Françoise Dastur - A Arte No Pensamento

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Introdução Considera-se habitualmente que a tradição ocidental de pensamentoencontra a sua origem na oposição entre muthos e   lógos, que coin-cidiu com o nascimento da filosofia em Platão, e está na origemdo racionalismo moderno. Com efeito, Platão é quem, ao mesmotempo, dá à palavra  philosophia  o seu sentido forte de amor pelasabedoria e de busca da verdade, e quem expulsa os poetas da sua

Cidade ideal, por enxergar neles produtores de simulacros, imita-ções muito distantes da verdade e, conseqüentemente, enganosas.O gesto platônico consagra a separação da imaginação e da razão, daarte e do pensamento. Isso explica por que, durante muito tempo,na tradição ocidental, a arte ficou mantida em posição subordinadacom relação à filosofia e às ciências.

A bem da verdade, vemos surgir, na época das Luzes, umanova disciplina, a estética, onde a arte retoma seu lugar dentro dafilosofia, como atesta a primeira parte da terceira Crítica de Kant.Entretanto, esta ciência da sensibilidade, que é a estética, continuasendo uma teoria do sujeito autônomo, na qual a arte permanecedesprovida de qualquer valor de conhecimento.

Apenas com o primeiro romantismo alemão, e em especialcom Schelling, um de seus integrantes, é que vemos surgir a idéiade uma identidade e, assim, de uma igualdade de status, entre a artee a filosofia. O que assim está sendo, primordialmente, preparado,com a reavaliação da arte iniciada por Hegel, dentro do que ele, noentanto, ainda chama de “Estética”, é uma crítica da subjetivação daarte, que podemos ver se desenvolvendo na esteira do movimento

FRANÇOISE DASTUR[Professora emérita da Universitéde Nice – Sophia Antipolis]

A ARTE NO

PENSAMENTO

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uma cama, quer uma mesa, ele deve dirigir o seu olhar para a idéiade cama ou de mesa, pois, como afirma em a República, “nenhumartesão jamais produz a própria idéia”.2 Quanto ao artesão capaz deproduzir sozinho o que nenhum outro seria capaz de fazer, esseartesão que produz tudo sem exceção, esse sofista por excelência, queé o pintor ou o poeta, ele realmente existe, embora a sua produçãoseja de um tipo especial: ele não fabrica, mas faz aparecer as coisasà semelhança daquele que pro-duz, em um espelho, a totalidade dascoisas, apenas apresentando-a de todos os lados.3 O poeta aqui é assi-milado ao pintor, ao produtor de imagens-entes, de simulacros.Mas esse produtor capaz de produzir o todo, na verdade, produzapenas o nada, pois a imagem do espelho é a imagem de uma ima-

gem, é mimêsis mimêseos. Decerto, o homem não possui o poder deproduzir no original, de fazer aquilo que é, mas apenas de produzircópias. Na hierarquia dos produtores, omimêtes distingue-se do dêmi-

ourgos –  aquele que trabalha para o público, o dêmos – pelo fato de ser“o autor de uma produção distante da natureza em três graus”.4

Afinal, qual a essência da mimêsis? É menos a reprodução,no sentido da imitação naturalista da realidade, do que um modosubordinado de produção. De fato, para Platão “a imitação é muitoafastada da verdade”,5 ela está distante da idéia, com a qual apenaso filósofo quer lidar. Logo, a condenação da poesia, a subordinaçãoda arte à verdade, ocorre em nome da “idéia” que apenas um puroolhar teórico é capaz de enxergar, que só um lógos independentedas imagens pode expressar com legitimidade. A filosofia começa

fenomenológico inaugurado por Husserl, de início com Heidegger,que define a arte enquanto implementação da verdade e, a seguir,com Gadamer, que fundamenta toda a sua interpretação da obra dearte na crítica da consciência estética. É nesta mesma perspectivaque devemos situar a fenomenologia da arte de Merleau-Ponty, daqual se pode dizer que põe fim à antiga antinomia platônica entrearte e filosofia.

I. Arte e imitação na antiguidade grega (Platão e Aristóteles)

O que cabe esclarecer, em primeiro lugar, são os motivos que estãona origem da condenação platônica da poesia, pois isto nos dá aoportunidade de elucidar o próprio sentido dessa palavra.Poiêsis não

significa apenas fazer, no sentido de fabricar e produzir, mas tam-bém a criação poética no sentido específico: no próprio termo gregohá um duplo sentido significativo, à medida que ele reúne seman-ticamente uma eminente espécie da produção com a produção emsentido geral. Podemos ver aí o sinal de uma preeminência da arteda palavra sobre todas as demais artes da Grécia, pois é esta arte,e nenhuma outra, que leva o nome de “criação”: fazer algo existir,pelo único poder das palavras, decerto constitui, para os gregos, omodelo eminente de toda “produção” como tal. Mas esse eminentesignificado da poiêsis também coincide com aquilo que Platão chamade mimêsis e que costuma ser traduzido por “imitação”: a produçãono sentido eminente (produção apenas através da palavra) tambémé produção de simples imitações, de meras aparências, de imagens,com o auxílio, é verdade, do material mais dúctil que seja, já que setrata do que Aristóteles chama justamente de phônê sêmantikê, o somque significa, isto é, o próprio idioma.

Ora, para Platão, a mimêsis é a essência de toda arte, e nãoapenas daquilo que mais tarde chamariam de belas-artes: todoartesão já é, de certa forma, um imitador,1 já que para fabricar quer

ARTE NO PENSAMENTO A ARTE NO PENSAMENTO

1. Para a análise da mimêsis aqui apresentada, ver M. Heidegger, Nietzsche tomo I, “La volonté depuissance en tant qu’art”, Gallimard, 1971, p. 156 sq. e E. Fink, Le jeu comme symbole du monde,capítulo II, (L’interprétation métaphysique du jeu), Ed. de Minuit, 1966, p. 89 sq.2. Platon, A República, livro X, 596 c.3. Ibid , livro X, 596 d-e.4. Ibid , livro X, 597 e.5. Ibid , livro X, 598 b.

