a botânica a biologia, têm demonstrado que,
quer ao nível do infinitamente grande – das galáxias – quer ao nível do
infinitamente pequeno – os átomos, os quarks – existe uma ordem, que a
natureza se rege por determinadas “leis”.
Será esta ordem e serão estas leis da mesma natureza que a ordem e as
leis normativas? Será o Direito uma projeção desta ordem natural?
A resposta é negativa. A ordem natural e as leis naturais não são iguais
às leis normativas e o Direito não é uma projeção desta ordem natural.
As leis naturais são diferentes das normas.
As leis naturais exprimem relações de causa e efeito.
à O ser é descritivo. Ex: está a chover. Pode ser considerado verdadeiro ou falso.
à O dever ser é prescritivo tem uma função prescritiva. Não poder ser verdadeiro ou falso, mas
sim válido ou inválido.
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Estas leis podem ser formuladas como “regras” ou “normas técnicas” em
que a causa passa a ser o meio e efeito passa a ser o fim. “Para obter gelo deve
arrefecer-se a água abaixo de 0” = “se ...... logo .......”. É uma proposição
descritiva.
As leis naturais são um ser porque a proposição descritiva é verdadeira
ou falsa conforme corresponde ou não à realidade. Não é violável.
A ordem normativa é um dever ser porque a proposição normativa, a
regra, é válida ou inválida, mas dificilmente se pode dizer que é verdadeira ou
falsa. E pode ser violada, não é uma fatalidade.
Em suma, a ordem normativa da sociedade, e, nela incluído, o Direito, é
um fenómeno geral da cultura humana, porque: 1) é criada ou revelada pela atividade humana;
2) é divulgada e transmitida culturalmente;
3) é caracterizada pela liberdade humana;
4) é inspirada por valores.
Numa aceção média, a cultura pode ser entendida como conjunto de
produtos objetivos do espírito humano, que se distinguem, enquanto tal, dos
suportes materiais em que são corporizados. Pelas razões apresentadas
anteriormente, o Direito também é parte da cultura entendida neste sentido.
Numa aceção média mais restrita, a cultura pode ser entendida como um
sistema que se contrapõe a outros sistemas da vida humana, designadamente
ao sistema social e ao sistema jurídico.
Assim, para PARSONS, os sistemas culturais são caracterizados por
complexos de significado simbólico, designadamente as crenças, os mitos, os
valores éticos e estéticos e os conhecimentos científicos.
Perante esta aceção de cultura, o Direito interage com a cultura a vários
níveis.
Numa aceção mais restrita, a cultura pode ser entendida como conjunto das
atividades e realizações artísticas e científicas.
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Ordem social e comunicação
A comunicação constitui uma condição essencial para o estabelecimento da
ordem social.
A regra social, como proposição normativa que é, encerra um juízo de valor.
A consciência de cada ser humano é moldada pelas suas experiências e
vivências. Se cada ser humano tivesse os seus próprios juízos de valor,
inspirados pelas suas diferentes vivências, não haveria valores socialmente
aceites, reconhecidos pela generalidade dos membros da sociedade.
Cada pessoa com as suas vivências cria os seus juízos de valor.
A objetivação do juízo de valor pressupõe que as nossas vivências sejam
comuns ou partilhadas. Dificilmente se pode conceber que todas pessoas, e
mesmo que todos os membros de uma sociedade, vivam pessoalmente as
mesmas experiências. A objetivação é possível através da comunicação que
existe entre os seres humanos, intersubjectiva.
A comunicação exige transferência e interpenetração. É necessário que não
haja constrangimentos, que a comunicação seja livre, que a mensagem seja
clara e seja entendida corretamente. É necessário que haja um ânimo, uma
vontade de compreensão mútua.
A regra social não é só um critério de valoração, é também um critério de
conduta. Para que a norma possa orientar as condutas das pessoas a quem se
dirige (destinatários) é preciso que seja deles conhecida. O que também exige
comunicação.
A mensagem contida numa norma pode ser comunicada através de
diferentes tipos de sinais, por exemplo, sinais de trânsito. Mas em geral as
normas são comunicadas através da linguagem. Por exemplo, as normas legais
são, em regra, comunicadas através da sua publicação no Diário da República.
A forma por que se comunica também é importante.
O aparecimento da escrita assume significado decisivo não só para a
comunicação do Direito, mas também para a conformação do Direito.
Dentro da ordem normativa da sociedade o Direito surge, nas modernas
sociedades estaduais, como uma ordem cujas principais regras estão fixadas
por escrito.
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A ordem exprime-se por regras, mas não postula a existência dum corpo
escrito de regras.
Mas veremos adiante que há outros elementos normativos da ordem social
que não são, em regra, fixados por escrito.
As instituições sociais Uma sociedade não pode ser confundida com uma mera justaposição de
indivíduos. O que caracteriza e distingue caca uma destas sociedades são as
ligações que existem entre os seus membros. Não são evidentemente nexos
materiais, são uma realidade, mas de índole cultural. Elas unificam. Os
participantes numa nova unidade.
Na aceção mais ampla, é possível designar por instituição social tudo o
que é socialmente institucionalizado: valores, normas, papéis e organizações
sociais. Todos os elementos estáveis e estruturados, i.e., articulados
internamente, serão instituições.
Nesta aceção, tanto é uma instituição social o valor tutela da vida e da
integridade física, como o instituto jurídico propriedade, as relações entre
professores e alunos, ou uma organização social como a universidade.
A palavra “instituição” é utilizada, designadamente pelos juristas, noutras
aceções:
à órgão ou coletividade - por exemplo, instituições públicas, instituições de
assistência; instituições universitárias
à complexo normativo - é neste sentido que se fala de Instituições de Direito
Civil como o matrimónio, a propriedade, a sucessão hereditária.
à sinónimo de ordem social ou de ordem jurídica.
A palavra “instituição” pode ser utilizada numa outra aceção que interessa
à ordem normativa: a de estrutura social normativamente relevante, isto é,
Instituição: o que está numa sociedade e permanece para la da evolução. São: realidades objetivas e supra individuais.
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elemento da realidade social que se reveste de uma certa estabilidade e
articulação interna e que exprime uma certa normatividade.
De entre estas estruturas são de salientar as organizações sociais, i.e.,
grupos orientados a finalidades comuns e ordenados para a sua realização.
Nem todos os setores da vida se acham institucionalizados em
organizações sociais. Só os que têm um valor estratégico, uma relevância
fundamental para a vida em sociedade, e nem todos os setores fundamentais.
Principais áreas sociais em que a institucionalização mais fortemente se
evidencia:
à vida familiar: família;
àárea da educação: escolas;
àárea económica: empresas; explorações agrícolas em forma não
empresarial; associações profissionais;
àsociedade política: assembleia legislativa, governo, administração pública,
partidos;
àárea jurídica: órgãos de realização do Direito: tribunais, certos agentes
administrativos;
àárea militar: forças armadas.
Para além das organizações sociais, há estruturas sociais, meramente
relacionais, que também são portadoras de um sentido ordenador. Trata-se
agora de relações sociais típicas, i.e., que se repetem continuamente de modo
análogo, que embora não tenham dimensão organizativa, são suporte objetivo
de certas expectativas e relações normativas.
É o caso de certas modalidades contratuais típicas na vida económica, como
por exemplo esta ou aquela modalidade de compra e venda.
Ordem social, conflito e evolução
A ordem normativa e, no seu seio, o Direito, não desempenham
exclusivamente uma missão estabilizadora ou integradora.
O Direito também desempenha uma função de resolução de conflitos
sociais e pode desempenhar uma função de transformação social.
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O sistema social evolui:
- através da generalização de valores que anteriormente não reuniam
consenso e da desvalorização de outros valores;
- da formação de novas normas e a cessação de vigência de outras
normas;
- do aperfeiçoamento de papéis sociais através de uma adaptação às
novas exigências da cooperação humana; e
- da diferenciação de organizações sociais, que passa designadamente
pelo surgimento de novas organizações, cada vez mais especializadas.
Neste processo de evolução o Direito pode desempenhar dois papéis muito
diferentes:
à tem de se adaptar à sociedade e às suas exigências;
à tem de ser um instrumento de transformação social.
Mas esta função transformadora do Direito deve ser encarada com
prudência.
Uma outra razão por que o Direito também não desempenha só uma função
estabilizadora ou integradora reside na inevitabilidade dos conflitos sociais.
O Direito não é imune ao conflito social nem é alheio às grandes opções
políticas. A consciência destas opções é importante para compreender o Direito
e conhecer o método jurídico.
O Direito também serve a resolução destes conflitos por uma forma pacífica
e racionalizada.
O Direito regula as relações entre a sociedade e aqueles dos seus membros que
violam a ordem jurídica ou que discordam sobre os seus direitos e obrigações,
estabelecendo tribunais e processos jurisdicionais em que o conflito social é
resolvido pela aplicação de critérios jurídicos.
O Direito também regula relações entre os vários grupos sociais,
regulando a constituição e funcionamento dos órgãos do poder político e
definindo os mecanismos por que os membros da sociedade, incluindo os grupos
sociais e políticos exercem a sua influência sobre a produção legislativa.
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Deste modo o Direito institucionaliza até certo ponto a composição de
interesses antagónicos, constituindo uma alternativa às soluções de força, à
violência, à guerra.
Complexidade e pluralidade das ordens normativas
A ordem normativa é um fenómeno universal, mas não é um fenómeno
que se manifeste por forma uniforme em todo o Mundo. A ordem normativa de
uma sociedade estadual coexiste com outras ordens normativas.
A par da pluralidade de ordens normativas da sociedade, há a assinalar a
sua complexidade, i.e., a existência, no seio cada ordem normativa da
sociedade, de diversos sistemas ou complexos normativos.
A ordem normativa da sociedade é complexa a dois níveis:
Por um lado, no seio da ordem normativa encontramos diferentes setores
normativos: além do Direito encontramos, designadamente, complexos
normativos religiosos e morais.
Por outro lado, encontramos no seio do Direito e, em especial, da ordem
jurídica estadual, fenómenos de complexidade.
Surgem assim ordens jurídicas complexas de base territorial, em que vigora um
sistema jurídico diferente, pelo menos em parte, em cada circunscrição territorial
– por exemplo, em Espanha, nos EUA, no Reino Unido.
Também existem ordens jurídicas complexas de base pessoal, em que
vigora um sistema jurídico diferente, pelo menos em parte, para cada categoria
de pessoas.
Quando se analisam as ordens sociais é necessário ter presente que existe um
grau de interação mais ou menos intenso entre as diferentes sociedades, e
portanto, também relações entre diferentes ordens normativas da sociedade.
Isto coloca determinados problemas de articulação entre ordens jurídicas:
àDireito Internacional Público
à Direito da União Europeia
à Direito Internacional Privado
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CAP. II - A ORDEM JURÍDICA COMO ORDEM NORMATIVA – NOÇÕES INTRODUTÓRIAS
Imperatividade e vinculatividade
Já assinalei que toda a ordem normativa transcende o domínio do “ser”, é
também do domínio do “dever ser”. A norma não se limita a descrever um
comportamento. A norma valora e pretende orientar o comportamento.
Toda a norma, jurídica, moral ou outra tem a pretensão de vincular a
conduta dos seus destinatários: “não se deve matar”, “deve-se respeitar os mais
velhos”, “deve-se dar prioridade ao veículo que se apresenta pela direita”.
Muito frequentemente a estatuição da norma é um dever de conduta ou
comando. É o que se passa nos exemplos acabados de referir. Daí identificar-
se normatividade com imperatividade.
Mas tem de se reconhecer que nem toda a norma contém um imperativo
ou injunção. Vejamos alguns exemplos:
O art. 66.º/1 CC estabelece que a personalidade se adquire no momento do
nascimento completo e com vida.
O art. 130.º CC estabelece que a maioridade se atinge aos 18 anos.
O art. 1317.º CC admite a transmissão da propriedade por negócio jurídico, entre
outros modos.
Em rigor também não são injuntivas as normas que definem pressupostos
e requisitos de validade de negócios jurídicos. Por exemplo, o art. 875.º CC
quando determina que o contrato de compra e venda de imóveis tem de ser
celebrado por escritura pública ou documento particular autenticado.
A invalidade ou ineficácia do negócio em caso de não ser observada a
forma prescrita não é uma sanção, não há uma conduta ilícita.
Enfim, também não são injuntivas as regras que não constituem critérios
de conduta, por exemplo as regras legais retroativas, que se aplicam a condutas
que ocorreram antes da sua entrada em vigor.
Todas estas normas, embora não estatuam imperativos, desencadeiam
uma modificação no mundo do juridicamente vigente (uma ordenação de
vigência).
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Por exemplo, a personalidade jurídica.; a capacidade jurídica; a
possibilidade de transmissão negocial da propriedade.
Toda a norma encerra um critério de valoração, e desencadeia uma
consequência jurídica. Esta consequência jurídica tanto pode ser uma obrigação
de conduta como qualquer outra consequência que deva valer como Direito. Em
qualquer caso, a consequência jurídica vincula juridicamente os destinatários da
norma.
Enquanto critério de conduta a norma é vinculante para todas as pessoas.
Enquanto critério de decisão é vinculante para os tribunais e outros órgãos
de aplicação do Direito.
A ordem jurídica, globalmente considerada, vincula as pessoas aos seus
critérios de valoração, que podem corresponder, ou não, à sua vinculação a
determinadas condutas. A ordem jurídica caracteriza-se, portanto, pela
vinculatividade.
Direito objetivo e direito subjetivo
A palavra Direito é ambígua.
Não é no mesmo sentido que se fala de “Direito das Sucessões” e do “direito
de suceder de António”.
O Direito das Sucessões é uma ordenação da vida social. É uma realidade
normativa objetivada porque regula a transmissão por morte do património de
qualquer pessoa. Trata-se de Direito objetivo.
O direito de suceder de António é uma posição de vantagem de uma dada
pessoa, de um sujeito. É uma realidade subjetiva porque se refere a uma
determinada pessoa.
O direito subjetivo é uma posição de vantagem que resulta da afetação de
um bem aos fins de uma pessoa.
O Direito é entendido em sentido objetivo quando se reporta a um critério
geral de decisão e conduta, i.e., um critério que é aplicável a uma pluralidade de
pessoas que não são determináveis no momento da sua formação. Este critério
geral tanto poderá ser uma regra como um princípio.
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A ordem jurídica
Há fundamentalmente dois modos de encarar a ordem jurídica.
Para as orientações normativistas, a ordem jurídica resume-se a um
sistema de regras jurídicas. Uma variante mais moderada concede que, além
das regras jurídicas, o sistema jurídico também é formado por princípios
jurídicos.
Para outra corrente, seguida entre nós por L. PINTO COELHO, GOMES
DA SILVA e OLIVEIRA ASCENSÃO, a ordem jurídica é uma realidade muito
mais englobante que as regras por que se traduz.
Elementos da ordem jurídica:
à o elemento normativo (regras, princípios e nexos intrassistemáticos);
à os valores da ordem jurídica;
à os meios de tutela jurídica;
àas estruturas sociais juridicamente relevantes, designadamente as
organizações sociais;
à as situações jurídicas.
Direito e ordem jurídica
A palavra “Direito” é utilizada em várias aceções. Já contactámos com
algumas destas aceções: Direito objetivo e direito subjetivo.
Mas a palavra “Direito” também é utilizada frequentemente no sentido de
ordem jurídica, incluindo, pois todos os elementos que acabámos de enunciar,
designadamente o elemento normativo, que diz respeito ao Direito objetivo, e as
situações jurídicas individuais, que dizem respeito aos direitos subjetivos.
Além disso, a palavra “direito” é ainda empregue no sentido de justiça.
No presente curso, tender-se-á, na I Parte, a encarar o Direito como
ordem jurídica, por forma englobante, embora excluindo as situações jurídicas.
Na II Parte, o Direito será considerado essencialmente como sistema
normativo (regras, princípios e nexos intrassistemáticos).
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Em suma, quando se fala em Direito pode-se referir a mesma totalidade,
porque o Direito é necessariamente um sistema ou ordem. Neste sentido, Direito
e ordem jurídica equivalem-se. Mas pode-se também tomar Direito como a
expressão jurídica. Essa expressão é dada justamente pelas regras. Nesse
sentido o Direito seria o complexo normativo que exprime a ordem jurídica.
A regra jurídica
Estruturalmente a regra jurídica é uma proposição que enlaça pelo menos
dois elementos: a previsão e a estatuição.
A previsão é constituída pelo conjunto dos elementos que têm de estar
presentes para que a norma se aplique. Podemos designar estes elementos por
pressupostos.
A estatuição consiste numa consequência jurídica.
Por exemplo, o art. 66.º/1 CC: “A personalidade adquire-se no momento
do nascimento completo e com vida”.
Previsão: “nascimento completo e com vida”.
Pressupostos:
- nascimento;
- completo;
- com vida.
Estatuição: “A personalidade adquire-se...”.
As fontes do Direito
A expressão “Fontes do Direito” tem tradicionalmente que ver com a
génese das regras jurídicas, isto é, do Direito objetivo.
O seu alcance não abrange, assim, a génese de todos elementos da
ordem jurídica.
A expressão Fontes de Direito tem vários sentidos. Interessa-nos
fundamentalmente o sentido técnico-jurídico ou dogmático.
Neste sentido são fontes do Direito os modos de criação das regras e
princípios jurídicos.
Neste sentido são fontes, designadamente, a lei e o costume.
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Na realidade o que se abrange por esta epigrafe, não é todo o Direito, é
exclusivamente o Direito Objetivo – mais precisamente as regras jurídicas que o
exprimem.
CAP. III - DIREITO E ESTADO
Direito e poder
A relação de poder é uma das formas de relacionamento social.
O poder é – em sentido sociológico – uma faculdade de determinar ou
influenciar a conduta doutrem.
Quanto ao conteúdo da relação de poder poderemos distinguir entre:
à Poder de injunção: determinar condutas com base na sanção ou
ameaça da mesma. Ex: poder político
à Poder de influência: condicionar condutas través da persuasão. Ex:
com base numa promessa.
Direito e poder político
O poder político é um poder de injunção dotado de coercibilidade material.
Coercibilidade material é a suscetibilidade do uso da força física ou da
pressão material.
O poder político tem a possibilidade de determinar a conduta das pessoas
com base na aplicação coerciva de sanções ou, como sucede na maioria dos
casos, no receio da aplicação coerciva de sanções.
Estas sanções vão desde uma privação crescente de recursos naturais
(por exemplo, a multa) até ao uso da força física (por exemplo, a privação da
liberdade – prisão).
Mas isto não quer dizer que o poder político se funde na coercibilidade.
Para se afirmar de modo duradouro e incontroverso este poder tem de ser
legítimo. Tem de ser admitido pela sociedade e de ter uma base consensual.
Nesta medida o significado da coercibilidade relativiza-se. O poder político
legítimo funda-se menos na coercibilidade do que no reconhecimento social.
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Nem todo o poder político é estadual. O poder político existe pelo menos em 3
planos:
à Plano estadual: o governo português é um dos órgãos do poder político
do Estado;
à Plano supraestadual: diz-se que a Assembleia Geral das Nações
Unidas é órgão de um poder político supraestadual;
à Plano infra estadual: quando dentro de um Estado haja
descentralização política ou administrativa; Ex: os governos regionais dos
Açores e da Madeira são órgãos de poder político infra estadual; também os
órgãos das autarquias locais.
O Estado moderno é um modelo de sociedade caracterizado pelo
monopólio dos órgãos públicos na legítima utilização da força física e pela
centralização das decisões políticas mais importantes.
Porquanto o Direito tem hoje de repousar, quanto à sua coercibilidade, no
emprego da força física por parte de órgãos públicos, tem de haver uma ligação,
uma interação entre Direito e Estado.
A coercibilidade do Direito, pelo menos estadual, depende do poder
político.
Mas as relações entre o Direito e o poder político não se limitam à
coercibilidade, são mais complexas.
No Estado de Direito, diferentemente do absolutismo, a própria relação de
poder é regulada pelo Direito. Há um primado do Direito sobre o Estado e, mais
em geral, sobre o poder político (arts. 3.º/2 e 108.º CRP).
Os direitos dos cidadãos são garantidos por este primado e pela divisão do poder
político (designadamente entre o poder executivo, o poder legislativo e o poder
judicial).
O poder político é juridicamente enquadrado: a sua titularidade é
juridicamente definida, o seu objeto é juridicamente delimitado e o seu exercício
é juridicamente regulado. Portanto, o poder político é objeto do Direito.
Por outro lado, o poder político é criador de regras de conduta social
dotadas de coercibilidade, que, em princípio, são direito. Portanto, o poder
político é criador de Direito.
O que nos introduz na relação entre Direito e função legislativa do Estado.
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Direito e função legislativa do Estado
Entenderemos aqui por Estado a sociedade, fixa num determinado
território, que por autoridade própria instituiu um poder político relativamente
autónomo.
Quanto à questão de saber se todo o Direito é criado pelo poder político
estadual defrontam-se duas posições diametralmente opostas.
Para o positivismo voluntarista, salvo o Direito Internacional, todo o Direito
é um produto do Estado e é efetivado pelo Estado; só as normas emanadas dos
órgãos do Estado são Direito; o costume, nomeadamente, não é Direito.
Para outras correntes, o poder político tem um papel pouco relevante na
formação do Direito. Assim, para a escola sociológica o Direito é a ordem que
efetivamente vigora na sociedade; para certas correntes jusnaturalistas o Direito
é a essência de uma ordem natural da sociedade.
Procuremos responder a esta questão perante a realidade das atuais ordens
jurídicas.
O Estado exerce a função política, a função administrativa e a função
jurisdicional. A função política subdivide-se em função legislativa e função
governativa ou política stricto sensu consoante se traduza ou não em atos
normativos.
Aos órgãos que têm a seu cargo a função legislativa pertence produzir
normas jurídicas. Mas também no exercício da função administrativa se criam
regras jurídicas (regulamentos). E o mesmo se pode verificar com o exercício da
função jurisdicional, embora o valor das decisões dos tribunais como fonte do
Direito dependa muito do sistema jurídico em causa.
Nas ordens jurídicas dos Estados modernos os órgãos do poder político
estadual tendem a desempenhar o principal papel na produção de normas
jurídicas. Pensamos principalmente nas assembleias legislativas e nas
competências legislativas do governo.
Como representantes dos membros da sociedade é natural que sejam
eles a determinar as regras que ordenarão a vida social.
Acrescente-se que o formalismo de que normalmente se reveste o
processo legislativo, e a circunstância de as leis serem publicadas, conferem à
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norma legal um grau de certeza jurídica, precisão e facilidade de conhecimento
dificilmente comparável ao das regras geradas por outras fontes do Direito.
O funcionamento das modernas sociedades industriais seria impensável
se não contasse com a existência de um enorme conjunto de leis
pormenorizadas, complexas e que carecem de constantes adaptações e
aperfeiçoamentos.
Apesar de tudo, não se pode identificar o Direito com o produto da ação
normativa dos órgãos do Estado.
Desde logo, num plano muito geral, a ordem jurídica de um Estado é
apenas uma das ordens jurídicas estaduais que vigoram no mundo, e coexiste
com ordens jurídicas supraestaduais, designadamente com a ordem jurídica
internacional e, no nosso caso, com a ordem jurídica da União Europeia.
Ao nível da ordem jurídica de cada Estado, ainda que os órgãos do Estado
assumam o principal papel na produção de regras jurídicas, tal não implica um
monopólio da criação do Direito: nada obsta a que vigorem regras jurídicas que
se formaram independentemente da atividade legislativa do Estado.
Certo é que nem todo o Direito vigente na ordem jurídica estadual é
necessariamente emanado de órgãos do Estado.
Todas as normas produzidas por órgãos estaduais são Direito?
É discutido se todas as normas emanadas dos órgãos estaduais são
sempre e em qualquer caso Direito, mesmo, por exemplo, quando sejam
manifestamente injustas.
Nas ordens jurídicas dos Estados modernos os órgãos do poder político
estadual tendem a desempenhar o principal papel na produção de normas
jurídicas. Pensamos principalmente nas assembleias legislativas e nas
competências legislativas do governo.
Como representantes dos membros da sociedade é natural que sejam
eles a determinar as regras que ordenarão a vida social.
Acrescente-se que o formalismo de que normalmente se reveste o
processo legislativo, e a circunstância de as leis serem publicadas, conferem à
norma legal um grau de certeza jurídica, precisão e facilidade de conhecimento
dificilmente comparável ao das regras geradas por outras fontes do Direito.
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O funcionamento das modernas sociedades industriais seria impensável
se não contasse com a existência de um enorme conjunto de leis
pormenorizadas, complexas e que carecem de constantes adaptações e
aperfeiçoamentos.
Direito supraestadual (a cima do Estado), para estadual (ao mesmo nível do Estado) e infra estadual (a baixo do Estado)
Já se assinalou que no mundo não existe só uma pluralidade de ordens
jurídicas estaduais.
Também temos a ordem jurídica internacional que regula principalmente
as relações entre os Estados na sua qualidade de entes soberanos, as relações
entre organizações internacionais e as relações entre estas e aqueles.
O Direito Internacional Público é verdadeiro Direito, tem as suas fontes
próprias, que não dependem da vontade deste ou daquele Estado. É Direito
supraestadual. O mesmo se diga do Direito da União Europeia.
Há outras ordens ou complexos normativos que se desenvolvem em
contacto com a esfera social de vários Estados, sem que tenham qualquer
posição subordinante relativamente ao Direito estadual. Podemos falar, a este
respeito, de Direito para estadual.
É o que se verifica, designadamente, com os complexos normativos
criados por sociedades para estaduais, tais como as associações internacionais
que prosseguem fins científicos, culturais e humanitários, certas igrejas, as
associações internacionais de interesses económicos, as federações
desportivas, as empresas transnacionais.
A nível infra estadual há diversos fenómenos de produção jurídica
autónoma, independente do Estado.
Além do pluralismo jurídico associado a processos de descentralização
política ou apenas administrativa (por exemplo as Regiões Autónomas e os
Municípios), temos três casos de produção jurídica autónoma:
à Costume;
à Produção de normas no seio de organizações sociais nacionais privadas;
à Casos excecionais em que a autonomia negocial produz regras jurídicas.
22
Em suma, mesmo no seio da sociedade estadual nem todo o Direito é
produzido por órgãos estaduais (ou do poder regional ou local).
No entanto, uma vez que o poder político detém o monopólio da coerção
material, a coercibilidade do Direito autónomo fica dependente da sua receção
ou, pelo menos, do seu reconhecimento pelo poder político.
Mas até que ponto a coercibilidade é uma característica essencial do Direito?
Norma jurídica e sanção
Já falamos de imperatividade (normas que estabelecem a obrigação de
conduta – normas injuntivas). Com ela se liga a categoria de sanção. Sanção é
uma consequência desfavorável normativamente prevista para o caso de
violação de uma regra, e pela qual se reforça a imperatividade desta.
Em todas as ordens normativas há sanções, embora a sua índole varie
profundamente de caso para caso.
Nem toda a regra é assistida por sanção, mas a existência de sanções é
natural consequência da imperatividade.
Sanções jurídicas
Toda a regra jurídica ou outra, pode ser assistida por uma sanção, que
reforça a sua imperatividade.
A sanção é sempre uma consequência desfavorável que atinge aquele
que violou uma regra.
É um efeito jurídico, conteúdo de uma regra jurídica cuja previsão é a
violação de uma regra de conduta. Implica, pois, sempre a entrada em rigor de
novas regras denominadas regras sancionatórias.
Por exemplo, o Art. 131.º do Código Penal determina que quem matar
outra pessoa é punido com pena de prisão de 8 a 16 anos. Temos aqui uma
proposição complementar. A proposição principal é a que proíbe matar.
23
Segundo a sua função as sanções jurídicas podem classificar-se nas
seguintes espécies, que se distinguem pela função que desempenham:
à Compulsória – impor uma pena ao infrator;
à Reconstitutiva – reparadora dar aquilo que era do outro;
à Compensatória - Tem uma função reparadora (reconstituir a situação
que existia antes da violação da regra) e repressiva (impor uma pena ao infrator);
à Preventiva – prevenir que volte a acontecer;
à Punitiva – Função repressiva (impor uma pena ao infrator).
Uma só violação pode desencadear várias sanções. Ex: um homicídio põe
em ação uma sanção punitiva: a prisão; uma sanção compensatória: a
indemnização por danos pessoais; e, eventualmente, uma sanção preventiva: a
prisão preventiva.
A ordem jurídica não atua só após a violação consumada, pode prever
intervenções, pela força, se necessário for, para prevenir ou evitar violações
futuras.
A verdadeira sanção também não deve confundir-se com as medidas
incentivadoras, nem com as medidas dissuasoras, por meio das quais o poder
político influencia a conduta das pessoas.
No caso das medidas incentivadoras, entre duas ou mais condutas
permitidas o poder político favorece a realização de uma delas, promove uma
certa conduta, sem a impor.
No que toca às medidas dissuasoras, a prática de uma atividade, ainda
que permitida, pode ser submetida a desvantagens que desencorajam as
pessoas a realizá-la.
Nestes casos, entre duas ou mais condutas permitidas o poder político
desfavorece a realização de uma delas, sem, no entanto, a proibir.
è Sanções compulsórias:
Têm função repressiva (impor uma pena ao infrator).
Perante a existência de uma conduta contrária à regra a sanção compulsória
atua sobre o infrator para o levar a adotar a conduta devida. Não são muito
frequentes. Ex: suponhamos que o pai condenado à prestação de alimentos aos
24
seus filhos menores, se omite. Poderá ser preso até que pague. A finalidade
compulsória da prisão evidencia-se na circunstância em que irá cessar fogo, logo
que a pensão alimentar for paga.
É referida nos artigos:
à Art. 829.º-A CC estabelece a sanção pecuniária compulsória. A
requerimento do credor o tribunal pode condenar o devedor que não tenha
cumprido uma obrigação ao pagamento de uma quantia pecuniária por cada dia
de atraso no cumprimento ou por cada infração.
à Art. 250.º CP estabelece que aquele que estando legalmente obrigado
a prestar alimentos e em condições de o fazer, não cumprir a obrigação, é punido
com pena de prisão ou com pena de multa.
è Sanções reconstitutivas:
Tem uma função reparadora (reconstituir a situação que existia antes da
violação da regra).
No Direito privado, a violação de uma norma injuntiva desencadeia
normalmente uma sanção reconstitutiva. Consiste esta sanção na imposição da
reconstituição em espécie, in natura, da situação a que se teria chegado com a
observância da norma. Reposição ou restauração natural.
Ex: Se A ocupa um prédio de que B é possuidor, a reação normal a esta
situação é pedir ao tribunal que expulse A e entregue o prédio a B.
No caso da responsabilidade civil este “princípio geral” encontra-se
enunciado no art. 562.º CC.
A sanção reconstitutiva também surge nos casos em que for admitida a
execução específica de uma obrigação.
è Sanções compensatórias:
Tem uma função reparadora (reconstituir a situação que existia antes da
violação da regra) e repressiva (impor uma pena ao infrator).
A sanção reconstitutiva pode não ser possível (caso já não exista), não ser
suficiente (danos irreparáveis), ou ser excessivamente onerosa.
25
Utiliza-se então, em seu lugar ou cumulativamente, uma sanção
compensatória.
Procura-se atingir uma situação que embora diferente da que resultaria da
observância da norma seja valorativamente equivalente. A sanção
compensatória opera sempre através de uma indemnização de danos sofridos.
Consoante a natureza do dano, assim, podemos distinguir várias modalidades:
à Falta do próprio bem devido;
à Danos patrimoniais;
à Danos não patrimoniais.
A impossibilidade, insuficiência ou excessiva onerosidade da reconstituição
natural encontram-se expressamente previstas, em matéria de responsabilidade
civil, pelo Art. 566.º CC, que manda fixar nestas hipóteses uma indemnização
em dinheiro.
è Sanções punitivas:
Função repressiva (impor uma pena ao infrator).
A sanção punitiva ou pena não tem por função reconstituir a situação que
existiria se a infração se não tivesse verificado, mas sim castigar o infrator. A
pena consiste numa sanção imposta de maneira a representar um sofrimento e
uma reprovação para o infrator.
Esta pena corresponde às violações mais graves da ordem jurídica.
No nosso Direito a pena consiste principalmente numa privação de recursos
ou da liberdade. Em Direito Penal isto corresponde às penas de multa e de
prisão.
è Sanções preventivas:
Reage à violação de uma regra jurídica, mas coma finalidade da sanção
preventiva é a de, perante a violação de uma norma jurídica, evitar violações
futuras.
É o que verifica com as medidas de segurança em Direito Penal.
Ex: uma pessoa que tenha cometido um crime que não lhe possa ser
imputado por sofrer de anomalia psíquica, é mandada internar em
26
estabelecimento adequado se houver fundado receio de que venha a cometer
outros factos da mesma espécie (Art. 91.º/1 CP).
Coercibilidade e sanção
Enquanto suposta característica do Direito a coercibilidade é
frequentemente definida como suscetibilidade de aplicação coativa da regra.
Será isto exato?
Coercibilidade não é o mesmo que coação. Define-se muito
frequentemente como a suscetibilidade de aplicação coativa da regra.
Do exame das sanções jurídicas atrás realizado resulta que só num caso
a sanção leva à aplicação coativa da regra violada: no caso da sanção
compulsória. Em todos os restantes casos, a sanção aplicada não tem por
função impor a observância futura da norma na situação em causa.
Poderá então dizer-se que a coercibilidade é a suscetibilidade de
aplicação de uma sanção?
Também não é inteiramente exato. A sanção, como vimos, é um efeito
jurídico. Para a sanção ser aplicada basta que este efeito se produza, por
exemplo, que se imponha a uma pessoa o dever de indemnizar ou que se
condene alguém a uma pena de prisão.
Em rigor a coercibilidade liga-se à realização coativa da sanção, isto é,
quando a sanção é efetivada mediante a utilização de força física.
Certas sanções, como é o caso da prisão, são sempre de realização
coativa, ao passo que outras sanções, como a indemnização, só são realizadas
coativamente se o sancionado não cumprir a obrigação de conduta que lhe é
imposta pela proposição sancionatória.
Em suma, a coercibilidade da regra jurídica consiste na suscetibilidade de
impor o cumprimento de uma conduta através do uso da força, isto é, da
aplicação de sanções.
