Fórceps (Boca Santa - 1. Filho da Puta)

Post on 24-Mar-2016

218 views 0 download

description

Fórceps é o primeiro livro da BOCA SANTA. É o Filho da Puta. E é cria de Felipe Valério e Nelson Provazi. Conheça todos os palavrões e livros e tudo da BOCA SANTA: www.boca-santa.com

Transcript of Fórceps (Boca Santa - 1. Filho da Puta)

dedicado às mães. a todas.

todo filho da puta já nasceu.  

"estas protuberâncias acima da cabeça são as papilas dérmicas, cimentadas em filamentos queratinizados em forma de

extensão capilar. nenhuma delas têm ligação com o crânio.”

 

  15  

PARTE I

o filho da puta não se arrepende, não se desvia, é filho de alguém, de alguma, é o tio, o vizinho, o pai do filho, é o cachorro que morde sem latir, é o irmão que nas-ceu melhor, é o barulho no escuro, é o cara-duas-caras, é o tempo sem dó de ser. o filho da puta é. sendo.

  17  

1.

- eu sou virgem. - então prova.

17

  19  

2.

boa noite. hoje apresentaremos um nobre espécime da nossa fauna global: o filho da puta. o termo filho da puta vem do latim "putani filhus". a origem do primeiro filho da puta é desconhecida do público leigo. mas correntes pró-evolucionistas afirmam que filhos da puta são seres que existem desde sempre e com habilidade para se camuflarem na queda de outros espéci-mes. assim como qualquer ser normal, filhos da puta também cortam as unhas a cada quinze dias, cagam de porta fechada

19

  20  

e se masturbam em escadas de serviço. filhos da puta se disfarçam do que os ou-tros fazem. é assim que conseguem filha-da-putar sem que sejam percebidos. filhos da puta não viram o rosto ao serem foto-grafados. alguns inclusive exibem sorrisos de até seis dentes para a câmera, num gesto natural e cândido. a reprodução de filhos da puta ocorre em monta natural. e diz a lenda que seus filhos nascem com os olhos virados para baixo do sol.

20

  21  

3.

fulano ciclano e beltrano. todos são.

21

  23  

4.

uma pessoa senta no parapeito do prédio e acende um cigarro. vinte e nove pessoas olham para cima. cinquenta e três outras pessoas olham para cima imitando o ges-to das outras vinte e nove primeiras. de-zessete pessoas apontam a câmera do celular para o homem no parapeito. onze pessoas com menos de dezesseis anos pu-xam o coro “pula, pula, pula”. cinco pes-soas ligam um nove zero. uma pessoa viciada em seriado liga nove um um. se-

23

  24  

tecentas e quatro pessoas caminham sem dar a mínima. trinta e nove pessoas tuí-tam “maluco vai se jogar de prédio na Paulista com a Pamplona”. duzentas e trinta e sete pessoas retuítam o tuíte “ma-luco vai se jogar de prédio na Paulista com a Pamplona”. cento e sessenta e duas pessoas comentam o tuíte com “kkkkkk”, “hehehehehe” e “lolololololol”. quatro pessoas vestidas de bombeiro tiram dois ou um para decidir quem prepara a esca-da. sete pessoas com microfone limpam os dentes com a língua antes de entrar ao vivo. dois milhões cento e cinquenta e no-ve mil pessoas assistem às imagens ao vivo. nove pessoas dizem que conhecem a pessoa sentada no parapeito. quatro pes-soas dizem que são casadas com a pessoa sentada no parapeito. duas pessoas decla-ram à pessoa segurando o microfone que vão intimar a pessoa sentada no parapeito para um exame de paternidade. vinte e três pessoas com uniforme amarelo e marrom organizam o trânsito em um raio

24

  25  

de doze quarteirões. uma pessoa termina de fumar o cigarro no parapeito e se le-vanta. quatrocentas e vinta e nove pesso-as gritam “ooooooooh”. uma pessoa que acabou de fumar um cigarro e que aca-bou de se levantar no parapeito caminha de volta para a porta de incêndio e para a escada e para o escritório no décimo oita-vo andar e para a mesa de trabalho e pa-ra o prato com um salmão e seis batatas souté que a essa hora já estava bem me-nos quente e mais fácil de comer.

