Francisco de Assis e a Reforma da Igreja por meio da Santidade...Francisco de Assis e a Reforma da...

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Francisco de Assis e a Reforma da Igreja por meio da SantidadeQua, 11 de Dezembro de 2013 08:30

O propósito desta meditação do Advento é preparar-nos para o Natal na companhia deFrancisco de Assis. Dele, gostaria de destacar a natureza do seu retorno ao Evangelho. Oteólogo Yves Congar, em seu estudo sobre “Verdadeira e falsa reforma na Igreja” vê emFrancisco o exemplo mais claro de reforma da Igreja pelo caminho da santidade[1]. Gostaria deprocurar compreender em que consistiu a sua reforma pelo caminho da santidade e o que oseu exemplo implica para cada época da Igreja, inclusive a nossa.

1. A conversão de Francisco

Para entender um pouco da aventura de Francisco é preciso partir da sua conversão. Desseevento existem, nas fontes, diferentes descrições com notáveis diferenças entre si. Felizmentetemos uma fonte absolutamente confiável que nos dispensa de escolher entre as váriasversões. Temos o mesmo testemunho de Francisco no seu Testamento, a sua ipsissima vox, como se diz das palavras certamente ditas por Cristo no Evangelho. Diz:

«O Senhor concedeu a mim, irmão Francisco, que começasse a fazer penitência assim:quando eu estava nos pecados parecia-me muito amargo ver os leprosos: e o próprio Senhorconduziu-me entre eles e fui misericordioso para com eles. E ao afastar-me deles, o que meparecia amargo foi-me trocado por doçura de alma e corpo. E, depois, demorei só um pouco esaí do mundo” » (FF 110).

É sobre esse texto que justamente se baseiam os historiadores, mas com um limiteintransponível para eles. Os historiadores, mesmo os mais bem intencionados e maisrespeitosos com as peculiaridades da vida de Francisco, como era, entre os italianos RaoulManselli, não conseguem entender o porquê último da sua mudança radical. Detêm-se – e comrazão, por causa do seu método – na porta, falando de um “segredo de Francisco”, destinado apermanecer assim para sempre.

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O que se consegue constatar historicamente é a decisão de Francisco de mudar o seu statussocial. De pertença à classe superior, que contava na cidade por nobreza e riqueza, eleescolheu colocar-se no extremo oposto, compartilhando a vida dos últimos, daqueles que nãoeram nada, os assim chamados “menores”, atingidos por todos os tipos de pobreza.

Os historiadores justamente insistem no fato de que Francisco não escolheu a pobreza emuito menos o pauperismo; escolheu os pobres! A mudança é motivada mais pelomandamento; “Ama o teu próximo como a ti mesmo”, que pelo conselho: “Se queres serperfeito, vai’, vende tudo o que tens e dá aos pobres, depois vem e segue-me”. Era acompaixão pela pobre gente, mais do que a busca da própria perfeição que o movia, acaridade mais do que a pobreza.

Tudo isso é verdade, mas ainda assim não toca o fundo do problema. É o efeito da mudança,não a sua causa. A escolha verdadeira é muito mais radical: não se tratou de escolher entreriqueza e pobreza, nem entre ricos e pobres, entre a pertença a uma classe mais do que aoutra, mas de escolher entre si mesmo e Deus, entre salvar a própria vida ou perdê-la peloEvangelho.

Houve alguns (por exemplo, em tempos mais recentes, Simone Weil), que chegaram a Cristopor meio do amor aos pobres e houve outros que chegaram aos pobres partindo do amor porCristo. Francisco pertence a este segundo grupo. A razão profunda da sua conversão não é denatureza social, mas evangélica. Jesus tinha formulado a lei uma vez por todas com uma dasfrases mais solenes e mais certamente autênticas do Evangelho:

“Se alguém quer vir após mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me. Pois quemquiser salvar a sua vida a perderá, mas quem perder a sua vida por minha causa a encontrará ”(Mt 16 , 24-25) .

Francisco, beijando o leproso, negou-se a si mesmo naquilo que era mais “amargo” erepugnante à sua natureza. Fez violência a si mesmo. O detalhe não escapou ao seu primeirobiógrafo que descreve assim o episódio:

“Um dia um leproso parou diante dele: fez violência a si mesmo, aproximou-se dele e obeijou. A partir daquele momento

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decidiu desprezar-se sempre mais, até que pela misericórdia do Redentor obteve plena vitória” [2].