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Diferentemente da história, que só diz respeito ao acontecimento,a poesia participa, como a filosofia, da generalidade da essência.Ela continua, no entanto, como em Platão, definida pela mimêsis,8 mas mimêsis possui nele um sentido cognitivo.9 Não significa maiso ser menor da cópia, com relação ao original, mas antes a apresen-tação em imagens da própria essência das coisas. Aristóteles afirma,com efeito, em a Poética: “Nos agrada a visão das imagens, porqueaprendemos ao olhá-las e deduzimos o que representa cada coisa;por exemplo, que esta figura é tal pessoa”.10 O prazer desse reconhe-cimento não está na comparação da cópia em relação ao original,mas na compreensão dentro  e  pela imagem daquilo que ela deverepresentar. Da mesma forma, quando, em a Física, é dito que a arte

“imita a natureza” ou “executa aquilo que a natureza não conseguerealizar”,11 não se trata de duas afirmações diferentes, mas antes daexpressão de um único e mesmo processo: imitar a natureza não éreproduzir a sua imagem, pois desse modo a arte mergulharia nafutilidade denunciada por Pascal quando exclama: “Que futilidade apintura que atrai a admiração pela semelhança das coisas das quaisnão se admiram os originais!”;12 mas é o acabar, o rematar, isto é,levá-la ao parecer tirando-a da reserva na qual se compraz.13 O quecomeça a emergir, quando lemos a Poética de Aristóteles à luz de sua

onde, como ensina Platão em o Sofista, se deixa de “contar histórias”(mython tina diêgeisthai).6

Como explicar o severo juízo de Platão sobre a poesia?O próprio Platão, genial escritor dos diálogos, é poeta: não reza certatradição que ele se entregava à poesia antes de conhecer Sócrates?Aliás, em outros diálogos, ele nos apresenta uma imagem bem dife-rente do poeta, não a de um corruptor de jovens espíritos, mas, aocontrário, a de um ser inspirado pelos deuses, como no pequenodiálogo intitulado Ion, nome de um rapsodo com quem conversaSócrates. Da mesma forma, em o Ménon, Platão afirma que os adi-vinhos e os poetas muitas vezes dizem a verdade, porém sem nadaconhecer daquilo que falam (99 b). E em o Fedro, Sócrates faz o

elogio do delírio, da mania, que é o efeito de um favor divino, e semo qual não há boa poesia (245 a). Resta que Platão desacredita a arte,e em especial a poesia, com relação à filosofia: o poeta, enquantoinspirado pelos deuses, não sabe o que faz e logo permanece nonão-saber. Portanto, a distância entre poesia, arte e filosofia conti-nua intransponível.

A história é outra com Aristóteles, que dedicou um tratadoà Poética e, dessa forma, outorga um espaço à poesia na própria filo-sofia. Em vez de, como Platão, enxergar na poesia o resultado deuma inspiração oriunda dos deuses e um não-saber, Aristóteles sepropõe, ao contrário, mostrar que a poesia atende a regras, que elaé o produto de uma technè, um saber fazer. Por isso, ele não hesitaem afirmar que “a poesia é mais filosófica e de um tipo mais elevadoque a história, pois a poesia conta mais o geral, e a história, o espe-cífico”.7 A poesia, em vez de contar as coisas tal como efetivamenteaconteceram, dando espaço ao acidental, as retrata, ao contrário,como poderiam ter acontecido, isto é, em relação com a sua essência.

6. Platão, Sofista, 242 c.

7. Aristóteles. Poética, 1451 b. Observemos que Aristóteles entende por poesia menos a poesialírica de Píndaro ou Safo do que a epopéia, a comédia e, principalmente, a tragédia, pois nãoexiste poein sem invenção nem composição de uma fábula, de um mythos: “O poeta deve serartesão de fábulas antes que artesão de versos, já que é poeta através da imitação e que imita asações” (1451 b).8. Ibid , 1447 a.9. Cf. H.-G. Gadamer. Vérité et méthode. Paris: Seuil, 1996, p. 131.10. Ibid , 1448 b.11. Aristóteles. Física B 8, 199 a.12. B. Pascal. Pensamentos, 40.13. Ver a esse respeito a interpretação “fenomenológica” da mimêsis de E. Martineau, “Mimesisdans la Poétique”. In: Revue de Métaphysique et de Morale, 1976.

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foi condenada como uma “mestra de erro e falsidade”, conforme afamosa citação de Pascal.14 

II. Arte e imaginação no idealismo alemão (Kant, Schiller, Hölderlin,

Schelling)

É preciso esperar Kant e o idealismo alemão para que a imagi-nação seja reabilitada enquanto faculdade propriamente produtiva.Para Kant, é sumamente importante, conforme expôs nos cursos deantropologia que ministrou durante muitos anos na Universidadede Königsberg e que resolveu publicar em 1798, não confundir aimaginação enquanto invenção e a imaginação enquanto imitação.Logo, é preciso diferenciar, dentro da facultas imaginandi, da facul-

dade imaginativa em geral, definida como faculdade das intuiçõesfora da presença do objeto, uma imaginação produtiva que, enquan-to faculdade de apresentação originária do objeto, ou exhibitio origi-

naria, antecede a experiência, e uma imaginação reprodutiva que,enquanto faculdade de apresentação derivada ouexhibitio derivativa, lembra ao espírito uma intuição empírica que ele já teve anterior-mente. É interessante observar que Kant relaciona à primeira for-ma de apresentação, isto é, à apresentação originária, as intuiçõespuras do espaço e do tempo, sugerindo desse modo que a sensibi-lidade pura, isto é, essa faculdade que nos coloca em presença dofenômeno, é obra da imaginação produtiva.15  Porém, esta é maisfacilmente identificável na atividade artística do que no domínio doconhecimento.

É justamente em a Crítica da faculdade de julgar, publicadaalguns anos antes da Antropologia do ponto de vista pragmático, em1791, que Kant, ao se situar no campo da estética, foi levado a dar um

Física, é o fato de a arte poética pertencer a um outro modo de imagi-nação, distinto da imaginação meramente reprodutiva, não estandomais a mimêsis  identificada com a simples reprodução, mas simcompreendida como um processo original de fenomenalização.