25

  27  

5.

pega ela aí, gente, segura a perna aqui ó, calma, olha a roda, porra, olha a roda aí, levanta a velha direito, que que é isso, pessoal, vamos respeitar a senhora, cala a boca e ajuda a levantar, pergunta o número da seção, seu polícia, qual o número, senhora, 334, três-três-quatro, pessoal, porra, é lá no terceiro andar, coisa doida isso de velha querer votar, que diferença faz, vai morrer antes da cidade fazer diferença, ei-ei-ei, pessoal, vamos ter um pouco de respeito com a

27

  28  

vontade da senhora, vontade, não, direito, direito como cidadã, tá, meu amigo, agora para de falar e limpa a baba dela então, eu não, tá escorrendo, cacete, segura a pelanca, que velha pesada do caralho, se-gura, segura, falta só mais um andar, minha gente, olha ali, chegou, ô mesário, ô mesário, a velha aqui tem prioridade, é, veio votar, um exemplo pro Brasil, olha a fila batendo palma, obrigado, gente, mi-crofone, câmera, um exemplo de cidada-nia, obrigado, a gente fez o que qualquer um teria feito, pode votar, senhora, vai lá, quê, como assim a cadeira de rodas não entra?, cacete, meu amigo, pega a velha no colo, calma, gente, pega ela no colo ca-ralho, ô mesário com cara de viado, pega a velha no colo, calma, gente, hoje é um dia importante para a pátria, pátria seu cu, é que é contra as regras levar alguém à urna, rápido, vai se foder ô mesário vi-ado, a velha tem que votar, é um direito, um dever, microfone, câmera, fila aplau-dindo, um exemplo de cidadania, o Brasil

28

  29  

do futuro, ok, ok, mas rapidinho hein, senhora, vem, segura no meu ombro, vai, isso, olha a urna aqui, digita o número, o quê senhora, não entendi, o quê, o núme-ro, senhora, o quê? como faz pra votar nulo? nulo, senhora?

29

  31  

6.

boa notícia: nem toda puta pariu.

31

  33  

7.

Cléfson é o tipo de cara que se incomoda com mulheres de bicos pretos. é, bicos de peito pretos-escuros demais. Cléfson diz que isso faz das mulheres mães demais. controladas por um tipo de relógio com ponteiros demais. que avisa hora do peito, hora do leite, hora de chupar o preto que sobrou do bico. Cléfson até já subiu em mesa pra gritar que mulheres com bicos preto têm o branco do olho amarelo. um símbolo de atenção afundado no meio da cara. um quase-que-vai-sem-ir. e para

33

  34  

Cléfson, se existe luz no túnel com certeza essa luz não é preta. tanto é que Cléfson já deixou mulheres-que-amam-Cléfson sozinhas no motel porque estas mesmas mulheres esconderam de Cléfson sua con-dição de bico preto. não é isso que eu es-pero de uma mulher, reclamou Cléfson. olhe no espelho, vamos, minha filha, olhe. o que você vê além de dois botões do Botafogo? várias mulheres-que-amam Cléfson já choraram olhando para o espe-lho no teto e odiando futebol. é importan-te dizer que Cléfson nunca foi largado. ou torturado. ou adotado. ou abusado. ou queimado com incenso de canela. ou outra coisa que se explique. a coisa é que Cléfson é o tipo de cara que se incomoda com mulheres de bicos pretos. pra ele, elas fazem do sexo um ato anêmico, preto no branco, urucum demais. Cléfson já quase morreu por causa de um bico pre-to. era carnaval e era quase hora de su-mir na madrugada. um bico preto surgiu e Cléfson fez movimento de ânsia. e hou-

34

! $&!

r-e-

solta as tripas quando vê mulheres de bi-

tentando dizer que nunca viu confete pre-to ou guarda-chuva de frevo preto ou sor-

apenas sumiu na esquina preta que fazia bico no escuro da noite.

35

  37  

8.

mútilo, lacunoso, perfunctório, engodilha-do, imbele, petisseco, apômaco, morbífico, resvalante, vandálico, fulmíneo, voragino-so, richarte, chichimeco, esmirrado, infini-tesimal, atômico, corpuscular, mútilo, mamalhudo, boquitorto, descaudato, re-melgado, estricnínico, voraginoso, mina-císsimo, centrífugo, diamagmético, seg-regatício, pituitário, mal-avindo, castrese, galactóforo, estrafalário, cenagoso, latri-nário, gafento, vurmoso, recifoso, atraves-

37

  38  

sadiço, supurativo, crapuloso, zoupeiro, excrementício, mucíparo, abaixante, inse-pulto, fendido, esgaovitado, chavasco, ca-cóstomo, nidoroso, fecaloide, apequenado, descrido, acataléptico, pirrônico, difidente, desabusado, eigaço, bordalengo, labrego, quadrupedante, catacego, ignaro, asnátco, palúrdio, modorrento, maninelo, atolei-mado, asinino, bolônio, faulhento, escuril, alobrógico, malsinado, flexíloco, melífluo, desinclinado, retardativo, malgradado, le-sivo, quebrantável, abúlico, abanamos-cas, broma, excrescente, aberrante e um grande filho da puta. é isso que você é. e saiu.