Francisco não foi voluntariamente aos leprosos, motivado por humana e religiosa compaixão.“O Senhor, escreve, levou-me no meio deles”. É nesse pequeno detalhe que os historiadoresnão sabem – nem poderiam – dar um juízo, e de fato é a origem de tudo. Jesus tinhapreparado o seu coração para que a sua liberdade, no momento certo, respondesse à graça. Osonho de Spoleto tinha servido para isso e a pergunta de se preferia servir o servo ou o patrão,a doença, a prisão em Perugia e aquele mal-estar estranho que não lhe permitia maisencontrar alegria nas diversões e lhe fazia procurar lugares solitários.

Embora sem pensar que se tratasse de Jesus em pessoa sob as aparências de um leproso(como mais tarde tentou-se fazer, pensando no caso análogo da vida de São Martinho deTours[3]), naquele momento o leproso para Francisco representava em todos os aspectosJesus. Não tinha ele dito: “O fizestes comigo”? Naquele momento escolheu entre si mesmo eJesus. A conversão de Francisco é da mesma natureza daquela de Paulo. Para Paulo, emcerto momento, aquilo que antes tinha sido “lucro” mudou e tornou-se “perda”, “por amor deCristo” (Fil 3, 5ss); para Francisco aquilo que tinha sido amargo converteu-se em doçura,também aqui “por Cristo”. Depois deste momento, ambos podem dizer: “Já não sou eu quevivo, mas Cristo vive em mim”.

Tudo isso nos obriga a corrigir certa imagem de Francisco popularizada pela literaturaposterior e aceita por Dante na Divina Comedia. A famosa metáfora das núpcias de Franciscocom a Senhora Pobreza que deixou marcas profundas na arte e na poesia franciscanas podeser enganosa. Não se apaixona por uma virtude, nem mesmo pela pobreza; apaixona-se poruma pessoa. As núpcias de Francisco foram, como aquelas de outros místicos, um casamentocom Cristo.

Aos companheiros que lhe perguntavam se ele pretendia ter uma mulher, vendo-o uma noiteestranhamente ausente e brilhante, o jovem Francisco respondeu: “Terei a esposa mais nobree bela que vocês jamais viram”. Esta resposta é muitas vezes mal interpretada. Do contextoaparece claro que a esposa não é a pobreza, mas o tesouro escondido e a pérola preciosa, ouseja, Cristo. “Esposa, comenta Celano que narra o episódio, é a verdadeira religião que eleabraçou; e o reino dos céus é o tesouro escondido que ele procurou” [4].

Francisco não se casou com a pobreza, nem sequer com os pobres; casou-se com Cristo e

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foi por amor a ele que se casou, por assim dizer “em segundas núpcias” com a Senhorapobreza. Assim será sempre na santidade cristã. Na base do amor pela pobreza e pelospobres, ou está o amor por Cristo, ou os pobres serão, de um modo ou de outro,instrumentalizados e a pobreza se tornará facilmente um fato polêmico contra a Igreja, ou umaostentação de maior perfeição com relação a outros na Igreja, como aconteceu, infelizmente,também em alguns dos seguidores do Poverello. Em ambos os casos, faz-se da pobreza a piorforma de riqueza, aquela da própria justiça.

2. Francisco e a reforma da Igreja

Como foi que aconteceu que a partir de um evento tão íntimo e pessoal, como foi aconversão do jovem Francisco, tenha começado um movimento que mudou ao mesmo tempo orosto da Igreja e teve tanta influência na história, até os nossos dias?

É preciso dar uma olhada na situação da época. Na época de Francisco a reforma da Igrejaera uma necessidade sentida mais ou menos conscientemente por todos. O corpo da Igrejavivia tensões e lacerações profundas. De um lado estava a Igreja institucional – papa, bispos,alto clero – desgastados pelos seus perenes conflitos e pelas suas alianças muito próximascom o império. Uma Igreja sentida muito distante, envolvida em assuntos muito acima dosinteresses do povo. Em seguida, estavam as grandes ordens religiosas, muitas vezesprósperas pela cultura e espiritualidade após as várias reformas do século XI, entre as quaisaquela Cisterciense, mas fatalmente identificadas com os grandes proprietários de terras,senhores feudais da época, vizinhos e ao mesmo tempo remotos também eles, por problemase padrões de vida, do povo comum.