O espaço dado à Poética na definição sistemática que Aristó-teles faz das disciplinas filosóficas permanece, no entanto, menor.Para Aristóteles, há com efeito uma classificação tripartida da ciên-cia, da qual a lógica forma oórganon, o instrumento preliminar, entreciência teorética (matemática, física, teologia), ciência prática e ciên-cia poiética. A verdadeira ciência é a ciência teorética, contempla-ção da verdade e ciência desinteressada, que constitui a filosofia emsentido estrito. A ciência prática considera as ações do homem que

não produzem qualquer obra externa ao agente e que têm como fimapenas a ação interna, a eupraxia. Confunde-se com a ética e a polí-tica. Mais que ciência, ela é phronèsis, prudência, saber não do imutá-vel, mas do variável. Quanto à poética, ela é a ciência da produção,e pretende realizar uma obra externa ao agente, é essencialmentetechnè,  saber fazer, arte no sentido amplo do termo. A esfera da

 poíesis é o campo onde técnicos, artesãos e artistas, produzem obrasúteis ou não úteis, objetos ou mímicas de objetos. A reunião, nomesmo termo, de dois modos de arte, as artes úteis e o que nós,modernos, chamamos de belas-artes, já coloca um problema.O artesão, de acordo com Platão, não é um homem livre, já quedeve conformar-se a um modelo que só o usuário decide, ao passoque o artista é, em princípio, um homem livre, que não participa daordem econômica, mas sim da ordem política e ética, logo, da vidaprática. A parte da Poética aristotélica que trata da arte, no sentidoque hoje damos a esta palavra, não pertence à ciência teórica, istoé, à parte mais eminente da filosofia. É o que explica que a conde-nação platônica da arte reapareça várias vezes na cultura ociden-tal, especialmente durante a idade clássica, quando a imaginação

14. B. Pascal. Pensamentos, 82.15. E. Kant. Anthropologie du point de vue pragmatique. Paris: Vrin, 1970, § 28, p. 47.

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Encontramos a mesma idéia no tocante não mais à teoriado Belo, mas sim à da arte. A verdadeira obra de arte, isto é, a obrade gênio, que consiste para Kant em uma faculdade produtiva inata,que é um dom natural no homem,19 escapa do mero juízo do gosto enão é suscetível de uma abordagem apenas conceitual. Pois a essên-cia do gênio, o que Kant chama de “o princípio vivificante da alma”(Gemüt ),20 que constitui o foco unificador das diversas faculdadesdo homem, as move, as incentiva a entrar em um jogo recíprocoe lhes dá o seu impulso, é o poder de representar idéias estéticas.Ora, Kant entende por idéia estética “uma representação da imagi-nação que dá muito o que pensar, sem que qualquer pensamentodeterminado, isto é, conceito, lhe possa ser adequado”.21 A faculdade

aqui em jogo, ressalva Kant expressamente, é a imaginação produ-tiva que possui a potência para proporcionar uma forma sensível aointeligível e que, dessa maneira, dá ao mesmo tempo o que pensar eo que ver. Enquanto “faculdade produtiva de conhecer”, ela se situaacima do entendimento que se revela incapaz de expressar atravésde conceitos toda a riqueza que lhe propicia uma imaginação real-mente livre de seu jugo. Já na primeira edição da Crítica da razão

 pura (1781), Kant reconhecia à imaginação pura o papel capital demediadora entre o entendimento e a sensibilidade, entre o conceitoe a intuição, logo vendo nela uma faculdade que torna possível oconhecimento.22 A imaginação na sua função transcendental é, decerto, ao mesmo tempo, receptividade e espontaneidade, no sentido

papel primordial à imaginação. Trata-se, para ele, de definir o Belodistinguindo-o do agradável, que constitui a matéria de uma satisfa-ção, por certo imediata, porém apenas empírica, do útil, que se sus-tenta em uma finalidade externa ao objeto considerado, e até mesmodo perfeito, que implica a subordinação do objeto a um conceito jádeterminado de antemão. Mas se afastarmos o deleite que o objetoproporciona à sensibilidade, a utilidade, que pode apresentar para avontade, e a perfeição, que permite seu conhecimento, o quê podesobrar do objeto? Sobra o que Kant chama de sua forma, isto é, o seupróprio parecer, ao qual só temos acesso através do desinteresse.Esse conceito de forma (Form ) não é apenas o oposto do conceito dematéria ou de conteúdo, assume também o significado mais espe-

cífico de figura (Gestalt ), que remete àquilo que, no objeto, constituia sua estrutura organizadora, e de jogo (Spiel ), jogo das figuras noespaço ou das sensações no tempo, que designa o própriomovimento do surgimento da coisa, o seu caráter meramente fenomenal.16 O poder que, no homem, lhe permite acessar a fenomenalidade puraé precisamente a imaginação, cuja liberdade, “desenvolvendo-se, dealgum modo, na contemplação da figura”,17 não está aqui limitadapor algum fim e, assim, pode se abrir à livre beleza daquelas compo-sições “que não representam nada, objeto algum, sob um conceitodeterminado”,18 e que são, para Kant, o próprio exemplo do Belo.A imaginação parece mesmo designar aqui um poder originário nohomem, ao mesmo tempo receptivo e espontâneo, o de abrir para adimensão não objetiva, a partir da qual algo pode se tornar objeto deconhecimento ou de desejo.

16. E. Kant. Critique de la faculté de juger . Paris: Vrin, 1974, § 14, p. 68 (a seguir denominadoCFJ). Inspiro-me aqui da observação-análise de J. Taminiaux em La Nostalgie de la Grèce à l’aubede l’idéalisme allemand , Nijhoff, La Haye, 1967.17. Ibid , § 16, p. 71.18. Ibid .

19. Ibid , § 46, p. 138.20. Ibid , § 49, p. 143. A palav ra Gemüt  permanece intraduzível em francês: significa literalmenteo conjunto dos “humores” (o Mut  alemão possui a mesma raiz que o inglês mood ) e remete aolado “afetivo” da mente.21. Ibid .22. E. Kant, Critique de la raison pure, p. 730 (A 124): “Possuímos uma imaginação, enquantofaculdade fundamental da alma humana, que serve, a priori, de princípio para qualquer conhe-cimento”.