38

  39  

PARTE II

filhos da puta não arrotam à mesa. ho-mens fazem isso. filhos da puta não ca-gam nas calças quando bebem demais. velhos fazem isso. filhos da puta não tre-pam com qualquer um na rua. putas fa-zem isso. filhos da puta não enfiam o dedo na cara dos outros. putos fazem isso. filhos da puta não usam tapa-olho. piratas fazem isso. filhos da puta não escrevem filhos-da-puta. analfabetos fazem isso. fi-lhos da puta não pulam de pontes. amigos fazem isso. filhos da puta não falam sem pensar. filhos fazem isso. filhos da puta não avisam quando vão gozar. maridos fazem isso. filhos da puta não se arrepen-dem. os outros fazem isso.

  41  

9.

escreve-se cartas de amor. pagamento adiantado.

41

  43  

10.

ontem ele me ligou. falou devagar. de amor-e-carinho. de um futuro que chega já-já. ontem ele me ligou como quem pede uma pizza. dois anos depois. sem cebola, por favor. ontem ele me ligou e falou que amor é fogo que arde sem se ver. e que precisava de dinheiro. mais do que se empresta. mais do que um troco. ontem ele me ligou e perguntou a cor da minha calcinha. mesmo sabendo melhor do que ninguém que não uso nada pra dormir. ontem ele me ligou e lembrou do

43

  44  

sexo no banheiro do avião. da aeromoça japonesa. que fez que não viu com aquele olho apertado. ontem ele me ligou e me deixou encharcada com aquelas teorias fi-losóficas de que o amor existe no corpo de quem alma tem. ontem ele me ligou e dis-se que ainda não provou estrogonofe mais gostoso. de frango. com pouco quase nada de ketchup e creme de leite com soro e tudo. ontem ele me ligou e passou o nú-mero da conta e o cpf e avisou pra eu não esquecer do dígito. sem o dígito não fun-ciona. não esquece. ontem ele me ligou pra dizer que estava sem tempo, com a vida corrida e que precisava desligar na pressa do suor. ontem ele me ligou. a cobrar.

44

  45  

11.

pecado capital nº 8: engula.

45

  47  

12.

- o que o senhor tem pra falar em sua defesa? - ... ela gozou.

47

13.

quando veio a menstrução, só o cachorro notou.  

49

  51  

14.

duas senhoras escolhem pepinos na feira. um senhor de bigode grita “pega ladrão!”. um dos pepinos some.

51

  53  

15.

- vai doer, pai? - só se você gritar.

53

  55  

16.

recado escrito com caneta bic vermelha e letra quase infantil na segunda porta bege (à esquerda de quem entra) do banheiro masculino localizado no piso superior da rodoviária do tietê, logo após o corredor da esfiharia do Ishmael: tartarugas, sim, colocam só a cabecinha.

55

  57  

17.

tô dizendo. a menina chorou nem uma gotinha.

57

  59  

18.

pedofilhinha.

59

19.

operou o sexo para caber no vestido de noiva.  

61

  63  

20.

BODAS DE OURO - tem suíte com hidro, mocinha? - claro, senhor. - vou querer duas por favor.

63

  65  

21.

- o que você sente por mim? - ...senta.

65

  69  

22.

um homem assiste novela com o poodle. um homem frita ovos para o poodle. um homem dança tango agarrado no poodle. um homem sorri para o poodle. um homem acaricia o pelo branquinho do poodle. um homem soletra a palavra a-m-o-u-r para o poodle. um homem bebe gin com o poodle. um homem passa manteiga na pata do poodle. um homem lambe ca-da dedo de cada pata do poodle. um homem sussura no ouvido do poodle. um homem conta um segredo para o poodle.