No lado oposto havia uma sociedade que começava a emigrar dos campos para as cidadesem busca de maior liberdade das várias servidões. Esta parte da sociedade identificava aIgreja com as classes dominantes das quais se sentia a necessidade de libertar-se. Assim, sealinhavam de boa vontade com aqueles que a contradiziam e a combatiam: hereges, gruposradicais e pauperísticos, enquanto simpatizava com o baixo clero, muitas vezes não com aaltura espiritual dos prelados, porém mais perto das pessoas.

Havia, portanto, fortes tensões que cada um procurava explorar em proveito próprio. AHierarquia procurava responder a estas tensões melhorando a própria organização ereprimindo os abusos, tanto internamente (luta contra a simonia e concubinato dos padres)quanto externamente na sociedade. Os grupos hostis procuravam, pelo contrário, explodir as

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tensões, radicalizando o contraste com a Hierarquia dando origem a movimentos mais oumenos cismáticos. Todos brandiam contra a Igreja o ideal da pobreza e simplicidadeevangélica fazendo disso uma arma polêmica, mais do que um ideal espiritual a ser vivido comhumildade, chegando a questionar também o ministério da Igreja, o sacerdócio e o papado.

Estamos acostumados a ver Francisco como o homem providencial que capta essasdemandas populares de renovação, as purifica de toda carga polêmica e as traz de volta ou asatua na Igreja em profunda comunhão e submissão a essa. Francisco, portanto, como umaespécie de mediador entre os hereges rebeldes e a Igreja institucional. Em um conhecidomanual de história da Igreja é apresentada dessa forma a sua missão:

“Já que a riqueza e o poder da Igreja apareciam muitas vezes como uma fonte de gravesmales e os hereges do tempo a utilizavam como argumento para as principais acusaçõescontra ela, em algumas almas piedosas surgiu o nobre desejo de restaurar a vida pobre deJesus e da Igreja primitiva, para poder assim mais eficazmente, influenciar no povo com apalavra e o exemplo” [5].

Entre estas almas coloca-se naturalmente em primeiro lugar, juntamente com São Domingos,Francisco de Assis. O historiador protestante Paul Sabatier, embora tão benemérito dosestudos franciscanos, tornou quase canônica entre os historiadores, e não só entre aquelesleigos e protestantes, a tese segundo a qual o cardeal Ugolino (o futuro Papa Gregório IX) teriatido a intenção de captar Francisco para a Cúria, domesticando a carga crítica e revolucionáriado seu movimento. Na prática é a tentativa de fazer de Francisco, um precursor de Lutero, ouseja, um reformador pela via de críticas, mais do que da santidade.

Não sei se esta intenção possa ser atribuída a algum dos grandes protetores e amigos deFrancisco. Parece difícil atribuí-la ao card. Ugolino e menos ainda a Inocêncio III, conhecidopela ação reformadora e o apoio dado às várias formas novas de vida espiritual surgidas emseu tempo, incluído os Frades Menores, os dominicanos, os Humilhados Milaneses. Umacoisa, porém, é absolutamente certa: aquela intenção nunca passou pela mente de Francisco.Ele nunca pensou ser chamado para reformar a Igreja.

É preciso ter cuidado para não tirar conclusões erradas das famosas palavras do Crucifixo deSão Damião “Vai’, Francisco e repara a minha Igreja que, como vês, está em ruínas”. As fontesmesmas nos asseguram que ele compreendeu aquelas palavras no sentido bastante modestode ter que reparar materialmente a igrejinha de São Damião. Foram os discípulos e os

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biógrafos que interpretaram – e, é preciso dizer, não sem razão – aquelas palavras como sereferindo à Igreja instituição e não só à Igreja edifício. Ele permaneceu sempre na suainterpretação literal e de fato continuou a reparar outras igrejinhas nos arredores de Assis queestavam em ruínas.

Também o sonho em que Inocêncio III teria visto o Poverello sustentar com as suas costas aIgreja de Latrão desmoronando não diz nada de mais. Supondo que o fato seja histórico (umfato análogo também é narrado sobre São Domingos), o sonho foi do papa, não de Francisco!Ele nunca foi visto como o vemos hoje no afresco de Giotto. Isto significa ser reformador pelocaminho da santidade: sê-lo, sem sabê-lo!