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e da racionalidade, da verdade e da arte. Para Schiller, a beleza daforma, que é obra da imaginação, é “livre exposição da verdade”,não da verdade lógica do entendimento, mas sim de uma verdadeque transcende a abstração e que é a da própria vida.23 O Belo nãoé nem objetivo, no sentido em que seria o correlato do conceito deentendimento, nem subjetivo, no sentido em que remeteria apenasao acordo das faculdades; ele é o próprio ser, cuja aparição sob formade imagem não é falso-semblante, mas antes o próprio ato da vida se

 pro-duzindo livremente.Nas suas Cartas sobre a educação estética do homem, publi-

cadas em 1795, onde expõe “o resultado das suas investigações arespeito do Belo e da arte”,24 Schiller trata de esclarecer os estreitos

laços que unem a questão da arte à do destino do homem. Para ele,trata-se de questionar o dualismo kantiano da natureza e da liber-dade, reivindicando uma outra antropologia, mais completa que ade Kant, que não dá o merecido espaço à sensibilidade.25 No entanto,a época atual oferece o espetáculo de uma acirrada oposição entredesnaturação e natureza, entre perversão e selvageria,26 quando aGrécia, que Schiller invoca, apresenta, ao contrário, um modelo deconcórdia com a natureza, a ser resgatada.27 Desse modo, ele opõeao homem grego, que tira a sua forma “da natureza que tudo reúne”,o homem moderno, que recebe a sua do “entendimento que tudodissocia”:28 pois, enquanto que a época moderna se caracteriza peloabuso do entendimento e pela hostilidade para com a imaginaçãoe os sentidos, os Gregos “filosofavam e imaginavam ao mesmo

que ela permite, desse modo, a apreensão dos fenômenos. Pois,imaginar, no sentido transcendental, isto é, enquanto o que consti-tui a condição de possibilidade de toda relação com os fenômenos,não consiste em formar uma ou outra imagem concreta, mas simem abrir o campo de toda visibilidade. O mesmo acontece com aimaginação, que está na nascente da obra de arte e encarna o gênioque, na criação artística, projeta livremente sua obra, embora sujei-tando-se às regras da natureza.

Encontramos, pois, em Kant, a idéia de uma imaginaçãoprodutiva, através da qual o espírito por inteiro do homem se reúneem prol de uma livre criação artística que só é realmente genial porser um dom da natureza, assim fugindo da jurisdição do entendi-

mento. Schiller ainda acentuará a primazia admitida por Kant, daimaginação com relação ao entendimento, ao mostrar que é na epela arte que o fenômeno aparece e que a natureza se revela. Pois,desde 1791, Schiller confessa ao seu amigo Kröner o entusiasmo quesente pela Crítica da faculdade de julgar, que acaba de ser publicada, elhe anuncia o projeto de escrever um diálogo filosófico sobre o Belo,ao qual daria o título de Kallias. Tal projeto nunca foi levado a cabo,mas podemos dele ter uma idéia, através da correspondência queambos mantiveram. É nas Kalliasbriefe (1793), as cartas nas quaisSchiller expõe suas pesquisas a respeito do Belo, tomando comofio condutor a terceira Crítica kantiana, que ele é levado a colocar aimaginação no primeiro plano da sua filosofia da arte, enfatizando aobjetividade do Belo, em oposição ao seu caráter meramente subje-tivo em Kant. Para Schiller trata-se de pensar a objetividade sensíveldo Belo, de devolver, de certa forma, o belo à natureza, mas tambémde mostrar que é pela e na arte que a natureza se revela. Ele é entãolevado a retomar a teoria kantiana do gênio, pela qual o Belo fugia dasubjetividade para aparecer como um dom da natureza. Indo maislonge que Kant, Schiller opera, assim, a reconciliação da sensibilidade

23. Schiller. Kallias, carta de 28 de fevereiro 1793, III, p. 112-113.24. F. Schiller. Lettres sur l’éducation esthétique de l’homme. Paris: Aubier, 1943, p. 65 (primeiracarta).25. Ibid , p. 89 (quarta carta).26. Ibid , p. 99 (quinta carta).27. Ibid , p. 103 (sexta carta).28. Ibid , p. 105 (sexta carta).

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na última parte das Cartas sobre a educação estética do homem, desen-volver uma concepção racional da Beleza que propicie a reconcilia-ção dialética dos opostos: “A natureza reúne tudo, o entendimentodissocia por toda parte; a razão de novo reúne”.33 Mas ele se expõe aoperigo de ver na imaginação não mais um processo ontológico, masuma mera “atividade” do sujeito, e de assim voltar para o ponto devista subjetivo, que criticara com tanta veemência em Kant.

Hölderlin, grande admirador de Schiller, vê, como este, emBildung, na formação da imagem, um processo ao mesmo tempoontológico e humano. Como ele demonstra, em especial em umensaio escrito no inverno de 1796-97, ao qual posteriormente deramo título de Über Religion (“Sobre a religião”),34 a imagem é a figu-

ra concreta que contém o infinito e o entrega: é a doação imediatado infinito, enquanto que o conceito apenas o apresenta de formamediata, através da remissão para outros conceitos e seu jogo dialé-tico. A imagem permite a identidade imediata do tudo e do particu-lar, pois, nas mitologias, a realidade surge sob o aspecto do livre jogode figuras divinas que são, ao mesmo tempo, individualizadas e, noentanto, referidas à totalidade da qual cada uma apresenta um dosaspectos. É essa a única forma adequada de representar a realidade.Logo, não há outra experiência do infinito, a não ser no seu tornar-se

imagem . Porém, a imagem só hospeda o infinito por um tempo, nãopara sempre, nem em geral, apenas agora e em particular. Tal imagi-nação produtiva não pode se autonomizar e precisa, continuamente,renovar-se na vida real para não correr o risco de hipostasiar as ima-gens da realidade que são assim produzidas.