69

  70  

um homem fica vermelho após contar um segredo para o poodle. um homem mas-sageia a barriga do poodle. um homem olha no fundo dos olhos do poodle. um homem junta os joelhos para acomodar o poodle. um homem movimenta para cima e para baixo o poodle. um homem aperta com um pouquinho mais de força a cintu-rinha do poodle. um homem morde uma pinta marrom na altura do peito do po-odle. um homem movimenta mais rápido para cima e para baixo o poodle. um ho-mem range os dentes para o poodle. um homem late mais alto que o poodle. um homem vê uma mancha preta saindo do poodle. um homem não entende o silêncio do poodle. um homem sacode o poodle. um homem sacode o poodle. um homem sacode o poodle. um homem chora abra-çado no poodle. um homem grita “não” para o poodle. um homem grita “não-não-não” para o poodle. um homem abre a janela do banheiro para o poodle. um homem pendura do décimo sétimo andar

70

  71  

o poodle. um homem ouve um quase ge-mido-suspiro-fôlego do poodle. um ho-mem conversa um tipo de monólogo com o poodle. um homem soletra a-m-é-m pa-ra o poodle. um homem solta o corpinho do poodle. um homem acompanha o voo do poodle. um homem ouve um barulho de coisa quebrando dentro do poodle. um homem bebe a água do potinho do po-odle. um homem raspa com a língua o resto de arroz do potinho do poodle. um homem faz um sinal da cruz sobre os brinquedinhos do poodle. um homem dei-ta no chão da cozinha sem o poodle. um homem deita. e fica.

71

23.

- você se arrepende de alguma coisa nessa vida, pai? - não me chama de pai.  

73

PARTE III filhos da puta não morrem, descansam. enterros de filhos da puta seguem os ritu-ais de qualquer enterro padrão, com a diferença que o choro é menos salgado. e as flores parecem roubadas  

  77  

24.

houve muita espera. houve muito atraso. houve muita contração. e muita dilatação. houve muito grito. muito arrependimento. houve muito suor. e muito sebo. houve muito esforço expulsivo. muito soluço. muito choro. houve muito sinto muito. houve muito tecido conjuntivo. houve muito "não aguento mais!". houve muito "aguenta firme, mamãe". e muito "che-gaaaaaaaa!". houve muito desespero. houve muito "já tentamos de tudo". houve

77

  78  

muita culpa. e muita incontinência. houve muita vontade de estar longe dali. muita tentativa. muito último plano. houve muito "fórceps, por favor". e muito "sim, doutor". houve muito puxão. muita pres-são. e muito amassado. houve muita for-ça. muito estalo. e muita câimbra. houve muito "chega, pelamordedeus...". hou- ve muito "pela...mor...de...deus...". houve muita reza. e muito santo. houve muita insistência. houve muita luta. houve mui-ta luta. houve muita luta. e houve uma cabeça muito presa, muito entupida, mui-to apertada, pensando muito em ainda não ser.

78

  79  

25.

- quero a mamãe de volta. - então ajuda a cavar.

79

  81  

26.

jurou de pés juntos. e bem amarrados.

81

  83  

27.

açougues também vendem corações.

83

28.

depois do futebol, ele disse. depois do futebol eu levo flores.

 

85

29.

mamãe, tem um monstro em cima da minha cama.  

87

  89  

30.

- fiquei feliz que você lembrou de mim. - tá, agora me ajuda com o corpo.

89

  93  

31.

trinta e nove graus. um quarto de dois metros por um metro e meio. uma senho-ra sem a perna esquerda. dois cachorros de raça misturada. uma criança aperta o botão vermelho da filmadora. o vento apaga a luz.

93

  95  

32.

não precisa chorar, menina. sangue não mancha.

95

  97  

33.

SIAMESAS - no três a gente puxa, tá?

97

  99  

34.

morreu enquanto lia o horóscopo.

99

35.

CREMAÇÃO tem como enterrar esse pozinho pra mim, moço?  

101

eu não sou isso aí. eu não sou isso aí. eu não sou isso aí. um, dois, três. pode acordar.  

  107  

pelos filhos Felipe Valério é hotel trombose, sem casca, filé em tiras, granja, projeto três meia cinco, encosto não se discute e outras coisas que machu-cam. felipe valério é filho de mãe decente. Nelson Provazi além de un gran figlio di una gran mignotta, é também desenhista.

  108  

FÓRCEPS Carniceria Livros A Oficina do Santo textos: Felipe Valério desenhos: Nelson Provazi edição: Luis Rafael Montero projeto gráfico: Carniceria Livros João Gabriel Monteiro revisão: Carniceria Livros

  109  

BOCA SANTA idealização: Luis Rafael Montero realização: Carniceria Livros A Oficina do Santo design: Juneco Martineli João Gabriel Monteiro fotos e vídeos: João Gabriel Monteiro Felipe Schürmann A Oficina do Santo programação do site: Guilherme "Nabo" artistas: Juliana Amato, Mariana Coan, Raphael Gancz, Fernanda Grigolin, Carolina Krieger, Isadora Krieger, Lobot, Pedro Mattos, Daniel Minchoni, João Gabriel Monteiro, Luis Rafael Montero, Mario Neto, Nelson Provazi, Maria Ribeiro, Felipe Valério.