Ato Jurídico: é uma manifestação de autonomia privada.
Efeito Jurídico: é a consequência do ato jurídico.
27
Ordens jurídicas sem coercibilidade
Será que todas as ordens jurídicas são caracterizadas pela
coercibilidade?
A resposta é negativa.
As ordens jurídicas supraestaduais (designadamente a ordem jurídica
internacional e a ordem jurídica da União Europeia são desprovidas de
coercibilidade).
As ordens jurídicas para estaduais, como o Direito Canónico, também são
em absoluto destituídas de coercibilidade.
As ordens ou complexos normativos autónomos infra estaduais são muito
diversos entre si. Em princípio, os particulares não podem utilizar diretamente a
coerção material e, por conseguinte, a coercibilidade das normas infra estaduais
depende da colaboração dos órgãos públicos.
Os fenómenos de coercibilidade do Direito infra estadual independente da
ordem jurídica estadual são limitados à instituição familiar e a comunidades
tradicionais que vivem à margem da organização do Estado.
Por conseguinte, tanto a vigência como a efetividade do Direito infra
estadual não dependem da coercibilidade.
A coercibilidade nas ordens jurídicas estaduais
A coercibilidade não é mesmo, então, característica de cada regra jurídica
tomada por si. É, todavia, uma característica das ordens jurídicas estaduais.
Em primeiro lugar, cabe recordar que nem todas as normas são injuntivas,
nem todas as normas têm sanção.
Em segundo lugar, entre as normas injuntivas, há normas que, na prática,
não têm sanção jurídica, ou só a têm em casos extremos. É o que se verifica
com muitas normas que regulam as relações que se estabelecem no seio da
família.
28
Há também o caso particular das chamadas obrigações naturais. Estas
obrigações não são judicialmente exigíveis, mas se o devedor as pagar
voluntariamente não pode exigir a restituição (Art’s. 402.º e 403.º CC).
Pode ainda verificar-se que a regra seja violada por um órgão estadual
supremo, sem que haja outro órgão superior em posição de o sancionar.
Portanto, a coercibilidade não é característica de cada regra jurídica da
ordem jurídica estadual tomada de per si. Porque?
à Há regras jurídicas que não têm sanção;
à Há regras jurídicas cuja sanção não pode ser coativamente imposta.
Mas será uma característica da ordem jurídica estadual no seu conjunto? Sim.
Meios de tutela jurídica
A jurisdição designa a tarefa de dizer Direito. Esta evoluiu de um sistema
de justiça privada para um sistema de justiça pública.
O Estado moderno caracteriza-se não só pelo monopólio público dos
meios de coerção, mas também pelo princípio da tutela pública. Por força deste
princípio o Estado toma a seu cargo a tutela dos direitos e interesses protegidos
pela ordem jurídica (Art. 20.º/1 CRP). O direito de acesso aos tribunais constitui
um direito fundamental (Art’s. 20.º/1 e 268.º/4 CRP).
A tutela pública da ordem jurídica estadual incumbe a dois tipos de órgãos
públicos:
à Órgãos jurisdicionais – os tribunais (órgãos imparciais e especializados,
incumbidos do exercício dessa função);
à Órgãos administrativos – a administração central – sob a direção ou
superintendência do Governo e a administração autónoma (designadamente as
autarquias locais e as regiões autónomas).
Os tribunais têm a seu cargo a função jurisdicional que consiste na
aplicação do Direito por órgãos independentes e colocados numa posição de
imparcialidade (cf. Art. 203.º CRP).
Nos termos da Constituição, incumbe aos tribunais a defesa dos direitos
e interesses legalmente previstos, reprimir a violação da legalidade democrática
e resolver litígios (Art. 202.º/2 CRP).
29
O exercício da função jurisdicional traduz-se, em regra, no julgamento: a
decisão jurisdicional ou sentença resolve um caso concreto, definindo as
situações jurídicas em causa por forma vinculativa e, em princípio, definitiva (Art.
205.º/2 CRP).
Os tribunais são órgãos independentes, colocados numa posição de
imparcialidade, e cujos titulares não podem, em regra, ser sancionados pela
forma como exercem a sua atividade (Art’s. 203.º e 216.º/2 CRP).
Os tribunais são independentes porque não estão sujeitos a quaisquer
ordens, instruções ou diretivas de qualquer superior hierárquico quanto ao
exercício da atividade jurisdicional, salvo o acatamento pelos tribunais inferiores
das decisões proferidas, em via de recurso, pelos tribunais superiores (Art. 4º do
Estatuto dos Magistrados Judiciais e Art. 5.º/1 da Lei de Organização do Sistema
Judiciário aprovada pela L n.º 62/2013, de 28/8) .
Outro aspeto desta independência resulta da nomeação, colocação,
transferência e promoção dos juízes, bem como o exercício da ação disciplinar,
não competirem ao poder executivo, isto é, ao Governo ou aos órgãos dele
dependentes, mas a um órgão autónomo, o Conselho Superior da Magistratura.
Os tribunais são imparciais porque só lhes compete declarar o Direito em
cada caso, não lhes cabendo tutelar seja os fins da Administração seja os
interesses de qualquer das partes. Os tribunais devem manter a sua
equidistância relativamente às partes em litígio.
Contrariamente ao que por vezes se afirma o princípio da tutela pública
não significa que o Estado tenha o monopólio da atividade jurisdicional.
Os tribunais arbitrais, que assentam numa convenção de arbitragem celebrada
entre as partes de um litígio ou controvérsia (arbitragem voluntária) ou numa
determinação legal (arbitragem necessária), são hoje amplamente
reconhecidos. A arbitragem é um modo de resolução jurisdicional de litígios em
que a decisão é confiada a um particular. Em muitas ordens jurídicas, como a
portuguesa, as decisões dos árbitros têm tanto valor como as sentenças
proferidas em processo declarativo por um tribunal estadual.
Aos órgãos administrativos cabe realizar fins coletivos, mas estes órgãos
também devem respeitar os direitos e interesses juridicamente protegidos dos
cidadãos face à Administração (Art. 266.º CRP). Daí que a tutela da ordem
jurídica pelos órgãos administrativos apresente dois aspetos diferentes.
30
Por um lado, a Administração quer fazer valer perante os particulares os
interesses coletivos ou pretende impor a estes a observância das leis,
regulamentos ou providências concretas.
Para o efeito, a Administração recorre até certo ponto à autotutela dos
seus direitos, i.e., exerce-os pelos seus próprios meios e coercivamente sem ter
de recorrer previamente aos tribunais.
Por outro lado, pode falar-se numa tutela ou garantia administrativa dos
direitos do administrado face à própria Administração.
O administrado há de poder defender-se perante os atos administrativos
que violem a ordem jurídica.
Há garantias graciosas ou administrativas dos direitos dos administrados
que permitem impugnar atos administrativos através de reclamação para o órgão
que praticou o ato ou de recurso hierárquico para a entidade hierarquicamente
superior.
Se estes meios falharem ou, independentemente destes meios, se o
recurso hierárquico não for necessário, há as garantias contenciosas, isto é, a
ação administrativa, interposta no tribunal competente, para a impugnação de
todas as decisões que, no exercício de poderes jurídico-administrativos, visem
produzir efeitos jurídicos externos numa situação individual e concreta (Art.
51.º/1 C. Proc. Trib. Ad.). Mas trata-se então de uma tutela jurisdicional e já não
administrativa (Art. 268.º/4 CRP). Mas trata-se então de uma tutela jurisdicional
e já não administrativa (Art. 268.º/4 CRP).
A coercibilidade como uma das notas formais e materiais da ordem jurídica estadual
Voltemos então à questão de saber se a coercibilidade é uma
característica da ordem jurídica estadual considerada no seu conjunto.
Mais adiante procuraremos definir o Direito. Por agora interessa sublinhar
que o Direito é uma realidade complexa e multifacetada que é dificilmente
apreensível através de uma definição.
Vimos que nas modernas sociedades estaduais o Direito carece, para
realizar as suas funções, de um sistema organizado de sanções suscetíveis de
realização coativa.
31
Verificámos também que a tutela da ordem jurídica estadual é realizada
principalmente por órgãos públicos e que, em regra, estes órgãos detêm um
monopólio da coerção material.
Portanto, a coercibilidade é um dos aspetos característicos do Direito nas
sociedades estaduais.
É uma nota formal, na medida em que a coercibilidade é algo de exterior
às regras e aos princípios jurídicos, algo de estranho ao seu conteúdo.
Mas a coercibilidade também contribui para delimitar materialmente a
ordem jurídica. Frequentemente, a opção de legislar em certa matéria é
influenciada pela necessidade garantir a observância de certa regra de conduta
social através da suscetibilidade de aplicação coativa de sanções.
Outras vezes, a decisão de não legislar em certa matéria é influenciada
pela consideração de que a inobservância de eventuais comandos legislativos
não poderá ser sancionada coativamente.
Noutros casos, dota-se de coercibilidade regras ou complexos normativos
jurídicos não-estaduais, ou mesmo extrajurídicos, por exemplo morais, mediante
uma receção pela ordem jurídica estadual.
Em suma, surge-nos como um dos aspetos característicos da ordem
jurídica estadual o ter ao seu dispor os meios de coerção material do poder
político e a inclusão de importantes complexos normativos garantidos pela
suscetibilidade de realização coativa de sanções.
Mas é apenas uma das facetas. Tomá-la como característica decisiva
seria deformar o Direito e reduzi-lo apenas à dimensão de uma ordem que
exprime o poder de injunção do poder político.
Isto é importante para a questão da validade do Direito.
Poderá a validade da ordem jurídica estadual assentar na coercibilidade?
Antes de respondermos a esta questão cabe referir alguns casos
excecionais em que é lícito aos particulares defenderem direitos, próprios ou de
outrem, mediante a utilização de força física.
32
à manifestações atuais de autotutela (repor os nossos próprios direitos sem
recorrer ao tribunal) privada:
à Legitima defesa;
à Direito de resistência;
à Estado de necessidade;
à Ação direta.
Manifestações atuais de autotutela privada
Em princípio, o poder político detém o monopólio da coerção material.
O Art. 1.º CPC determina que a “ninguém é lícito o recurso à força com o
fim de realizar ou assegurar o próprio direito, salvo nos casos e dentro dos limites
declarados na lei.” (princípio do Estado Moderno).
Este preceito admite que a lei autorize formas de autotutela.
Além da ampla autotutela de que goza a Administração, há casos
excecionais em que os particulares podem atuar coercivamente a fim de
defenderem os seus direitos ou os direitos de outrem.
è legítima defesa, prevista no Art. 337.º CC e nos Art’s. 32.º e 33.º CP:
A legitima defesa é a imposição da ordem natural. Se alguém é atacado
por outrem, em lugar erróneo não é concebível que lhe seja proibido reagir ao
agressor, com a consideração de que só o Estado pode usar a força para impor
o Direito.
Segundo o n.º 1 do Art. 337.º “Considera-se justificado o ato destinado a
afastar qualquer agressão atual e contrária à lei contra a pessoa ou património
do agente ou de terceiro, desde que não seja possível fazê-lo pelos meios
normais e o prejuízo causado pelo ato não seja manifestamente superior ao que
pode resultar da agressão.”
Segundo o Art. 32.º CP “Constitui legítima defesa o facto praticado como
meio necessário para repelir a agressão atual e ilícita de interesses juridicamente
protegidos do agente ou de terceiro”.
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São pressupostos da legítima defesa civil:
à ofensa de um direito pessoal ou patrimonial próprio ou alheio – pressupõe
uma conduta voluntária e ilícita (ativa ou omissiva). MENEZES CORDEIRO
entende que a agressão também pode visar valores jurídicos que não deem
lugar a direitos subjetivos;
à a atualidade – agressão em curso de execução ou iminente;
à a intenção de defesa ou animus defendendi;
à a necessidade – a impossibilidade de recorrer à tutela pública ou a um meio
privado que evite a agressão (por exemplo, fechar uma porta ou chamar
familiares ou amigos);
à a adequação ou proporcionalidade (é controverso).
Este último pressuposto significa o seguinte: o meio tem de ser idóneo e
não pode ser manifestamente desproporcionado ao bem jurídico defendido: por
exemplo, um guarda não pode matar a tiro uma criança que furte laranjas num
pomar; uma pessoa não pode anavalhar mortalmente outra que a injurie.
Caso contrário, há excesso de legítima defesa. O ato praticado em
excesso de legítima defesa só é justificado se for devido a perturbação ou medo
não culposo do agente (art. 337.º/2 CC). É controverso se neste caso nos
encontramos ainda perante uma causa de justificação da ilicitude, ou se se trata
apenas de uma causa de exclusão da culpa.
A legítima defesa é uma causa de justificação civil e criminal. Quer dizer,
uma conduta que, em princípio, geraria responsabilidade civil ou criminal, é
considerada justificada e, portanto, lícita.
Se uma pessoa agir na suposição errónea de se verificarem os
pressupostos que justificam a legítima defesa, é obrigado a indemnizar o
prejuízo causado, salvo se o erro for desculpável (Art. 338.º CC).
Podemos em conclusão dizer que a defesa é legítima se:
à há agressão ilegal;
à a agressão está em execução ou eminente;
à é contra a pessoa ou património do agente ou de terceiros;
à é impossível recorrer à força pública;
34
à há necessidade/racionalidade na defesa.
è direito de resistência (passivo, resistir a algo que viola os direitos. Não
acatar uma ordem):
Encontra-se consagrado no Art. 21.º CRP: “Todos têm o direito de resistir
a qualquer ordem que ofenda os seus direitos, liberdades e garantias e de repelir
pela força qualquer agressão, quando não seja possível recorrer à autoridade
pública.”
O que constitui uma manifestação de autotutela privada é o direito de
repelir pela força qualquer agressão. Trata-se de uma resistência defensiva que
tanto pode ser oposta a particulares como a agentes de autoridade pública. Aqui
parece encontrar-se uma manifestação da legítima defesa. O seu exercício está
sujeito a critérios de racionalidade ou de proporcionalidade.
è estado de necessidade. Encontra-se previsto no Art. 339.º CC e nos
Art’s. 34.º e 35.º CP:
Determina o n.º 1 do Art. 339.º CC que “é lícita a ação daquele que destruir
ou danificar coisa alheia com o fim de remover o perigo atual de um dano
manifestamente superior, quer do agente, quer de terceiro.”
Por exemplo, para combater um incêndio que lavra no seu prédio, A
necessita de entrar no prédio de B. O incêndio coloca vidas em risco. A pode
licitamente entrar no prédio de B, mesmo sem a sua autorização deste ao abrigo
do estado de necessidade.
Pressupostos do estado de necessidade civil são:
à um perigo atual de um dano (patrimonial ou pessoal), para o agente ou para
um terceiro (o dano pode estar em curso ou ser iminente);
à dano esse que seja manifestamente superior ao dano causado pelo agente;
à necessidade: a atuação do agente deve ser objetivamente adequada,
designadamente em virtude da impossibilidade de recorrer em tempo útil à
autoridade pública.
A diferença relativamente à legítima defesa reside em que o perigo não
resulta de uma agressão ilícita por parte do titular dos interesses sacrificados; O
35
estado de necessidade não deriva de nenhum agente, é algo exterior como o
fogo ou uma inundação e a legitima defesa envolve duas pessoas.
Em Direito Civil tratar-se-á de uma causa de justificação de conduta ilícita
(destruição ou dano de coisa alheia)? Cp. Art. 339.º/2/2.ª parte CC: mesmo que
o perigo não seja provocado por culpa do autor da destruição ou do dano o
tribunal pode fixar uma indemnização equitativa e condenar nela não só o
agente, como aqueles que tiraram proveito do ato ou contribuíram para o estado
de necessidade. Tratar-se-á só de uma causa de exclusão ou atenuação da
culpa?
MENEZES CORDEIRO entende que se trata de uma causa de justificação
e que neste último caso há uma imputação de danos por atos lícitos (porque
justificados).
è ação direta (ativa):
Segundo o Art. 336.º/1 CC “É lícito o recurso à força com o fim de realizar
ou assegurar o próprio direito, quando a ação direta for indispensável, pela
impossibilidade de recorrer em tempo útil aos meios coercivos normais, para
evitar a inutilização prática desse direito, contanto que o agente não exceda o
que for necessário para evitar o prejuízo.”
Concebida como um tipo de maior amplitude de legitima defesa ou de
estado de necessidade. Mesmo hipóteses que não sejam abrangidas por
aqueles, podem encontrar ainda justificação na ação direta.
A ação direta pode dirigir-se contra coisas ou contra pessoas. Nos termos
do Art. 336.º/2 CC, “A ação direta pode consistir na apropriação, destruição ou
deterioração de uma coisa, na eliminação da resistência irregularmente oposta
ao exercício do direito, ou noutro ato análogo.”
São pressupostos da ação direta:
à a existência de um direito próprio (ou mais amplamente de uma posição
jurídica ativa atuável jurisdicionalmente);
à o risco de inutilização prática da posição jurídica ativa;
à a necessidade – impossibilidade de recorrer em tempo útil à tutela pública;
à adequação – o meio não pode exceder o necessário para evitar um prejuízo;
36
à superioridade dos interesses que o agente visa realizar ou assegurar
relativamente aos interesses sacrificados (Art. 336.º/3 CC).
É uma causa de justificação da ilicitude.
Penso que a ação direta se distingue da legítima defesa e do estado de
necessidade por ter uma função diferente (a ação direta pretende assegurar um
direito).
Pode haver áreas de sobreposição dos respetivos âmbitos de aplicação.
O agente será beneficiado pela causa de justificação que lhe for mais favorável.
À semelhança do que se verifica com a legítima defesa, se o titular do
direito agir na suposição errónea de se verificarem os pressupostos da ação
direta, é obrigado a indemnizar o prejuízo causado, salvo se o erro for
desculpável (Art. 338.º CC).
Também parece de aplicar analogicamente o regime do excesso de
legitima defesa ao excesso desculpável de ação direta.
Coercibilidade, validade e efetividade
Foi atrás assinalado que a coercibilidade é uma das notas relevantes para
caracterizar a ordem jurídica estadual.
A validade da ordem jurídica estadual não deve ser baseada na
coercibilidade, mas na sua idoneidade para a institucionalização da sociedade,
nos fins que lhe cabe prosseguir e no reconhecimento social que decorre da
aptidão do seu conteúdo e dos seus procedimentos – perante a consciência dos
sujeitos jurídicos – para a realização destes fins.
Distinta da questão da validade de uma ordem jurídica globalmente
considerada é a da validade das suas regras singularmente consideradas.
O critério da validade de cada uma das regras do sistema também não
pode ser a coercibilidade. Não só porque nem todas as regras são dotadas de
coercibilidade, mas também porque é a coercibilidade que pressupõe a validade
e não o contrário.
Uma norma que não seja válida não deve, em caso de violação,
desencadear a aplicação de uma sanção nem a sua realização coativa.
A validade da regra jurídica tem que ver com aspetos formais do processo
de criação jurídica e com exigências materiais, relativas ao seu conteúdo,
37
colocadas fundamentalmente por normas de escalão mais elevado e por
princípios constitucionais. Por conseguinte, também se liga à questão dos
valores e será retomada no capítulo seguinte.
Em suma, o critério da juridicidade, da validade normativa, não se
reconduz ao critério da coercibilidade.
E quanto às relações entre coercibilidade e efetividade?
O conceito de efetividade abrange quer o facto de a regra ser aplicada
(como critério de decisão) pelos órgãos de realização do Direito quer o facto de
ser normalmente observada pela generalidade dos destinatários da regra (como
critério de conduta).
Para distinguir estes dois aspetos da efetividade podemos falar de
aplicação do Direito pelos órgãos competentes e de observância do Direito
(KELSEN).
Para que uma regra seja normalmente observada pode contribuir, em
maior ou menor grau, o receio da realização coativa de uma sanção. Portanto, o
poder, e a coercibilidade por que se exprime, é uma das bases reais da
efetividade da norma.
Mas seria um erro supor que é a única base ou a base principal.
Ex: Numa sociedade democrática não se concebe que o Direito seja
imposto à sociedade pela força. A autoridade do Direito repousa sobre a
convicção daqueles a que se dirige de que é necessário à vida em sociedade,
de que prossegue fins da sociedade e dos seus membros e de que o seu
conteúdo é apto para a realização destes fins.
Isto liga-se à legitimidade do poder.
Numa ordem constitucional aceite por todos ou pela maior parte dos
membros da sociedade, são os órgãos legislativos do Estado que se encontram
na melhor posição para identificar os fins que devem ser prosseguidos e para
escolher os meios mais adequados à sua prossecução. Portanto, as regras
emanadas destes órgãos apresentam-se perante a consciência da generalidade
dos membros da sociedade, incluindo aqueles que pessoalmente delas
discordam, como merecedoras de observância.
A base principal da observância do Direito é, portanto, o reconhecimento
social do Direito.
Importa ainda referir as relações entre efetividade e validade do Direito.
38
Já tive ocasião de sublinhar que a vigência de uma regra não depende
necessariamente da sua normal observância, porque a normatividade não se
reconduz à normalidade. A inefetividade não atinge a vigência.
Mas sublinhei também que a ordem normativa da sociedade tem de
assentar num mínimo de efetividade das regras e princípios de conduta que a
integram, considerados no seu conjunto.
Um complexo normativo que não seja predominantemente observado e
cujas regras não sejam geralmente aplicadas pelas instituições jurisdicionais não
ordena a sociedade, não integra a ordem social, é um mero modelo ideal.
CAP. IV - DIREITO E VALORES
O Direito como uma ordem dotada de “sentido”
A ordem pressupõe critérios racionalmente apreensíveis, a ordem tem de
se fundar na razão.
A ordem jurídica assenta em juízos de valor. Esta conduta é de preferir
aquela. Entre as partes de um litígio a posição de uma das partes deve
prevalecer.
A generalização de juízos de valor leva ao conceito mais abstrato de
“valor”, representação cultural do que é valioso, estimado, prezado. Os valores
informam os critérios para resolver conflitos de interesses, para determinar quais
são os interesses mais valiosos.
A estabilidade e institucionalização das relações sociais que caracterizam
uma sociedade exige, no plano cultural, que pelo menos certas normas e
instituições exprimam valores assumidos pelos seus membros com um relativo
consenso.
O Direito surge assim caracterizado por uma nota material, teleológica, de
ordem ao serviço de certos valores, como uma ordem dotada de um “sentido”.
O Direito como ordem normativa recebe ou pode receber o seu conteúdo
valorativo da política, da moral e da religião.
Como valores do Direito, tal como o conhecemos no nosso sistema
jurídico e em sistemas jurídicos semelhantes, podemos apontar a paz, a certeza
e previsibilidade jurídicas, a dignidade da pessoa humana, a igualdade, a
39
liberdade, a adequação, o equilíbrio e o bem-estar económico, social, cultural e
ambiental.
A Constituição é, entre outros aspetos, a sede dos valores jurídicos
básicos acolhidos na comunidade política. Por conseguinte, é na lei
constitucional que em primeira linha devemos procurar os valores da ordem
jurídica.
Os valores da ordem jurídica são valores socialmente reconhecidos.
Se o sistema jurídico no seu conjunto é visto como servindo estes valores
é, em princípio, encarado como uma ordem de justiça.
Isto independentemente da questão de saber se as todas suas leis,
singularmente consideradas, são justas.
A justiça
A ideia de justiça surge como ideia unificadora destes valores, como
exprimindo a intencionalidade própria da ordem jurídica, o seu “sentido”.
Já os romanos definiam o Direito como a arte do bom e do justo (jus est
ars boni et aequi).
Quanto às relações entre Direito e justiça, deparamos com três conceções
fundamentais: a da escola de Direito Natural, ou jusnaturalismo, a da escola
histórica, ou historicismo, e a do juspositivismo.
è Jusnaturalismo, historicismo e juspositivismo
Para a escola de Direito Natural o Direito/ jusnaturalismo é a essência de
uma ordem natural da sociedade.
Há uma ligação essencial entre Direito e moral, o Direito é necessariamente
moral, não há apenas uma área de coincidência. A ideia de “Direito” integra a
realização de certos valores morais.
É Santo Agostinho quem afirma: “uma lei injusta não é de modo algum lei”.
Mas o jusnaturalismo não defende a desobediência a todas as leis injustas.
A lei injusta, embora não obrigue em consciência, só pode ser desobedecida
se daí não resultar um mal maior.
40
Alguns admitem que nem todos os preceitos legais estabelecem deveres
morais. Concede-se que há setores normativos mais ou menos vastos que são
moralmente neutros (OLIVEIRA ASCENSÃO). Mas todas as leis têm de ser
moralmente permitidas, válidas.
A escola de Direito natural remonta aos pensadores gregos (Platão,
Aristóteles) e romanos (Cícero) e teve um dos seus momentos mais altos na
filosofia cristã medieval de S. Tomás de Aquino.
Esta conceção de Direito Natural é confrontada com objeções de diversa
ordem.
Por certo que a existência de uma ordem normativa é elemento
constitutivo de uma sociedade. Algumas normas são tradicionalmente
observadas e parecem essenciais à vida em sociedade tal como a conhecemos.
Mas é questionável o conhecimento de quaisquer normas universais, que
tenham vigorado em todas as sociedades e em todos os tempos.
Mesmo que pudéssemos determinar que certas normas foram
consideradas vinculativas em todas as sociedades este conhecimento permitiria
apenas fazer um juízo descritivo. Deste juízo descritivo não se pode deduzir a
validade destas normas.
Da circunstância de uma norma ser tradicionalmente observada não
decorre, por si só, que esta norma tenha uma pretensão de vigência
incondicional em todas as sociedades e em todos os tempos. Por exemplo, há
trezentos anos atrás a escravatura apresentar-se-ia como um instituto que tinha
existido em toda a história conhecida do homem. E, no entanto, hoje todos
aplaudimos a abolição da escravatura.
Em suma, esta conceção traz consigo o risco de uma confusão entre o
Direito que tradicionalmente vigora e o Direito que deve vigorar.
Também é assinalado que muitas das melhores realizações alcançadas
pelos seres humanos resultam de eles terem aprendido a superar a natureza –
por exemplo, sendo menos violentos do que naturalmente estão inclinados a ser.
Por outro lado, perante a incerteza sobre o conteúdo das leis naturais e
as suas decorrências no caso concreto esta escola leva a colocar o problema do
fundamento e da validade do Direito na dependência dos juízos subjetivos da
consciência de cada indivíduo. Critica-se por isso esta conceção pela
arbitrariedade dos resultados a que conduz.
41
No desenvolvimento dado pelo racionalismo (GRÓCIO) e pelo iluminismo
(LOCKE), que ganhou influência com as revoluções francesa e norte-americana,
o Direito natural passa a ser um produto da razão humana, embora para alguns
tenha o seu fundamento último em Deus.
Este Direito Natural reconhece certos “direitos naturais” dos indivíduos,
que constituem limites à atividade do Estado, por exemplo, o direito à liberdade.
Esta conceção inspira as declarações de direitos, o primado da lei como
fonte do Direito e a codificação.
O jusracionalismo representa um avanço na história do pensamento
porquanto exprime uma atitude reflexiva face à lei, ao costume e ao poder. Esta
atitude favorece a indagação acerca dos valores, dos fins do Direito,
relacionando-se com uma conceção teleológica do mundo.
Também é de salientar a ideia de que certos direitos são inerentes ao ser
humano enquanto tal.
Contra as formulações jusnaturalistas anteriores, o racionalismo opõe que
só a razão humana pode reconhecer os fins e os valores da ordem social.
Contrariamente ao que pretende a conceção jusracionalista, porém, a
razão humana não pode construir em dado momento um sistema completo e
definitivo de organização social, com validade universal, independente do
circunstancialismo ambiente e da situação histórica.
O pensamento é sempre situado num contexto histórico.
Para a escola histórica do Direito/historicismo, o Direito resulta
historicamente, como produto orgânico e unitário, do espírito do povo, e das suas
faculdades ou virtudes interiores e latentes (SAVIGNY). O espírito do povo será
a sua consciência unitária.
Ao primado da razão, a que corresponde o primado da lei e a codificação,
opõe o historicismo o elemento carregado de emotividade do espírito do povo,
que se exprime essencialmente pelo costume.
À intemporalidade e a historicidade das construções jus racionalistas opõe
o historicismo um Direito que se revela nas criações históricas e varia com os
tempos e os lugares.
Esta escola tem razão quando sublinha a historicidade do Direito. Ela
também não escapa, todavia, à crítica.
42
Primeiro, a escola histórica elimina da consideração histórico-jurídica o
conflito de interesses sociais e a decisão política. O Direito não é só o resultado
de um desenvolvimento “anónimo”, mas também de uma conformação criadora.
Segundo, a subserviência ao espírito do povo é adversa à crítica da
situação historicamente existente e favorece a sujeição ao estado de coisas
existente.
Enfim, a escola histórica ignora o fenómeno da influência cultural exercida
por certos sistemas jurídicos sobre outros e a multiplicidade das suas influências
recíprocas.
O positivismo em Direito desenvolve-se em vasta medida como uma
reação ao jusnaturalismo, tendo AUSTIN como o seu pioneiro.
O seu ponto de partida é o de que se deve evitar a confusão gerada pela
escola do Direito Natural traçando uma distinção precisa entre Direito e moral,
bem como entre a perspetiva do direito constituído – de iure constituto – e a do
direito a constituir – de iure condendo. Entre o que é Direito positivo e o que uma
pessoa acha que devia ser o Direito.
É também legado de AUSTIN a conceção da regra jurídica como
comando, como “método coercivo de controlo social”. É a conceção imperativista
da norma jurídica, segundo a qual só é norma jurídica a regra imperativa que for
efetivamente suscetível de aplicação coerciva
Para o positivismo sociológico a vigência da norma fundamenta-se na
suscetibilidade de realização coativa.
Posteriormente, o positivismo normativo, que teve na Teoria Pura do
Direito de KELSEN a sua formulação mais radical, flexibilizaria esta posição.
O positivismo normativo defende, por um lado, que para existir um
comando basta que a regra estatua uma sanção, não sendo necessária a
possibilidade de realizar coativamente a sanção.
Por outro lado, entende que a vigência da norma depende da sua
validade, e esta validade é aferida pela conformidade da norma com normas de
escalão superior, designadamente as normas constitucionais que regulam a
produção jurídica.
A distinção entre o Direito positivo e a política jurídica, isto é, a procura
das melhores soluções, contribuiu para o desenvolvimento da ciência jurídica,
43
embora se tenda hoje a admitir que não há uma separação absoluta entre as
duas perspetivas.
Uma das principais críticas, se não a principal, que é dirigida ao
positivismo é a seguinte: é uma ilusão pensar que, em regra, a solução jurídica
do caso se obtém através de uma aplicação mecânica de uma regra jurídica.
Com muita frequência a solução jurídica do caso apresenta dificuldades e
o intérprete tem de fazer um trabalho criativo.
O caso extremo é o das lacunas, que surgem quando uma situação,
apesar de carecida de regulação jurídica, não é regulada por nenhuma norma
jurídica.
Mas também se verifica perante a utilização em normas jurídicas de conceitos
indeterminados e, em especial, com conceitos carecidos de preenchimento
valorativo, como o de boa fé e o de bons costumes.
A existência de lacunas e conceitos indeterminados permite ao juiz
trabalhar com os valores e decidir.
Se a ordem jurídica fosse apenas uma soma de normas restaria ao juiz
decidir discricionariamente, livremente, segundo as suas convicções pessoais.
Mas a ordem jurídica oferece outros critérios que orientam a solução do caso
(designadamente valores e princípios jurídicos gerais).
A crítica do conceito imperativista de norma jurídica como regra suscetível
de aplicação coerciva já foi feita anteriormente. O positivismo dá uma visão
deformada da ordem jurídica, que baseia na imposição forçada de deveres.
O fundamento da obrigatoriedade da norma não pode estar na coação
material. Se assim fosse poder-se-ia dizer que se um ladrão nos aponta uma
arma e exige o nosso dinheiro nós estaremos obrigados a entregar o dinheiro.
Isto não é correto: nós somos forçados a dar-lhe o dinheiro, apesar de não temos
o dever de fazê-lo.
O próprio AUSTIN explicitou este ponto, fazendo valer que nem todos os
comandos são Direito. Os comandos jurídicos teriam de se distinguir dos não-
jurídicos pela sua linhagem ou pedigree, isto é, pela legalidade da sua fonte.
O Direito é um comando formulado por um ente soberano. Isto conduz ao
positivismo voluntarista, que vê no Direito um conjunto de comandos ditados pelo
poder político.
44
Para o positivismo voluntarista o Direito teria o seu fundamento no poder
político. A questão da validade do Direito dilui-se na da legitimidade do poder.
Esta perspetiva tem o mérito de salientar que para a validade do Direito,
para o dever de obediência ao Direito, não releva apenas o seu conteúdo, mas
também a circunstância de ser emanado de órgãos de um poder legitimamente
constituído.
Mas esta perspetiva não é suficiente. Diz-nos pouco quanto à validade do
Direito não legislado, por exemplo o costume e a jurisprudência. E não pode
deixar de haver limites materiais à validade do Direito, por mais imprecisos e
controversos que possam ser, que têm de ser respeitados pelo poder político.
Por seu turno, fundamentar a vigência da norma apenas na sua
conformidade com normas de escalão superior, como defende o positivismo
normativo, leva-nos até à norma fundamental do sistema, que justifica todas as
normas que dele façam parte.
Para KELSEN esta norma fundamental seria uma norma pressuposta,
segundo a qual as normas devem ser criadas em conformidade com a primeira
Constituição histórica e com as normas constitucionais estabelecidas em
conformidade com ela. A primeira Constituição histórica é aquela cuja validade
não pode ser reconduzida a uma constituição anterior. Em última análise a
vigência desta primeira Constituição histórica é fundamentada na sua
efetividade.
Por esta via, em última instância, a validade do Direito é fundamentada
na ideia de efetividade-coercibilidade, o que se presta à crítica anteriormente
formulada.
Na realidade, o problema da validade do Direito nunca pode ser
inteiramente resolvido por uma lógica normativa. A cadeia de legitimação lógico-
normativa não pode ser interminável.
Tem de haver um fundamento último, assente ele na ordem natural, na
efetividade, na legitimidade do poder, no princípio democrático, na referência a
valores ou numa combinação de algumas destas ideias.