3. Francisco e o retorno ao Evangelho

Se não quis ser um reformador, o que foi que quis ser e fazer Francisco? Também aquitemos a sorte de ter o testemunho direto do Santo no seu Testamento:

“E depois que o Senhor me deu irmãos, ninguém me mostrou o que eu deveria fazer; mas omesmo Altíssimo me revelou que eu deveria viver segundo a forma do santo Evangelho. E eucom poucas palavras e simplesmente o fiz escrever, e o senhor Papa mo confirmou”.

Fala do momento no qual, durante uma Missa, escutou a passagem do evangelho ondeJesus envia os seus discípulos dizendo: “Enviou-os a pregar o reino de Deus e a curar osenfermos. E disse-lhes: «Nada leveis para o caminho, nem bastão, nem alforje, nem pão, nemdinheiro; tampouco tenhais duas túnicas” (Lc 9, 2-3)[6]. Foi uma revelação impressionantedaquelas que orientam toda uma vida. Daquele dia em diante foi clara a sua missão: umretorno simples e radical ao evangelho real, aquele vivido e pregado por Jesus. Restaurar nomundo a forma e o estilo de vida de Jesus e dos apóstolos descrito nos evangelhos.Escrevendo a Regra para os seus frades começará assim:

“A regra e a vida dos Frades Menores é esta: observar o santo Evangelho de nosso SenhorJesus Cristo”.

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Francisco não teorizou esta sua descoberta, tornando-a o programa para a reforma da Igreja.Ele realizou em si a reforma e assim indicou tacitamente à Igreja o único caminho para sair dacrise: reaproximar-se do evangelho, reaproximar-se dos homens e especialmente dos humildese dos pobres.

Este retorno ao Evangelho reflete-se em primeiro lugar na pregação de Francisco. Ésurpreendente, mas todos notaram: o Poverello fala quase sempre de “fazer penitência”. Apartir de então, diz o Celano, com grande fervor e exultação, ele começou a pregar apenitência, edificando todos com a simplicidade de suas palavras e a generosidade de seucoração. Onde quer que fosse, Francisco dizia, recomendava, suplicava que fizessempenitência[7].

O que é que Francisco compreendia com esta palavra que ele trazia tanto no coração? Nestesentido caímos (pelo menos eu caí por muito tempo) em erro. Reduzimos a mensagem deFrancisco a uma simples exortação moral, a um bater-se no peito, angustiar-se e mortificar-separa expiar os pecados, enquanto que tem toda a vastidão e o ar do evangelho de Cristo.Francisco não exortava a fazer “penitências”, mas fazer “penitência” (no singular!) que,veremos, é totalmente outra coisa.

O Poverello, exceto nos poucos casos que conhecemos, escrevia em latim. E o queencontramos no texto latino, do Testamento, quando escreve: “O Senhor deu a mim, fradeFrancisco, começar a fazer penitência assim”? Encontramos a expressão “poenitentiam agere”.

Sabe-se que eleamava expressar-se com as mesmas palavras de Jesus. E esta palavra – fazer penitência – éa palavra com a qual Jesus começou a pregar e que repetia em cada cidade e aldeia onde ia:

“Depois que João foi preso, veio Jesus para a Galileia proclamando o Evangelho de Deus:cumpriu-se o tempo e o Reino de Deus está próximo. Arrependei-vos e crede no Evangelho”(Mc 1, 15).

A palavra que hoje se traduz com “convertei-vos” ou “arrependei-vos”, no texto da Vulgatausado pelo Poverello, soava “poenitemini” e em Atos 2, 37 ainda mais literalmente “poenitentiam agite” ,fazei penitência. Francisco nada fez além de relançar o grande apelo à conversão com o qualse abre a pregação de Jesus no Evangelho e aquela dos apóstolos no dia de Pentecostes. Oque ele quis dizer com a palavra “conversão” não precisa explicá-lo: sua vida, ele mostrou.

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Francisco fez no seu tempo aquilo que no tempo do Concílio Vaticano II tentou-se fazer como lema: “quebrar as muralhas”: quebrar o isolamento da Igreja, trazê-la de novo para o contatocom o povo. Um dos fatores de escuridão do evangelho era a transformação da autoridadecompreendida como serviço, em autoridade compreendida como poder que tinha produzidoinfinitos conflitos dentro e fora da Igreja. Francisco, por sua vez, resolve o problema em sensoevangélico. Na sua Ordem, novidade absoluta, os superiores se chamarão ministros, ou seja,servos, e todos os outros frades, ou seja, irmãos.