A partir daí, compreende-se em que consiste a verdadeiraessência da imagem: ela dá a ver o invisível e o incognoscível, ao

tempo”, isto é, criavam formas”,29 visto que pensamento e poesiaeram parentes próximos, e a produção do Belo não era diferente darevelação do Verdadeiro. O paradoxo que Schiller revela é que essamesma dissociação que caracteriza a modernidade é resultado dacultura e da arte: logo, também existe uma arte que nega a naturezae não apenas uma arte que une a ela. Por isso, trata-se para Schiller“de restabelecer na nossa natureza a totalidade que a arte destruiu,de restaurá-la através de uma arte superior”.30 Esta arte, superior aosartifícios da cultura, é a “bela arte” que reabre, para nós modernos,fontes que permaneceram puras e límpidas, apesar da corrupção dacivilização,31 e que abre novamente um caminho rumo à natureza.Para tanto, o artista deve se preservar das perversões de seu tempo,

deve abandonar ao entendimento a esfera da realidade e a ela oporo ideal, que não é vã quimera, mas, ao contrário, o verdadeiro ser.Aí novamente, o artista deve ser capaz, através da sua imaginaçãoprodutiva, de transcender a experiência: “Quem não se arrisca acimada realidade jamais irá conquistar a verdade”.32

Cabe, no entanto, a Hölderlin reconhecer à imaginação oseu verdadeiro estatuto. Kant acabou por minimizar o seu papel emproveito do entendimento, na segunda edição da Crítica da razão

 pura, publicada em 1787, e no § 57 da Crítica da faculdade de jul-

 gar , onde ele redefine a idéia estética, alinhando-a à idéia racional.Ao afirmar que os dois tipos de idéias possuem o seu princípio narazão, Kant parece desacreditar a primazia que antes reconhecia àimaginação produtiva. Quanto a Schiller, que não chegou a superaro dualismo kantiano da natureza e da liberdade, mas apenas o subs-tituir por um novo dualismo, o da realidade e do ideal, ele procura,

29. Ibid , p. 103 (sexta carta).30. Ibid , p. 119 (sexta carta).31. Ibid , p. 133 (nona carta).32. Ibid , p. 155 (décima carta).

33. Ibid , p. 235 (décima oitava carta).34. Hölderlin. Oeuvre. Paris: Pléiade, Gallimard, 1967, p. 690-691.

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que há de mais elevado”,36 idéia que encontraremos anos mais tardena sua Filosofia da arte, que reúne conferências ministradas entre

1802 e 1805. Para Schelling, como para Hölderlin, a arte e a na-tureza estão numa “oposição harmônica”, aproveitando a expres-são de Hölderlin, pois ambas representam um mesmo processo deprodução, inconsciente na natureza, consciente na arte. O artista nãotem de imitar as produções da natureza, mas sim a atividade criativada natureza: logo, não deve imitar, mas criar. Ora, ao contrário dafilosofia, a arte não supõe uma ruptura com a consciência ordinária:ela se dirige a todos os homens. Entretanto, arte e filosofia têm omesmo objeto, que não é senão o absoluto. Mas a arte o apresentade maneira real, ao passo que a filosofia o aborda de modo ideal.

Assim como em Hölderlin, a imaginação que é a faculdade mestreda arte, pois a imaginação torna imediatamente acessível o que épensado pela filosofia. E, de novo como em Hölderlin, a imaginaçãoé, antes de tudo, a capacidade de dar uma forma real à idéia. Ora,essas formas reais não são senão aquelas dos deuses, pois, comoafirma Schelling, “o que as Idéias são para a filosofia, os deuses sãopara a arte”.37 Essa criação de formas divinas se dá na linguagem,no poema, e o conjunto destes poemas constitui a mitologia, ondeSchelling vê “a condição primeira e a matéria de toda arte”.38 Logo,o acesso ao mundo dos deuses não é propiciado nem pelo enten-dimento, nem pela razão, mas apenas pela imaginação. Mais doque falar em imagem, Schelling prefere falar em “símbolo”, porqueesse termo representa um intermediário entre a ausência de signifi-cação da simples imagem e a pura significação do conceito.39 Logo,para Schelling, toda arte verdadeira é simbólica. O que caracteriza

contrário da imagem-cópia, que é mera imitação parcial e unilateraldo real. É por lidar com a própria essência das coisas que a poesia

fala necessariamente por imagens. As imagens poéticas são, decerto,no sentido forte, imaginações, não fantasias ou ilusões, mas sim acolocação em imagem daquilo que nunca aparece como tal. Por isso,o conceito de imagem (Bild ) – palavra que retorna diversas vezesnos poemas de Hölderlin –, mais ainda que o de metáfora, de sím-bolo ou de alegoria, que todos supõem a re-presentação “figurada” dealgo já dado, no sentido próprio, é capaz de dar conta não apenasdo caráter poético da palavra humana, como também do processoontológico, ele próprio poíesis.

Ora, é na mesma época que se reúne, em torno dos irmãos

Schlegel, o grupo de escritores e filósofos, do qual fazem parte, entreoutros, Novalis e Schelling, que será a origem do lançamento daAthenaeum , revista publicada apenas entre 1708 e 1800, mas quecausará grande impacto na vida intelectual e literária alemã. O pro-jeto global deste romantismo de Iena é, em oposição ao classicismo,não o de imitar, mas de superar a Antiguidade, de operar a síntesedo antigo e do moderno, de acabar com as oposições clássicas e,antes de tudo, com a que opõe, desde Platão, filosofia e poesia, comoexpressa Friedrich Schlegel, em um de seus fragmentos, tambémde 1797, que contém o esboço de todo o programa da Athenaeum :Toda a história da poesia moderna é um comentário, seguido do breve

texto da filosofia: toda arte deve se tornar ciência, e toda ciência se tornar

arte; poesia e filosofia devem ser reunidas.35 Nas suas Lições sobre a arte

e a literatura, de 1801, Augusto Schlegel menciona Kant e Schelling,que acabara de publicaro Sistema do idealismo transcendental , no qualcoloca a arte no topo do seu sistema e afirma que “é para a filosofia o

35. F. Schlegel. Fragment critique 115 , citado por Ph. Lacoue-Labarthe et J.-L. Nancy, L’absolu lit-téraire, Paris: Seuil, 1978, p. 95.

36. F. W. Schelling. Système de l’idéalisme transcendantal , Peters, Bruxelles, 1978, p. 56.37. F. W. Schelling. Philosophie de l’art . Millon, Grenoble, 1999, p. 84.38. Ibid , p. 97.39. Ibid , p. 103.