45
Tendências atuais
As correntes atuais são menos antagónicas, mais ecléticas.
Podemos começar por assinalar alguns pontos de convergência:
à a ciência jurídica deve concentrar-se no sistema jurídico e não em
leis individualizadas;
à pelo menos para determinados efeitos é proveitoso considerar o
sistema jurídico como um sistema normativo;
à de uma forma ou doutra é possível formular princípios de Direito
positivo que auxiliam a interpretação e a integração de lacunas.
Quanto às correntes positivistas contemporâneas, são de salientar, a par
de fiéis seguidores do positivismo normativo de KELSEN, a escola analítica e
HART.
A escola analítica centra as suas atenções na estrutura do sistema
normativo e na lógica formal do raciocínio jurídico.
Por seu turno, HART critica a visão deformada que baseia o Direito no
conceito de coercibilidade, e salienta o conceito de obligation: nós sentimo-nos
vinculados ao Direito.
O Direito contém um sistema de regras primárias que impõem
vinculações. Este sistema define padrões que permitem valorar condutas. Os
membros de uma sociedade identificam-se com estes padrões de conduta.
Este sistema tem de ser complementado por regras secundárias. Estas
regras secundárias são de três tipos:
àPrimeiro, regras que definem a averiguação conclusiva das regras
primárias (regras de reconhecimento).
àSegundo, regras sobre a introdução, abolição e modificação das regras
primárias (regras de modificação).
àTerceiro, regras sobre a determinação conclusiva da violação das
normas primárias (regras de adjudicação).
Estas regras secundárias criam poderes e competências que são
conferidos tanto às autoridades públicas como a particulares (por exemplo, no
domínio contratual). São também estas regras que dão ao conjunto de regras o
caráter de um sistema.
46
Llalalal
47
Resumindo, o direito é muito mais do que um conjunto de normas que
ditam o que se pode ou não fazer. São necessárias normas sobre quem pode
fazer as normas à normas instrumentais.
Outras correntes sublinham a possibilidade de inferir princípios do sistema
de normas, o que, como foi assinalado, constituiu um ponto de convergência
com as modernas escolas jusnaturalistas.
Em todo o caso, pode dizer-se que as modernas correntes positivistas, ao
tentarem dar uma definição formal de Direito, expurgada de qualquer conteúdo
valorativo, não facultam uma perceção global do fenómeno jurídico.
O neojusnaturalismo vai conhecer grande impulso depois da 2.ª Guerra
Mundial. Isto é por vezes atribuído a uma reação à neutralidade valorativa do
formalismo positivista perante as ditaduras nacional-socialista e estalinista. Em
rigor, porém, o positivismo jurídico esteve associado à defesa do Estado de
direito democrático.
Será mais exato afirmar que, o neojusnaturalismo procurou conciliar
aspetos nucleares da Escola do Direito Natural com as conceções democráticas
que vingaram ou se consolidaram no Ocidente depois da 2.ª Guerra Mundial?
Estas escolas contemporâneas de Direito natural são percorridas por dois
principais vetores:
à a importância dos valores para o Direito e a necessidade, para o
apreender, de uma lógica dos valores ou axiologia;
à a ligação entre Direito e moral só é necessária ao nível do sistema
global: uma ordem jurídica pode conter leis particulares que são injustas ou
imorais, mas para ser uma ordem jurídica tem de satisfazer, no seu conjunto,
certas exigências morais (LON FULLER).
O Direito natural é concebido como um círculo muito restrito de princípios,
abandonando-se a pretensão de fundamentar uma ordem jurídica completa.
Para uns as leis injustas ainda são leis se estiverem integradas num
sistema que no seu conjunto não seja imoral. Já um sistema de regras
48
manifestamente imoral não é um sistema jurídico. Por exemplo, os sistemas nazi
e estalinista.
Para outros esta perspetiva não é, todavia, suficiente face às leis que
sejam manifestamente injustas, embora se não possa dizer que o sistema seja
no seu conjunto manifestamente imoral. Por exemplo, perante as leis de
segregação racial.
As normas singulares não podem vigorar como jurídicas, quando não
satisfaçam exigências éticas mínimas.
É numa das variantes deste pensamento que se situa OLIVEIRA
ASCENSÃO na sua obra “O Direito. Introdução e Teoria Geral”, para quem se
pode fundamentar a validade objetiva de certas soluções na natureza das coisas.
Estas soluções estariam subtraídas à “subjetividade dos agentes socais” e,
assim, constituiriam um limite à arbitrariedade na definição das regras pelo
poder.
Com isto, não se afasta a divergência na ordem do conhecimento, que
não conseguirá evitar que aquilo que para um autor se apresenta como uma
exigência fundamental não o seja para outro. Mas reflexão humana terá como
ponto de referência um núcleo objetivo.
O Direito natural, enquanto conjunto de princípios impostos pela ordem
natural, integra necessariamente a ordem da sociedade. Representa uma ordem
imanente na sociedade, que corresponde a uma sociedade histórica, às
determinações reais que a caracterizam. Se o Direito natural é verdadeiro
Direito, nem todo o “Direito” vigente seria Direito positivo; não o seria se
contrariar a ordem natural.
Numa obra mais recente, OLIVEIRA ASCENSÃO desloca o acento desta
construção para a pessoa, no seu significado ontológico e, portanto, para a
natureza da pessoa. O Direito tem de ser visto como estando ao serviço da
essência e realização da pessoa. Salienta-se também o bem comum como
expressão do bem de todos. Esta perspetiva orienta a solução de questões
fundamentais da pessoa no ordenamento jurídico.
Esta conceção depara com as objeções atrás opostas à escola do Direito
natural.
49
Assinalei as dúvidas que se colocam à existência de um “núcleo
permanente de Direito natural”.
Mesmo a admitir-se a existência de um núcleo constante de normas
jurídicas nas sociedades humanas conhecidas, tal constitui um facto empírico
que não pode constituir o fundamento de vigência destas normas.
E adianta pouco condicionar a validade do Direito, e até da ordem social,
à “essência” e à “estrutura natural”, se não pudermos ter um conhecimento
objetivo destas realidades.
Por certo que o Direito tem de tomar em consideração a realidade e é em
larga medida condicionado por fatores de natureza física, biológica, psicológica,
sociocultural e económica. Poderá falar-se a este respeito de uma “natureza das
coisas”.
Mas enquanto limite suprapositivo à validade da lei este entendimento tem
um alcance bastante limitado, porque o problema coloca-se geralmente quando
há mais de uma solução compatível com a estrutura da realidade.
Neste caso, é necessária uma decisão jurídica, que não encontra uma
fundamentação suficiente no apelo à “natureza” das coisas, da pessoa ou da
sociedade, porque exige sempre valorações.
Uma parte importante das correntes neojusnaturalistas, dá grande relevo
à conceção do Direito como sistema, à sua unidade e coerência. Estas correntes
entendem que o sistema se fundamenta em valores e princípios ético-jurídicos.
Alguns autores pretendem mesmo que estes valores e princípios ético-jurídicos
do sistema limitam o próprio legislador e condicionam a validade das leis
individualmente consideradas.
Para LARENZ não se pode separar inteiramente moral e Direito. Em
ambos se trata do agir “correto”. Os princípios ético-jurídicos são critérios
orientadores da normação jurídica que podem “justificar” decisões jurídicas.
DWORKIN, faz valer que uma separação rígida de Direito e moral nos
impediria de apreender o papel que critérios valorativos extra-jurídicos,
principalmente de índole moral, têm no julgamento de certos casos.
50
A ordem jurídica é mais rica do que o sistema de regras primárias e
secundárias de HART. A par das regras há outros padrões jurídicos [standards]
que orientam o processo de decisão. Há princípios ético-jurídicos subjacentes
ao sistema que podem levar à modificação ou ab-rogação de uma regra.
Mesmo que o caso não seja inequivocamente resolvido por uma regra, o
juiz não tem a “discricionariedade legislativa” do legislador. Tem de atender a
esses princípios e às conceções morais dominantes na sua sociedade e não
proceder a uma ponderação livre de todo o conjunto de interesses sociais.
Segundo DWORKIN, o juiz tem de indagar os princípios éticos
subjacentes ao sistema, de encontrar a melhor justificação moral possível para
as regras vigentes. A coerência do Direito implica que cada uma das proposições
jurídicas são verdadeiras se estão em conformidade com os princípios ético-
jurídicos subjacentes ao sistema.
O reconhecimento dos Direitos fundamentais também se impõe ao Direito
objetivo como uma exigência moral.
Este pensamento deu um enorme contributo para a Filosofia e a Teoria
do Direito, designadamente quanto ao papel desempenhado pelos princípios
ético-jurídicos e ao reconhecimento dos direitos fundamentais.
Apreciação crítica da conceção de DWORKIN:
A existência de coerência dentro da ordem jurídica não implica a sua
dimensão moral. Por exemplo, o sistema jurídico nazi pode ter sido coerente,
sem ser moral. Para uma ordem jurídica ter uma dimensão moral é necessário
que assente num sistema moral objetivamente correto e racionalmente
defensável.
DWORKIN defende uma teoria moral baseada na dignidade da pessoa
humana e que a verdade dos juízos de valor poderá ser estabelecida pela sua
inserção num sistema de valores a que se chega mediante um processo
interpretativo baseado na coerência e na convicção.
Mas a existência da verdade moral e da moral objetiva é ponto
controverso.
Argumenta-se que a filosofia moral reflete os debates e divergências
culturais tão fielmente que as suas controvérsias são tão irresolúveis como os
51
próprios debates políticos e morais. Acrescenta-se que os nossos juízos morais
não são coerentes, e que, portanto, não há uma ordem moral.
Argumenta-se ainda que as sociedades são por vezes muito complexas,
comportando diferentes subculturas com grandes divergências nas escalas de
valor, ou exprimindo compromissos entre diferentes conceções de sociedade.
Por esta razão, seria difícil ou mesmo impossível formular um sistema moral que
possa vincular todos os membros da sociedade.
Na escolha entre teoria morais e conceções valorativas há sempre um
elemento ideológico e uma decisão política, que não é uma decisão científica,
ou, pelo menos, não é uma decisão filosófica.
No universo anglo-saxónico este ceticismo moral (ou relativismo) é muito
poderoso.
Em sentido oposto ao relativismo, a ética cognotivista entende que, é
possível conhecer o conteúdo dos valores e que a decisão sobre os valores é
racional.
Contra o relativismo opõe COING que, por detrás da aparente divergência
de valores entre culturas pode haver um consenso mais vasto se abstrairmos de
diferenças extra-éticas, designadamente diferentes conceções da natureza.
Quanto às divergências entre grupos afirma também que há geralmente
um consenso maior sobre os valores básicos da convivência humana e certas
instituições fundamentais do que sobre ideais de vida ou valores objetivos da
cultura.
Com isto, não se eliminam as contradições valorativas entre teorias
morais. Mas estas contradições serão resolúveis mediante uma avaliação do
mérito destas teorias morais segundo critérios objetivos.
Este é o problema mais difícil e profundo da filosofia da moral (ou ética).
O seu estudo cabe principalmente à disciplina de Filosofia do Direito. Limito-me
a algumas breves reflexões pessoais.
Há por definição certos valores e certos padrões morais de conduta
comungados pela grande maioria dos membros de determinada sociedade sem
os quais a convivência seria inconcebível. Já sabemos que a institucionalização
destes valores e regras de conduta opera uma certa objetivação.
52
Não anda longe o entendimento de autores com RAWLS, para quem uma
sociedade democrática, ao mesmo tempo que admite uma pluralidade de
“doutrinas abrangentes” religiosas, filosóficas e morais, pressupõe uma
“conceção política de justiça” partilhada por todos, uma base pública de
justificação que é geralmente aceite pelos cidadãos em questões políticas
fundamentais.
É certo que a correção ou justiça das conceções dominantes, fundadas
em certa medida em posições ideológicas e convicções políticas, pode ser
discutida e é suscetível de evolução.
Mas será a consciência social dos valores num dado momento histórico,
tendo em conta não só as maiorias circunstanciais, mas também o património
adquirido de valores e princípios fundamentais, o sentido da evolução verificada,
que poderá constituir um limite à validade das leis que manifestamente lhe sejam
contrárias?
A partir daqui não será inútil apreciar quais são estes valores e princípios
e será legítimo entendê-los à luz da ou das melhores teorias morais?
A justificação última do Direito não deve ser procurada na efetividade-
coercibilidade, mas na referência a determinados valores e procedimentos. Esta
referência liga-se, segundo um entendimento democrático, ao reconhecimento
social da pretensão de vigência do Direito.
Por um lado, o consenso relativo sobre os valores a realizar e a aptidão
do conteúdo do Direito para a sua realização perante a consciência dos
membros da sociedade.
Por outro lado, a formação das normas jurídicas segundo procedimentos
geralmente reconhecidos como idóneos para o efeito, designadamente os atos
normativos do poder político legitimado pelo princípio democrático.
Os valores a realizar pelo Direito são, em parte, éticos ou morais, porque
são dignos de serem prosseguidos por si, independentemente dos resultados a
que conduz a sua realização. Mas o Direito também está, e cada vez mais, ao
serviço de outros valores económicos, sociais, políticos, culturais e ecológicos.
53
Enfim, as pretensões de universalizar conceções do Direito que são
baseadas na tradição e cultura ocidental têm de ser encaradas com alguma
reserva.
Ainda que tendencialmente se caminhe para uma universalização de
certos valores, há que reconhecer a existência de clivagens profundas entre as
diferentes famílias de Direitos.
A supremacia do Direito
A ordem jurídica é uma ordem de paz. O Direito traz consigo a paz e a
paz é um pressuposto para a revelação do Direito. Por toda a parte onde o Direito
se desenvolve, termina a luta violenta e adota-se uma solução pacífica em sua
substituição. Os processos jurisdicionais substituem a autotutela privada.
A existência de uma ordem social regida pelo Direito é, em si, um valor. A
consciência deste valor constitui uma motivação da observância dos deveres
jurídicos, mesmo aí onde as pessoas põem em causa a justiça da regra que
impõe o dever e ainda que não considerem provável a aplicação de uma sanção
em caso da sua violação.
A supremacia do Direito projeta-se tradicionalmente em dois planos: a
primazia do Direito sobre o poder e a igualdade perante a lei.
à a submissão do poder, da força, ao Direito à relações entre Direito e
Estado.
A supremacia do Direito significa, para o particular, a proteção perante
intromissões arbitrárias dos poderes públicos na sua esfera privada mas também
a defesa perante poderes sociais de facto.
à a igualdade perante a lei – cf. arts. 12.º/1 e 13.º/1 CRP.
A regra aplica-se a todas as situações da vida que sejam reconduzíveis à
sua previsão independentemente das pessoas que, por estarem implicadas
nessas situações, se tornem seus destinatários. O que interessa é a previsão da
norma e não quem é o destinatário.
Esta igualdade perante a lei tem decorrências quanto à formulação das
normas, à coerência do sistema e à harmonia de decisões.
54
A norma deve ser suficientemente precisa e clara para que na sua
aplicação situações iguais sejam tratadas de igual forma.
O sistema não deve conter normas que exprimam valorações
contraditórias entre si, traduzindo-se em diferenças de tratamento injustificadas
Os tribunais devem ter em conta a conveniência de uma jurisprudência
uniforme: só assim as situações iguais serão tratadas de igual forma. Assim, o
art. 8.º/3 CC determina que “Nas decisões a proferir, o julgador terá em
consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter
uma interpretação e aplicação uniformes do Direito”.
Também o recurso à analogia, como primeiro processo de integração das
lacunas da lei – estabelecido no art. 10.º CC – é uma expressão desta igualdade
perante a lei: situações, que não sendo reguladas por uma norma jurídica, sejam
semelhantes às que são reguladas por uma norma legal, ficarão sujeitas a esta
norma.
Principais valores do Direito
Tradicionalmente aponta-se como valores próprios do Direito a justiça e a
segurança. Esta distinção entre justiça e segurança evoca duas perspetivas
diferentes sobre a aptidão do Direito para a realização das suas funções.
Numa perspetiva material esta aptidão depende do conteúdo das
soluções jurídicas, dizendo respeito à justiça.
Numa perspetiva formal, aprecia-se a aptidão do Direito para a realização
da sua função institucionalizadora independentemente do conteúdo das suas
soluções, antes atendendo, designadamente, à previsibilidade das soluções
para os seus destinatários e à certeza sobre a situação jurídica. Esta é a
perspetiva da segurança jurídica.
Vejamos os principais valores da ordem jurídica portuguesa.
Principiemos com os valores materiais que são aqueles que têm que ver
com o conteúdo das soluções jurídicas.
São referidos a justiça, a liberdade, a lealdade e confiança, a
solidariedade, o bem-estar económico, social, cultural e ambiental.
55
A justiça surge-nos aqui numa terceira aceção: a de um dos valores
materiais do Direito.
Nesta aceção a justiça desdobra-se na proteção da dignidade da pessoa
humana, na igualdade, na responsabilidade, na adequação, no equilíbrio e na
proporcionalidade.
à Dignidade:
A dignidade da pessoa humana é um dos princípios fundamentais
enunciados no art. 1.º CRP e retomado no 13.º/1 CRP. Este princípio postula o
respeito recíproco de todos os seres humanos (DWORKIN), o que implica o
respeito dos seus direitos fundamentais.
à Igualdade:
A igualdade é uma decorrência do princípio da dignidade da pessoa
humana. A igualdade significa tratar igualmente o que é igual e desigualmente o
que é diferente, na medida da sua diferença.
A igualdade está na base de um princípio constitucional, consagrado no
Art. 13.º CRP. Este princípio tem um sentido negativo e um sentido positivo.
Sentido negativo do princípio da igualdade: proibição do arbítrio legislativo
ou de discriminação e privilégio, que se projeta na exigência de fundamento
material bastante ou suficiente para a diferença de tratamento.
A diferenciação deve ser consonante com o sistema constitucional: não
se podem criar situações de desigualdade à margem dos princípios e objetivos
constitucionais considerados no seu conjunto.
E deve ser justificada à luz das concretizações da ideia de Direito, da
consciência jurídica comunitária e da ordem dos valores jurídico-
constitucionalmente protegidos.
Sentido positivo do princípio da igualdade: a igualdade obriga à
diferenciação, ao tratamento desigual de situações desiguais ou
dissemelhantes.
O tratamento igual exige uma igualdade proporcional: tem de se atender
ao grau de igualdade ou semelhança. Não basta uma igualdade meramente
formal: há que obstar ao agravamento das desigualdades existentes e que
56
atenuar as desigualdades existentes, o que pode exigir a introdução de
desigualdades corretivas.
A igualdade liga-se a diversas expressões da justiça que são designadas
por justiça comutativa, distributiva e redistributiva (as duas primeiras têm as suas
raízes em ARISTÓTELES).
à Justiça:
A justiça comutativa (ou sinalagmática) postula que não haja
desigualdades inaceitáveis nas relações que os homens estabelecem entre si.
A justiça comutativa é tradicionalmente invocada a propósito do Direito
das Obrigações, designadamente quanto ao princípio da interdependência das
prestações contratuais e quanto ao enriquecimento sem causa.
Também é relacionada com a responsabilidade. Aquele que ilícita e
culposamente violar direitos ou interesses juridicamente protegidos doutrem
deve ser obrigado a indemnizar o dano que causar.
Segundo a justiça distributiva, os bens económicos, sociais, culturais e
ambientais devem ser distribuídos por forma a que a cada um seja dado o que
merece. Atende-se ao mérito e às necessidades de cada um.
Para o efeito é necessário distinguir igualdade de oportunidades e
igualdade de resultado. Uma igualdade de resultado, i.e., de bens que são
atribuídos a diferentes pessoas, que correspondesse a uma desigualdade
quanto ao “investimento” fornecido sob o plano do esforço e da dedicação, não
será senão discriminação, desigualdade e injustiça. Deve é assegurar-se que,
tanto quanto possível, todos tenham as mesmas oportunidades.
A justiça distributiva também justifica, por exemplo, que os pobres tenham
mais apoio social que os que o não são.
No entanto, modernamente, tende a autonomizar-se uma justiça
redistributiva muito relacionada com o sentido positivo do princípio da igualdade
e com o valor solidariedade: os bens da sociedade não devem ficar distribuídos
por cidadãos, classes e regiões de modo demasiado assimétrico, justificando-
se, designadamente, medidas fiscais corretivas e incentivos para as zonas mais
pobres – ver arts. 2.º e 9.º CRP.
Também pode acrescentar-se uma justiça contributiva (na linha da “justiça
legal” delineada por S. TOMÁS DE AQUINO), que diz respeito à contribuição
57
que é devida à comunidade por cada um dos seus membros para a realização
do bem comum.
Aqui vale um princípio de proporcionalidade: a contribuição deve ser
proporcional ao que cada um pode prestar.
Por exemplo, a justiça contributiva determina que aqueles que tenham
rendimentos mais elevados devam pagar mais impostos.
à Responsabilidade:
A responsabilidade também é uma expressão do dever de respeito
recíproco postulado pelo princípio da dignidade da pessoa humana. Exprime-se
em duas máximas.
Primeiro, neminem laedere (não prejudicar ninguém), i.e., cada um deve
atuar por forma a não lesar os direitos e interesses juridicamente protegidos dos
outros.
Segundo, sibi imputet (é imputável a si próprio) – cada um tem de
responder pelos atos que pratica.
A adequação exprime a coerência do meio em relação ao fim, razão, i.e.,
ato conceptual conforme ao que é, e lógica, i.e., o que é cogente para o
pensamento. Os meios utilizados pelo Direito devem ser os racionalmente mais
apropriados à realização dos fins da sociedade e dos seus membros.
à Equilíbrio:
O equilíbrio significa que na ponderação de valores e interesses de igual
valor se deve dar a máxima realização a cada um com o mínimo sacrifício para
os restantes. Assim, numa área jurídica dominada pelos interesses das partes,
como é o caso do Direito dos contratos obrigacionais, a justiça postula que se
procure satisfazer na mesma medida os interesses legítimos de cada uma das
partes.
à Proporcionalidade:
A proporcionalidade exige que os meios não devam ser excessivos
relativamente aos fins a atingir.
58
à Liberdade:
Por força do valor liberdade tem de se respeitar, na medida do possível,
que cada ser humano decida sobra a sua vida (autodeterminação individual). No
plano coletivo, cada sociedade deve poder decidir sobre o seu destino, cada
Estado deve poder decidir sobre os seus fins (autodeterminação coletiva).
A liberdade postula a democracia. A democracia é a forma de governo
que se baseia em instituições políticas democráticas. As instituições políticas são
democráticas quando, simultaneamente, asseguram que os titulares do poder
são eleitos por sufrágio universal com base no princípio da maioria e respeitam
a dignidade da pessoa humana, designada-mente os direitos fundamentais de
todos os seres humanos.
Na formulação de LINCOLN “a democracia é o poder do povo, pelo povo
e para o povo”.
Portanto a democracia não se baseia apenas no princípio da maioria. Se
a maioria decidir abolir o princípio da maioria ou aprovar leis que não respeitem
a dignidade da pessoa humana o Estado democrático transforma-se num Estado
totalitário.
Este valor fundamenta desde logo o direito fundamental à liberdade
enunciado no art. 27.º CRP, segundo o qual ninguém pode ser total ou
parcialmente privado da liberdade a não ser em consequência de sentença
judicial condenatória pela prática de ato punido pela lei com pena de prisão ou
de aplicação judicial de medida de segurança.
Também as liberdades de expressão e informação, a liberdade de
consciência, de religião e de culto, a liberdade de associação, a liberdade de
mercado e a liberdade contratual, entre outras.
A própria titularidade de direitos subjetivos é uma expressão deste valor.
Daí que os regimes totalitários (como se verificou, designadamente, com
o regime nazi) tendam a opor-se ou a desvalorizar o conceito de direito subjetivo.
Segundo uma conceção liberal pode dizer-se que cada um deve ter a
máxima liberdade desde que não colida com a liberdade dos outros.
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à Subsidiariedade:
Este valor tem ainda como corolário o princípio da subsidiariedade que,
neste contexto, postula que só se justifique a regulação pelo Direito daqueles
aspetos da vida social que, pela sua essencialidade ou especificidade, reclamam
uma intervenção de órgãos públicos (ou de instituições privadas dotadas de
poderes de autoridade, como o são os tribunais arbitrais).
Assim, o Direito não deverá regular aspetos da vida social e da vida
privada que não careçam de regulação normativa nem aqueles em que a
regulação pode ser suficientemente assegurada por outras ordens ou complexos
normativos (espaço livre de Direito).
à Lealdade e confiança:
A lealdade e confiança são outros valores do Direito. No tráfico jurídico,
eles exigem um certa consideração dos interesses legítimos e das expectativas
objetivamente fundadas das outras pessoas; por exemplo, a boa fé na
celebração e execução dos contratos.
O valor lealdade está subjacente à imposição de um dever de lealdade a
pessoas que se encontram em certas posições, por exemplo, ao trabalhador
relativamente à entidade patronal.
A proteção da confiança encontra expressão num princípio da confiança
segundo o qual aquele que cria a aparência de uma conduta jurídica ou de uma
posição jurídica deve considerar-se vinculado como se tal conduta ou posição
existisse (alcance controverso na ordem jurídica portuguesa).
A máxima pacta sunt servanda, i.e., de que os acordos livremente
celebrados devem ser cumpridos, encontra o seu fundamento na liberdade, uma
vez que se trata de vínculos contraídos por meio de um ato autónomo, e na
confiança, que impõe a tutela jurídica das expectativas fundadas na promessa
de uma prestação.
Na base da cooperação entre as pessoas em sociedade não podem estar
só interesses. Esta cooperação também assenta no valor solidariedade, que o
Direito até certo ponto realiza, designadamente em ligação com as já referidas
justiças redistributiva e contributiva.
60
à Bem-estar económico, social, cultural e ambiental:
Os valores do bem-estar económico, social, cultural e ambiental também
se ligam à justiça distributiva e redistributiva.
Para a realização destes valores o poder político adota políticas
legislativas económicas, sociais, culturais e ambientais, que são prosseguidas
nos mais diversos ramos de Direito.
Passemos agora aos valores formais, isto é, aqueles que não dizem
respeito ao conteúdo das regras, mas a aspetos extrínsecos da aptidão do
Direito para realizar a sua função ordenadora.
A expressão segurança jurídica tem servido para designar o conjunto
destes valores formais.
Já assinalámos que, em si, a ordem e a paz são valores que justificam a
supremacia do Direito nas relações entre os seres humanos.
Outros valores formais são a segurança, agora em aceção mais estrita, a
estabilidade e certeza do Direito objetivo, a previsibilidade das decisões
jurisdicionais e a certeza e continuidade das situações jurídicas.
à Segurança:
A segurança postula a exclusão da arbitrariedade, que os problemas
jurídicos sejam resolvidos com base em regras jurídicas ou, na sua falta, com
base em critérios objetivos.
A segurança exprime-se ainda na contrafacticidade e continuidade do
Direito, que permitem contar com o que está juridicamente estabelecido. Os
seres humanos podem construir a sua vida com a proteção desta ordem.
à Estabilidade:
A estabilidade do Direito exige que as intervenções legislativas sejam
prudentes e bem refletidas.
A modificação do Direito representa normalmente uma perturbação da
ordem existente.
Constantes alterações legislativas na mesma matéria comprometem a
realização da função institucionalizadora do Direito e trazem grandes
61
desvantagens aos particulares, designadamente no domínio das relações
económicas, porque não lhes permitem fazer planos.
A certeza do Direito objetivo é servida pela formulação de proposições
jurídicas precisas e de fácil interpretação, como já se sublinhou, e também pela
primazia da lei entre as fontes do Direito.
à Previsibilidade:
A previsibilidade das decisões jurisdicionais depende muito da certeza do
Direito objetivo. Aí onde os tribunais tiverem de resolver problemas de
interpretação ou de integrar lacunas as decisões são inevitavelmente menos
previsíveis. Na determinação dos critérios de interpretação e dos processos de
integração também se tem de ter em conta este valor.
à Certeza e continuidade:
A certeza e continuidade das situações jurídicas é servida pela certeza e
estabilidade do Direito objetivo e pela previsibilidade das decisões jurisdicionais
.
As pessoas devem poder conhecer com facilidade quais as situações
jurídicas constituídas e que devem poder contar com a persistência destas
situações quando não existam razões suficientemente ponderosas para a sua
modificação ou extinção.
A continuidade das situações jurídicas, em ligação com a certeza do
Direito objetivo, justifica certas soluções sobre a aplicação da lei no tempo,
designadamente o princípio da continuidade das situações constituídas ao
abrigo da lei antiga.
A certeza das situações jurídicas é ainda servida pelas exigências de
forma de certos negócios jurídicos e pelos procedimentos de publicidade,
designadamente os registos.
Enfim a certeza das situações jurídicas, em ligação com a supremacia do
Direito, justifica o caráter em princípio definitivo das decisões judiciais (o efeito
de caso julgado que será estudado em Direito Processual).
62
Os valores podem entrar em conflito e têm de ser ponderados. Em
particular, os valores formais têm de ser conciliados com os valores materiais.
É necessário conciliar a certeza do Direito objetivo e a previsibilidade das
decisões judiciais com a chamada justiça do caso concreto à solução do caso
por vias não normativas.
A liberdade pode ser vista em conflito com a justiça e com a segurança
jurídica. Por exemplo, o problema da proteção da parte tipicamente mais fraca.
Tende-se a admitir a superioridade da justiça e do bem estar sobre os
valores formais. Mas, em geral, é necessário sopesar os valores materiais e os
valores formais.
Validade e vigência do Direito
Seguindo a terminologia mais usada poderemos distinguir validade formal
e de validade material.
A validade depende de condições formais, designadamente, no caso da
lei, a legitimidade do órgão legislativo e a regularidade do processo legislativo –
geralmente definidas por regras constitucionais.
Mas a coerência do sistema jurídico postula que a validade das normas
depende não só de terem sido criadas com observância das normas sobre
produção jurídica, mas também da conformidade do seu conteúdo com o
conteúdo das regras e princípios de escalão superior.
E a questão da legitimidade do poder não deve ser dissociada da aptidão
do conteúdo do Direito perante a consciência dos sujeitos jurídicos para a
realização dos fins da sociedade.
Pode conceber-se que haja uma larga divergência sobre a justiça de
certas leis. Mas dificilmente se concebe que, no seu conjunto, o Direito criado e
aplicado por um poder legítimo não seja visto com apto para a realização dos
fins da sociedade.
Por conseguinte a validade também depende de condições materiais,
relativas ao conteúdo jurídico da regra, definidas pelo conteúdo de regras e
princípios de hierarquia de superior (designadamente regras e princípios
constitucionais).
63
Poderá haver limites suprapositivos?
É o fulcro da discussão que nós conhecemos. O legislador do CC
determinou expressamente que o dever de obediência à lei não pode ser
afastado com fundamento na injustiça ou na imoralidade da regra legal (Art. 8.º/2
CC).
Quem entende que existem limites suprapositivos à validade da lei
entende que quaisquer declarações da lei a este respeito estão submetidas a
estes mesmos limites.
Na opinião do regente, há limites materiais de validade suprapositivos.
Estes limites resultam, por um lado, para o Direito estadual, paraestadual
e infra estadual, da tutela de um núcleo irredutível de direitos fundamentais dos
seres humanos assegurada pelo Direito Internacional Público.
Por outro lado, há limites que podem decorrer de valores e princípios
estruturantes de uma determinada sociedade estadual, subjacentes ao sistema
jurídico e socialmente reconhecidos. De acordo com anteriormente exposto, este
acervo de valores e princípios adquiridos não deve ser entendido estaticamente,
mas à luz do sentido da evolução verificada na sociedade.
Estes limites podem resultar da moral, quanto aos os setores da moral
que reúnam consenso social. O Direito não pode impor condutas imorais.
Uma particular teoria moral, subscrita por uma pessoa ou por um setor
social, só pode justificar o desrespeito do Direito vigente internamente, no plano
da consciência da pessoa ou pessoas que a subscrevem, já não pode justificar
socialmente essa atitude.
Indo mais longe, parece de admitir que há valores e princípios adquiridos
pela humanidade, à luz da consciência dominante, que constituem limites de
validade suprapositivos mesmo que ainda não tenham dado corpo a proposições
jurídicas de Direito Internacional
Perante uma Constituição como a portuguesa, que adota um sistema de
receção automática do Direito Internacional Público comum (art. 8.º/1),
“constitucionaliza” a Declaração Universal dos Direitos do Homem (art. 16.º/2),
e aspira a ser a sede dos valores básicos da comunidade, os limites atrás
referidos encontram-se, em princípio, “interiorizados” pelo próprio sistema,
64
tornando-se assim condição jurídico-positiva de constitucionalidade das normas
do sistema.
Mas o problema dos limites suprapositivos pode apesar de tudo colocar-
se em relação ao próprio poder constituinte.
à Outro esclarecimento terminológico - validade e vigência:
Para OLIVEIRA ASCENSÃO a lei ou a ordem que violem a Direito Natural
são mera aparência de Direito fundada na força. No entanto OLIVEIRA
ASCENSÃO exprime esta ideia dizendo que esta lei ou ordem ainda são “Direito”
vigente, mas não Direito positivo.
BAPTISTA MACHADO identifica vigência com validade. É certo que só
vincula o Direito válido. Mas reconduzir-se-á a vigência à validade? A resposta
é negativa. A validade é apenas um dos pressupostos da vigência.
São quatro os pressupostos da vigência:
à A regra tem de existir, isto é, o seu processo de formação tem de estar
concluído;
à A regra tem de ser válida;
à A regra tem de ser eficaz - fontes do Direito: requisitos de eficácia da
lei;
à Tratar-se de Direito positivo em vigor (quarto pressuposto de índole
temporal).
CAP. V - DELIMITAÇÃO DO DIREITO FACE A OUTROS SETORES NORMATIVOS
Nas sociedades ditas primitivas, bem como no Antigo Testamento e no
Corão, é difícil distinguir as regras jurídicas de outras regras sociais,
designadamente as regras religiosas e morais. A ordem normativa da sociedade
surge-nos aí como um conjunto unitário.
Podemos dizer que ocorreu um processo de diferenciação mediante o
qual Direito, normas religiosas e normas morais passam a ser encarados como
65
corpos normativos distintos que desempenham funções diferentes no sistema
social.