Outro muro de separação entre a Igreja e o povo era a ciência e a cultura da qual o clero e osmonges tinham o monopólio na prática. Francisco sabe disso e, portanto, assume a posiçãodrástica que sabemos sobre este ponto. Ele não é contrário à ciência-conhecimento, mas àciência-poder; aquela que favorece aqueles que sabem ler sobre aqueles que não sabem ler elhes permite comandar com altivez ao irmão: “Traga-me o breviário”. Durante o famosoCapítulo das Esteiras a alguns dos seus irmãos que queriam empurrá-lo a adequar-se à atitudedas “ordens” cultas do tempo, respondeu com palavras de fogo que deixaram, lê-se, os fradestomados de temor:

“Irmãos, meus irmãos, Deus me chamou para trilhar o caminho da simplicidade e o mostroupara mim. Não quero, portanto que me citem outras Regras, nem aquela de Santo Agostinho,nem aquela de São Bernardo ou de São Bento. O Senhor revelou-me ser sua vontade que eufosse um idiota no mundo: esta é a ciência à qual Deus quer que nos dediquemos! Ele vosconfundirá por meio da vossa mesma ciência e sabedoria” [8].

Sempre a mesma atitude coerente. Ele quer para si e para os seus irmãos a mais rígidapobreza, mas na Regra, exorta-os a “não desprezar e a não julgar os homens que vêmvestidos com hábitos finos e coloridos e usar comida e bebida delicadas, mas sim cada umjulgue e despreze a si mesmo”[9]. Escolhe ser um iletrado, mas não condena a ciência. Umavez assegurado que a ciência não extinga “o espírito da santa oração e devoção”, será elemesmo a permitir a frade Antonio de dedicar-se ao ensino da teologia e São Boaventura nãopensa que está traindo o espírito do fundador, abrindo a ordem aos estudos nas grandesuniversidades. Yves Congar vê nisso uma das condições essenciais da “verdadeira reforma” naIgreja, a reforma, ou seja, que permanece tal e não se transforma em cisma: isto é, acapacidade de não absolutizar a própria intuição, mas permanecer solidário com o todo que é aIgreja[10]. A convicção, diz o Papa Francisco, na sua recente Exortação apostólica Fideigaudium, que “o todo é superior à parte”.

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4. Como imitar Francisco

O que diz a nós hoje a experiência de Francisco? O que podemos imitar dele, todos erápido? Sejam aqueles que Deus chama a reformar a Igreja pelo caminho da santidade, sejamaqueles que se sentem chamados a renová-la pelo caminho da crítica, sejam aqueles que elemesmo chama a reformá-la pelo caminho do cargo que ocupam?  A mesma coisa com a qualse começou a aventura espiritual de Francisco: a sua conversão do eu a Deus, a sua negaçãode si. É assim que nascem os verdadeiros reformadores, aqueles que mudam realmente algona Igreja. Os mortos a si mesmos. Melhor, aqueles que decidem seriamente morrer a simesmos, porque se trata de uma empresa que dura toda a vida e também além, se, como diziabrincando santa Teresa de Ávila, o nosso amor próprio morre vinte minutos depois de nós.

Dizia um santo monge ortodoxo, Silvano do Monte Athos: “Para ser verdadeiramente livres, énecessário começar a ligar a si mesmo”. Homens como estes são livres com a liberdade doEspírito; nada os para e nada os espanta mais. Tornam-se reformadores pelo caminho dasantidade, e não somente pelo caminho do ofício.

Mas o que significa a proposta de Jesus de negar-se a si mesmo? É ainda possível propô-laa um mundo que fala somente de auto-realização, auto-afirmação? A negação nunca é fim emsi mesmo, nem um ideal em si. A coisa mais importante é aquela positiva: Se queresseguir-me; É oseguir Cristo, possuir Cristo. Dizer não a si mesmo é o meio; dizer sim a Cristo é o fim. Paulo aapresenta como uma espécie de lei do espírito: “Se com a ajuda do Espírito fazes morrer asobras da carne, vivereis” (Rm 8, 13). Isso, como se pode ver, é um morrer para viver; é ooposto da visão filosófica que diz que a vida humana é “um viver para morrer” (Heidegger).