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que foi matemático e lógico antes de se tornar filósofo, qualqueranálise sistemática da arte. Resta que Husserl, ao menos uma vez,

em uma carta a Hofmannsthal,41 afirmou o estreito parentesco doolhar fenomenológico com o olhar estético. O que une essas atitudes,embora divergentes, já que uma é busca do gozo, quando a outraquer o conhecimento, é a estrita exclusão, que caracteriza ambas, dequalquer posicionamento existencial, quer proceda do intelecto, dosentimento ou da vontade. Pois, insiste Husserl, trata-se para a artede alcançar a “pureza” estética, afastando-se ao máximo da “verdadenatural” e do realismo, bem como se trata para a fenomenologiade questionar qualquer ser e qualquer conhecimento preexistentes,para elucidar o seu sentido imanente. Mas se a epokhè deve ser imple-

mentada para resolver este enigma que é o conhecimento, que semisso permaneceria no mistério da inexplicável concordância do forae do dentro, do espírito e do mundo, e se essa implementação requeruma verdadeira ascese e uma saída progressiva da atitude natural,a arte, pelo contrário, nos a apresenta de saída como já acabada.A obra de arte, decerto, possui essa virtude, de nos “transportar” noestado de abstenção com relação a qualquer posição de existência,até mesmo de nos “coagir” para a exclusão. Pela sua única existên-cia, ela nos arranca da atitude natural e da posição de ser que estacontinuamente acarreta, para nos colocar em presença do puro fenô-meno. O fenômeno puro – a “própria coisa” para a qual a fenome-nologia nos conclama a voltar – não se confunde, de modo algum,com os dados imediatos da preocupação ou com os conteúdos daexperiência prática cotidiana, mas, ao contrário, só se revela na sua“exclusão” ou “neutralização”, e, como ressalta Heidegger no iníciode Sein und Zeit , é mesmo porque os fenômenos não estão dados

o símbolo é que ele faz corpo com aquilo que significa, que é umasignificação rica em imagens, ao contrário da alegoria, que remete

a outra coisa, como o sinal. Ora, a mitologia é a origem da poesiacomo da filosofia, já que a filosofia, enquanto pensamento das idéi-as, supõe, em seu fundamento, as criações da mitologia da qual ex-trai a significação.

Pode-se considerar que esta época, do primeiro roman-tismo, levou a cabo o projeto que esteve na origem de todo o pós-kantismo, ou seja, o cumprimento do platonismo, mas, no entanto,não no sentido pretendido por Fichte e Hegel, isto é, a acessão dafilosofia ao estatuto de ciência e o abandono do seu nome grego desimples amor pelo saber,40 mas com Hölderlin e Schelling, no sen-

tido oposto, de um retorno ao que foi a própria origem do filosofar eda dominação da lógica que ele promoveu: o muthos, e a imaginaçãocriativa que ele implica.

III. Arte e verdade na perspectiva fenomenológica (Husserl, Hei-

degger, Gadamer, Merleau-Ponty)

Enquanto a filosofia ficou exclusivamente regida pelo ideal da cienti-ficidade, como ainda é o caso em Hegel, a arte foi relegada à posiçãosubordinada em relação a esta. Mas tal situação começou a mudar apartir do momento em que coube à filosofia não mais oferecer umaexplicação do mundo, mas apenas “reaprender a vê-lo”, de acordo coma bela fórmula de Merleau-Ponty, no prefácio daFenomenologia da per-

cepção. Por certo, não encontramos no fundador da fenomenologia,

40. Cf. J. G. Fichte, “Sur le concept de la doctrine de la science (1794) ”, in : Essais philosophiqueschoisis (1794-1797). Paris: Vrin, 1984, p. 36: “[a filosofia], se tivesse se tornado uma ciência,abandonaria, não sem motivo, um nome que levou até aqui por modéstia nada excessiva, onome de uma predileção, de um amor por algo, de um diletantismo”; G. W. F. Hegel, Préfaceà la phénoménologie de l’esprit , Paris, Aubier-Montaigne, 1966, p. 21: “Contribuir a aproximar afilosofia da forma da ciência – para que possa remover seu nome de amor do saber e se tornarsaber efetivo – isso é o que me propus”.

41. Ver a carta de Husserl a Hofmannsthal, de 12 de janeiro de 1907, La part de l’œil , “Art etphénoménologie”, n° 7, Bruxelles, 1991, p. 13.

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obra de arte não figurativa, um templo grego,45 o qual não sendo àimagem de nada, simplesmente instala um mundo dentro do qual a

existência humana se torna possível.Mas essa abertura de um mundo é, ao mesmo tempo, o sur-

gimento de uma terra. Heidegger explica que o que distingue a obrado utensílio é que esse último se utiliza do material que o constitui,de modo que ele desaparece na utilidade, ao passo que no caso daobra, o material não desaparece, mas ao contrário se mostra pelaprimeira vez. Ora, o que é assim pro-duzido, no sentido de trazerpara o aberto, não é o que chamamos de “material”, e que necessaria-mente concebemos como aquilo que está na espera de uma forma,mas, ao contrário, aquilo que resiste a qualquer tentativa de pene-

tração e permanece impermeável a qualquer abertura, bem como aqualquer compreensão: a terra enquanto se encerra, por essência,em si mesma.46 A instalação do mundo e a pro-dução da terra sãoinseparáveis uma da outra, bem como a clareira e a ocultação (Lich-

tung und Verbergung ), e o conflito que se trava na obra de arte entremundo e terra depende daquele que tem lugar na essência da ver-dade, entendida não mais como adequação, mas como desvelamento.A arte é assim definida como pôr-se em obra da verdade.47 Mas adiferença entre o conflito do mundo e da terra, enquanto essência daarte, e o conflito original entre clareira e ocultação, enquanto essên-cia da verdade, pressupõe que, ao lado da arte, existam outras manei-ras para a verdade advir. Heidegger cita várias: a instauração do Esta-do, “a proximidade daquilo que não é mais apenas um ente, mas omais ente os entes”, “o sacrifício essencial”, o questionamento dopensamento:48 a arte, a política, o pensamento, o sacrifício, a religião

de início, que precisamos de uma fenomenologia.42 Pois a tarefa dafenomenologia “não é coisa tão trivial, como se bastasse ver, abrir

os olhos”43: ao contrário, trata-se de exercitar  a visão a se ater estrita-mente ao que aparece, sem passagem ao além, sem intuito transcen-dente para o além-mundo da coisa-em-si, que sempre pressupõem,por serem submetidas à dominação do entendimento objetivante, a“teoria” e a “prática”, ao contrário da filosofia e da arte.