Nas sociedades modernas a ordem normativa da sociedade caracteriza-
se, como atrás assinalei, pela complexidade, porque nela descobrimos
diferentes setores normativos.
Isto coloca o problema da delimitação entre estes setores normativos,
entre Direito, moral, normas religiosas, etc.
Em rigor, parece-me que se não deverá falar só de delimitação face a
outras ordens normativas, uma vez que pode haver regras sociais que não
estejam incluídas em ordens normativas.
Ordem jurídica e normas religiosas
Por vezes parte-se do princípio que todas as religiões são ordens
normativas (OLIVEIRA ASCENSÃO). Mas tal oferece dúvida porque se algumas
religiões assentam num sentido de alteridade (isto é, caráter do que é outro) e
transcendência da divindade (budismo e monoteísmos derivados do Antigo
Testamento), outras caracterizam-se por um processo de identificação baseado
no culto dos antepassados.
Poderá dizer-se que só o primeiro tipo de religiões ordena as condutas
tendo em vista as relações com Deus.
São assinaladas quatro diferenças entre a ordem jurídica e as normas
religiosas (MARCELO REBELO DE SOUSA):
à As normas religiosas são essencialmente internas porquanto regulam
as relações de cada homem com Deus. Por conseguinte as normas religiosas
não têm, em primeira linha, uma função de ordenação social, mas repercutem-
se na ordem social, porque os deveres religiosos também dizem respeito à
conduta em sociedade. As normas religiosas são intrasubjectivas, o Direito
intersubjectivo.
à A religião assenta na fé; as suas normas fundamentam-se na
divindade; o Direito é estranho à ideia de fé.
66
à Afirma-se também que a ordem religiosa é uma ordem com sentido de
transcendência. A dimensão social da ordem religiosa é instrumental porque se
destina a preparar a ordem definitiva, que já não é deste mundo. Este sentido de
transcendência é desconhecido do Direito: o Direito procura realizar a justiça nas
relações sociais.
Observe-se, no entanto, que se esta diferença é válida para a religião
cristã, já as coisas se podem apresentar a outra luz perante outras conceções
religiosas.
à As normas religiosas não são assistidas de coercibilidade material e só
vinculam os crentes; o Direito vincula, em princípio, todos os membros da
sociedade em que vigora e a ordem jurídica estadual é caracterizada pela
coercibilidade.
A relevância das normas religiosas na vida social tem variado muito ao
longo do tempo. Qualquer que seja o peso das ordens ou normas religiosas no
conjunto da ordem social, que varia conforma as sociedades, não há dúvida que
historicamente as principais religiões marcaram profundamente a cultura das
sociedades atuais.
Ordem jurídica e moral
O que é a moral?
Encontramos várias perspetivas de filosofia moral.
Perspetiva material: a moral é caracterizada pelo objeto do problema
moral e pelo fim.
De entre os que tomam este ponto de partida podemos distinguir aqueles
que seguem uma conceção subjetivista dos que perfilham uma conceção
objetivista.
Conceção subjetivista: mais estrita, a moral é uma ordem de condutas,
que visa o aperfeiçoamento da pessoa, dirigindo-a para o Bem (é a posição de
OLIVEIRA ASCENSÃO).
Conceção objetivista: a moral diz respeito aos problemas relativos a
aspetos vitais da convivência humana, às condições essenciais da vida em
67
sociedade (restrição e controlo do uso da força, distribuição de recursos,
princípios da propriedade, etc.).
Conceção formalista: a moral é caracterizada pela atitude perante
qualquer problema. Segundo esta conceção, a moral é caracterizada pelo juízo
imperativo, generalizável (a situações similares) e superior (a qualquer juízo
conflituante).
Estas perspetivas não são contraditórias entre si, antes se mostra
possível a sua conciliação.
Na primeira perspetiva, que é material, diremos que são proposições
morais as que concernem ao estabelecimento e manutenção de relações sociais
adequadas com respeito a questões essenciais, bem como as que visam o
aperfeiçoamento da pessoa, dirigindo-a para o bem.
Na segunda perspetiva, que é formal, acrescentaremos que esta ordem
de condutas constitui um imperativo de consciência.
A primeira diferença e talvez a principal entre moral e Direito consiste na
relativa interioridade da moral perante a relativa exterioridade do Direito.
KANT, na sequência da tradição anterior, distinguia a moral, interna (ou
intra-individual), pessoal, da ordem social, relativa ao aspeto exterior da conduta,
e, na mesma base, distinguia o Direito da moral.
Ao Direito não interessariam as motivações nem as intenções do ato.
Por seu turno, a moral não se satisfaz com a uma conduta exterior
conforme ao dever: tanto condena o que praticou uma má ação, como o que a
quis e só por circunstâncias exteriores não a chegou a praticar.
A distinção Kantiana não é correta, porque ao Direito não interessa só o
aspeto exterior da conduta.
Por exemplo, João é atingido por um tiro disparado por Luís. Tal pode ter
acontecido porque João se atravessou subitamente à frente de Luís ou porque
este agiu negligentemente ou porque agiu com a intenção de matar.
A valoração jurídica da conduta de Luís em cada uma destas hipóteses é
completamente diferente e, assim, as consequências jurídicas também são
completamente diferentes.
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Significará isto que o Direito não se caracteriza pela exterioridade?
Pode dizer-se que o Direito tem como ponto de partida o lado externo da
existência. O Direito quer estabelecer uma ordem projetada no exterior. A atitude
interior não interessa enquanto não ocorrer uma conduta ilícita.
Por sua vez a moral não é apenas interior.
A moral não se satisfaz a priori com a intenção de fazer o Bem. Exige que
se pratique o Bem.
A violação que se traduz numa ação reprovável é mais grave do que a
mera disposição interior. Moralmente pior do que desejar a morte doutro é
provocá-la intencionalmente.
A conceção kantiana de moral também é extremada no subjetivismo que
a esta atribui. Ver na moral apenas uma ordem orientada ao aperfeiçoamento da
pessoa ignora que os valores geralmente reconhecidos como morais só têm
sentido com referência às relações da pessoa com os outros, às relações
intersubjetivas. O cerne de toda a moral pode mesmo ser visto no princípio do
respeito mútuo.
A moral tem necessariamente uma dimensão social.
A moral positiva é formada pelas regras morais que vigoram numa
sociedade, com base nas convicções morais dos seus membros.
Quando o Art. 280.º/2 CC determina a nulidade do negócio cujo objeto
seja ofensivo dos bons costumes, esta remissão para os bons costumes tem
sido prevalentemente entendido como referindo-se à moral positiva.
Esta objetividade e positividade da Moral deve, porém, ser relativizada.
Há mesmo quem questione a existência, nas sociedades pluralistas
modernas, de uma moral positiva. Haveria uma pluralidade de conceções
morais, nenhuma delas vigorando para toda a sociedade.
Parece certo que um consenso sobre determinados princípios e regras
coexistirá com divergências sobre muitos outros pontos. Mas esta verificação
não leva a negar a existência de princípios e regras de moral positiva. Cabe
antes questionar se estes princípios e regras de moral positiva formam um
sistema, uma ordem normativa.
Ainda que se admita uma moral social, positiva e objetiva, constitui um
princípio democrático o respeito da esfera privada, por que se tem de aceitar que
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as pessoas ou grupos de pessoas tenham valores e padrões morais de conduta
diferentes dos valores morais dominantes. Como diz BAPTISTA MACHADO, ao
Direito não cabe diretamente a função de garantir uma certa conceção ética.
Algo de radicalmente diferente se passa com a positividade do Direito.
Este define princípios e regras de conduta que vinculam, em princípio, todos os
membros da sociedade, independentemente das suas opiniões pessoais.
Na medida em que há esta heterovinculação pode dizer-se que o Direito
se caracteriza pela heteronomia, enquanto a moral se caracterizaria pela
autonomia, porquanto a definição do dever moral passa sempre pela adesão de
consciência a uma exigência de conduta.
Na moral há uma subjetividade irredutível. A “objetividade” e “positividade”
da moral não podem ser comparáveis às do Direito.
Por conseguinte a contraposição entre heteronomia e autonomia permite
estabelecer uma segunda diferença entre Direito e moral.
Onde se encontra uma terceira diferença entre moral e Direito da
sociedade estadual é no grau de institucionalização.
Na ordem jurídica estadual têm grande peso elementos
institucionalizados que apresentam um grau de desenvolvimento, formalização
e processualização que não encontra paralelo na moral, em especial as normas
jurídicas, os meios de tutela jurídica e as organizações sociais.
Há uma considerável dose de verdade na afirmação de que a
diferenciação entre Direito e moral se apresenta mais como resultado de
condicionamentos histórico-culturais, que de uma diferença intrínseca entre eles.
Em suma, o Direito distingue-se da moral:
à Pela relativa interioridade da moral perante a relativa exterioridade do
Direito;
à Porque a moral se caracteriza pela autonomia, enquanto o Direito se
caracteriza pela heteronomia;
à Porque o grau de institucionalização do Direito e, em particular, da
ordem jurídica estadual, não encontra paralelo na moral.
70
As diferenças assinaladas permitem distinguir o Direito da moral, quando
tomados no seu conjunto, mas não resolvem todas as dificuldades de distinção
entre regras jurídicas e regras morais.
Esta distinção só não é problemática quando se trata de setores jurídicos
moralmente neutros ou de regras e princípios morais que, por forma evidente,
não têm relevância jurídica direta.
Em caso de dúvida sobre a relevância jurídica direta de dada regra ou
princípio de conduta social importa atender ao sistema jurídico, à prática dos
órgãos de realização do Direito e, mais em geral, ao entendimento da
comunidade jurídica.
Quando é que as normas morais vinculam juridicamente?
Em princípio, as normas morais só vinculam juridicamente quando a
ordem jurídica para elas remete, e só na medida em que se conformam com os
princípios e valores da ordem jurídica vigente.
O Direito remete, em certos casos, para valorações morais.
Têm sido prevalentemente entendidas neste sentido as remissões feitas
para os “bons costumes” nos arts. 271.º/1, 280.º/2 e 281.º CC com respeito aos
requisitos do objeto e do fim do negócio jurídico.
A remissão do Direito para a moral também pode ser implícita, quando as
normas jurídicas utilizam conceitos éticos fundamentais como o da dignidade da
pessoa humana.
Nestes casos o intérprete tem de atender a valores morais, quer se possa
apoiar em conceções morais dominantes, quer se tenha de orientar por juízos
de valor mutáveis de “setores populacionais em mudança”. A função de
conceitos indeterminados como o de “bons costumes” é, em boa parte,
justamente a de permanecerem abertos à evolução no domínio dos valores
(ENGISCH).
Esta remissão para valorações extra-jurídicas não é incondicional. A
remissão para valorações extra-jurídicas deve considerar-se sujeita aos critérios
de valoração da ordem jurídica, em especial da Constituição.
Inversamente, como já tive ocasião de defender, a moral também contribui
para o estabelecimento de limites materiais à validade do Direito.
71
Ordem jurídica e regras do trato social
A dita “ordem do trato social” é uma ordenação social destinada a tornar
a convivência em sociedade mais escorreita e agradável.
Por ex: em certas comunidades há uma regra, que não uma obrigação
jurídica, de o noivado não ser quebrado. Quem o fizer vê o seu comportamento
reprovado e pode até ser afastado dos centros de convívio social.
Mas também cumprimentar o vizinho nas escadas; respeitar a fila no
acesso a um transporte público.
Muitas destas regras formam-se no interior de um círculo social. Por
exemplo, há regras próprias de diferentes atividades profissionais.
Na opinião do regente, não se trata de uma ordem normativa, mas de
regras dispersas que em algumas áreas formam conjuntos pouco estruturados
– por exemplo, as regras de cortesia.
Difere da moral e do Direito já que, por definição, não é essencial para a
institucionalização da sociedade.
Distingue-se ainda do Direito das modernas sociedades estaduais pelo
carácter inorganizado da sua génese e pela necessária ausência de
coercibilidade.
O Direito e a Moral são setores normativos necessários à
institucionalização da sociedade, ao passo que as regras de trato social não são
essenciais para a vida em sociedade, embora a tornem mais fácil e agradável.
O desrespeito de um dever moral é uma “má ação”. A ação contrária ao
dever jurídico é uma ação ilícita. A ilicitude exprime uma reprovação intensa.
Quando se trata das regras do trato social fala-se antes de uma ação “feia” ou
“bonita”.
Já pelo caráter inorganizado da sua génese e pela ausência de
coercibilidade, as regras do trato social distinguem-se do Direito estadual, mas
não da moral, nem do Direito entendido no seu conjunto.
72
CAP. VI – CONCLUSÃO
Complexidade e pluridimensionalidade do Direito
O Direito é “um fenómeno complexo, que se manifesta em distintos planos
do ser, em diferentes contextos” (LARENZ).
O Direito tem várias dimensões.
É também uma realização humana, que integra cada sociedade e
acompanha a sua modificação. Por conseguinte, varia conforme a sociedade em
causa e o tempo histórico. É situado no tempo e no espaço.
Por tudo isto é muito difícil, se não impossível, dar uma definição de
Direito.
Notas do conceito de Direito
Parece mais fecundo procurar caracterizar o Direito por diferentes notas,
nenhuma delas de per si definitiva. Para o efeito não é indiferente se falamos do
Direito nas sociedades organizadas em Estado ou nas sociedades ditas
primitivas, se falamos das ordens jurídicas supraestaduais, da ordem jurídica
estadual ou de Direito autónomo.
Se pensarmos nas ordens jurídicas atuais no seu conjunto podemos dizer
que o Direito se manifesta socialmente com 5 notas típicas:
à Setor da ordem normativa da sociedade (dimensão normativa do
Direito);
à Principal setor da ordem normativa da sociedade uma vez que o seu
modo de ser é exatamente o de valorar e orientar a conduta em sociedade, como
decorre da relativa exterioridade que o distingue das regras religiosas e morais;
à Ordem que regula aspetos da cooperação e do conflito social, a
atribuição de bens e a organização do poder;
73
à Ordem orientada a valores fundamentais para a conservação e
progresso da sociedade e para a realização dos seres humanos que a compõem
(dimensão axiológica do Direito);
à Ordem que vincula todos os membros da sociedade,
independentemente das suas convicções e opiniões pessoas (heteronomia do
Direito).
Se pensarmos na ordem jurídica estadual poderemos ainda dizer que a
avançada institucionalização da sociedade estadual passa por um elevado grau
de institucionalização da sua ordem jurídica que se exprime, designadamente:
a) na existência de órgãos que têm a seu cargo a produção de normas
jurídicas e de órgãos que têm a função de aplicar o Direito;
b) na formalização e processualização da criação das regras jurídicas e
da sua aplicação;
c) na disponibilidade de meios coercivos ao serviço de um sistema
organizado de sanções.
Estas notas dão-nos uma imagem relativamente fiel do Direito. Ajudam-
nos a classificar um ordem ou complexo normativo como jurídico ou não-jurídico.
Uma vez reconhecido que dado sistema ou complexo normativo é jurídico,
a qualificação de uma regra como jurídica dependerá da sua pertença a um
sistema ou complexo jurídico.
As funções do Direito
Esta institucionalização da ordem jurídica estadual é também
acompanhada de uma funcionalização, no sentido em que o Direito é visto não
só como realidade dada, mas também como instrumento ao serviço de fins
racionais, e, entre eles, o de transformar a própria realidade
Decorre do anteriormente exposto que, em termos muito gerais, o Direito
desempenha necessariamente uma função institucionalizadora e uma função de
resolução de conflitos sociais. O Direito pode ainda desempenhar uma função
transformadora.
74
TÍTULO II - CARACTERIZAÇÃO DAS CIÊNCIAS QUE ESTUDAM O DIREITO
CAP. I - NOÇÕES GERAIS
Ciências que estudam o Direito e Ciência do Direito
Porquanto o Direito é um fenómeno complexo, que se manifesta em
diferentes planos da realidade e pode ser encarado sob uma pluralidade de
pontos de vista, ele surge-nos como objeto de diferentes ciências.
A Ciência do Direito é apenas uma das ciências que estudam o Direito,
embora seja aquela que nos interessa mais, porque se ocupa do Direito como
um fenómeno normativo.
Outras ciência gerais estudam o Direito na perspetiva que lhes diz
respeito, dando origem a ramos especiais destas ciências: a História, a
Sociologia ou a Filosofia.
Outras ciências que estudam o Direito
Enquanto fenómeno histórico o Direito é objeto da História do Direito;
enquanto fenómeno social é objeto da Sociologia do Direito.
Como manifestação cultural do homem o Direito interessa à Etnologia ou
Antropologia cultural, dando origem a uma Etnologia ou Antropologia jurídica.
Esta ciência tem tendido a limitar-se ao estudo de sociedades tradicionais. No
estrangeiro há algumas obras recentes que também incidem sobre as
sociedades modernas.
As questões últimas sobre o sentido, o fundamento, a validade e o método
do Direito, são objeto da Filosofia do Direito.
Há ainda a considerar o Direito Comparado que face à pluralidade de
ordens jurídicas estaduais procura formular uma teoria para a sua classificação
em grandes famílias e desenvolver métodos frutuosos para a comparação de
Direitos.
75
Outra coisa são as ciências auxiliares do Direito, por exemplo, a Medicina
Legal. Estas ciências não têm o Direito por objeto, mas podem ser relevantes na
elaboração e aplicação do Direito.
Poderá considerar-se que certas ciências que têm por objeto outros
subsistemas sociais também podem atuar como ciências auxiliares do Direito.
A este respeito cumpre salientar a Ciência Económica, que assume
grande importância para a elaboração e a aplicação de vastas áreas jurídicas,
principalmente as que regulam a produção e a distribuição de bens e serviços.
A chamada Análise Económica do Direito, cultivada designadamente por
COASE, CALABRESI e POSNER, estuda:
à Os efeitos das proposições jurídicas e das instituições jurídicas no
funcionamento da economia;
à As soluções jurídicas que devem ser adotadas por forma a garantir a
utilização mais eficiente dos recursos económicos e a maximização do bem-
estar.
Política legislativa
A política legislativa estuda as formas de melhorar a ordem jurídica
através da legiferação.
Surge aqui a distinção entre a perspetiva do Direito instituído, também
expressa pelas expressões latinas de iure constituto ou de iure condito e a
perspetiva do Direito que deve instituir-se, do melhor Direito, a que
correspondem as expressões latinas de iure constituendo e de iure condendo.
A política legislativa coloca-se no plano do Direito a constituir, de iure
condendo.
Portanto, esta ciência não tem por objeto o Direito vigente, mas a reforma
do Direito.
Mais amplamente poderíamos falar de política jurídica para englobar
também o trabalho de desenvolvimento da ordem jurídica feito pela
jurisprudência e pela doutrina.
76
A distinção entre a perspetiva do Direito vigente e a do Direito que deve
ser instituído é importante e para ela contribuiu, como atrás assinalei, o
positivismo e, designadamente, a Teoria Pura do Direito.
Mas o positivismo também foi demasiado longe quando levou a excluir
das obras de ciência jurídica toda e qualquer consideração de política jurídica.
Como adiante veremos, a propósito da interpretação e integração, a
Ciência do Direito não é completamente alheia à política jurídica.
Para além disso, é útil que o jurista não deixe de contribuir para a
formação da opinião sobre a adequação das soluções vigentes e as reformas a
realizar.
CAP. II - HISTÓRIA DO DIREITO
Generalidades
O ser humano é um ser histórico. O seu passado é uma parte integrante
do seu ser atual. O seu passado pessoal, o passado da sociedade a que
pertence, o da cultura em que participa. Também quem quiser compreender o
Direito do presente tem de apreender o seu devir histórico e a sua abertura face
ao futuro.
A História do Direito visa reconstituir as ordens jurídicas que vigoraram no
passado. O estudo do Direito dos povos desaparecidos é História do Direito,
como é História do Direito o estudo de épocas jurídicas passadas de povos
atuais.
A História do Direito é o ramo da História que estuda a formação e a
evolução do Direito e do pensamento jurídico.
Conteúdo
Dentro da História do Direito podemos distinguir, designadamente:
à A história das fontes do Direito;
à A história dos institutos jurídicos;
à A história do pensamento jurídico.
77
Pertence à História do Direito indicar quais os processos pelos quais se
formava o Direito em épocas jurídicas passadas – costume, lei, jurisprudência,
etc.
Cabe seguidamente à História do Direito indicar quais os institutos
jurídicos que vigoraram, procedendo à interpretação das fontes e inserindo as
regras particulares nos conjuntos regulativos que designamos por institutos
jurídicos. Torna-se assim possível caracterizar as ordens jurídicas que vigoraram
no passado em função dos seus principais institutos jurídicos.
Mas a história do Direito também pode alargar-se às formas de
pensamento sobre o Direito e à metodologia jurídica. Nesta medida a própria
ciência do Direito, e talvez uma parte da Filosofia do Direito, constituem objeto
da História do Direito, enquanto história do pensamento jurídico.
A função explicativa da história
Para reconstituir uma ordem jurídica a História do Direito tem de fazer
mais do que descrever essa ordem. Tem de a explicar, esclarecendo os fatores
que a influenciaram e enquadrando-a na sociedade em que se integrava.
A História do Direito não é, portanto, um ramo divorciado da história geral
de uma sociedade; é antes o ramo dessa história geral que se destina à
reconstituição de uma ordem jurídica.
O facto de haver uma autonomia relativa na evolução da ordem jurídica
relativamente às vicissitudes económico-sociais, devido ao peso dos fatores
culturais, não autoriza em caso algum o estudo do Direito fora do seu contexto
social.
78
Método
Em primeiro lugar é necessária uma pesquisa criteriosa das fontes do
Direito em sentido instrumental, i.e., os documentos que contêm os preceitos –
por exemplo, os volumes das Ordenações do Reino, os exemplares do jornal
oficial.
Sobre as fontes recolhidas deve realizar-se uma crítica histórica.
Esta crítica é externa quando se averigua se o documento é autêntico,
genuíno, e se deteta, nas cópias ulteriores, interpolações (i.e., aditamentos
posteriores).
A crítica é interna quando se apura o sentido do texto, através da
hermenêutica. Mesmo depois de captado o sentido do texto o historiador tem de
defrontar o problema da credibilidade da declaração: a declaração pode ser falsa
ou resultar de erro sobre os factos.
Muitas vezes será preciso trabalhar sobre hipóteses sem apoio
documental.
Estas hipóteses serão formuladas por dedução ou inferidas dos dados
apurados para situações análogas.
As conclusões assim obtidas serão provisórias, ficando sujeitas à
confirmação ou infirmação documental.
Importância
A História do Direito tem a importância que a história tem.
No contexto de um curso de Direito é de sublinhar que a História do Direito
tem uma importância grande para a compreensão da ordem jurídica atual.
Primeiro, é útil conhecer os elementos duradouros que persistem do
passado. Há que ser prudente ao afastar soluções consagradas pelo tempo.
Segundo, para compreender a disciplina jurídica em relação a problemas
singulares é por vezes indispensável conhecer a razão histórica.
Terceiro, o conhecimento do atual Direito português será mais profundo
se se conhecer o Direito Romano e o Direito Português antigo.
79
CAP. III - SOCIOLOGIA DO DIREITO
Objeto
A Sociologia do Direito é o ramo da Sociologia que estuda o Direito
enquanto fenómeno social.
O Direito é encarado como um fenómeno social quando estudamos o seu
papel no contexto do sistema social, os pressupostos e consequências sociais
do Direito, as suas instituições sociais, os papéis desempenhados na sociedade
por cada uma das profissões jurídicas e as relações sociais que o Direito
conforma.
Assim, fazemos Sociologia do Direito quando nos questionamos sobre as
condições do surgimento do Direito, bem como sobre as condições da sua
vigência fáctica na sociedade, da sua efetividade.
Método
É MAX WEBER quem emancipa a sociologia do Direito, que deixa de ser
uma ciência auxiliar da “jurisprudência dos interesses”, i.e., da indagação dos
interesses tutelados pelo Direito, para passar a ser um ramo da Sociologia.
Diferentemente de EHRLICH, para MAX WEBER a sociologia não é uma
pura ciência dos factos, é uma “sociologia compreensiva” que vê a conduta
humana como “significativa”.
Como “significativa” e, por conseguinte, “compreensível” designa WEBER
a conduta humana que se dirige para um fim ou se orienta por certas
expectativas. “Sentido” significa o sentido “subjetivo” efetivamente tido em conta
pelo agente no caso particular, ou o sentido médio e aproximativo, que se verifica
numa massa de casos.
Segundo esta conceção, a Sociologia é uma ciência cuja missão é a
pesquisa de nexos causais; o sentido tido em conta pelo agente é considerado
como fator causal. Para o efeito a Sociologia utiliza métodos de pesquisa
empírica, como os inquéritos, a observação e a análise de documentação. Em
parte, a Sociologia pode também recorrer a experiências.
80
WEBER é criticado por ignorar que a “o agir social dos homens e a índole
das relações sociais reais” estão “também determinados e conformados por
momentos ideais (representações normativas)” e têm de ser compreendidos à
sua luz. A sociologia tem de atender ao conteúdo objetivo de sentido dos
institutos jurídicos e das estruturas sociais juridicamente relevantes.
Por outras palavras, a conduta social não pode ser compreendida apenas
à luz dos fins ou expectativas que os seres humanos pretendem realizar, mas
também à luz da sua conformação com complexos normativos e estruturas
sociais que os seres humanos interiorizaram.
À laia de conclusão provisória, podemos dizer que a Sociologia segue os
seus métodos próprios mas não pode ignorar a normatividade das regras
jurídicas, a sua pretensão de vigência. Tem de atender às representações
normativas que determinam a conduta humana.
E tem de atender também à especificidade do sistema jurídico e à sua
(relativa) autonomia perante outros sistemas de ação no contexto mais geral do
sistema social.
Importância
A Sociologia do Direito é desde logo necessária à compreensão do
Direito, mediante o seu enquadramento no conjunto do sistema social. O estudo
que empreendemos no cap. I da nossa disciplina é essencialmente uma
introdução sociológica ao Direito.
A Sociologia do Direito é também importante ao nível das normas jurídicas
singularmente consideradas. A realidade social em resposta à qual cada norma
jurídica é concebida constitui o pano fundo indispensável para a sua
compreensão. O conhecimento da realidade social atual face à qual a norma
deve operar é também importante não para ajuizar da adequação da norma
vigente, mas também para a própria interpretação da norma, que como veremos,
pode ter em conta a alteração da realidade social subjacente.
81
CAP. IV - DIREITO COMPARADO
Noção de Direito Comparado
Direito Comparado é a disciplina jurídica que tem por objeto estabelecer
sistematicamente semelhanças e diferenças entre sistemas jurídicos
considerados na sua globalidade (macro comparação) e entre institutos jurídicos
afins ou equivalentes em sistemas jurídicos diferentes (micro comparação).
Não é um ramo de Direito, mas uma disciplina científica, uma área da
Ciência do Direito.
Funções do Direito Comparado
O Direito Comparado desempenha múltiplas funções, ao nível do Direito
nacional, do Direito supraestadual e da cultura jurídica.
à Direito Nacional:
Ao nível do Direito nacional, o Direito Comparado é, em primeiro lugar,
instrumento de política legislativa. A busca das melhores soluções tem hoje
normalmente de passar pelo exame das soluções dadas ao problema de
regulação por diferentes sistemas jurídicos.
Em segundo lugar, o Direito Comparado serve para a interpretação das
regras jurídicas, principalmente quando tenham sido inspiradas por estudos de
Direito estrangeiro, bem como no que toca às normas de conflitos de Direito
Internacional Privado.
Em terceiro lugar, o Direito Comparado serve para a integração de
lacunas, quando não for possível resolver o problema por via analógica.
à Direito Supraestadual:
A nível do Direito supraestadual verificamos, em primeiro lugar, que o
Direito Comparado serve a unificação internacional ou regional. Na preparação
de Convenções internacionais ou regulamentos europeus que uniformizem ou
unifiquem o Direito o Direito Comparado é um instrumento fundamental. O
mesmo se verifica na preparação de instrumentos que se destinam apenas a
82
harmonizar os ordenamentos nacionais, sem eliminar todas as diferenças entre
os sistemas em presença.
O Direito Comparado também releva na determinação dos limites que
devem ser colocados à unificação internacional ou europeia e à sua conjugação
com o pluralismo jurídico.
Em segundo lugar, a comparação de Direitos é um importante instrumento
de interpretação das normas uniformizadas ou unificadas.
Em terceiro lugar, o recurso ao Direito Comparado é necessário para a
atuação de certas fontes subsidiárias do Direito Internacional e de certas normas
do Direito da União Europeia, quando estas remetem para os “princípios gerais
de Direito reconhecidos pelas nações civilizadas” e para os “princípios gerais
comuns aos Direitos dos Estados-Membros”.
à Cultura Jurídica:
Ao nível da cultura jurídica, o Direito Comparado é um meio de formação
dos juristas em geral.
Por um lado, o conhecimento da unidade e da diversidade dos diferentes
sistemas jurídicos contribui para uma melhor compreensão do Direito na sua
globalidade e do sistema jurídico nacional.
Por outro lado, os grandes temas científicos são frequentemente comuns.
O estudo das construções jurídicas em países de grande elaboração científica
pode contribuir muito para o progresso da Ciência do Direito no nosso país.
Mas é importante sublinhar que este estudo tem de assentar num labor
comparatístico, porque as construções jurídicas são feitas perante determinados
regimes jurídicos.
Método
O método específico do Direito Comparado é o método comparativo que
consiste em apurar semelhanças e diferenças de sistemas ou de institutos
jurídicos afins ou equivalentes de sistemas diversos.
As questões metodológicas gerais do Direito Comparado dizem respeito
à seleção dos sistemas a comparar e ao procedimento comparativo.
83
Os estudos comparativos podem ser bilaterais ou multilaterais, conforme
abranjam dois ou mais sistemas.
O procedimento comparativo importa um estudo dos Direitos em presença
e a sua comparação. Um mero estudo de Direito estrangeiro, sem
esclarecimento das semelhanças e diferenças com o Direito pátrio, não é um
estudo de Direito Comparado.
No modelo mais tradicional, um estudo de Direito Comparado comporta
uma parte de análise dos sistemas em comparação e uma síntese comparativa.
Metodologia da macro comparação
A macro-comparação consiste, como se assinalou, na comparação de
sistemas jurídicos considerados na sua globalidade. Esta comparação pode ser
um fim em si, mas tem andado geralmente ligada a uma classificação dos
sistemas jurídicos em famílias de Direitos.
Na macro-comparação é necessário elaborar uma grelha comparativa,
i.e., selecionar os elementos que são relevantes para o enquadramento e
caracterização de um sistema jurídico, tais como a evolução histórica, a
estrutura económico-social, a conceção de Direito, os valores fundamentais, as
fontes do Direito e os métodos da sua interpretação e aplicação, os órgãos de
aplicação do Direito e as profissões jurídicas
Estes elementos levam a agrupar a maior parte dos sistemas da Europa
ocidental e continental na família romanogermânica, os sistemas inglês, dos
EUA, Austrália, etc. na família do Common Law, e, dantes, os sistemas da ex-
União Soviética, dos países da Europa da Leste e da China, designadamente,
integravam a família dita socialista.
É ainda possível uma comparação de famílias de Direitos, que poderemos
designar por mega-comparação.
84
Metodologia da micro-comparação
Na micro-comparação, a delimitação dos sistemas a comparar depende
essencialmente do fim da comparação e de considerações de ordem prática, tais
como o tempo, meios e conhecimentos linguísticos de que o comparatista
dispõe.
No estudo do Direito estrangeiro deve atender-se não só aos textos legais
e doutrinais mas também, tanto quanto possível, à jurisprudência e à vida
jurídica. Com efeito, o comparatista não deve contentar-se com a determinação
do “Direito dos livros” [law in books] , deve averiguar o “Direito em acção” [law in
action].
Também assume especial acuidade o problema da comparabilidade dos
institutos jurídicos.
A este respeito há divergências importantes entre os cultores do Direito
Comparado. A tendência dominante faz apelo à equivalência funcional entre
institutos jurídicos: estes institutos são comparáveis quando desempenham uma
função sócio-económico equivalente.
Mas pode desempenhar um papel importante a identidade do problema
de regulação jurídica subjacente ou dos conceitos científicos em causa.
Também é geralmente necessário elaborar uma grelha comparativa que
seleciona questões suscitadas pelo instituto ou problema de regulação jurídica
em estudo.
CAP. V - FILOSOFIA DO DIREITO
Conteúdo
A Filosofia do Direito liga os problemas suscitados pelo Direito como
manifestação cultural às questões gerais e básicas da filosofia: que podemos
nós saber? que devemos fazer?
Podemos dizer que é o ramo da Filosofia que estuda as questões últimas
sobre o sentido, o fundamento, a validade e o método do Direito.
Quer isto dizer que a Filosofia do Direito também se ocupa da questão da
justiça e da relação entre moral e Direito.
85
O nosso capítulo dedicado ao Direito e Valores é uma introdução filosófica
ao Direito, ainda que com caráter elementar.
Não me afastarei muito das principais correntes atuais se afirmar que na
Filosofia do Direito devem ser incluídas duas grandes áreas: a epistemologia
jurídica e a ética jurídica.
A primeira área é a epistemologia jurídica: pressupostos do conhecimento
jurídico e valor deste conhecimento.
A epistemologia (como indica a origem etimológica) abrange a
metodologia. Sob a designação de metodologia do Direito é usual estudar-se os
modos de conhecimento do Direito e os modos específicos de pensamento
jurídico. Por método entende-se a racionalização do procedimento a observar no
desenvolvimento da atividade cognitiva.
Para quem siga uma conceção hermenêutica, é a hermenêutica que está
na base da metodologia jurídica. A hermenêutica geral ocupa-se dos
pressupostos e dos modos específicos de compreender aquilo que é dotado de
sentido.
A segunda grande área da Filosofia do Direito é a ética jurídica.
A partir da Filosofia dos Valores (primeira metade do século XX) o núcleo
da disciplina passa a ser a discussão e determinação dos valores do Direito,
muito em particular a justiça, e a crítica da realidade jurídica à luz destes valores.
Para algumas correntes neojusnaturalistas a Filosofia do Direito,
enquanto ética jurídica, teria uma função cognitiva no domínio dos valores – veja-
se o que disse sobre as tendências atuais sobre a relação entre Direito e justiça.