Trata-se de saber qual fundamento queremos dar à nossa existência: se o nosso “eu” ou“Cristo”; na linguagem de Paulo, se queremos viver “para nós mesmos”, ou “para o Senhor” (cf.2 Coríntios 5, 15, Rm 14 , 7-8). Viver “para si mesmos” significa viver para a própriacomodidade, a própria glória, o próprio progresso; viver “para o Senhor” significa recolocarsempre em primeiro lugar, nas nossas intenções, a glória de Cristo, os interesses do Reino eda Igreja. Cada “não”, pequeno ou grande, falado a si mesmo por amor, é um sim dito a Cristo.

Somente deve-se evitar a ilusão. Não se trata de saber tudo sobre a negação cristã, suabeleza e necessidade; trata-se de passar ao ato, de praticá-la. Um grande mestre de espíritoda antiguidade dizia: “É possível despedaçar dez vezes a própria vontade em um brevíssimo

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tempo; e vos digo como. A pessoa está passeando e vê algo; o seu pensamento lhe diz: “Olhalá”, mas ele responde ao seu pensamento: “Não, não olho”, e despedaça assim a própriavontade. Depois encontra outros que estão falando (leia falando mal de alguém) e o seupensamento lhe diz: “Fale’ também você aquilo que sabe”, e despedaça a sua vontadecalando”[11].

Este antigo Padre traz, como se vê, exemplos tirados todos da vida monástica. Mas elespodem ser atualizados e adaptados facilmente para a vida de cada um, clérigos e leigos.Encontros, se não com um leproso como Francisco, com um pobre que você sabe que vai lhepedir algo; o seu homem velho te empurra a passar do lado oposto do caminho, e você pelocontrário, se faz violência e lhe vai ao encontro, talvez presenteando-lhe somente com umasaudação e um sorriso, se não pode fazer outra coisa. Oferecem a você a ocasião para umlucro ilícito: e você diz não e negou a si mesmo. Foi contestado em uma ideia; toca o pontosensível, gostaria de responder com força, cala e espera: despedaçou o seu eu. Acredita tersido passado pra trás, um tratamento, ou um destino não adequado aos seus merecimentos:gostaria de contar para todos, fechando-se em um silêncio cheio de tácita reprovação. Diz não,quebra o silêncio, sorri e reabre o diálogo. Negou a si mesmo e salvou a caridade. E assim pordiante. Um sinal que prova uma boa luta contra o próprio eu, é a capacidade ou ao menos oesforço de alegrar-se pelo bem feito ou a promoção recebida de outro, como se acontecesseconsigo mesmo:

“Bem aventurado aquele servo – escreve Francisco em uma das suas Admoestações – quenão se orgulha pelo bem que o Senhor diz e obra por meio dele, mas sim pelo bem que diz eobra por meio de outro”.

Uma meta difícil (eu não falo certamente como quem já a alcançou!), mas a história deFrancisco, nos mostra o que pode nascer de uma negação de si feita em resposta à graça. Ameta final é poder dizer com Paulo e com Ele: “Não mais eu que vivo, Cristo vive em mim”. Ehaverá alegria e paz plenas, já sobre esta terra. Francisco, em sua “perfeita alegria”, é umexemplo vivo da “alegria que vem do Evangelho,” do Evangelii gaudium!

 

Padre Raniero Cantalamessa, OFM Cap.

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Pregador da Casa Pontifícia

 

Referências

[1] Y.Congar, Vera e falsa riforma nella Chiesa,Milano Jaka Book, 1972, p. 194.

[2] Celano, Vita Prima, VII, 17 (FF 348).

[3] Cf. Celano, Vita Seconda, V, 9 (FF 592)

[4] Cf. Celano, Vita prima, III, 7 (FF, 331).

[5] Bihhmeyer – Tuckle, II, p. 239.

[6] Legenda dei tre compagni VIII (FF 1431 s.).

[7] FF, 358; 1436 s.; 1508.

[8] Legenda perugina 114 (FF 1673).

[9] Regola Bollata, cap. II.

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[10] Sobre as condições da verdadeira reforma veja Congar, ob. cit. pp. 177 ss.

[11] Doroteo di Gaza, Opere spirituali, I,20 (SCH 92,p.177).

 

Fonte: Site Oficial Padre Raniero Cantalamessa  - Traduzido do original italiano porThácio Siqueira

 

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