Que a arte tem a virtude de nos colocar diretamente emrelação com a verdade, o que a filosofia se dá como tarefa alcan-çar, é o que Heidegger também procurará mostrar na análise queempreende em 1935 e 1936, em várias versões de uma conferênciasobre “A origem da obra de arte”. A concepção heideggeriana da

arte rompe radicalmente com a estética em geral, que entende a artee a beleza de maneira subjetiva, e participa, de acordo com ele, dametafísica moderna da subjetividade. A obra de arte não pode serentendida de maneira metafísica, como a unidade de uma matériasensível e de um significado espiritual. Também não é simples imi-tação de um objeto preexistente, mas sim a revelação de uma ver-dade que permanece oculta no cotidiano, como mostra o exemplodado por Heidegger de um quadro de Van Gogh, representando umpar de sapatos, que faz aparecer, na sua verdade, o duro mundo docamponês que os calçou.44 O que caracteriza a obra de arte e, conse-qüentemente, a distingue radicalmente de uma coisa ou de um sim-ples produto é que ela tem a capacidade de fazer a verdade aparecer.Não se pode mais considerar a arte como uma imitação da natureza,mas ao contrário como aquilo em que o mundo se abre de maneiraprimordial. É o que Heidegger evidencia através do exemplo de uma

42. M. Heidegger. Sein und Zeit . Tübingen: Niemeyer, 1963, p. 36.43. E. Husserl. L’idée de la phénoménologie. Paris: PUF, 1985, p. 114.44. M. Heidegger. “L’origine de l’œuvre d’art”. Chemins qui ne mènent nulle part . Paris: Gal-limard, 1962, p. 33.

45. Ibid , p. 44.46. Ibid , p. 51.47. Ibid , p. 80.48. Chemins., Op. cit., p. 69 (trad. mod.)

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fonético. A idéia diretriz de uma tal concepção metafísica é que oelemento “espiritual” pode ser (re)presentado no elemento material.

A idéia de uma possível (re)presentação do que não é material ousensível não caracteriza apenas a estética do Belo, também está pre-sente na estética do sublime, pelo fato que o sublime ainda é defini-do negativamente, com relação a uma possível apresentação daquiloque não é apresentável (darstellbar ).52 Para Heidegger, todos os tiposde estética são, conseqüentemente, incapazes de compreender oque uma obra de arte realmente é, já que a obra não (re)presentanada, não é nem uma representação de outra coisa, nem a apresen-tação do inapresentável. Ela não tem relação com a presença dada,mas, ao contrário, com o devir ou o advir da verdade, com a vinda à

 presença de todas as coisas. É por isso que Heidegger enfatiza o seucaráter inicial: a obra de arte é um começo (Anfang ), uma instaura-ção (Stiftung ), uma criação (Schaffen).

Encontramos a mesma crítica da estética em Gadamer,que trata de mostrar, na sua obra maior, Verdade e método, publi-cada em 1960, que a experiência artística constitui a experiência deuma verdade que supera fundamentalmente o domínio do conheci-mento metódico, cujo modelo é extraído das ciências da natureza.De acordo com Gadamer, o kantismo é que assinou o declínio datradição humanista, ao reduzir o senso comum e o gosto a uma fun-ção meramente estética e subjetiva e ao desabonar qualquer conhe-cimento teórico além daquele que nos proporcionam as ciências danatureza.53 O cerne da primeira parte de Verdade e método consisteem uma “crítica da abstração da consciência estética”,54 e esse título

– mas não a ciência, que é “sempre a exploração de uma região jáaberta da verdade”49 – são maneiras originais para a verdade advir.

Mas porque a verdade tem de se estabelecer a si própria (sich einrich-ten) dentro do que é, para se tornar verdade – a verdade não existe emsi anteriormente ao seu pôr-se em obra – há na essência da verdadeuma atração em direção à obra, de sorte que a arte é uma possibili-dade insigne para a verdade advir. Há um privilégio relativo da artesobre as demais maneiras, também originais, de a verdade advir.

No fim da versão de 1935 da mesma conferência, Heideggerdeclara que a meditação sobre a arte começou com Platão e Aristó-teles e que desde então “toda teoria da arte e toda estética são sujei-tas a uma notável fatalidade”.50 Por ter sido compreendida, desde o

início, como algo fabricado, a obra de arte sempre foi consideradaquer como alegoria, no sentido em que haveria nela outra coisa (allo

agoreuei) além de um material posto em forma, quer como símbolo,no sentido em que algo teria sido acrescentado (symballei) à coisafabricada.51 Conceber a obra de arte como produto alegórico ou sim-bólico significa compreendê-la como sendo constituída de duas par-tes diferentes: a matéria e a forma, ou a forma sensível e a idéia.À medida que a arte é compreendida dessa forma, ela é definidacomo (re)presentação do supra-sensível no sensível, e a lógica aquiempregada é a da soma. Aliás, na metafísica, o ser humano tam-bém é entendido através do mesmo modelo, como a lma ou espíritoacrescentado a um corpo, e o mesmo ocorre com a linguagem,compreendida como a adjunção de um significado a um material

49. Ibid .50. Cf. M. Heidegger. De l’origine de l’œuvre d’art, première version inédite (1935), texto alemão,inédito e tradução francesa de E. Martineau, Paris, Authentica, 1987, p. 53. Essa publicação nãoobteve o acordo de Klostermann, editora alemã das obras completas de Heidegger e, portanto,não está disponível nas livrarias. Existe um esboço, do mesmo ano, antecedendo a conferênciade novembro de 1935.51. Ibid .

52. O próprio Kant define o sublime pela impossibilidade de a natureza promover uma repre-sentação (Darstellung ) das idéias (Cf. Critique de la faculté de juger , § 29, Observação geral sobrea exposição dos juízos estéticos reflexivos).53. H.-G. Gadamer. Vérité et méthode. Paris : Seuil, 1996, p. 58 (47).54. Ibid , p. 106 (94).