Em minha opinião não é em absoluto de excluir esta possibilidade de
conhecimento relativamente a certos valores em que o Direito se deve basear.
Mas também se deve reconhecer que a moral e o Direito não se podem
basear só num acervo de valores e princípios fundamentais adquiridos à luz do
sentido da evolução verificada na sociedade. Há outros valores que têm de ser
considerados, há a possibilidade de conflitos de valores, o que exige escolhas
86
pelo poder político. Nestas escolhas há uma margem irredutível de decisão
politica.
Em todo o caso, estas questões, mesmo que não encontrem uma resposta
última na filosofia, não deixam de ser objeto de estudo da mesma.
De entre os cultores da Filosofia do Direito de língua portuguesa podemos
salientar autores como CABRAL DE MONCADA, CASTANHEIRA NEVES,
BAPTISTA MACHADO, SOARES MARTÍNEZ, FERNANDO BRONZE, SOUSA
BRITO e JOSÉ LAMEGO.
Significado para a ciência do Direito
Vimos que enquanto epistemologia a Filosofia do Direito se debruça entre
outros aspetos sobre a metodologia do Direito. A metodologia é um terreno
intermédio entre a Filosofia do Direito e a Ciência do Direito.
A lógica jurídica e a teoria de linguagem também interessam à Ciência do
Direito, porquanto auxiliam a interpretação e servem o raciocínio jurídico e a
argumentação jurídica.
Enquanto ética jurídica, a Filosofia do Direito interessa à Ciência do Direito,
desde logo porque as normas e os princípios têm de ser entendidos à luz dos
valores que visam realizar e porque a questão do Direito injusto contende com a
validade e, portanto, com a vigência do Direito.
87
CAP. VI - CIÊNCIA DO DIREITO
Caracterização
A Ciência do Direito ocupa-se do Direito enquanto fenómeno normativo. A
Ciência do Direito encara o Direito como uma ordem que valora e orienta a
conduta em sociedade, tendo em vista a realização de determinados valores.
Coloca em primeiro plano a sua natureza de dever ser.
A Ciência do Direito é uma ciência normativa, não porque a sua principal
missão seja criar normas, a de ser uma fonte do Direito, mas porque constitui
um sistema de enunciados sobre o Direito vigente. Quer isto dizer que a Ciência
Jurídica se pronuncia sobre a existência, validade e eficácia das normas bem
como sobre o conteúdo de sentido das normas.
A Ciência Jurídica responde-nos à questão de saber se a norma vigora e à
questão do sentido normativo que deve ser atribuído a uma proposição jurídica.
A Ciência do Direito não se ocupa apenas das normas jurídicas
singularmente consideradas. Também tem a missão de cuidar da formação do
sistema normativo e de enquadrar sistematicamente todos os elementos com
que opera.
Já SAVIGNY assinala que a Ciência do Direito está orientada à revelação e
aperfeiçoamento da unidade imanente ao Direito.
A Ciência do Direito tem sempre em vista um ordenamento nacional ou
supraestadual determinado, embora não possa nem deva ignorar os outros
ordenamentos. Claro que a Ciência do Direito também se pode ocupar de
problemas jurídicos gerais que são comuns a vários ordenamentos. E o Direito
Comparado é uma área da Ciência do Direito, como assinalei.
Metodologia
A ciência define-se pelo método, que é, como sabemos, a racionalização do
procedimento a observar no desenvolvimento da atividade cognitiva. A
metodologia de uma ciência engloba os modos de conhecimento e os modos de
pensamento específicos desta ciência.
88
Na minha perspetiva, a resolução de casos concretos segundo critérios
jurídicos constitui uma função do Direito, e não propriamente o método jurídico.
O método tem antes que ver com os modos de obtenção desses critérios de
solução e de realização das outras tarefas que incumbem quer à Ciência Jurídica
Prática quer à Ciência Jurídica Teórica.
Também aqui há grandes divergências, podendo distinguir-se em primeiro
lugar tendências conceptualistas, tendências mais teleológicas e tendências
mais analíticas, próprias do moderno positivismo.
As tendências conceptualistas, como a designação indica, centram os seus
esforços na definição dos conceitos jurídicos e na construção de um sistema
lógico, de uma pirâmide de conceitos construída segundo as regras da lógica
formal. Os conceitos que estão na base da pirâmide são reconduzíveis aos
conceitos mais gerais que ocupam o escalão superior, e assim sucessivamente,
até ao conceito supremo.
No entender de PUTCHA, o topo desta pirâmide de conceitos é ocupado por
um conceito supremo, a partir do qual se pode construir dedutivamente todo o
sistema e extrair novas proposições jurídicas.
A estas tendências contrapuseram as tendências teleológicas que as normas
não podem ser entendidas através de definições de conceitos jurídicos, mas à
luz das finalidades que prosseguem. Um conceito supremo obtido pela
generalização de todos os conceitos jurídicos será um conceito vazio. Dos
conceitos nunca se podem deduzir soluções, porque estas resultam da
consideração dos fins que o Direito pretende realizar.
Por seu turno as tendências mais analíticas, que vêm na linha do positivismo
normativo, centram as suas atenções no estudo da estrutura da regra jurídica e
dos enunciados linguísticos porque se exprime. Já assinalei que ao deixaram de
fora o conteúdo valorativo do Direito estas tendências não permitem apreender
cabalmente o fenómeno jurídico.
Dentro das tendências teleológicas, que remontam a JHERING, poderemos
subdistinguir tendências mais sociológicas, de tendências mais axiológicas.
De entre as tendências mais sociológicas temos designadamente a
jurisprudência dos interesses (mormente HECK). Para esta corrente a norma
tem de ser entendida sempre à luz dos interesses, i.e., das apetências sociais
89
que visa satisfazer, e as lacunas têm de ser resolvidas, na falta de regra aplicável
por analogia, mediante uma valoração pelo intérprete dos interesses em jogo.
No espaço anglo-saxónico, a jurisprudência sociológica ou sociological
jurisprudence também se baseia numa análise de interesses, mas, ao procurar
elevar o social a categoria de referência fundamental, vem a acentuar a
importância das políticas legislativas de índole económica e social (policies).
À jurisprudência dos interesses veio contrapor a jurisprudência das
valorações que o Direito só tutela os interesses dignos de proteção jurídica e
que, perante os conflitos de interesses, o decisivo são os critérios que permitem
a sua valoração.
Além disso, nem todos os fins do Direito podem ser reconduzidos a
apetências sociais. As normas devem ser entendidas à luz dos valores que
pretendem realizar.
Na integração de lacunas o juiz não deve proceder a uma livre ponderação
dos interesses em jogo, mas respeitar os critérios de valoração da ordem
jurídica.
Esta crítica já só procede parcialmente relativamente à jurisprudência
sociológica, uma vez que a prossecução dos fins de política legislativa
pressupõe uma decisão valorativa do legislador e que ao avaliar os interesses à
luz destes fins se distingue entre o critério de valoração e o objeto de valoração.
Esta tendência tem a virtude de chamar a atenção para os fins sócio-políticos
hoje determinantes em vastos setores do Direito, mas ao encarar o Direito
exclusivamente nesta perspetiva adota uma postura instrumentalista ou
funcionalística do Direito, que ignora ou menospreza outros valores do Direito.
O neojusnaturalismo, ao acentuar a importância dos valores e dos princípios
ético-jurídicos, também contribui para as tendências axiológicas.
Mais recentemente, um importante setor doutrinal, que se filia nas tendências
axiológicas, recebeu a hermenêutica filosófica e aplicou-a ao Direito – é o caso
de ESSER, ARTHUR KAUFMANN e LARENZ. Neste curso também se encarará
a Ciência do Direito na perspetiva da hermenêutica filosófica.
Nesta perspetiva, a Ciência do Direito é uma ciência “compreensiva” que
encara a ordem jurídica como uma ordem com sentido normativo.
90
Desde logo a Ciência do Direito trata de compreender expressões linguísticas
e o seu sentido jurídico: leis, atos administrativos, decisões dos tribunais,
contratos. Expressões linguísticas são enunciados, conjuntos de palavras
falados ou escritos. No início do nosso curso falámos da importância da
linguagem para o Direito.
A compreensão de expressões linguísticas ocorre, ou de modo irreflexivo,
mediante o acesso imediato ao sentido da expressão, ou então de modo
reflexivo, mediante o interpretar. Pelo menos nesta medida o conhecimento do
Direito pela Ciência Jurídica consiste numa interpretação.
“Interpretar” é uma atividade de mediação por que o intérprete compreende
um texto, que se lhe tinha deparado como problemático.
Mas a Ciência do Direito não tem só de compreender expressões linguísticas.
Já sabemos que a mensagem contida numa norma pode ser comunicada
através de diferentes tipos de sinais, por exemplo, os sinais de trânsito.
A Ciência do Direito também tem de conhecer condutas e atitudes ou
disposições interiores, por exemplo, para estabelecer a existência de um
costume, averiguar da existência de uma prática reiterada, bem como de uma
convicção de vinculatividade.
Ainda aqui podemos falar de interpretação.
Portanto poderá dizer-se que a hermenêutica é a base da metodologia da
Ciência do Direito.
Tradicionalmente apontam-se como características fundamentais do
pensamento jurídico a abstração e a precisão. O processo mental deve
desenrolar-se com nitidez seguindo as regras lógicas. A abstração é essencial
para o exame da relevância: determinar quais os aspetos das situações da vida
que são juridicamente relevantes e quais os que são irrelevantes.
Muitas vezes confunde-se rigor do raciocínio com o rigor da fórmula. Torce-
se a realidade para a encerrar numa categoria esquemática. A vida é sempre
mais rica e fluida que os esquemas em que a pretendem encerrar. A aspiração
ao rigor não deve levar, no Direito, a um esquematismo que desvirtue a
realidade.
A metodologia jurídica também tem de levar em conta que a toda a ordem
jurídica subjazem valorações e que, por conseguinte, a Ciência do Direito é,
91
tanto no domínio prático como no teórico, um pensamento em vasta medida
orientado a valores.
A criação da norma requer uma valoração. A norma tem de ser interpretada
à luz dos valores que visa realizar. A recondução das situações da vida à
previsão da norma exige, frequentemente, uma valoração. A integração de
lacunas exige sempre uma valoração.
Em suma, as características fundamentais do pensamento jurídico são a meu
ver:
à A racionalidade;
à O caráter interpretativo;
à A orientação a valores.
Teoria geral do Direito, Ciência Jurídica Prática e Dogmática “Teoria do Direito” é expressão utilizada em aceções diversas. Por Teoria
Geral do Direito podemos entender, dando continuidade ao significado
tradicional da expressão, a doutrina sobre a estrutura do sistema normativo e,
em especial, sobre a estrutura da regra jurídica, sobre as fontes do Direito, sobre
certos conceitos fundamentais que são comuns aos diferentes ramos de Direito
e sobre os modos de pensamento jurídico.
Embora o estudo dos métodos transcenda a própria Ciência do Direito (para
pertencer também ao domínio da Filosofia do Direito) é em geral incluído nesta
Teoria geral.
A Teoria Geral do Direito contrapõe-se às “teorias especiais” de cada ramo
do Direito, que geralmente se divide em parte geral e parte especial. Por
exemplo, a Teoria Geral do Direito Civil.
A Teoria Geral do Direito pode ser reconduzida, em parte, à Ciência Jurídica
Prática (designadamente quando se ocupa das fontes do Direito e da
metodologia da interpretação, integração e aplicação do Direito), e noutra parte,
à Dogmática, ou Ciência Jurídica Teórica (designadamente quando se ocupa de
conceitos fundamentais, da estrutura das regras e da sistemática jurídica).
92
A doutrina sobre a determinação, interpretação, integração e aplicação do
Direito, juntamente com a teoria da legislação, pode ser incluída numa Ciência
Jurídica Prática.
Pertence ainda à Ciência do Direito a crítica da jurisprudência. A ciência
jurídica é o juiz do juiz (RHEINSTEIN).
Esta Ciência Jurídica Prática contrapõe-se à Ciência Jurídica Teórica, ou
dogmática.
A Dogmática seria a parte da Ciência do Direito que não está referida à
prática. A jurisprudência dos conceitos encarava a dogmática como um sistema
conceptual fechado – baseado em axiomas estáveis ou dogmas – que permitiria
responder às novas questões que fossem surgindo por via de operações lógicas,
designadamente por dedução.
Por minha parte entendo que a Ciência do Direito tem de construir conceitos
que correspondam o melhor possível a realidades relevantes, com que se possa
operar, e que sejam, neste sentido “funcionais”. Muitas vezes deverão refletir
valorações jurídicas.
E a Dogmática tem de se preocupar não só com a formação de um sistema
científico de conceitos, como também com o aperfeiçoamento e
desenvolvimento do sistema normativo, através da indagação dos princípios
jurídicos retores e dos nexos intrassistemáticos que dão unidade à ordem
jurídica.
Por estas razões a Dogmática também não pode ser alheia ao conteúdo
valorativo do Direito.
É discutível se o termo “Dogmática” é ainda apropriado para designar a parte
teórica da Ciência do Direito. Ela compreende um conjunto de conhecimentos,
inter-relacionados, sobre o Direito vigente, que podem facilitar a sua apreensão
e a comunicação entre os juristas.
Inclui, além dos conceitos científicos, a teoria da estrutura da norma e a
sistemática.
93
Ciência Jurídica e desenvolvimento e aperfeiçoamento do Direito
Embora a Ciência do Direito esteja vinculada ao quadro definido por
determinada ordem jurídica, ela é capaz de adotar uma postura crítica frente às
normas, às decisões judiciais e, em geral, às soluções jurídicas que aí surgem.
Os critérios para tal crítica são dados pelo próprio Direito positivo, pelos
valores e princípios gerais que enformam este Direito, com especial relevo para
as normas e princípios constitucionais.
Isto não obsta a que a crítica do Direito positivo possa ser feita com base em
valores e princípios supra-positivos, mas parece que então nos colocamos numa
perspetiva de Filosofia do Direito e não de Ciência do Direito.
Como quer que seja esta crítica da lei pode sempre desembocar em
propostas concretas de reforma legislativa, pelo que, como diz LARENZ, a
Ciência do Direito “se insinua no campo da política jurídica”.
A política jurídica também não é alheia à missão do jurista no sentido em que
o intérprete tem de compreender e respeitar, em princípio, as opções políticas
feitas pelo legislador.
Mas é no plano da integração de lacunas que a política jurídica assume maior
relevância para a Ciência do Direito. Quando, por não ser possível o recurso à
analogia nem a princípios jurídicos, for necessário formular o critério de decisão
do caso, o aplicador tem de se colocar na posição do legislador.
Segundo a opinião que dominou no Séc. XX, a Ciência do Direito não traz
nada de novo à ordem jurídica, não contribui para o seu aperfeiçoamento e
desenvolvimento, não tem uma função cognitiva. Será assim?
A resposta a esta questão não é pré-determinada pela posição que se tome
sobre o problema do conhecimento dos valores em geral, porque se parte agora
de um sistema de valores dado, o de uma ordem jurídica. Neste contexto parece
de entender que os enunciados da Ciência do Direito são até certo ponto
demonstráveis.
A Ciência do Direito visa sempre, em última análise, chegar à solução válida.
Mesmo que seja apenas válida face ao sistema, i.e., perante as regras, os
princípios e os valores do sistema.
A busca da solução válida pode levar o jurista a afastar-se da solução mais
corrente ou que até aí tem sido dada a um problema de regulação jurídica.
94
Portanto, ao resolver problemas de interpretação e ao integrar lacunas a
Ciência Jurídica avança soluções que contribuem para o desenvolvimento e
aperfeiçoamento do Direito vigente no quadro do sistema.
Em certas circunstâncias especiais este desenvolvimento e aperfeiçoamento
pode ir mesmo além do sistema, embora neste caso a solução tenha porventura
menos força, por não ser verificável à luz do sistema.
Enfim, a Ciência do Direito não se limita a analisar se esta ou aquela solução
são válidas, tem permanentemente de preocupar-se com a revelação de
princípios jurídicos retores e também com aspetos estruturais, relativos à
estrutura das regras jurídicas e do sistema.
A formação jurídica
A formação jurídica diverge bastante de país para país.
Nos países latinos a universidade dá a formação geral. A formação
profissional é obtida fora dela, dependendo da carreira jurídica a que se destina.
Assim, entre nós, para o acesso à advocacia existe o estágio de advocacia e
para o acesso à magistratura o Centro de Estudos Judiciários.
Na Alemanha, a universidade ministra os cursos de Direito, mas os dois
exames fundamentais – “os exames de Estado” – são realizados por uma
entidade autónoma. O acesso a todas as profissões jurídicas depende de um
estágio que decorre junto de tribunais, serviços de administração pública e
escritórios de advocacia. Termina com o segundo “exame de Estado”.
Na Inglaterra, o curso de Direito versa atualmente sobre matérias obrigatórias
dos exames a que os candidatos à advocacia (solicitors e barristers) têm de se
submeter.
Mas o curso de Direito não constitui requisito absolutamente indispensável
para o exercício de uma profissão jurídica. O acesso às profissões jurídicas é
permitido a quem tenha outros diplomas universitários, sendo no entanto exigido
a realização de um exame (Common Professional Examination) precedido
obrigatoriamente da frequência de um curso de um ano ministrado por uma
Universidade ou Instituto Politécnico.
95
Já nos EUA o curso de Direito é necessário para o acesso às profissões
jurídicas e até à pouco tempo era baseado quase exclusivamente na análise de
casos reais decididos pelos tribunais [case method].
Atualmente verifica-se uma diversificação dos métodos de ensino, que
também inclui uma aproximação aos métodos usados nas universidades dos
países da família romano-germânica.
O acesso à profissão depende de aprovação em exame promovido por uma
associação profissional.
Como deve ser o ensino do Direito?
O Direito também é ensinado noutros cursos, a título complementar, com uma
função informativa. Por exemplo, nos cursos de gestão.
É corrente afirmar que o curso de Direito deve ter uma função formativa. Quer
isto dizer que o ensino universitário deve proporcionar aos alunos a aquisição
dos esquemas de raciocínio e dos quadros mentais próprios de uma ciência. A
sua primeira missão é a de proporcionar uma sólida formação científica e não a
de preparar para o exercício de uma determinada profissão. Deve ser formativo
e não profissionalizante.
Ao mesmo tempo, porém, o ensino deve responder a necessidades da vida.
O ensino do Direito nunca deve perder de vista a resolução de problemas
concretos de regulação jurídica. Há uma tensão dialética entre as exigências de
sistematização e de construção dogmática e a resolução de problemas
concretos.
Em última instância cabe afirmar um primado da praxis: a Ciência Jurídica
no seu conjunto deve estar ao serviço da resolução de problemas práticos.
Por isso, o ensino universitário também deve proporcionar a formação técnica
de base exigida pela atividade profissional. No que toca ao ensino do Direito,
esta formação técnica diz respeito ao estudo do Direito positivo e à Ciência
Jurídica Prática e não a exigências específicas de uma determinada profissão
jurídica.
O curso de Direito inclui necessariamente o estudo das principais matérias
do Direito positivo e da metodologia da Ciência Jurídica Prática.
O Curso de Direito deve sobretudo preparar o aluno para saber pensar o
Direito, capacitando-o para resolver os problemas jurídicos.
96
Perante a crescente complexidade e vastidão do Direito vigente o curso de
Direito não pode ter a pretensão de cobrir todo o Direito vigente.
O ensino tem de ser crítico: o jurista tem de ser um agente de mudança e
sobreviver nela. Se o ensino do Direito se resumisse a um ensino de leis, quando
estas mudassem pouco se saberia. Sendo um ensino formativo o jurista terá a
base na qual poderá enquadrar todas as alterações legislativas que surgirem.
O curso de Direito deve dar a formação básica sobre a qual assentará a
formação profissional específica de cada profissão jurídica.
O curso de Direito tem de ter um nível científico elevado para que os juristas
fiquem habilitados a encontrar soluções cuja validade pode ser demonstrada
segundo critérios científicos.
O papel dos juristas
Os juristas desempenham papéis sociais muito diferenciados: como
profissionais independentes, como quadros de empresas, como funcionários
públicos, como titulares de órgãos públicos.
Exercem atividade profissional independente os advogados, os
jurisconsultos, os solicitadores e os notários (que são, simultaneamente, oficiais
públicos).
São titulares de órgãos públicos os magistrados e os conservadores de
registo.
Há muitos outros juristas que são funcionários públicos.
Os juristas que trabalham em empresas são designados juristas de empresa.
97
PARTE II - TEORIA GERAL DO DIREITO
TÍTULO I - A SOLUÇÃO DO CASO POR VIAS NÃO NORMATIVAS
Modalidades
Um caso, isto é, uma situação vida carecida de regulação jurídica, pode ser
resolvido ou por recurso a critérios jurídicos ou independentemente destes
critérios.
Os atos de autoridade, que sejam praticados sem fundamento no Direito
objetivo, resolvem casos sem obediência a critérios jurídicos.
Assim, em certos sistemas autoritários as decisões de chefes políticos são
mais importantes do que as regras jurídicas ou as decisões dos tribunais.
Estes atos de autoridade sem fundamento jurídico não são compatíveis com
o Estado de Direito, pois, como vimos, este postula a sujeição do poder ao
Direito, e, designadamente, o enquadramento jurídico do exercício do poder.
Mesmo em sistemas como o nosso podem verificar-se, ainda que
anomalamente, atos de autoridade sem fundamento legal. É o que se verifica
com atos administrativos sob forma de lei, por exemplo, uma lei que cria
diretamente para uma pessoa uma situação individual à generalidade das
regras jurídicas.
Entre as soluções que obedecem a critérios jurídicos, podemos distinguir as
soluções normativas e as soluções não normativas, conforme os critérios
jurídicos relevantes são ou não normas.
Soluções individualizadoras
No Direito há um conflito permanente entre a tendência generalizadora e a
tendência individualizadora, entre a justiça igualitária e a justiça do caso
concreto.
A solução generalizadora é por excelência a solução normativa: a norma
jurídica é uma regra geral, porque no momento da sua criação se verifica uma
98
indeterminabilidade dos seus destinatários e, em princípio, é abstrata, porque no
momento da sua criação se verifica uma indeterminabilidade das situações a que
virá a ser aplicada.
A solução normativa serve a supremacia do Direito, a igualdade, a certeza
jurídica sobre o Direito objetivo e a previsibilidade das decisões judiciais.
A igualdade servida pela solução normativa é formal, exprimindo-se na
igualdade perante a lei a que atrás fiz referência.
Mas a igualdade formal não atende à infinita diversidade dos casos da vida.
A justiça igualitária tem de certo modo os olhos vendados, porque despreza
todos os elementos de uma situação da vida que não constituam pressupostos
de aplicação da norma.
Uma tendência moderna insiste na justiça do caso concreto, na consideração
de todas as circunstâncias do caso. Esta tendência tem vindo a obter um
acolhimento parcial, quer através da admissibilidade de soluções
individualizadoras, quer dos novos entendimentos relativos à interpretação e
aplicação das regras jurídicas.
A solução individualizadora pode dispensar os critérios normativos: é o que
se verifica com a decisão proferida exclusivamente segundo a equidade.
Mas também pode traduzir-se numa mera flexibilização de soluções
normativas, numa solução de compromisso. Vejamos três casos em que se
verifica este compromisso.
O primeiro caso é o recurso a recurso a conceitos indeterminados e a
cláusulas gerais. Por exemplo, quando o art. 762.º/2 CC estabelece que no
cumprimento da obrigação, assim como no exercício do direito correspondente,
as partes devem proceder de boa fé. Temos aqui a cláusula geral de boa fé, em
cuja atuação se pode ter em conta as circunstâncias do caso concreto.
O segundo caso é a atribuição por lei a um órgão administrativo ou judicial
de um poder de determinação de consequências jurídicas cujo exercício não
está submetido inteiramente a regras.
Por exemplo, o poder discricionário que é atribuído por lei a um órgão
administrativo. Geralmente a lei não atribui poderes inteiramente discricionários,
mas sim margens de discricionariedade. A discricionariedade é a possibilidade
de o órgão determinar no caso concreto qual a decisão que melhor corresponde
99
ao fim da norma que concede o poder e mais em geral aos interesses coletivos
cuja prossecução lhe é confiada.
O terceiro caso é o de certas hipóteses de equidade complementar, a que
farei referência mais adiante.
A equidade como critério exclusivo de solução
Na atualidade a equidade tem duas aceções.
Numa aceção de sabor aristotélico trata-se de corrigir as injustiças
ocasionadas pela natureza rígida das regras jurídicas abstratas mediante uma
consideração das particularidades do caso concreto. Trata-se de uma equidade
em sentido fraco que releva, indubitavelmente, quando a equidade é chamada a
desempenhar o papel de critério complementar de decisão.
Já a equidade em sentido forte é um modo de solução que prescinde do
Direito estrito, i.e., das regras aplicáveis ao caso, baseando-se na chamada
justiça do caso concreto.
O CC não define equidade, mas refere-a frequentemente. As referências
mais importantes constam dos arts. 4.º, 400.º/1, 437.º/1, 494.º, 496.º/3, 566.º/3
e 1407.º/2.
Também na Constituição as “razões de equidade” são referidas como um dos
fundamentos que podem justificar uma limitação à eficácia retroativa da
declaração de inconstitucionalidade ou ilegalidade de uma norma (art. 282.º/4).
Enquanto as als. b e c do art. 4.º CC permitem uma decisão exclusivamente
segundo a equidade, nos outros casos a decisão baseia-se, em princípio, no
Direito estrito, mas a equidade intervém como critério complementar.
A primeira questão que se coloca é de saber quando é que o órgão de
aplicação do Direito pode decidir segundo a equidade.
O art. 4.º CC estabelece que os tribunais só podem resolver segundo a
equidade quando haja disposição legal que o permita e quando haja acordo nas
partes nesse sentido.
Acontece que nos casos em que a lei remete para a equidade esta intervém,
geralmente, apenas como critério complementar de decisão.
100
A equidade constitui um critério exclusivo de solução quando as partes o
convencionem. O fundamento do julgamento segundo a equidade é a autonomia
da vontade. É uma manifestação do princípio da autonomia privada.
O acordo pode respeitar a um caso concreto que diga respeito a uma relação
disponível (art. 4.º/b) ou pode ter sido previamente estabelecido pelas partes,
para os litígios eventuais emergentes de uma dada relação, desde que obedeça
aos requisitos estabelecidos para a cláusula compromissória (art. 4.º/c CC).
São indisponíveis os direitos que as partes não podem constituir nem
extinguir por ato de vontade e os que não são renunciáveis. Por exemplo, os
direitos familiares pessoais, os direitos de personalidade e o direito de alimentos.
Em caso de indisponibilidade meramente relativa, como é o dos direitos de
personalidade, são disponíveis as questões que digam respeito a limitações
voluntárias admissíveis e a explorações económicas permitidas.
Em regra, os direitos patrimoniais (i.e., relativos a bens avaliáveis em
dinheiro) são disponíveis e os direitos pessoais são indisponíveis. Mas há
exceções (por exemplo, o direito de alimentos é patrimonial mas indisponível).
Quando o acordo tenha por objeto litígios eventuais tem de obedecer aos
requisitos estabelecidos para a cláusula compromissória. Esses requisitos
encontram-se estabelecidos na L n.º 63/2011, de 14/12 (LAV). Decorre dos arts.
1.º e 2.º desta lei que o acordo pode dizer respeito a quaisquer litígios de
natureza disponível ou patrimonial, tem de ser escrito e deve especificar a
relação jurídica a que os litígios respeitam.
Segundo o melhor entendimento, o art. 4.º/c refere-se aos casos em que as
partes tenham estipulado um julgamento de equidade pelos tribunais estaduais.
O s casos em que tenham celebrado uma convenção de arbitragem são
regulados pela LAV.
A questão seguinte é a de saber se a equidade é uma fonte do Direito.
O art. 4.º está inserido no Cap. I do Tít. I do Livro I do CC – “Fontes do Direito”.
Na sistemática do CC (arts. 1.º a 4.º) e segundo alguns autores a equidade
seria uma fonte “mediata” de Direito.
Mas esta inserção sistemática não corresponde à arrumação científica.
Fontes do Direito objetivo são os modos de criação de normas e princípios de
conduta. A decisão de equidade não só não constitui precedente vinculativo –
101
como não o constituem, em geral, as decisões jurisdicionais nos sistemas da
família romanogermânica – como também não é orientada à obtenção de uma
solução suscetível de generalização, à formulação de uma regra que possa ser
aplicada em casos semelhantes que sejam futuramente julgados.
A equidade é um critério jurídico de solução de casos.
À resolução dos casos segundo a equidade contrapõe-se a resolução dos
casos segundo o Direito estrito. “Direito estrito” são as regras aplicáveis ao caso.
Estas regras não têm de ser respeitadas quando o tribunal estiver autorizado a
decidir segundo a equidade.
Para a regra jurídica só relevam as circunstâncias inscritas na sua previsão
legal como pressupostos de aplicabilidade. Outras circunstâncias, não previstas,
são irrelevantes. A equidade, pelo contrário permite tomar em consideração
todas as circunstâncias do caso que sejam socialmente relevantes à luz da
justiça. Mas à luz de que critério ou critérios devem estas circunstâncias ser
apreciadas?
Chegamos assim à terceira questão: a de determinar o sentido da decisão
segundo a equidade.
Não se encontra claramente estabelecido entre nós qual o sentido do
julgamento de equidade como critério exclusivo de solução. A opinião dominante
parece entender a equidade, neste contexto, em aceção forte. Nesta aceção a
equidade é um modo de solução de casos independente do Direito estrito.
Mas não é uma decisão arbitrária ou alheia às conceções jurídicas gerais.
Será mais exato ver aqui um modelo extrassistemático de decisão: o tribunal
pode apreciar com considerável margem de liberdade todos os argumentos
jurídicos e extrajurídicos que tenham um mínimo de relevância social objetiva, e
fundamentar racionalmente a decisão com base nestes argumentos e na
ponderação das consequências sociais da decisão.
Por contraposição a este modelo extrassistemático de decisão, a decisão
segundo o Direito estrito obedece a um modelo intrassistemático ou normativo:
os argumentos relevantes estão previamente delimitados, dispostos segundo
uma ordem e com um peso relativo predeterminado pelas fontes do Direito, e o
raciocínio observa o método da Ciência do Direito.
Haverá alguns limites colocados pelo Direito positivo à decisão de equidade?
102
Há referências ao Direito positivo que são necessárias para estabelecer o
caráter jurídico da pretensão e a disponibilidade ou patrimonialidade dos direitos
em causa.
Além disso parece que a decisão terá sempre de respeitar os princípios
gerais de Direito e de atender aos valores fundamentais da ordem jurídica.
A equidade complementar
Enquanto critério complementar de decisão, a equidade não se substitui ao
Direito estrito, surge antes como um critério jurídico que complementa a
aplicação de regras.
Na maioria dos casos em que uma disposição legal permite o recurso à
equidade trata-se de determinar aspetos quantitativos de certas prestações.
Por exemplo, o art. 494.º CC determina que quando a responsabilidade se
fundar na mera culpa a indemnização poderá ser fixada, equitativamente, em
montante inferior ao que corresponderia aos danos. Repare-se que aqui há uma
decisão em matéria de responsabilidade civil por factos ilícitos, que aplica as
normas que constam dos arts. 483.º e segs. CC.
Noutros casos, a equidade extravasa do âmbito da determinação
quantitativa.
Por exemplo, no art. 437.º/1 CC atribui-se à parte lesada pela alteração
anormal das circunstâncias em que as partes funda-ram a decisão de contratar
o direito à modificação do contrato, segundo juízos de equidade. A lei estabelece
expressamente que na apreciação deste ponto o órgão de aplicação tem de
respeitar determinados critérios jurídicos: a parte lesada só tem direito à
modificação do contrato se a exigência das obrigações por ela assumidas afeta
gravemente os princípios da boa fé e não está coberta pelos riscos próprios do
contrato.
Em todos estes casos não há uma pura do justiça do caso concreto, mas
antes uma maior liberdade do julgador na determinação das circunstâncias
relevantes e do peso relativo dos diferentes critérios valorativos a ter em conta.
Pese embora a importância que a equidade como critério exclusivo e
complementar de solução assume no Direito português, a regra, porém, é a
solução normativa. E justifica-se que assim seja. Só a norma constitui um critério
103
de conduta por que os membros da sociedade se podem orientar; só a norma
proporciona uma certa previsibilidade das decisões judiciais; só a norma garante
a igualdade perante a lei e esta é uma das condições da solução justa. Um
Direito baseado em soluções individualizadoras fica inteiramente dependente da
decisão judicial. A falta de previsibilidade da solução contribui para o acréscimo
da litigiosidade e do recurso aos tribunais. Ora, o Direito tem de ser uma ordem
normativa da sociedade e não o produto de decisões judiciais imprevisíveis.
Nas palavras de OLIVEIRA ASCENSÃO, o “templo do Direito não é o Palácio
da Justiça mas a praça pública onde todos os cidadãos pacificamente convivem”.
TÍTULO II - FONTES DO DIREITO
CAP. I - CONCEITO DE FONTES DO DIREITO E SUA CLASSIFICAÇÃO
Preliminares
Noutros pontos do programa, a nossa atenção centrou-se no estudo dos
elementos da ordem jurídica, da sua estrutura. Encarámos o Direito, então, numa
perspetiva estática, para apreendermos os seus elementos mais estáveis e,
assim, melhor o compreendermos. Trata-se agora de examinar a sua dinâmica,
o modo como são incluídos novos elementos na ordem jurídica, o modo como
são excluídos outros elementos.
Tradicionalmente, fala-se, a este respeito, de “fontes do Direito”.
Todos conhecem o sentido próprio da palavra “fonte”: uma nascente, um
lugar onde brota água. Na linguagem comum, a palavra “fonte” é aplicada, agora
em sentido figurado, a causa, origem e texto originário de uma obra.
“Fonte do Direito” é uma imagem, evocativa de tudo o que se refere à criação
do Direito, às circunstâncias que a envolvem e aos instrumentos nela utilizados.
É uma imagem rica, abrangente, mas que, por isto mesmo, suscita dificuldades
quando se procura dar precisão científica ao conceito de fontes do Direito.
Será partindo deste ponto de vista muito geral, que procurarei, gradualmente,
apurar o conceito de “fontes do Direito” mais relevante para a nossa disciplina.
Tradicionalmente, quando se fala de fonte do Direito, tem-se apenas em
mente a criação das regras jurídicas, portanto, só se abarca o problema das
104
“fontes” de um dos elementos da ordem jurídica.Assim, quando o Código Civil,
se refere às “Fontes do direito”, no cap. I, do tít. I, do livro I, é das fontes das
regras jurídicas que se trata.
Aceções
Assinalou-se que a palavra “fonte” pode ser utilizada para significar causa.
Por vezes emprega-se a expressão “fonte do Direito” em sentido sociológico,
para designar o circunstancialismo social que está na base da formulação de
uma dada regra ou complexo normativo.
Outras palavras e expressões encontram aqui mais feliz aplicação: “motivos
sociais”, “antecedentes”, “occasio legis”.
São fontes do Direito em sentido instrumental os documentos que contêm
regras jurídicas. Por exemplo, os exemplares do Diário da República; as
compilações de costumes; as coletâneas de jurisprudência, se esta for fonte do
Direito, etc.
São fontes em sentido histórico todos os elementos que ao longo dos tempos
contribuíram para a formação do Direito positivo atualmente em vigor.
O Direito português é uma das fontes históricas do Direito brasileiro, o Direito
romano é uma das fontes históricas de ambos.
São fontes em sentido orgânico os órgãos que desempenham ou participam
da função legislativa. Por exemplo, a Assembleia da República e o Governo.
O sentido orgânico interessa especialmente ao Direito Público.
Para a Ciência do Direito em geral a aceção mais importante é a técnico-
jurídica: segundo uma expressão muito divulgada “os modos de formação e
revelação das regras jurídicas”.
Esta expressão também não passa sem crítica. Para uma parte da doutrina,
a palavra “formação” é equívoca, sendo preferível falar apenas de “modos de
revelação” por que o Direito se manifesta na vida social e cultural.
Todavia, parece que o “modo de revelação”, enquanto manifestação exterior
do Direito, terá de se incluir no modo ou processo de criação: não há lei sem
haver ou ter havido um texto, não há costume sem uma prática reiterada.
105
Quando se pergunta como nascem as regras no quadro de uma ordem
jurídica, sem querer vincular a resposta a prévias opções filosóficas, parece mais
natural falar, primeiramente, dos “modos de formação” ou “criação” do Direito.
O modo de criação de uma regra é o facto ou processo que a gera. Verificado
o facto, ou realizado o processo, a regra existe.
Classificação - Referência às fontes supraestaduais (internacionais e
europeias)
Uma primeira classificação distingue as fontes intencionais ou voluntárias das
fontes não intencionais ou involuntárias.
A fonte é intencional quando o processo de formação é dominado por um ato
jurídico. É o caso da criação do Direito por ato legislativo. Também a
jurisprudência e a ciência do Direito, na medida em que sejam fontes do Direito,
pertencem a esta categoria.
Fonte não intencional é o costume. A formação do costume não é dominada
por um ato jurídico.
Com referência aos arts. 1.º a 3.º do CC, podemos distinguir entre fontes
imediatas e fontes mediatas. São fontes imediatas as que têm força vinculante
própria e mediatas as que adquirem força vinculante por remissão de outras
fontes.
Na visão do legislador do CC, só as leis e as normas corporativas seriam
fontes imediatas do Direito. Os assentos, os usos e a equidade só teriam força
vinculante nos casos em que a lei para eles remete. Como já foi assinalado, a
equidade não é uma fonte do Direito. Adiante ajuizaremos melhor do alcance
destes preceitos do CC.
Se as fontes imediatas têm uma força vinculante própria, essa força não pode
resultar do art. 1.º/1 CC. Este preceito deve ser entendido como uma proposição
descritiva, que se limita a reconhecer as leis e as normas corporativas como
fontes do Direito (TEIXEIRA DE SOUSA).
Enfim, tomando como ponto de referência a ordem jurídica estadual,
podemos ainda classificar as fontes em estaduais, supraestaduais,
infraestaduais e paraestaduais.
106
Fontes supraestaduais são os processos de criação de normas específicos
da comunidade internacional e de outras comunidades supraestaduais. São
fontes supraestaduais da ordem jurídica portuguesa as fontes do Direito
Internacional Público recebidas na ordem interna e as fontes do Direito da União
Europeia.
O alcance das fontes estaduais corresponde ao âmbito duma ordem jurídica
estadual. Por exemplo, a lei da Assembleia da República de aplicação geral.
As fontes infraestaduais têm alcance limitado a um certo setor da sociedade
estadual. Este setor pode ser definido numa base territorial ou numa base
pessoal. Por exemplo os atos normativos das assembleias regionais dos Açores
e da Madeira.
As fontes paraestaduais são as que, embora transcendendo o âmbito de uma
ordem jurídica estadual, não constituem processos de criação de normas
específicos da comunidade internacional ou de comunidades supraestaduais.
Tem de ser entendido em ligação com as sociedades paraestaduais.
O estudo das fontes do Direito realizado na nossa disciplina incide
essencialmente sobre as fontes estaduais e infraestaduais.
O estudo das fontes supraestaduais é realizado nas disciplinas de Direito
Internacional Público e de Direito União Europeia. Todavia, uma vez que a nossa
disciplina precede estas disciplinas e que os alunos têm de lidar com as fontes
supraestaduais deste o 1.º ano do Curso justifica-se uma breve referência a
estas fontes.
As principais fontes de Direito Internacional Público são o costume
internacional, o tratado internacional, a decisão de organização internacional e a
jurisprudência internacional.
Numa primeira aproximação, podemos definir costume internacional como
uma prática reiterada dos Estados, das organizações internacionais ou dos seus
órgãos que é acompanhada de convicção de vinculatividade.
Por seu turno, o tratado internacional pode ser definido como acordo de
vontades celebrado por sujeitos de Direito Internacional, regido pelo Direito
Internacional e que produz efeitos jurídico-internacionais.
107
As fontes do Direito Europeu podem dividir-se entre fontes de Direito Europeu
originário e fontes de Direito Europeu derivado.
As atuais fontes de Direito Europeu originário são o Tratado da União
Europeia, o Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia e o Tratado que
fundou a Comunidade Europeia da Energia Atómica, bem como a Carta dos
Direitos Fundamentais da União Europeia “que tem os mesmo valor jurídico que
os Tratados” nos termos do art. 6.º/1 do Tratado da União Europeia e os
Protocolos e Anexos dos Tratados que fazem deles parte integrante (art. 51.º do
Tratado da União Europeia).
Também são consideradas fontes de Direito originário da União Europeia os
princípios gerais de Direito.
São fontes de Direito derivado da União Europeia, numa primeira
aproximação, os atos normativos emanados dos órgãos da União Europeia e
que se fundamentam nos Tratados instituintes. Estes atos estão enumerados no
art. 288.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia.
Primeiro, os regulamentos, que são atos normativos com caráter geral,
obrigatórios para os seus destinatários em todos os seus elementos e que
gozam de aplicabilidade direta na ordem interna dos Estados-Membros.
Segundo, as diretivas, que são atos normativos que vinculam os Estados-
Membros destinatários quanto aos resultados a alcançar, mas deixam aos
Estados-Membros a liberdade de escolha quanto à forma e quanto aos meios de
alcançar o resultado previsto na ordem interna.
A diretivas carecem de transposição para a ordem jurídica dos Estados-
Membros através de legislação de fonte interna, embora possam produzir certos
efeitos diretos quando não sejam transpostas no prazo estabelecido.
Terceiro, as decisões, que podem ter caráter individual, constituindo neste
caso um ato administrativo, ou caráter geral, hipótese em que se trata de um ato
normativo. A decisão é obrigatória em todos os seus elementos.
108
Significado dos preceitos legais sobre fontes do Direito
Na visão do legislador de 1966, apenas as leis e as normas corporativas são
fontes imediatas de Direito, com força vinculante própria (arts. 1.º a 4º CC). A
existência de costume é ignorada, o art. 3º só aos usos se refere, como possível
fonte mediata do Direito.
Nestes preceitos o legislador de 1966 exprime uma conceção de Direito de
pendor positivista legalista – que o encara como um conjunto de regras
emanadas do Estado – com concessões a uma visão institucionalista no quadro
do sistema corporativo. Abolido o sistema corporativo e as suas fontes próprias,
fica-nos a exclusividade dos atos normativos estaduais como fonte imediata do
Direito.
Segundo o entendimento que prevalece na doutrina atual, o problema das
fontes do Direito não pode ser resolvido apenas com base nestes preceitos.
Para compreender o problema das fontes será necessário atender aos seus
diversos aspetos.
Por um lado, é um problema de conhecimento científico, que pode e deve ser
livremente apreciado pela Ciência do Direito, no capítulo dedicado à teoria das
fontes. Trata-se de estudar quais os modos por que são criadas as regras
jurídicas que ordenam a vida social.
A teoria das fontes não pode condicionar as suas hipóteses de trabalho, nem
as suas conclusões, a quaisquer conceções apriorísticas sobre quais devem ser
as fontes do Direito, ainda que estas conceções sejam consagradas pelo
legislador.
Não é esta, porém, a única perspetiva relevante. A ordem jurídica moderna
não pode deixar de regular os processos da sua própria modificação. A produção
jurídica de normas também é objeto de regras. O problema das fontes do Direito
comporta um aspeto de regulação jurídico-positiva: não está só em causa o
modo por que se formam regras jurídicas, mas também a quem deve ser reconhecido o poder de criar regras jurídicas e o modo por que elas se devem
formar.
109
Preceitos como os que constam dos primeiros artigos do CC são normas
sobre fontes, sobre a produção jurídica, ou normas de reconhecimento.
Mas a resposta dada ao problema das fontes do Direito pelos preceitos do
Código Civil não é conclusiva, porque o problema tem uma dimensão
constitucional.
Apesar da primazia reconhecida às normas contidas na Constituição (formal),
creio que também não pode resolver-se apenas com base nas normas da lei
fundamental, não só pela sua insuficiência, mas porque o problema se coloca
igualmente em relação às fontes do próprio Direito Constitucional.
É um ponto muito complexo, que não é possível aprofundar aqui, mas sobre
o qual é inevitável uma tomada de posição.
Parece de partir do princípio que, nas sociedades modernas, integra a
consciência jurídica geral e, em especial, a da comunidade jurídica, uma
determinada conceção normativa sobre quais os processos idóneos para
gerarem regras jurídicas.
Encontra-se aqui a “regra de reconhecimento” última em que assentam todas
as outras regras sobre a produção jurídica.
Esta “regra de reconhecimento” não se identifica necessariamente com as
regras legais sobre fontes do Direito. Isto não significa que as regras legais sobre
fontes do Direito não tenham qualquer valor. Estas normas definem a posição
do poder político com respeito aos modos de criação de regras jurídicas.
Sendo a Constituição o estatuto da comunidade e do poder político (JORGE
MIRANDA), a definição desta posição há-de procurar-se, em primeiro lugar, no
texto constitucional.
O texto constitucional não dispõe expressamente sobre o ponto, mas contém
algumas indicações relevantes.
Com efeito, o texto constitucional estabelece que "a validade das leis e
demais actos do Estado (...) depende da sua conformidade com a Constituição"
(art. 3.º/3), que na “administração da justiça “incumbe aos tribunais assegurar a
defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos” (art.
202.º/2) e que os “tribunais (…) apenas estão sujeitos à lei” (art. 203.º).
Estes preceitos não mencionam qualquer outra fonte do Direito que não seja
a lei. O preceito referido em último lugar é especialmente significativo, porque os
110
trabalhos preparatórios dão conta de que uma proposta de aditamento no
sentido de colocar o “Direito” a par da “lei” foi rejeitada.
Isto pode ser interpretado no sentido de se eleger a lei como única fonte do
Direito. Não creio, porém, que seja este o melhor entendimento.
Primeiro, porque alguns preceitos da Constituição reconhecem a existência
de outras fontes do Direito. Assim, o art. 8.º/1 da Constituição ao referir “as
normas e os princípios de direito internacional geral ou comum” engloba, entre
as fontes deste Direito, o costume de Direito Internacional. A Constituição admite
ainda que certas decisões do Tribunal Constitucional tenham força obrigatória
geral, como se verá oportunamente.
Segundo, porque as preocupações manifestadas nos trabalhos preparatórios
são satisfeitas pela primazia da lei relativamente a outras fontes do Direito, não
exigindo já a exclusividade da lei como fonte do Direito.
Assim, afora o Direito Internacional consuetudinário, o texto constitucional
não reconhece o costume como fonte do Direito, mas também não veda o seu
reconhecimento, sem prejuízo da primazia da lei. Parece razoavelmente seguro
que não se pode aplicar costume que restrinja direitos, liberdades e garantias
(art. 18.º).
O texto constitucional também não reconhece genericamente a
jurisprudência ou a ciência do Direito como fontes do Direito. Relativamente à
jurisprudência o disposto no já citado art. 203.º CRP bem como no art. 112.º/5
CRP parece opor-se a um sistema de precedente vinculativo. Este último
preceito não permite que a lei confira a atos, que não sejam os atos legislativos
referidos no art. 112.º/1, o poder de, com eficácia externa, interpretar, integrar,
modificar, suspender ou revogar qualquer dos seus preceitos à declaração de
inconstitucionalidade dos assentos.
Mas também não fica inteiramente excluído que a jurisprudência e a ciência
do Direito possam desempenhar algum papel como fontes do Direito. Já se
assinalou que a Constituição admite que certas decisões do Tribunal
Constitucional tenham força obrigatória geral.
111
Em suma, a Constituição impõe a primazia da lei com fonte interna do Direito,
mas com exceção de certas decisões do Tribunal Constitucional, nada determina
sobre as outras fontes internas do Direito.
Isto coloca o intérprete numa posição delicada, pois da primazia da lei como
fonte interna do Direito, tal como ela decorre da Constituição, não resulta que a
relevância do Direito consuetudinário interno e de outras eventuais fontes do
direito dependa da legislação ordinária.
Não se pretendendo formular quaisquer conclusões definitivas a este
respeito, direi apenas que na falta de indicações por parte do legislador
constitucional ou de normas hierarquicamente superiores (designadamente as
contidas em Convenções internacionais), as normas da legislação ordinária
sobre fontes do Direito e, entre elas, as que constam dos primeiros artigos do
Código Civil, devem constituir o ponto de partida (ver o art. 8.º CC e os arts. 3.º/1
e 4.º do Estatuto dos Magistrados Judiciais – Lei nº 21/85, de 30/7).
Mas este ponto de partida pode ser corrigido, caso se demonstre que a
conceção normativa da comunidade jurídica sobre as fontes do Direito vigente
diverge das normas ordinárias sobre a produção jurídica.
CAP. II - A LEI
A lei: noção
Lei lato sensu é toda a regra geral emanada do poder político, seja ele um
poder central, regional ou local.
O art. 1.º/2 CC adota uma noção de lei que se aproxima desta, mas que dela
se distingue por limitar as leis às regras provindas de órgãos estaduais. Ora, já
sabemos que nem todo o poder político é estadual.
Quanto à definição de “lei”, enquanto modo de criação de regras jurídicas,
cumpre ainda fazer uma observação: o que normalmente se define como “lei” é
a regra ou complexo de regras formado de certo modo e não o modo de criação
em si, que é um processo (por exemplo, o processo legislativo).
Num Estado de Direito, certos vícios mais graves na criação e, segundo uma
parte da doutrina, no conteúdo de uma lei podem levar a considerá-la como
inexistente.
112
Principais vícios que geram a inexistência:
à falta de votação de uma pretensa lei na Assembleia da República;
à falta de promulgação ou assinatura pelo Presidente da República de atos
da Assembleia da República ou do Governo (art. 137.º CRP);
à falta de referenda do Governo de atos do Presidente da República (art.
140.º CRP);
à usurpação da função legislativa por um órgão que não a pode exercer;
à segundo alguns autores, a violação do conteúdo essencial de direitos
fundamentais.
Em suma, este modo de criação jurídica caracteriza-se pelos seguintes
elementos:
à um ato normativo de um órgão do poder político, i.e., uma declaração de
vontade tendo por objeto a criação de regras gerais e que obedece a uma
das formas legalmente estabelecidas; o mais importante é o ato legislativo
praticado no exercício da função legislativa;
à a competência do órgão que pratica o ato;
à a formalização do ato num texto escrito.
Leis materiais e formais
O conceito de lei em sentido material divide a doutrina.
Uns adotam uma aceção ampla que corresponde ou se aproxima do conceito
de lei que acabei de expor: todo o ato normativo do poder político.
Este ato normativo pode ser legislativo, isto é, praticado no exercício da
função legislativa, ou regulamentar, isto é, praticado no exercício da função
administrativa.
Para outros a lei em sentido material é apenas a criada no exercício da função
legislativa. Nesta aceção só são leis em sentido material as que além de serem
formalmente leis são dotadas de generalidade.
Não há uniformidade no emprego da expressão lei em sentido formal.
Lei formal em sentido amplo é a que adota a forma de um ato legislativo. São
as leis constitucionais, as leis da AR, os DL do Governo e os decretos legislativos
regionais emanados das Assembleias das regiões autónomas.
113
Não são lei, neste sentido, os diplomas que se revestem de forma
regulamentar, designadamente os decretos regulamentares, certas resoluções
do Conselho de Ministros, as portarias e os despachos normativos.
O ato normativo regulamentar caracteriza-se pelo seu caráter subordinado.
Podem editar regulamentos, designadamente, a Assembleia da República, o
Governo, bem como cada um dos seus membros, os órgãos das regiões
autónomas e as autarquias.
Num sentido formal mais restrito, “lei” é só o diploma normativo emanado da
AR. Ver art. 166.º CRP.
Admito a hipótese de haver leis em sentido formal que não são leis em
sentido material – atos praticados em forma legislativa que não contêm regras
gerais, ou, inversamente, atos normativos que não obedecem a uma forma
legalmente estabelecida. Resta saber quais as consequências de tais vícios, o
que terá de resolver-se, em princípio, com base no regime aplicável em função
do conteúdo do ato praticado.
Lei constitucional
A lei constitucional contrapõe-se à lei ordinária (cp. n.ºs 1, 2 e 3 do art. 166.º
CRP). A lei constitucional resulta do exercício de um poder superior de
autoconformação do Estado, o poder constituinte.
Assim, a atual constituição baseia-se na lei constitucional aprovada pela
Assembleia Constituinte em 1976 e pelas leis constitucionais que reviram a
constituição, em 1982, 1989, 1992, 1997, 2001, 2004 e 2005.
A lei ordinária tem de ser conforme com a lei constitucional sob pena de
inexistência ou invalidade (art. 277.º/1 CRP).
Atos normativos autónomos
Pensamos agora, dentro do Direito infraestadual, nas normas escritas
geradas por centros jurígenos independentes do poder político, estadual ou
infraestadual e, neste sentido, autónomos.
114
Estes casos não são normalmente apresentados por forma unitária e
sistemática. Limitar-me-ei, pois, sem pretensão de exaustividade, a assinalar
duas das manifestações deste fenómeno: as regras emanadas de organizações
sociais e as regras geradas pela autonomia coletiva no Direito do Trabalho.
Noutro momento do nosso curso vimos que todas as organizações sociais
têm um estatuto regulador – expresso ou implícito – e são portadoras de um
certo sentido normativo.
Frequentemente estas organizações adotam, com base nos seus estatutos,
regras que regulam aspetos internos do seu funcionamento e as relações entre
os seus membros dentro do âmbito do seu objeto.
O Estado pode assumir diferentes atitudes perante este fenómeno. Em
primeiro lugar, pode reconhecer ou não reconhecer como jurídicas as regras
assim produzidas.
Afirma-se haver uma tendência para uma “administrativização” de certos
entes. Todavia, mesmo nos casos em que o Estado define e regula o estatuto
destas instituições, por exemplo, de uma associação profissional, elas continuam
a produzir, com considerável autonomia, as suas regras internas. E o
reconhecimento legal destas regras não lhes altera, por si, o seu caráter
autónomo.
Com a abolição do sistema corporativo o disposto na 2.ª parte do n.º 2 do art.
1.º CC caducou, uma vez que as instituições que prosseguem fins “morais,
culturais, económicos ou profissionais” deixaram de ser organismos
corporativos.
Em todo o caso, o referido preceito espelha o reconhecimento, tributário da
visão institucionalista, de que muitas organizações sociais produzem regras
jurídicas autónomas. Daí que não seja indefensável que o disposto no preceito
encontra ainda aplicação fora do contexto do sistema corporativo.
Esta fonte autónoma de juridicidade não pode estar ao mesmo nível que a
lei. O espaço que lhe é próprio é o que corresponde ao permitido ou tolerado
pela lei (ver também, relativamente às normas corporativas, o art. 1.º/3 CC).
Estas instituições exprimem grupos organizados com os seus fins específicos
existentes dentro de uma sociedade estadual. O Estado, se respeita na medida
do possível a sua autonomia, também pode exercer o necessário controlo.
115
São fontes intencionais, mas, segundo me parece, diferentes da lei, porque
o ato normativo não é praticado por um órgão do poder político. É, em todo o
caso, um ponto controverso, que depende da noção de lei que se adote.
Quanto à fonte negocial a questão é complexa e extravasa do âmbito da
nossa disciplina.
A doutrina que nega a possibilidade de um negócio jurídico gerar regras
gerais carece de ser reexaminada. Com efeito, casos há em que a autonomia
privada, através de um acordo de vontades, é fonte de normas jurídicas.
Pense-se, designadamente, na convenção coletiva de trabalho – acordo de
vontades coletivas gerador de efeitos normativos e que constitui uma das
principais fontes de normas do Direito do Trabalho (arts. 1.º e 476.º e segs. C.
Trabalho).
Atos normativos do poder infraestadual
Os órgãos das regiões autónomas da Madeira e dos Açores bem como os
órgãos das autarquias locais têm competência para praticar atos normativos.
As regiões autónomas – como já assinalei – têm poder legislativo – ao passo
que as autarquias locais têm apenas competência regulamentar. Este poder
regulamentar encontra-se previsto no art. 241.º CRP.
Os atos regulamentares das autarquias locais são leis em sentido material
para quem as entenda na aceção ampla atrás adotada, embora não caibam no
conceito de lei adotado no n.º 2 do art. 1.º CC, visto que os órgãos autárquicos
não são órgãos estaduais.
Sentido das referências à “lei”
Recapitulemos os significados da palavra “lei” atrás referidos:
à lei em sentido material amplo: ato normativo emanado do poder político;
à lei em sentido material restrito: ato normativo praticado no exercício da
função legislativa;
à lei em sentido formal amplo: a que adota a forma de um ato legislativo;
à lei em sentido formal restrito: lei da Assembleia da República.
116
A par dos significados atrás referidos, a palavra “lei” é por vezes utilizada pelo
legislador e pelos juristas noutras aceções.
Com alguma frequência utiliza-se a palavra lei no sentido de ordem jurídica.
Por exemplo, nos arts. 15.º e segs. do Cap. III do Tít. I do Liv. I CC – “Direito dos
Estrangeiros e conflitos de leis” – “Lei” significa geralmente o mesmo que ordem
jurídica. Inclui a lei em sentido material, o costume e outras fontes do Direito.
Só excecionalmente nos é oferecida uma definição do conceito de lei
relevante em determinado contexto – ver, por exemplo, o n.º 2 do art. 674.º do
Código de Processo Civil sobre os fundamentos do recurso de revista.
Afora estes casos excecionais, a utilização da palavra “lei” em cada preceito
legal pode colocar um problema de interpretação, a necessidade de fixar, entre
os vários sentidos possíveis da palavra, o que releva para a regra jurídica em
presença.
Por exemplo, quando o n.º 2 do art. 18.º CRP estabelece que a “lei só pode
restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos
na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para
salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”, qual
é o conceito de lei relevante?
A resposta está na Constituição: o n.º 1 do art. 165.º sujeita os direitos
liberdades e garantias a reserva relativa de competência legislativa da AR (b).
Portanto, o Governo também pode legislar nesta matéria, contanto que a AR o
autorize a fazê-lo. Por seu turno, o n.º 3 do art. 18.º determina que as leis
restritivas de direitos, liberdades e garantias têm de revestir caráter geral e
abstrato.
Em suma, o conceito de lei relevante para o nº 2 do art. 18.º é o de lei em
sentido formal amplo e, simultaneamente, em sentido material.
Noutros casos a definição do conceito de lei relevante decorre, com
segurança, de jurisprudência e doutrina uniformes: por exemplo, não oferece
dúvida que a “lei penal” referida no art. 1.º do Código Penal é a lei em sentido
formal.
117
A Constituição distingue por vezes a lei formal de outros atos normativos –
por exemplo, nos arts. 3.º/3 e 241.º Mas na Constituição a palavra “lei” também
é utilizada em sentido material amplo – por exemplo, nos arts. 13.º/1 e 203.º. Por
forma geral, pode dizer-se que as modernas constituições tendem a sujeitar os
aspetos fundamentais da ordem jurídica à lei formal.
É difícil ir mais longe no estabelecimento de critérios específi-cos que
auxiliem o intérprete na determinação do sentido da referência à lei o
conceito relevante tem de ser fixado com base nos elementos e critérios gerais
de interpretação.
Vícios do ato legislativo
Já anteriormente se abriu uma distinção entre existência da lei e validade da
lei.
A lei inexistente não vincula os órgãos públicos nem os particulares, as
decisões judiciais tomadas com base numa lei inexistente também não vinculam
e a inexistência não carece de ser declarada por nenhum órgão estadual.
Outras violações geram a invalidade da lei (em sentido estrito), mas não
prejudicam a sua existência. Geralmente, a invalidade decorre de
inconstitucionalidade ou ilegalidade.
A invalidade da lei decorre de inconstitucionalidade quando a lei viola a
constituição sem que esta violação determine a inexistência. A invalidade
também pode decorrer de ilegalidade, quando uma lei viola outra lei ordinária
hierarquicamente superior (ver arts. 280.º a 282.º CRP).
No Direito português há fundamentalmente dois tipos de invalidade dos
negócios jurídicos: a nulidade e a anulabilidade. Estes tipos de invalidade serão
estudados na Teoria Geral do Direito Civil. O regime da inconstitucionalidade das
leis está dentro do âmbito da disciplina de Direito Constitucional. Aqui vou limitar-
me a um brevíssimo apontamento sobre o regime destes tipos de invalidade.
A nulidade atinge o negócio em si, que não produz desde o início efeitos. A
nulidade é invocável a todo o tempo, por qualquer interessado e pode ser
118
declarada oficiosamente pelo tribunal (art. 286.º CC). Todavia, a declaração de
nulidade não atinge as decisões judiciais transitadas em julgado.
O regime da anulabilidade é bastante diferente. A anulabilidade não traduz
uma falha estrutural do negócio e, por isso, só pode ser invocada pelas pessoas
em cujo interesse a lei estabelece, em determinado prazo (art. 287.º CC).
O negócio anulável pode ser confirmado (art. 288.º CC).
O ato anulável produz efeitos (como se fosse válido) até à anulação. Se a
anulabilidade for arguida esses efeitos serão retroativamente destruídos (art.
289.º/1 CC); mas se não o forem tornam-se definitivos.
A invalidade das leis inconstitucionais é uma nulidade atípica (MARCELO
REBELO DE SOUSA) ou sui generis (JORGE MIRANDA). A lei inconstitucional
– afora os casos de inexistência – é nula.
Com efeito, pode ser objeto de uma declaração de inconstitucionalidade pelo
Tribunal Constitucional que produz efeitos desde a sua entrada em vigor (art.
282.º/1 CRP), respeitando só os casos julgados (art. 282.º/3 CRP). E qualquer
pessoa pode, num processo, invocar a inconstitucionalidade da lei.
Mas é uma nulidade atípica ou sui generis. Por um lado, só algumas
entidades públicas podem requerer a declaração de inconstitucionalidade com
força obrigatória geral (art. 281.º/2 CRP). Por outro lado, a declaração de
inconstitucionalidade pode salvar alguns efeitos da lei inconstitucional, além dos
casos julgados, quando a segurança jurídica, razões de equidade ou interesse
público de excecional relevo o exigirem (art. 282.º/4 CRP).
O mesmo regime se aplica à invalidade das leis ilegais, nos casos em que o
Tribunal Constitucional tem competência para fiscalizar esta ilegalidade.
Deveremos ainda distinguir invalidade de ineficácia (em sentido estrito). A lei
pode ser existente e válida, mas não produzir efeitos jurídicos.
A ineficácia pode ser originária ou superveniente.
É originária se a lei não chegou ainda a produzir efeitos.
Assim, decorre do n.º 2 do art. 119.º CRP que a falta de publicidade de
qualquer ato normativo dos órgãos de soberania, das regiões autónomas e do
poder local implica a sua ineficácia.
Uma lei pode inicialmente produzir efeitos, mas vir a tornar-se ineficaz. Fala-
se então de ineficácia superveniente. Examinaremos esta hipótese a propósito
da suspensão, cessação e termo da vigência.
119
Publicação A regra jurídica destina-se, em princípio, a estabelecer um critério de conduta.
Só pode ser norma de conduta se for do conhecimento dos seus destinatários.
Por esta razão se compreende que a publicação condicione a entrada em vigor
da lei.
Do n.º 2 do art. 119.º CRP decorre que os atos normativos referidos no n.º 1
têm de ser publicados no jornal oficial sob pena de ineficácia. Por conseguinte,
a observância de qualquer outro modo de publicação, por exemplo através da
imprensa ou dos meios de radiodifusão, é irrelevante para a eficácia da lei.
O jornal oficial é o Diário da República.
Creio que se deve considerar o n.º 1 do art. 5.º CC revogado tacitamente,
uma vez que a matéria é hoje regulada pelo art. 119.º CRP e pela L n.º 74/98,
de 29/7 (alterada pelas Ls n.ºs 2/2005, de 24/1, 26/2006, de 30/6, e 42/2007, de
24/8), que regula a publicação, identificação e formulário dos diplomas.
Nos termos do n.º 3 do art. 119.º CRP a lei determina as formas de
publicidade dos atos que a Constituição não sujeita a publicação no jornal oficial
e as consequências da falta de publicidade.
Da conjugação do art. 119.º CRP com a Lei n.º 74/98 decorre que estão
sujeitos a publicação no Diário da República os atos legislativos, os atos
regulamentares da AR e das Assembleias Regionais, os atos regulamentares do
Governo e dos seus membros e os decretos regulamentares regionais dos
Governos das Regiões Autónomas
Embora a fórmula do n.º 2 do art. 119.º CRP possa não abranger todas as
leis em sentido material amplo, deve entender-se que a publicação é um
requisito de eficácia de todas as leis. Se a lei não estabelece a forma de
publicação terá de lhe ser dada a publicidade que permita o conhecimento pelos
seus destinatários: seja a notificação dos interessados, seja a afixação na sede,
seja qualquer outra forma.
A eficácia na ordem interna das normas de Convenções internacionais que
vinculam internacionalmente o Estado português depende de publicação no
Diário da República (arts. 8.º/2 e 119.º/1/b CRP).
120
Já não estão sujeitas a publicação no Diário da República as normas
emanadas de organizações internacionais de que Portugal seja parte ao abrigo
dos respetivos tratados institutivos (art. 8.º/3 CRP).
Os atos normativos dos órgãos da União Europeia são publicados no Jornal
Oficial da União Europeia (ver também art. 8.º/4 CRP).
Retificações
Em consequência de falhas técnicas na reprodução do texto do ato
normativo, o texto publicado apresenta por vezes divergências com o texto
original.
Torna-se então necessário proceder a retificações, que se destinam a
restabelecer a conformidade do texto publicado com o texto original.
As retificações também podem servir para corrigir lapsos gramaticais,
ortográficos, de cálculo ou de natureza análoga (art. 5.º/1 da L n.º 74/98).
Decorre do art. 5.º da L. n.º 74/98 que as rectificações são feitas mediante
declaração do órgão que aprovou o texto original e têm de ser publicadas na
série do Diário de República em que tiver sido publicado o texto a rectificar.
As declarações de retificação devem ser publicadas até 60 dias após a
publicação do texto retificando, sob pena de nulidade do ato de retificação (art.
5.º/2 e /3).
O n.º 4 do art. 5.º determina que os efeitos das declarações de retificação
são reportados à data da entrada em vigor do texto retificado. Por conseguinte,
a declaração de retificação tem eficácia retroativa.
Mas esta eficácia retroativa atingirá todos os efeitos resultantes do texto
inicialmente publicado?
OLIVEIRA ASCENSÃO defende que se devem considerar ressalvados os
efeitos produzidos pelo texto incorretamente publicado. Esta posição parece
compatível com o disposto na L n.º 74/98: a atribuição de eficácia retroativa não
obsta à ressalva dos efeitos já produzidos (cf. art. 12.º/1 CC).
Se o texto for retificado antes da entrada em vigor da lei deve entender-se
que o prazo de vacatio legis – veremos no número seguinte o que isto significa
– começará a contar da publicação da retificação.
121
Entrada em vigor
A entrada em vigor da lei é o culminar de um processo que, como temos vindo
a observar, passa pela verificação de certos pressupostos de existência da lei (a
sua criação), e ainda pela satisfação de certos requisitos de validade e eficácia,
dos quais referi, em último lugar, a publicação.
A respeito da entrada em vigor da lei é usual tratar-se do problema da
determinação do momento a partir do qual o ato normativo produz os seus
efeitos.
O problema da “localização” temporal não se limita à determinação do
começo e da cessação da vigência da lei, engloba também outros problemas,
designadamente o da delimitação do domínio recíproco de aplicação da lei nova
e da lei antiga, que estudaremos ulteriormente no capítulo dedicado à aplicação
da lei no tempo.
A respeito do começo da vigência da lei dispõe o n.º 2 do art. 5.º CC:
“Entre a publicação e a vigência da lei decorrerá o tempo que a própria lei
fixar ou, na falta de fixação, o que for determinado em legislação especial.”
O intervalo que decorre entre a publicação e a entrada em vigor de uma lei
designa-se vacatio legis.
Por conseguinte, podemos desde já formular esta regra: a lei publicada
começa a vigorar na data que ela própria fixar.
A data fixada por uma lei sobre a sua entrada em vigor não pode ser anterior
à data da publicação, uma vez que a eficácia da lei depende da sua publicação
(art. 119.º/2 CRP; ver também art. 5.º/1 CC).
Poderá a lei fixar a sua entrada em vigor na data da publicação?
Esta possibilidade era geralmente admitida antes da entrada em vigor da L
n.º 74/98. O n.º 1 do art. 2.º desta Lei veio estabelecer que a lei não pode entrar
em vigor no dia da publicação. Mas esta determinação só tem de ser observada
pelas leis de valor hierarquicamente inferior. Ora, a menos que se entenda que
a L n.º 74/98 é uma lei com valor reforçado, o que oferece muitas dúvidas, ou
que tem caráter materialmente constitucional, tal lei tem o mesmo valor que as
outras leis da Assembleia da República, que os Decretos-Leis do Governo ou
que os Decretos Legislativos Regionais.
122
A lei também pode subordinar a sua entrada em vigor à verificação de um
evento futuro, por exemplo, a publicação de um diploma regulamentar
Na falta de disposição da lei sobre o momento da sua entrada em vigor, esta
verifica-se no quinto dia após a sua publicação (art. 2.º/2 da L n.º 74/98, alterada
pela L n.º 26/2006, de 30/6).
Este prazo conta-se a partir do dia imediato ao da sua disponibilização no
sítio da internet gerido pela Imprensa Nacional-Casa da Moeda (n.º 4 do art. 2.º).
Por exemplo, a lei X disponibilizada no dia 10 entra em vigor no dia 15, na falta
de disposição em sentido diferente contida na própria lei.
Por força do art. 296.º CC, na contagem de prazos de vacatio fixados em
dias, semanas, meses ou anos deve atender-se ao disposto no art. 279.º CC.
Assim, os prazos fixados em dias contam-se a partir do dia seguinte à
publicação diploma (art. 279.º/b).
Os prazos fixados em semanas, meses ou anos, a contar de certa data,
terminam às 24 horas do dia que corresponda, dentro da última semana, mês ou
ano a essa data (art. 279.º/c/1.ª parte).
Por exemplo, a Nova Lei da Arbitragem Voluntária (L n.º 63/2011), entrou em
vigor três meses após a data da sua publicação. Uma vez que o diploma foi
publicado em 14 de Dezembro de 2011, deve entender-se que entrou em vigor
em 15 de Março de 2012.
Caso o prazo tenha sido fixado em meses a contar de certa data e não exista
no último mês dia correspondente, o prazo finda no último dia desse mês (art.
279.º/c/2.ª parte CC). Por exemplo, se a lei foi publicada em 31/3 e fixou a sua
entrada em vigor um mês depois da publicação, o prazo finda às 24 horas do dia
30/4 e a lei entra em vigor no dia 1/5.
Ao editar as leis, o legislador deve ponderar, perante o seu conteúdo e face
ao circunstancialismo social existente, se os prazos normais de vacatio legis são
adequados, se é necessário que a lei entre em vigor logo que seja publicada, ou
se, pelo contrário, é conveniente estabelecer um intervalo mais longo.
Assim, por exemplo, quando se trate de leis extensas e complexas, como é
normalmente o caso dos códigos, justifica-se um período dilatado de vacatio.
Quando estejam presentes considerações de urgência pode justificar-se uma
redução ou supressão da vacatio.
123
Suspensão, cessação ou termo da vigência
A respeito da entrada em vigor da lei é usual tratar apenas do problema da
determinação do momento a partir do qual o ato normativo produz os seus
efeitos, limitando o quadro de análise ao plano da eficácia. No que se refere à
cessação da vigência da lei, quer-me parecer que não está em causa, em rigor,
um problema de “ineficácia superveniente”.
Abstraindo da cessação de vigência por declaração de inconstitucionalidade
ou ilegalidade com força obrigatória geral (art. 281.º/1 e 3 CRP e art. 76.º C.
Proc. Trib. Adm.), há a considerar, principalmente, os problemas da suspensão
e da cessação da vigência da lei por revogação ou caducidade.
Em ligação com este ponto, cabe indagar das consequências do costume
contra legem e do desuso sobre a vigência da lei.
Na suspensão da vigência encontramos um caso de ineficácia superveniente
da lei. Uma lei pode inicialmente produzir efeitos, mas vir a tornar-se ineficaz.
Fala-se então de ineficácia superveniente. A lei continua a existir e a ser válida,
mas deixa de produzir efeitos durante certo período de tempo. A opção pela
suspensão de vigência justifica-se quando se entenda que só transitoriamente a
lei deve deixar de produzir efeitos.
A suspensão pode ser expressa – resultando de uma lei suspensiva – ou
tácita, por exemplo, a lei que expressamente revoga um regulamento pode
implicar a suspensão tácita da lei regulamentada.
Expirado o prazo de suspensão fixado pela lei suspensiva, revogada esta lei,
ou eliminado o condicionamento que desencadeara a suspensão tácita, a lei
suspensa retoma a sua vigência.
Diferentemente se passam as coisas no caso da cessação de vigência. A
meu ver a cessação de vigência não é um caso de ineficácia da lei.
Assim, por um lado, apesar da revogação, a lei antiga pode continuar a
produzir efeitos, na medida em que o Direito Transitório da lei nova ou regras
gerais de Direito Intertemporal lhe concedam um domínio de aplicação,
designadamente com respeito aos efeitos ligados a situações anteriormente
constituídas.
Por outro lado, a revogação exclui a lei revogada da ordem jurídica atual. Não
se trata apenas de uma cessação de efeitos. Os efeitos que a lei antiga produz
124
por força do Direito Intertemporal não implicam que a lei antiga faça parte da
ordem jurídica atual: a lei antiga é aplicada, como elemento da ordem jurídica
anterior, por força de uma remissão do Direito Intertemporal.
É por esta razão que a revogação da lei revogatória não permite presumir o
renascimento da lei que esta revogara (art. 7.º/4 CC). Por outras palavras, na
falta de disposição em contrário, a revogação da lei revogatória não tem efeito
repristinatório.
O efeito repristinatório é, em todo o caso, possível. Consiste este efeito numa
reintegração da lei antiga na ordem jurídica vigente por força da lei nova.
Deve também observar-se que a declaração de inconstitucionalidade ou de
ilegalidade com força obrigatória geral da lei revogatória determina a
repristinação das normas que tenha revogado (art. 282.º/1 CRP e art. 76.º/1 C.
Proc. Trib. Adm.).
A revogação é a forma normal de cessação de vigência da lei. A revogação
é geralmente definida como a cessação de vigência da lei por efeito de um ato
normativo posterior de hierarquia igual ou superior à lei revogada.
As modalidades de revogação serão estudadas no parágrafo seguinte.
No caso da caducidade, a cessação da vigência da lei é determinada por
mero efeito da superveniência de um facto.
A própria lei pode prever um facto que desencadeie a cessação da sua
vigência (art. 7.º/1 CC). O mais característico é fixação de um prazo de vigência.
Não obstante, pode a vigência ficar dependente de outros factos previstos na
própria lei ou que constituem seus pressupostos de aplicação.
Por exemplo, a lei que regula a reinserção social dos militares que
combateram em determinada guerra, caduca quando todos os combatentes
nessa guerra estiverem reinseridos ou, o mais tardar, quando falecer o último
desses combatentes.
Continua a ser discutido se o costume contra legem atinge a vigência
(normativa) da lei ou não tem outro significado que o de limite indesejável à sua
efetividade. Tomarei posição quando chegar o momento de me ocupar da
relação entre costume e lei.
Enfim, no que concerne ao simples desuso, já se aceita mais facilmente que
não prejudica a vigência da lei, embora limite a sua efetividade social.
125
O desuso representa uma mera desconformidade entre os padrões sociais
de conduta e o critério de conduta contido na regra jurídica.
Modalidades de revogação
São três as modalidades de revogação: expressa, tácita e global (cf. art. 7.º/2
CC).
A revogação é expressa quando consta de declaração feita na lei revogatória.
Por exemplo, o DL n.º 496/77, de 25/11, que reformou o Código Civil, revogou
expressamente vários preceitos deste código.
Nos outros casos de revogação – tácita e global – o legislador não indica
quais as regras revogadas.
A revogação tácita resulta da incompatibilidade entre as regras da lei nova e
as da lei antiga.
Quando a nova lei regula globalmente a matéria a que se aplicava a lei
anterior, é legítimo presumir a revogação desta lei, não havendo a necessidade
de demonstrar a incompatibilidade entre elas. Temos então uma revogação
global.
Por exemplo, com a entrada em vigor do Código Civil de 1966 pôde presumir-
se a revogação de toda a legislação civil relativa às matérias que este diploma
abrange. O legislador consagrou expressamente esta revogação global no art.
3.º do DL n.º 47344, de 25/11/66, que aprovou o Código Civil.
A revogação pode ser total ou parcial consoante determina a cessação da
vigência de todo o complexo normativo contido num diploma, ou apenas a de
uma parte.
A revogação pode ainda ser substitutiva ou simples conforme substitui o
regime jurídico da lei revogada ou se limita a operar a revogação. A revogação
tácita é sempre uma revogação substitutiva.
Poderia pensar-se que, para haver revogação, a lei revogada tem estar em
vigor no momento da entrada em vigor da lei revogatória. No entanto, nada obsta
à revogação de uma lei cuja vigência se encontra suspensa.
É mesmo concebível que a revogação possa incidir sobre uma lei que ainda
não entrou em vigor, com o sentido útil de impedir a sua entrada em vigor. Neste
caso, a revogação não atinge a eficácia da lei revogada, mas remove-a da ordem
126
jurídica. Mas isto implica aceitar que nem sempre a revogação é um caso de
cessação de vigência.
A revogação de uma lei pode desencadear a caducidade de outra lei. Isto
sucede em tês casos:
- quando a revogação de uma lei priva de âmbito de aplicação outra lei, esta
lei caduca;
- com a revogação de uma lei caduca a lei que a regulamentava;
- a revogação da lei que impõe uma obrigação de conduta implica a
caducidade da lei que estabeleça a sanção aplicável à sua violação.
Lei geral não revoga lei especial
Um dos casos em que a revogação global ou tácita pode suscitar dificuldades
ao intérprete tem que ver com a relação que intercede entre lei geral e lei
especial.
Determina o n.º 3 do art. 7.º CC:
“A lei geral não revoga a lei especial, excepto se outra for a intenção
inequívoca do legislador.”
Seguindo um critério estrutural ou formal, a relação de especialidade é
definida pelo alcance da previsão de cada uma das regras em concurso: o
domínio de aplicação da norma especial corresponde a um setor do domínio de
aplicação da norma geral.
Norma especial
Norma geral
Critério estrutural formal
127
Todas as situações que caem no âmbito da previsão da norma especial
também estão, prima facie, dentro do domínio de aplicação da norma geral. Mas
nem todas as situações abrangidas pela previsão da norma geral estão dentro
do domínio de aplicação da norma especial.
Não é só entre regras jurídicas singulares que surge uma relação de
especialidade. A mesma relação pode interceder entre complexos normativos,
e, designadamente, entre ramos do Direito, por exemplo, entre o Direito Privado
e o Direito Comercial.
Por diversas razões é discutível se este critério é suficiente para a
classificação das normas especiais, sobretudo quando esteja em vista uma
classificação tripartida geral/especial/excecional. No presente contexto
interessam somente as considerações que relevarem para o tema da revogação.
Quando há incompatibilidade entre as regras jurídicas em vigor que estão
nesta relação de especialidade, entende-se que a norma especial prevalece
sobre a norma geral.
A lei atende a circunstâncias particulares que qualificam certas situações
como “especiais”, e estabelece um regime diferente em função desta
“especialidade”.
Na mesma ordem de ideias, a lei geral não revoga a lei especial, porque, em
princípio, a nova lei geral não atende à “especialidade” de que se revestem
certas situações, não existindo uma intenção de abolir o regime especial para
elas estabelecido.
De pé fica, no entanto, a possibilidade de estar subjacente à nova lei geral a
intenção de eliminar os regimes especiais.
São diversas as considerações que podem levar à revogação de regimes
especiais por uma lei geral.
Pode haver uma reapreciação das circunstâncias particulares que
justificavam a “especialidade” e que, segundo a nova valoração, não justificam a
manutenção de regimes especiais.
128
A especialidade de uma lei pode ser meramente formal, por não ser
justificada pelas circunstâncias particulares do setor a que se aplica. É o que
sucede quando o legislador aproveita uma lei especial para introduzir soluções
que se justificam em todo o domínio de aplicação da lei geral.
Neste caso, se o legislador vem alterar a lei geral, consagrando soluções
contrárias à lei formalmente especial, não há razão para manter em vigor esta
lei.
Enfim, o novo regime geral pode mostrar-se mais adequado a todas as
situações, incluindo as reguladas pela lei especial.
Em suma, o que justifica a não revogação da lei especial por lei geral é a
especialidade substancial, que decorre do estabelecimento de um regime
específico mais adequado a circunstâncias particulares e não uma especialidade
meramente formal.
A fórmula utilizada na lei não é a mais feliz, na parte em que se refere à
“intenção inequívoca do legislador”. Admite-se que, por razões de certeza
jurídica, quem invoque a revogação de lei especial por lei geral tenha de
demonstrar que este é, seguramente, o sentido da lei.
Em caso de dúvida, entender-se-á que não há um sentido revogatório.
Revogação e hierarquia das leis
O programa de Introdução ao Estudo do Direito II dedica um capítulo à
hierarquia das fontes e das regras. A importância que esta matéria tem para a
correta compreensão da cessação da vigência da lei por revogação, justifica que
se faça uma muito breve observação sobre a hierarquia das leis.
Uma lei só pode revogar leis de hierarquia idêntica ou inferior. Por exemplo,
uma lei ordinária não pode revogar uma norma da Constituição.
129
130
CAP. III - O COSTUME E OS USOS
131
Noção
No início do nosso curso assinalei que uma das condições necessárias à
existência de uma sociedade é a estabilização e institucionalização das relações
que se estabelecem dentro de um grupo.
Na origem podemos encontrar regularidades de conduta, práticas sociais
reiteradas, com base nas quais as pessoas criam expectativas em relação ao
comportamento umas das outras; estas expectativas recíprocas e
complementares são muito importantes para a determinação do comportamento
de cada uma delas.
A institucionalização da sociedade requer mais, porém, do que meras
práticas sociais reiteradas, ou usos. Certas relações sociais têm de se basear
na imposição de deveres e no reconhecimento ou atribuição de direitos.
Partindo do que era inicialmente uma mera expectativa de um
comportamento normal vai generalizar-se a convicção geral de que este
comportamento corresponde a uma vinculação jurídica, i.e., de que a ordem
jurídica prescreve essa conduta.
Quando um uso social é acompanhado desta “convicção de obrigatoriedade”,
temos, segundo a noção mais divulgada, um costume.
Parece-me mais exato falar em convicção de vinculatividade, uma vez que o
costume, como a lei, não se limita a impor deveres, também pode atribuir direitos,
regular o estado das pessoas ou estabelecer requisitos de validade de negócios
jurídicos.
Na utilização da palavra “costume” há uma ambiguidade semelhante à que
encontrámos no emprego da palavra “lei”. “Costume” tanto pode servir para
designar um modo de criação de normas jurídicas, como para designar as
normas e complexos normativos assim criados. Neste último sentido, “costume”
é sinónimo de Direito consuetudinário.
A existência do costume depende apenas da verificação dos dois elementos
que acabamos de referir – prática social reiterada e convicção de
vinculatividade?
132
Defendem alguns autores que o costume só é fonte do Direito se for
reconhecido pelo poder político. Funda-se este entendimento na identificação do
Direito com as emanações do poder político. Não retomarei aqui a crítica desta
conceção à qual farei apenas dois reparos.
Numa perspetiva histórica, a génese do Direito confunde-se com as origens
da espécie humana; no momento em que os povos entram na história já são
conhecidos muitos dos principais institutos do atual Direito privado. Conforme
refere GILISSEN, é hoje geralmente admitido, sob a influência das pesquisas
efetuadas por etnólogos e sociólogos, que parte dos “costumes” dos povos que
ainda não atingiram o estádio da organização estadual têm caráter jurídico.
Por outro lado, como já foi anteriormente assinalado, a observação das
sociedades atuais revela-nos que, em maior ou menor escala, vigoram em todas
elas regras jurídicas que não foram criadas por órgãos do poder político.
Ainda numa perspetiva de cunho juspositivista, entende um setor importante
da doutrina que embora não seja necessário um reconhecimento explícito do
costume pelos órgãos públicos, basta, para este efeito, que o costume seja
efetivamente imposto pelos órgãos de aplicação do Direito.
Também não posso concordar com este pressuposto nos termos em que ele
é formulado. Em princípio, é a aplicação do costume na decisão jurisdicional que
pressupõe a sua vigência, e não, ao inverso, a vigência que pressupõe a
aplicação.
Claro que a prática dos órgãos de aplicação do Direito é um elemento
importante a ter em conta na determinação da conceção normativa, que vigora
na comunidade, sobre as fontes do Direito. Mas não é o único elemento, e pode
haver práticas divergentes entre jurisdições de diferente natureza,
designadamente entre tribunais estaduais e tribunais arbitrais.
A par dos usos que exteriorizam uma regra jurídica, outros há que
correspondem a regras morais, religiosas ou do trato social. Será a convicção
de vinculatividade que imprime à regra consuetudinária o seu caráter jurídico?
Ou haverá que atender também à “natureza da matéria”, aos “interesses em
jogo”, ao conteúdo do uso?
133
A convicção de vinculatividade pressuposta pelo costume não pode deixar de
ser qualificada pelo conjunto das notas distintivas do Direito. Não basta a
convicção de se estar obrigado, é necessária uma convicção de se estar
obrigado ou vinculado juridicamente.
Se um dado uso social, pelo seu conteúdo, pelo sentido de que é portador,
e, porventura, também por circunstâncias extrínsecas, é geralmente
“reconhecido” como Direito, e, por conseguinte, observado com convicção da
sua vinculatividade jurídica, impõe-se, no mínimo, presumir a existência de
Direito consuetudinário.
Não obstante, a validade (material) de toda a regra jurídica é definida pela
compatibilidade do seu conteúdo com as normas e princípios de fontes
hierarquicamente superiores, designadamente de normas e princípios
constitucionais.
Por conseguinte, parece-me que para se afirmar a vigência de uma regra
consuetudinária não basta a efetividade social nem a convicção de
vinculatividade jurídica. Será necessário que a norma, em função do seu
conteúdo, participe validamente do sistema jurídico.
Segundo MENEZES CORDEIRO, o “costume deve ser reconhecível como
Direito, para a sociedade considerada. Nessa medida, ele terá de ser
reconduzível a uma harmonia de conjunto, integrando princípios gerais. A prática
que se exprima num mero exercício da força, num puro arbítrio aleatório ou numa
manifestação chocante para a comunidade não é Direito nem, logo, costume
jurídico”.
Isto leva o autor a colocar como terceiro requisito do costume, a sua
“racionalidade, no sentido de compatibilidade com o Direito no seu todo”.
Em minha opinião, não temos aqui um pressuposto adicional da existência
do costume jurídico, mas um requisito da sua validade.
134
Modalidades
O estudo das diferentes modalidades de costume tem grande interesse
porque nos revela que, sob a mesma designação comum, se acolhem realidades
de estrutura, sentido e alcance muito variados.
Podemos distinguir, em primeiro lugar, o costume internacional, que é fonte
do Direito Internacional, do costume interno, que vigora no âmbito de uma ordem
jurídica estadual. A relevância do costume como fonte do Direito Internacional é
comummente aceite.
Além do costume internacional e do costume interno importa referir o costume
transnacional. O costume transnacional é aquele que embora extravasando do
âmbito de uma ordem jurídica estadual não é fonte de Direito Internacional. É o
que se verifica com o costume comercial internacional.
O costume interno deixa-se subdividir em geral, local e particular. Costume
geral será aquele cujo âmbito de aplicação corresponder ao de uma ordem
jurídica estadual. O costume local vigora apenas numa parte do território do
Estado. É particular o costume que é aplicável a certos grupos de pessoas, ou
que vigora dentro de certos setores da vida social, por exemplo, em certos ramos
da atividade económica.
O costume pode ser fonte de Direito Privado ou de Direito Público, o que
permite classificá-lo em conformidade. A valia prática do costume como fonte do
Direito Público, designadamente de Direito Administrativo, é sublinhada por
muitos autores.
Enfim, podemos distinguir o costume tradicional, ou costume em sentido
estrito, do costume jurisprudencial.
O costume tradicional, característico dos Direitos arcaicos ou tradicionais,
forma-se espontaneamente, como expressão direta das estruturas sociais.
Nasce e desenvolve-se em íntima correlação com as representações morais e
religiosas; a convicção de vinculatividade do costume assenta, em larga medida,
nestas representações e, em geral, na força da tradição.
Já o costume jurisprudencial é a prática judicial constante que se integrou na
“consciência jurídica geral”. Neste caso, o processo de criação da norma integra
135
elementos intencionais, designadamente as decisões judiciais, bem como o
reconhecimento por parte dos órgãos jurisdicionais.
Uma parte da doutrina, que nega à jurisprudência o caráter de fonte do Direito
em sentido técnico-jurídico, aceita que as regras desenvolvidas nas decisões
dos tribunais podem ser positivadas pelo costume jurisprudencial. A fonte destas
regras é o costume e não a jurisprudência.
Segundo OLIVEIRA ASCENSÃO, o costume jurisprudencial também se
funda num uso, mas com a particularidade de este uso não ser uma prática
constante dos interessados, mas dos órgãos jurisdicionais. A conduta dos
interessados diretos será irrelevante, embora a convicção de obrigatoriedade já
tenha de ser partilhada por estes interessados.
Significado prático
Em traços gerais, poderá dizer-se que a valia prática do costume é
inversamente proporcional em relação à importância da lei.
Afirma-se que nos Direitos considerados menos desenvolvidos domina o
costume e que nos mais desenvolvidos é a lei a fonte dominante. O Direito
consuetudinário tende a recuar à medida que a lei avança. Dada a sua
generalidade, estas considerações nem sempre dão conta, porém, da
diversidade das condições locais, das diferentes conceções de sociedade e das
diferentes conceções do Direito que lhes estão associadas.
Enquanto o Direito consuetudinário (tradicional) é composto por normas que
existem na consciência coletiva, e que se manifestam no comportamento geral,
a lei é integrada por normas emanadas dos órgãos a que a Constituição atribui
tal missão. O Direito que prossiga um fim inovador, um fim transformador,
subordinado à condução política do país, é fundamentalmente lei.
O costume também acompanha a evolução da sociedade, mas, por definição,
não pode “antecipar-se” à realidade e constituir um fator de transformação social.
Em contrapartida, o Direito consuetudinário molda-se à realidade social, em
contraste com os frequentes desfasamentos da legislação “transformadora”.
Assinalei anteriormente que nas modernas sociedades estaduais a lei tende
a ter primazia entre as fontes do Direito.
136
Ao poder político é confiada a missão de realizar determinados fins da
sociedade, fins estes que se acham hoje consagrados constitucionalmente.
Neste contexto, a lei é encarada como a expressão da vontade coletiva exercida
principalmente através dos órgãos do poder político legitimamente constituído a
quem seja confiada a função legislativa.
Por conseguinte, nas modernas sociedades estaduais os órgãos do poder
político tendem a desempenhar o principal papel na produção de normas
jurídicas. Pensamos nas assembleias legislativas, mas também,
designadamente, nas competências legislativas dos governos. A lei é o meio de
ação essencial do poder sobre a vida social. Relativamente a certas matérias, a
regulação jurídica só pode ser feita por meio de lei formal (reserva de lei).
A garantia dos direitos do cidadão perante o Estado também aponta, em
diversos domínios, para a prevalência da lei. Pensemos, designadamente, no
regime dos direitos fundamentais, no princípio da legalidade dos atos da
administração e no princípio da tipicidade em Direito Penal.
Acrescente-se que o formalismo de que normalmente se reveste o processo
legislativo, e a circunstância de as leis serem publicadas, conferem à norma legal
um grau de certeza jurídica, precisão e cognoscibilidade dificilmente comparável
ao das regras geradas pelo costume.
Daqui não decorre necessariamente, porém, uma primazia da lei em relação
ao costume.
Na mesma ordem de ideias, a circunstância de o costume assumir, em dada
sociedade, uma grande valia prática, também não é conclusiva quanto à sua
posição na hierarquia das fontes. Pode a lei deixar ao costume a missão de
regular setores amplos da vida social, embora nos aspetos regulados pela lei
esta prevaleça sempre.
Pode dizer-se que o costume está numa posição de vantagem porque a
efetividade social da regra costumeira está automaticamente assegurada.
Com este aspeto se liga a legitimação democrática do costume: o costume
assenta na prática e nas convicções dos membros da sociedade ou do círculo
social em que vigora.
Mas daqui também não decorre necessariamente que o costume ocupe
posição de supremacia na hierarquia das fontes.
137
O que poderá porventura defender-se é que há uma primazia teórica do
costume e uma primazia prática da lei. Com efeito, se entendermos que a
determinação das fontes do Direito e da sua hierarquia depende, em última
instância, da conceção normativa que integra a consciência da comunidade
jurídica, estamos, no essencial, a admitir que a regra de reconhecimento última
tem natureza consuetudinária. Mas se, desta conceção resulta, como me parece,
que a lei (criada no exercício da função legislativa) tem primazia sobre o costume
infraconstitucional, estamos a admitir a primazia prática da lei.
Não deve confundir-se a primazia da lei com a irrelevância do costume.
Mesmo nos países onde o Direito está há muito codificado e onde o costume
tem escassa importância, a maioria dos autores reconhece hoje que o costume
é uma fonte do Direito.
Relações entre costume e lei
Verificámos anteriormente que sob a designação de “costume” se ocultam
modos de criação jurídica com um alcance e sentido bastante diverso.
Também sabemos já que em sentido material amplo o conceito de lei abrange
desde as regras emanadas de um poder constituinte, às formuladas no exercício
de uma competência regulamentar, passando, naturalmente, pela normal
atividade legislativa.
É indispensável ter presente esta diversidade dos “costumes” e das “leis”
quando se examina as suas relações. Desde já, note-se, a análise que se segue
limita-se ao costume como fonte estadual ou infraestadual.
Do ponto de vista das suas relações com a lei, fala-se em costume:
à secundum legem, quando uma prática social é observada como costume,
apesar de se conformar com o disposto na lei;
à praeter legem, quando o costume vai além da lei, regulando matéria não
disciplinada legalmente; à contra legem, quando o costume contraria o disposto na lei.
Tradicionalmente, procura-se definir a relevância do costume, em cada um
destes casos, com recurso ao disposto na própria lei. Já assinalei, porém, que
138
os preceitos legais sobre as fontes do Direito e a sua hierarquia não têm o
alcance que geralmente lhes é atribuído.
Abstraindo do problema do costume constitucional, que é um problema
específico da disciplina de Direito Constitucional, entendo, pelas razões
anteriormente expostas que o costume está necessariamente submetido à lei
constitucional.
A validade da regra consuetudinária também tem de ser controlada, sendo,
designadamente, de exigir, a sua compatibilidade com os direitos fundamentais
consagrados na constituição e com os princípios gerais que enformam o sistema
jurídico.
Esta primazia da constituição implica também que dela deve partir a definição
da hierarquia entre as fontes que lhe estão subordinadas. Trata-se de uma opção
constitucional e não de uma decisão científica. A priori nada obriga a que o
costume esteja acima, ao lado ou abaixo da lei ordinária, e a história dá conta
da verificação de cada uma destas.
Como vimos anteriormente, da omissão de referências, no texto
constitucional, ao costume interno, e, em especial, do art. 203.º CRP que
determina que os tribunais apenas estão sujeitos à lei, e da intenção do
legislador constitucional que lhe está subjacente, infere-se claramente que as
regras válidas criadas no exercício da função legislativa prevalecem
necessariamente sobre o costume contrário.
No mesmo sentido aponta a prática dos tribunais estaduais e de demais
órgãos públicos de aplicação do Direito.
Esta prevalência da lei não significa que a relevância do costume dependa
da lei ordinária. A vigência do costume não depende de ser reconhecido ou,
sequer, tolerado, pela lei. O costume vigora desde que seja válido, i.e., que não
contrarie a lei e seja conforme aos princípios gerais de Direito.
Claro que não é esta a única posição defendida entre nós.
No polo oposto à doutrina tradicional que negava que o costume seja fonte
do Direito português, tornou-se dominante na doutrina o entendimento segundo
o qual a validade do costume não depende da sua conformidade com a lei
(INOCÊNCIO GALVÃO TELLES, CASTRO MENDES, OLIVEIRA ASCENSÃO,
139
CASTANHEIRA NEVES, MARCELO REBELO DE SOUSA, MENEZES
CORDEIRO e TEIXEIRA DE SOUSA).
Em sentido convergente com a posição por mim adotada de iure constituto
pode referir-se DIAS MARQUES.
Uma posição intermédia é assumida por FREITAS DO AMARAL/AFONSO
PEREIRA, que defendem uma diferenciação de soluções que atenda,
designadamente, à solução mais justa no caso concreto.
Na medida em que a posição dominante na doutrina não prevalece entre os
magistrados e outros juristas, não parece possível afirmar que existe uma prática
e uma convicção da comunidade jurídica divergentes do texto constitucional.
De iure condendo, ocorre que a melhor posição poderá ser uma diferenciação
de soluções, que atenda não só à justiça do caso concreto, mas também à
natureza da matéria e às exigências de certeza e previsibilidade jurídicas que
lhe sejam inerentes.
Ainda aqui, porém, nos encontramos longe de ter resolvido todos os
problemas que o costume contra legem suscita.
Há casos em que o intérprete, ao aplicar a regra legal prevalecente, não pode
ignorar a divergência entre a determinação legal e o padrão social de conduta
definido pelo costume.
Os órgãos públicos ficam colocados numa posição delicada: por um lado têm
de respeitar a lei, por outro não podem ignorar completamente a existência do
costume (por exemplo, na apreciação da culpa e na graduação da pena).
A lei transforma-se, neste caso, num mero critério de decisão.
O costume secundum legem não suscita dificuldades na prática dos órgãos
de aplicação do Direito, mas pode perguntar-se se não desempenha um papel
importante por grande parte das regras jurídicas, e sobretudo as mais
importantes para a convivência social, serem observadas por constituírem
práticas habituais a que generalidade dos membros da sociedade se sente
vinculada e não enquanto leis.
Isto poderia contradizer a primazia prática da lei, anteriormente defendida.
140
Creio, porém, que nas sociedades modernas com sistemas jurídicos filiados
na família romanogermânica a grande maioria das regras jurídicas é observada
na suposição, por parte dos seus destinatários, de que constituem lei vigente,
mesmo que estes destinatários não saibam identificar a lei em questão.
Quanto ao costume praeter legem, pergunta-se sobre o seu valor para a
integração de lacunas. Por outras palavras, se o costume pode ser uma fonte
subsidiária de Direito.
À face do disposto no art. 10.º CC o costume não teria uma função
integradora.
No entanto, é preciso não esquecer que as regras consuetudinárias válidas
são regras vigentes.
Por conseguinte, se o caso é abrangido por uma regra consuetudinária não
há lacuna.
Como o costume é, geralmente, local ou particular, isto pressupõe que o
Direito costumeiro vigore no local em que as partes residem ou no círculo que
ambas as partes integrem.
A relevância do costume à luz das regras legais
Não é possível realizar no âmbito deste curso uma pesquisa exaustiva dos
casos de relevância do costume à face das regras legais ordinárias. Limito-me,
pois, à análise de alguns preceitos fundamentais nesta matéria.
O CC não reconhece o costume como fonte de Direito. Este diploma afasta
não só a relevância do costume contra legem (arts. 1.º e 7.º/1), como nega uma
função interpretativa ou integradora ao costume praeter legem (cp. arts. 9.º e
10.º).
No entanto, no art. 348.º CC o legislador admitiu que o costume pode, em
certos casos, ser fonte do Direito. Examinemos esta disposição.
Em geral o tribunal tem a obrigação de conhecer o Direito aplicável, não
recaindo sobre as partes o ónus da sua prova. Face às dificuldades que, porém,
pode suscitar a averiguação do Direito consuetudinário, do Direito local e do
Direito estrangeiro, seria concebível que fosse posto a cargo da parte que o
invoca o ónus da sua prova.
141
Mas não foi este o caminho seguido pelo legislador: embora as partes tenham
um dever de colaboração com o tribunal na determinação do seu conteúdo (art.
348.º/1 CC), o Direito consuetudinário, o Direito local e o Direito estrangeiro são,
como a lei interna, de conhecimento oficioso (art. 348.º/1 e 2).
Sem se se reconhecer, em geral, que o costume é fonte do Direito, admite-
se que o possa ser em certos casos.
Há alusões a “costumes” nos arts. 1400.º e 1401º CC (divisão e
aproveitamento das águas), mas põe-se em dúvida que se trate de verdadeiro
costume.
Na legislação avulsa surgem diversos exemplos de remissão para o costume.
Por exemplo, a Lei dos Baldios (Lei n.º 75/2017, de 17/8), manda atender aos
usos e costumes locais quanto ao uso e fruição e à administração dos baldios,
(designadamente, arts. 3.º/1 e 5, 7.º/2 e 15.º/1).
Naturalmente que o costume poderá valer, à face da lei, como uso, nos casos
em que os usos relevam por força da lei. A remissão legal para os usos é, em
larga medida, uma forma encoberta de permitir a relevância do costume, sem,
porém, reconhecer a sua existência.
Aplicação pelos órgãos públicos
Entendo que os órgãos públicos de aplicação do Direito têm de respeitar os
limites colocados pelas normas sobre a produção jurídica e pelos critérios de
hierarquização das fontes expressamente estabelecidos na Constituição e, em
princípio, na lei ordinária, ou que deles se podem inferir.
Por conseguinte, os tribunais estaduais e outros órgãos públicos devem
decidir os casos que lhes são submetidos segundo a lei e, quando compatível
com a lei, segundo o costume.
Os órgãos públicos devem aplicar o costume praeter legem dentro dos limites
fixados pelos valores fundamentais e princípios gerais do sistema.
Os órgãos públicos não devem aplicar costume ordinário contra legem. Em
todo o caso, a aplicarem lei contrária ao costume, estes órgãos poderão ter em
conta a divergência entre a determinação legal e a regra consuetudinária.
142
Usos
Os usos são meras práticas sociais reiteradas, regularidades sociais, que não
são acompanhadas de uma convicção de vinculatividade.
Porque a simples normalidade social não é geradora de normatividade, os
usos nunca são fonte imediata do Direito.
Os usos são fonte mediata do Direito quando uma regra legal ou
consuetudinária lhes confere força jurídica.
Do n.º 1 do art. 3.º do CC consta uma disposição genérica neste sentido:
“Os usos que não forem contrários aos princípios da boa fé são juridicamente
atendíveis quando a lei o determine.”
Mesmo nos casos em que a lei remeta para os usos, só serão positivados os
usos que forem conformes com os valores fundamentais e os princípios gerais
da ordem jurídica.
Eis alguns exemplos de remissões feitas por regras do CC para os usos: arts.
763.º/1; 885.º/2; 937.º; 1037.º/1, 1081.º/2; 1163.º e 2326.º.
Como exemplos de remissões para os usos contida noutros diplomas, pode
referir-se:
- o art. 317.º do Código da Propriedade Industrial, que define a concorrência
desleal como “acto de concorrência contrário às normas e usos honestos de
qualquer ramo de actividade económica”;
- o art. 1.º do Código do Trabalho que sujeita o contrato de trabalho aos usos
laborais que não contrariem o princípio da boa fé.
Com esta técnica remissiva a lei confere vigência normativa a práticas sociais
que têm a sua própria dinâmica de desenvolvimento. Não se trata pois de uma
receção do conteúdo dos usos pela lei.
A remissão para os usos pode ter o mais variado alcance: tanto pode
abranger genericamente todo um ramo do Direito, como sucederia no caso de o
Direito Comercial remeter subsidiariamente para os usos do comércio, como
restringir-se a um aspeto parcelar de uma determinada relação típica, passando
por várias hipóteses intermédias.
143
Contrariamente ao que se verifica noutros sistemas, no sistema português o
Direito Comercial não atribui genericamente aos usos o valor de fonte
subsidiária.
No que concerne às remissões operadas no regime das obrigações
voluntárias, verifica-se, na maior parte dos casos, que os usos são aplicáveis a
título supletivo, cedendo perante diferente estipulação das partes, e a título
subsidiário relativamente à lei.
Mas nada impede o legislador de conferir aos usos o valor de Direito
imperativo e há casos em que a lei lhes atribui valor superior às regras legais
supletivas – cf. art. 885.º/2 (lugar do pagamento do preço da venda).
Além dos casos em que a lei remeta para os usos não haverá outros modos
de relevância jurídica dos usos? Terão os usos uma função interpretativa e
integrativa do negócio jurídico?
Embora o Direito português vigente não se refira expressamente ao valor
interpretativo dos usos, será igualmente necessário tê-los em conta na
determinação do sentido que à declaração pode normalmente ser atribuído no
tráfico negocial (art. 236.º CC e art. 11.º do DL n.º 446/85, de 25/10).
Os usos relevam aqui como elemento de interpretação do negócio jurídico,
apreciado pelo intérprete a par de quaisquer outros elementos que possam
relevar para o efeito, com vista a esclarecer o que é normal e razoável. Esta
apreciação não pressupõe a atribuição de valor normativo aos usos em causa.
Quanto à integração “da declaração negocial”, o Código Civil português não
reconhece expressamente a relevância dos usos (art. 239.º).
Repare-se que só há um problema de integração quando se verificar uma
lacuna do negócio jurídico, i.e., um ponto omisso que não é contemplado pelas
cláusulas do contrato e a que não aplicáveis regras jurídicas ou usos positivados
por remissão legal.
Quando a lei não remete para os usos, estes só podem relevar para a
integração no quadro definido pelo art. 239.º que manda atender à “vontade que
as partes teriam tido se houvessem previsto o ponto omisso”, i.e, à vontade
hipotética, “ou de acordo com os ditames da boa fé, quando outra seja a solução
por eles imposta”.
144
Perante o disposto neste preceito, a maioria dos autores não atribui aos usos
o papel de um critério autónomo de integração do negócio jurídico, o que não
obsta a que os usos possam ser tidos em conta como elemento para estabelecer
a vontade hipotética e, porventura, no apuramento dos limites que lhes sejam
colocados pela boa fé.
Neste contexto, os usos relevam como meros elementos de facto que o
intérprete aprecia livremente na reconstituição daquilo que seria a vontade
normal e razoável das partes se o ponto omisso lhes tivesse ocorrido. Também
este modo de relevância não envolve a atribuição de valor normativo aos usos.
Creio que os usos podem ainda relevar nos casos em que a lei remete para
padrões sociais de conduta, por exemplo, quando, no art. 487.º CC, manda
atender à diligência de um “bom pai de família” em matéria de responsabilidade
civil.
A JURISPRUDÊNCIA
A visão clássica do papel da jurisprudência
O termo “jurisprudência” é polissémico.
Pode significar, designadamente, para designar a Ciência do Direito (por
exemplo, quando se fala de “jurisprudência dos interesses” trata-se da Ciência
Jurídica baseada numa determinada orientação metodológica), ou as decisões
dos tribunais.
Neste segundo sentido, “jurisprudência” pode significar o conjunto das
decisões dos tribunais, uma orientação seguida numa série significativa de
decisões ou qualquer decisão jurisdicional.
São estas duas últimas aceções as que relevam quando se coloca a questão
de saber se a jurisprudência é fonte do Direito.
Como foi anteriormente assinalado, a função jurisdicional do Estado consiste
na aplicação do Direito por órgãos independentes e colocados numa posição de
imparcialidade (cf. art. 203.º CRP).
Em regra, o ato jurisdicional é concreto: define uma situação jurídica
concreta, não cria uma regra geral e abstrata. O exercício da função jurisdicional
145
culmina no julgamento: a decisão judicial ou sentença resolve, em regra, um
caso concreto, definindo as situações jurídicas em causa por forma definitiva.
Mas esta regra admite exceções: como adiante veremos, o ato jurisdicional
pode ter caráter normativo e não ter relevância num caso concreto.
A jurisprudência, enquanto atividade de aplicação do Direito em casos
concretos, não poderá ser uma fonte de Direito complementar, subsidiária de
outras fontes? Qual o significado de cada decisão judicial para casos
semelhantes que no futuro sejam apreciados pelo mesmo tribunal ou por outros
tribunais?
A este respeito há dois sistemas básicos: o do Common Law e o da família
romano-germânica.
Na família do Common Law vigora o sistema do precedente: as decisões dos
tribunais superiores constituem precedente relativamente vinculativo, pelo
menos para os tribunais inferiores (doutrina stare decisis).
Pelo contrário, na família romano-germânica, os tribunais não estão
formalmente vinculados a decidir em conformidade com as decisões
anteriormente proferidas em casos semelhantes, mesmo por tribunais
superiores.
Em regra, a decisão só tem importância imediata para o caso concreto a
resolver. No entanto, a solução dada num caso concreto pretende ser válida à
face do sistema jurídico, pretende ser a interpretação correta de dada lei ou a
integração da lacuna com recurso à analogia, à concretização de princípios
jurídicos ou, em último caso, à criação de uma solução compatível com o
sistema.
Por conseguinte, cada decisão encerra em si a afirmação de que casos
semelhantes devem, no futuro, ser resolvidos do mesmo modo. A solução, se
correta for, deve valer para o futuro.
Corresponde à prática judiciária que o mesmo tribunal superior tende para a
continuidade da sua jurisprudência, e que os tribunais inferiores tendem a
respeitar a jurisprudência do tribunal superior.
146
Enquanto não ocorrerem modificações legislativas ou sociais que alterem o
contexto da solução jurídica, a jurisprudência tende, no seu conjunto, para a
constância e a uniformidade.
O próprio Código Civil obriga o julgador a ter em consideração todos os
casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e
aplicação uniformes do Direito (art. 8.º/3), que constitui uma imposição do
princípio da igualdade.
Esta constância e uniformidade é propiciadora de certeza jurídica e
previsibilidade de soluções. Os juristas confiam nas soluções consolidadas na
jurisprudência e, através deles, a generalidade dos interessados baseiam nestas
soluções a sua conduta. Todos acabam por ver aí um Direito vigente, por vezes
designado “Direito jurisprudencial”, ou mais amplamente, um “Direito dos
juristas”.
Não há, porém, vinculação formal ao precedente. Sempre que um tribunal
tem de resolver um caso, é possível que, ao reexaminar a solução até aí dada,
obtenha a convicção segura que a solução não é correta e que, apesar da
confiança entretanto depositada na jurisprudência firmada, deve proferir uma
decisão de sentido diferente.
Não são raros os casos de uma viragem na jurisprudência, embora, por
vezes, estas viragens constituam uma adaptação à evolução da ordem jurídica
ou do circunstancialismo social envolvente.
A elaboração jurisprudencial do Direito
Desde o século XIX que o papel da jurisprudência tem sido de crescente
importância na maioria dos sistemas da família romanogermânica: na
uniformização da interpretação; na adaptação do Direito legislado,
designadamente de códigos que datam do século XIX ou do início do século XX,
à evolução social; no desenvolvimento de novas soluções para novos problemas
jurídicos.
Muitas das soluções que constam dos códigos civis mais recentes, como é o
caso do português, foram desenvolvidas e afirmadas como Direito vigente pela
jurisprudência e pela doutrina anteriores.
147
Embora as decisões não vinculem formalmente, poderia pensar-se, em todo
o caso, numa vinculação de facto. Geralmente, porém, não é uma decisão
isolada que vincula a solução de casos futuros, mas um desenvolvimento
jurisprudencial, que, caso a caso, vai paulatinamente esboçando uma regra
geral.
Face à efetividade que as regras formadas pela jurisprudência uniforme e
constante alcançam, coloca-se a questão da sua vigência; por outras palavras,
se a jurisprudência é fonte do Direito.
Esta questão recebe três respostas.
Aqueles que se mantêm fiéis ao dogma da exclusividade da lei respondem
liminarmente pela negativa. A jurisprudência seria só uma fonte de conhecimento
jurídico que revelaria o sentido do Direito vigente. A jurisprudência poderá ser,
quando muito, fonte (mediata) de Direito, nos casos em que a lei o declare, como
dispunha o art. 2.º CC. Observe-se que, com a evolução entretanto verificada,
só a Constituição pode atribuir tal valor a atos jurisdicionais.
Entendem outros que uma jurisprudência criativa, uniforme e constante é
necessariamente fonte do Direito. Com este entendimento converge a posição
de MARCELO REBELO DE SOUSA.
Enfim, sustenta uma terceira corrente que, além dos casos em que a
Constituição atribua força obrigatória geral a decisões judiciais, as regras
desenvolvidas pela jurisprudência só se positivam, só ganham validade
normativa, quando integrem um costume jurisprudencial, nos termos atrás
apresentados.
Para esta terceira doutrina, não basta uma jurisprudência uniforme e
constante, é preciso que ela gere uma convicção geral, por parte dos
interessados, de que a solução aplicada pelos tribunais é juridicamente
vinculante.
Diferentemente, a segunda posição levará a admitir, como jurídicas, soluções
que sendo de facto respeitadas pelos tribunais, não são reconhecidas
socialmente, e que, por esta razão, não constituem verdadeiros critérios de
conduta, mas tão-somente critérios de decisão.
148
Sem aprofundarmos o ponto, assentemos em que as soluções desenvolvidas
pela jurisprudência poderão converter-se em regras jurídicas, não só nos casos
em que a Constituição o admita, como também, pelo menos, quando se forme
um costume jurisprudencial.
A uniformização da jurisprudência
A uniformidade das diferentes decisões jurisdicionais que recaem sobre
casos semelhantes é importante para a certeza jurídica e previsibilidade das
decisões jurisdicionais, para a realização do princípio da igualdade, para o
desenvolvimento do Direito e para facilitar a administração da justiça. É pois
normal que se instituam processos de uniformização da jurisprudência.
Antes da declaração de inconstitucionalidade dos assentos havia dois
processos de uniformização da jurisprudência.
O primeiro era o julgamento do recurso de revista ou agravo com intervenção
de todos os juízos da secção ou em reunião conjunta de secções do STJ. Esta
possibilidade encontrava-se prevista nos arts. 728.º/3 e 762.º/3 CPC.
A decisão proferida sobre este recurso não criava por si uma regra geral
vinculativa, embora tenha havido uma decisão do STJ em que este se
considerou vinculado por um acórdão proferido nessas condições.
O segundo processo de uniformização correspondia ao instituto do assento,
desde logo previsto no art. 2.º CC. O assento resultava de uma decisão com
força obrigatória geral, i.e., que criava uma regra geral vinculativa. Esta decisão
era proferida com base num recurso extraordinário dirigido ao Tribunal pleno,
que reunia simultaneamente todas as secções do STJ, para uniformização da
jurisprudência nos termos dos arts. 763.º e segs. CPC então vigentes.
Também em Processo Penal e no Processo Administrativo há um recurso
extraordinário para uniformização da jurisprudência que adiante examinaremos.
Constituiu ponto controverso se os assentos eram regras de fonte legal ou
jurisprudencial.
149
Segundo o entendimento dominante, defendido designadamente por
MARCELO CAETANO, OLIVEIRA ASCENSÃO, JORGE MIRANDA, AFONSO
QUEIRÓ, MARCELO REBELO DE SOUSA e BARBOSA DE MELO o assento
teria natureza jurisprudencial. Em sentido próximo se pronunciou também
ANTUNES VARELA.
A favor da tese contrária militou CASTANHEIRA NEVES, argumentando com
base nos atributos do assento enquanto ato normativo. Também MENEZES
CORDEIRO se pronunciou, num primeiro momento, neste sentido.
Parece de preferir o entendimento dominante: embora o assento fosse um
ato normativo de um órgão do poder político, era um ato jurisdicional, e não uma
lei, porque resultava de uma interpretação, integração ou desenvolvimento do
Direito estritamente subordinado ao sistema jurídico, por parte de um órgão
imparcial.
Outro ponto controverso foi o da constitucionalidade do assento.
O STJ decidiu reiteradamente no sentido da constitucionalidade. Era também
esta a posição da doutrina dominante.
Em sentido contrário, CASTANHEIRA NEVES veio defender a
inconstitucionalidade, e esta tese veio a fazer vencimento no Ac. n.º 810/93, do
TC, secundado pelos Acs. N.ºs 407/94, 410/94 e 743/96.
Segundo o entendimento do TC, sendo função dos assentos interpretar ou
integrar autenticamente as leis (i.e., fazer interpretação ou integração vinculativa
para todos), a norma que lhes atribui força obrigatória geral viola o art. 115.º/5
CRP, aditado pela revisão de 1982, na redação anterior à revisão de 1997, que
corresponde ao atual art. 112.º/5:
“Nenhuma lei pode criar outras categorias de actos legislativos ou conferir a
actos de outra natureza o poder de, com eficácia externa, interpretar, integrar,
modificar, suspender ou revogar qualquer dos seus preceitos.”
Este preceito proíbe não só a criação de outras categorias de atos
legislativos mas também que a lei confira a atos de outra natureza uma função
de interpretação ou integração autêntica. Só os atos legislativos tipificados no
n.º 1 do artigo podem realizar esta função.
150
O acórdão também afirma que a impossibilidade de modificar o assento
impede a evolução da jurisprudência e contraria manifestamente o sentido mais
autêntico da função jurisdicional.
Do acórdão não decorre que o instituto do assento seja, no seu conjunto,
inconstitucional. O assento será constitucional se não tiver força vinculativa geral
e estiver sujeito, em princípio, à contradita das partes e à modificabilidade pelo
tribunal que o proferiu.
Decorre de outra passagem do acórdão, que não é pacífica, conforme resulta
de uma declaração de voto, que o assento poderia continuar a vincular os
tribunais hierarquicamente subordinados . A uniformização da jurisprudência por
decisão vinculativa não viola a independência dos tribunais.
O ac. n.º 743/96, do TC, declarou a inconstitucionalidade com força
obrigatória geral do art. 2.º CC, na parte em que atribui aos tribunais competência
para fixar doutrina com força obrigatória geral.
Entretanto o art. 2.º CC fora revogado pelo art. 4.º/2 do DL n.º 329-A/95, de
12/12, que reformou o Código de Processo Civil. Mas esta revogação só
produziu efeitos em 1/1/97, por força do DL n.º 180/96. O DL nº 329-A/95 não se
limitou, porém, a conformar o regime do assento com a jurisprudência
constitucional. A reforma do Código de Processo Civil aboliu os assentos, por
considerar desnecessária a instituição de mecanismos processuais que
facultassem a revisão do decidido e que a normal autoridade e força persuasiva
da decisão do STJ, obtida no julgamento ampliado de revista, será suficiente
para assegurar satisfatoriamente a uniformidade da jurisprudência.
Pode duvidar-se da bondade desta solução, porque o assento, ainda que
limitado a uma eficácia interna e sujeito a modificação, propiciaria maior certeza
jurídica e previsibilidade de soluções que um julgamento ampliado que, segundo
parece, não vincula os tribunais inferiores na decisão de casos futuros.
Qual o valor dos assentos proferidos antes da entrada em vigor do DL n.º
329-A/95?
O art. 17.º/2 deste diploma veio estabelecer que os assentos já proferidos
têm o valor dos acórdãos proferidos em julgamento ampliado. Portanto, os
assentos já proferidos perdem retroativamente a sua força obrigatória geral,
deixando de ser fontes do Direito.
151
Mas este preceito gerou controvérsia na doutrina, da qual referirei três
posições.
MENEZES CORDEIRO entende que este preceito está ferido de
inconstitucionalidade orgânica porque implica a revogação de assentos que
dizem respeito a matéria de competência exclusiva da Assembleia da República
e de inconstitucionalidade material por não ressalvar os direitos adquiridos.
Em sentido contrário se pronunciou TEIXEIRA DE SOUSA, por entender que
a competência para legislar sobre os assentos não depende da competência
para legislar sobre a matéria regulada pelo assento e que o art. 17.º/2 não
prejudica os efeitos já produzidos pelos assentos. Quanto aos assentos
proferidos na vigência do art. 115.º/5 CRP (que corresponde ao atual art.
112.º/5), verifica-se, porém, que por força da declaração de inconstitucionalidade
só fica ressalvado o efeito de caso julgado.
Uma terceira posição, defendida por OLIVEIRA ASCENSÃO, vai no sentido
de o art. 17.º/2 do DL nº 329-A/95 só poder aplicar-se aos assentos proferidos a
partir da entrada em vigor do art. 115.º/5 CRP, “pois foi a inconstitucionalidade
dos assentos a sua causa próxima”. O art. 17.º/2 não atingiria as situações já
constituídas ao abrigo destes assentos, e, da passagem do Acórdão n.º 743/96,
em que se considera que o pedido mantém utilidade, por a norma do art. 2.º CC
ainda se encontrar em vigor, infere que o TC não teria querido, com a declaração
de inconstitucionalidade, atingir as situações já constituídas.
Embora com algumas dúvidas, inclino-me mais para o entendimento
defendido por TEIXEIRA DE SOUSA. Também o Tribunal Constitucional já se
pronunciou a favor da constitucionalidade do preceito.
Portanto, os assentos proferidos antes da entrada em vigor do DL n.º 329-
A/95 perderam a sua força obrigatória geral, havendo que distinguir conforme
foram proferidos antes ou depois da entrada em vigor do então art. 115.º/5 CRP.
Os efeitos já produzidos dos assentos proferidos antes não são prejudicados.
Dos efeitos produzidos por assentos proferidos depois só não são prejudicados
os que constituam caso julgado.
152
Desde 1996 até à entrada em vigor do DL n.º 303/2007, de 24/8, passou a
existir um único processo de uniformização da jurisprudência civil: o julgamento
ampliado de revista ou de agravo, nos termos dos arts. 732.º-A, 732.º-B e 763.º/2
CPC.
No CPC de 2013 a sede legal do julgamento ampliado de revista passou a
ser os arts. 686.º e 687.º e do recurso extraordinário para uniformização de
jurisprudência os arts. 688.º e segs.
A partir da entrada em vigor deste diploma o julgamento ampliado de revista
(arts. 732.º-A e 732.º-B CPC) passou a coexistir com o recurso extraordinário
para uniformização de jurisprudência previsto nos arts. 763.º e segs. CPC.
O julgamento ampliado de revista é feito com a intervenção do plenário das
secções cíveis do Supremo Tribunal de Justiça.
O Presidente do Supremo Tribunal de Justiça determina, até à prolação do
acórdão (i.e., ao proferimento do acórdão), que o julgamento do recurso se faça
com intervenção do pleno das secções cíveis, quando tal se revele necessário
ou conveniente para assegurar a uniformidade da jurisprudência (art. 686.º/1).
Pode ser requerido por qualquer das partes e deve ser proposto pelo relator,
por qualquer dos adjuntos, pelos presidentes das secções cíveis ou pelo
Ministério Público. (art. 686.º/2). O relator, ou qualquer dos adjuntos, propõe
obrigatoriamente o julgamento ampliado de revista quando verifique a
possibilidade de vencimento de solução jurídica que esteja em oposição com
jurisprudência uniformizada, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma
questão fundamental de Direito (art. 686.º/3).
O Tribunal Constitucional já decidiu pela não inconstitucionalidade da norma
do art. 732.º-A (atual art. 686.º) quando interpretada no sentido de que o
requerimento das partes apenas pode ser apresentado até à prolação do
acórdão que julga a revista (acs. n.ºs 261/02 e 383/09).
Enquanto o assento pressupunha uma contradição entre dois acórdãos, o
julgamento ampliado de revista visa prevenir um eventual conflito jurisprudencial.
O acórdão proferido em julgamento ampliado não vincula o STJ a decidir no
mesmo sentido em casos futuros (cf. art. 687.º/2 CPC). Já é controverso se este
acórdão vincula formalmente os tribunais inferiores. O STJ tem entendido que
sim. Ao passo que o Tribunal Constitucional entendeu, no ac. n.º 575/98, que o
acórdão proferido em julgamento ampliado só é obrigatório no processo a que
153
diz respeito. Fora do respetivo processo tem a força persuasiva que lhe advém
de ser uma decisão do STJ com a intervenção do plenário das secções cíveis.
É um mero precedente judicial qualificado.
Com efeito, a lei não fundamenta a vinculatividade do acórdão proferido em
julgamento ampliado para os tribunais inferiores. Sucede, porém, que a decisão
proferida por tribunais inferiores contra jurisprudência uniformizada pelo STJ
admite sempre recurso (art. 629.º/2/c CPC).
Se isto não implica que o acórdão proferido em julgamento ampliado vincule
formalmente os tribunais inferiores na decisão de casos futuros, significa, pelo
menos, que há um controlo efetivo da conformidade das decisões dos tribunais
inferiores com a jurisprudência uniformizada.
É controverso se estes acórdãos são fontes do Direito, uma vez que não têm
força obrigatória geral, mas apenas um esquema de controlo da conformidade
das decisões dos tribunais inferiores por via de recurso. Em sentido afirmativo
se pronuncia MENEZES CORDEIRO.
Nos termos do art. 687.º/5 CPC e do art. 3.º/2/i) da Lei n.º 74/98 o acórdão é
publicado na 1.ª série do DR. Se estes acórdãos não são fontes do Direito é
estranho este regime de publicação, como observa OLIVEIRA ASCENSÃO.
O DL n.º 303/2007 veio introduzir um recurso extraordinário para
uniformização de jurisprudência, hoje regulado nos arts. 688.º e segs. CPC, que
permite às partes suscitar um conflito de jurisprudência perante o Supremo
Tribunal de Justiça, como vista a uniformização da jurisprudência, quando o
presidente do Supremo tenha omitido a determinação do julgamento ampliado
de revista.
As partes podem interpor recurso para o pleno das secções cíveis do
Supremo Tribunal de Justiça quando o Supremo proferir acórdão que esteja em
contradição com outro anteriormente proferido pelo mesmo tribunal, no domínio
da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de Direito (art.
688.º/1).
Este recurso é extraordinário porque pressupõe o trânsito em julgado do
acórdão recorrido (art. 688.º/2) e é interposto no prazo de 30 dias a contar do
trânsito em julgado do acórdão recorrido (art. 689.º/1).
O recurso também deve ser interposto pelo Ministério Público, mesmo
quando não seja parte na causa, mas, neste caso, não tem qualquer influência
154
na decisão desta, destinando-se unicamente à emissão de acórdão de
uniformização sobre o conflito de jurisprudência (art. 691.º).
O recurso não é admitido se a orientação perfilhada no acórdão recorrido
estiver de acordo com jurisprudência uniformizada do Supremo Tribunal de
Justiça (art. 688.º/3).
Enquanto o recurso ampliado de revista é um recurso ordinário interposto da
decisão de um Tribunal de Relação ou de uma sentença do tribunal de 1.ª
instância de que se tenha interposto recurso per saltum (art. 678.º CPC) que visa
prevenir o eventual conflito jurisprudencial, o recurso extraordinário para a
uniformização de jurisprudência é interposto de um acórdão do Supremo
Tribunal de Justiça e visa resolver um conflito jurisprudencial, visto que
pressupõe necessariamente uma contradição entre este acórdão e outro
acórdão do mesmo tribunal.
Quanto à vinculação dos tribunais inferiores pela decisão proferida neste
recurso para a uniformização da jurisprudência, bem como à sua publicação,
aplicam-se as considerações tecidas a respeito dos acórdãos proferidos em
julgamento ampliado de revista.
Nos arts. 437.º e segs. do C. Proc. Penal encontra-se também consagrado
um processo de uniformização.
Prevê-se aqui que quando no domínio da mesma legislação o STJ proferir
dois acórdãos que, relativamente à mesma questão de Direito, assentam em
soluções opostas, cabe recurso para o pleno das secções criminais, do acórdão
proferido em último lugar (art. 437.º/1).
É também admissível o recurso quando um Tribunal de Relação proferir
acórdão que esteja em oposição a outro acórdão da Relação, ou do STJ, se dele
não for admissível recurso ordinário, salvo se a orientação perfilhada naquele
acórdão estiver de acordo com a jurisprudência já anteriormente fixada pelo STJ
(art. 437.º/2).
O recurso pode ser interposto pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes
civis e é obrigatório para o Ministério Público (art. 437.º/5).
Trata-se aqui de um recurso extraordinário que é interposto no prazo de 30
dias a contar da data do trânsito em julgado do acórdão proferido em último lugar
(art. 438º/1 C. Proc. Penal).
155
O acórdão é publicado na 1.ª série do DR (art. 444.º/1 e art. 3.º/2/i da L n.º
74/98).
Até à reforma de 1998 a decisão proferida neste recurso constituía
jurisprudência obrigatória para os tribunais judiciais, o que parecia configurar um
assento com eficácia “meramente interna”, i.e., que só vincula na hierarquia dos
tribunais comuns e é modificável. Mas com a reforma operada em 1998, esta
decisão deixou de constituir jurisprudência obrigatória, embora os tribunais
judiciais devam fundamentar as divergências relativamente à jurisprudência
firmada naquela decisão (art. 445.º/3).
Além disso, é admissível recurso direto para o STJ de qualquer decisão
proferida contra jurisprudência por ele fixada, a interpor no prazo de 30 dias a
contar do trânsito em julgado da decisão recorrida (art. 446.º/1).
Numa variante deste processo de uniformização, o Procurador-Geral da
República pode determinar que seja interposto recurso para fixação da
jurisprudência de decisão transitada em julgado há mais de 30 dias (art. 447.º/1).
Neste caso a decisão não tem eficácia no processo em que o recurso tiver sido
interposto (art. 447.º/3).
O Código de Processo nos Tribunais Administrativos também prevê dois
processos de uniformização da jurisprudência.
O primeiro é o julgamento ampliado do recurso, que é julgado com
intervenção de todos os juízes que integram a secção do Supremo Tribunal
Administrativo ou do Tribunal Central Administrativo (art. 148.º C. Proc. Trib.
Adm.). Este processo tem natureza preventiva, visando prevenir um conflito
jurisprudência.
O segundo é o recurso de uniformização de jurisprudência quando sobre a
mesma questão fundamental de direito exista contradição entre acórdão do
Tribunal Central Administrativo e acórdão anteriormente proferido pelo mesmo
tribunal ou pelo Supremo Tribunal Administrativo ou entre dois acórdãos do
Supremo Tribunal Administrativo (art. 152.º/1).
156
Decisões com força obrigatória geral
Com a supressão dos assentos não foram eliminados todos os atos
jurisdicionais com força obrigatória geral. O Tribunal Constitucional pode
declarar a inconstitucionalidade ou a ilegalidade de normas com força obrigatória
geral nos termos do art. 281.º CRP.
Esta declaração tem lugar na fiscalização sucessiva abstrata da
constitucionalidade e da legalidade, i.e., a fiscalização que é posterior à entrada
em vigor da lei e independentemente da aplicação dessa lei a qualquer caso
concreto.
A declaração pode ter por objeto (art. 281.º/1):
à a inconstitucionalidade de quaisquer normas;
à a ilegalidade de quaisquer normas constantes de acto legislativo
com fundamento em violação de lei com valor reforçado;
à a ilegalidade de quaisquer normas constantes de diploma regional,
com fundamento em violação do estatuto da região autónoma;
à a ilegalidade de quaisquer normas constantes de diploma emanado
dos órgãos de soberania com fundamento em violação dos direitos de
uma região consagrados no seu estatuto.
Nos termos do art. 281.º/3, o TC também aprecia e declara, com força
obrigatória geral, a inconstitucionalidade ou a ilegalidade de qualquer norma,
desde que tenha sido por ele julgada inconstitucional ou ilegal em três casos
concretos.
Estas decisões são publicadas na 1.ª série do Diário da República (art.
119.º/1/g CRP e art. 3º/2/h da Lei nº 74/98).
Estas decisões têm força obrigatória geral, porque vinculam tanto os
particulares como os órgãos do poder político, incluindo os tribunais (ver art. 282º
CRP).
Estas decisões são indiscutivelmente fonte do Direito.
Esta fonte do Direito é jurisprudencial. O Tribunal Constitucional exerce uma
função jurisdicional quando declara a inconstitucionalidade ou a ilegalidade,
porque esta decisão se fundamenta na aplicação da Constituição ou da lei.
157
Temos aqui um ato jurisdicional normativo sem relação com um caso
concreto.
Assim se explica que o TC não possa revogar o seu acórdão e substituí-lo
por outro em sentido diferente. Tratando-se do exercício de uma função
jurisprudencial, a aplicação do Direito esgota-se com a declaração com força
obrigatória geral. O acórdão deve ter a estabilidade própria das decisões
jurisprudenciais.
Outra hipótese de decisão com força obrigatória geral, que não examinarei
aqui, é a da declaração de ilegalidade de uma norma regulamentar pelos
tribunais administrativos (arts. 72.º e segs. do Código de Processo nos Tribunais
Administrativos). Estas decisões são publicadas na 1.ª série do Dário da
República (art. 119º/1/g 2.ª parte CRP e art. 3.º/2/i e r da L n.º 74/98, alterada
pela L n.º 26/2006, de 30/6).
Nestes casos a jurisprudência é uma fonte mediata do Direito com relevância
negativa: determina a invalidade da norma declarada inconstitucional ou ilegal.
A CIÊNCIA DO DIREITO
A ciência jurídica como fonte de conhecimento jurídico
Não só os titulares de órgãos de aplicação do Direito, mas também as
pessoas que exercem outras profissões jurídicas, têm de interpretar o Direito
vigente, integrar as suas lacunas e realizar outras tarefas que vão além de uma
aplicação mecânica de regras jurídicas predefinidas, realizando uma atividade
criativa.
Pensamos nos docentes de Direito, nos advogados e noutros juristas. Estas
profissões jurídicas não ocupam uma posição semelhante à do juiz, que exerce
a função jurisdicional, mas a sua atividade pode ter grande influência no
desenvolvimento da ordem jurídica.
Tradicionalmente, chama-se a atenção para a importância assumida pelas
opiniões ou pareceres formulados pelos autores, a sua doutrina. Estas opiniões
e pareceres constam dos mais variados estudos jurídicos, por exemplo, tratados,
manuais, monografias, códigos anotados, pareceres junto aos processos, etc.
158
A doutrina foi um importante modo de criação de regras no Direito Romano e
durante a sua receção na Europa.
A criação de regras jurídicas pela doutrina resultou então da autoridade do
parecer dado por certo jurisconsulto ou do valor reconhecido às soluções
defendidas pelo conjunto dos autores.
No primeiro caso está a resposta dada pelos jurisconsultos romanos
investidos do ius publice respondendi, a que era reconhecida por si força
vinculativa.
Para o segundo, cita-se a importância que foi concedida à communis opinio
doctorum, a opinião comum dos doutores, no Direito europeu, na época
medieval.
A partir de finais do séc. XIX, o juspositivismo veio estabelecer uma diferença
clara entre o Direito positivo e as soluções ou construções doutrinais, negando
à ciência do Direito o estatuto de fonte do Direito.
No entanto, a importância da doutrina na evolução do Direito continuou a ser
notória. Refira-se, a título de exemplo, que muitas das soluções que hoje
constam do CC de 1966 foram avançadas por professores de Direito, e
impuseram-se como Direito vigente, embora representassem desenvolvimentos
não contidos no Código de Seabra.
Que dizer sobre a atual importância da Ciência Jurídica para a criação do
Direito?
A Ciência Jurídica influencia a atividade legislativa, a jurisprudência e o tráfico
negocial. O que coloca de novo a questão de saber se, na atualidade, este
trabalho criativo de desenvolvimento do Direito vigente representa um modo de
criação de regras jurídicas.
Parece que a resposta deve ser negativa. Os contributos da Ciência do
Direito não constituem, de per si, novas regras jurídicas. Os tribunais não estão
vinculados a decidir em conformidade com a doutrina mesmo quando esta no
seu conjunto defenda determinada solução (neste caso é usual dizer-se que a
doutrina é pacífica).
Para que as soluções propostas pelos autores se positivem necessário é que
o legislador as acolha ou que a sociedade as reconheça como vinculativas.
Normalmente, este reconhecimento passa pela adesão da jurisprudência e pela
eventual formação de um costume jurisprudencial.
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Em suma, a ciência do Direito não é fonte do Direito em sentido técnico-
jurídico; é uma fonte de conhecimento jurídico, que colabora na criação e
desenvolvimento do Direito por via da sua influência sobre as fontes de produção
jurídica.