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substituição. Nesta perspectiva, a imagem possui uma autonomiaque recai, por conseqüência, no próprio modelo. Pois é somente

através da imagem que o modelo torna-se  realmente o original.Existe aí um paradoxo: é somente à imagem que o modelo deve o fatode chegar à figuração e, entretanto, a imagem não é senão a mani-festação do modelo. É o que a imagem religiosa, mais ainda do quea imagem profana, valoriza plenamente. Decerto, é somente atravésda palavra ou da imagem que a manifestação do divino toma corpo,ao contrário das imagens dos personagens profanos, por exemplo, aimagem do soberano e a dos heróis. Logo, a significação da imagemreligiosa é exemplar , pois manifesta de maneira incontestável que aimagem não é uma cópia, mas sim que está vinculada, de maneira

ontológica, ao ser que ela leva para a imagem.55

 Parece então que, doponto de vista ontológico, e em oposição à perspectiva subjetivista daestética moderna, a arte está numa relação essencial com o fenôme-no religioso ou cultual. Vemos então que a imagem é um processoontológico que não pode ser compreendido se fizermos dela o objetode uma consciência estética e que somente se esclarece na suaestrutura ontológica a partir do conceito de Darstellung, de represen-tação. E isso também vale, como salienta Gadamer, para as formasde arte que remetem a um modelo determinado, que não são menosimagens verdadeiras, no sentido definido acima. Foi tomando comofio condutor a exigência, interna à obra de arte, da Darstellung, queGadamer foi levado a reabilitar determinadas expressões artísticas,consideradas em posição marginal, na estética moderna, tais comoo retrato, o poema dedicatório e, no teatro, a alusão aos fatos e per-sonagens da época. No retrato, por exemplo, a referência ao modelonão deve ser entendida como re-produção ou re-presentação, mas

deixa nitidamente entender que para Gadamer a criação da estéticaé apenas uma abstração que precisa ser des-construída, no sentido

heideggeriano do termo, a fim de conquistar uma compreensãomais adequada da experiência artística. Dá-se como meta estabele-cer, contra a subjetivação da estética que reina sobre o pensamentomoderno desde Kant, que a arte deve ser pensada como uma mimê-

sis e como uma experiência de reconhecimento da verdade. ParaGadamer, a arte não é reprodução de um real preexistente, mas simDarstellung , apresentação verídica daquilo que é. Ora, é essencial,para vincular arte e verdade, fazer a diferença entre a cópia (Abbild )e a imagem (Bild ). A cópia visa à sua própria eliminação, enquantomera reprodução de um original. Quanto à imagem, ela não é um

meio no intuito de um fim e não se limita a desviar a atenção delamesma para o original. É nesse sentido que Gadamer declara que anão-distinção entre representação e representado permanece comoum traço essencial da experiência da imagem. É mesmo para garan-tir o ser daquilo que nela está representado, que a imagem afirma oseu próprio ser. Logo, a relação entre imagem e original não é maisde mão única, como no caso da cópia, já que só há verdadeiramenteimagem se o original se apresentar “em pessoa” só na imagem .Pois tal apresentação lhe outorga, por assim dizer, um acréscimode ser. Gadamer vê, neste significado ontológico da imagem, o mo-tivo fundamental da recusa, pelos Padres da Igreja, da proibiçãojudaica da representação do divino em imagem: pois, para essa re-cusa, basearam-se na idéia neoplatônica de emanação, que rompeos limites da ontologia grega da substância e fundamenta, sobrea idéia de uma superabundância do emanado que não diminui, oser daquilo de onde emana o status ontológico positivo da imagem,que permitiu o desenvolvimento das artes plásticas no Ocidente.À imagem é então reconhecida a função ontológica de “suplência”,isto é, da representação (Repräsentation)  no sentido de Vertretung, 

55. Vérité et Méthode. Op. cit., p. 161 (147-148). Cf. F. Dastur, “Esthétique et herméneutique selonGadamer”. A la naissance des choses. Op. cit., p. 85 sq.

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sim como primeira apresentação daquilo que não se oferece ao olharcorriqueiro, ou seja, o ser ou a essência do modelo. Aliás, foi nesse

sentido que Heidegger pôde definir a obra de arte como das seiendeSein (o ser ente), na medida em que a arte leva o ser a aparecer noente, que ela é “pôr-se em obra da verdade”.56

É numa estreita proximidade às concepções heideggerianasda arte que permanece Merleau-Ponty quando, no seu último texto, O olho e o espírito, que só seria publicado após o seu falecimento, em1961, procura mostrar que a arte e, em especial a pintura, é a únicaatividade suscetível de nos recolocar sobre o solo do mundo sen-sível, deste mundo da vida do qual a ciência, enquanto pensamentodo objeto em geral, nos afastou desde o início. Somente através

da arte que é possível abrir-se à estranheza das coisas, que só serevela quando escapam de nossa apreensão. O artista experimentaesta inversão dos papéis entre nós e as coisas, o que explica, comoobserva Merleau-Ponty, depois de Valery, o fato de tantos pintoresterem dito que as coisas é que olham para eles.57 É este olhar dascoisas sobre nós que as torna “outras”, que faz com que não possammais se inscrever, a título de instrumentos, no horizonte das nossaspreocupações, nem aparecer como o simples correlato dos nossosobjetivos práticos, e é dessa “alteridade” da coisa, emergindo doobjeto familiar, que o pintor tenta se apossar, obcecado pela súbitae inapreensível proximidade de um mundo não mais submetidoa seus cálculos. Não pinta ele, como proclama André Marchandcitando Merleau-Ponty,58  “para surgir”, “submerso”, “soterrado”interiormente pela potência do visível? É ainda Merleau-Pontyquem diz da visão do pintor que ela é um “nascimento continua-do”,59 e toda a força da análise que Heidegger dedica à obra de arte

vem de que essa não é mais encarada como algo em segundo lugar,com relação às coisas preexistentes reais, mas, ao contrário, como

aquilo que, sozinho, faz um mundo advir: “Tudo aqui é invertido”,escreve Heidegger na primeira versão de A origem da obra de arte, “éo templo, no seu porte, que, pela primeira vez, dá às coisas o rostoatravés do qual se tornarão visíveis, no futuro e, por um tempo, as-sim permanecerão”.60 

Pois a visão “pura” do artista, que só se sacia com o “mundodas aparências” fazendo a economia do “mundo em-si” da crençaingênua, é o “recurso que me é dado de estar ausente de mim mes-mo, de assistir, de dentro, à fissão do Ser” do qual fala Merleau-Ponty.61 De um tal olhar pré-humano, a pintura de Cézanne decerto

proporciona um impressionante vislumbre, por deixar suspensos oshábitos – “humanos, demasiado humanos” – através dos quais enxer-gamos todas as coisas, para revelar “a ordem nascente” da natureza,este “mundo sem familiaridade” que se situa “aquém de qualquerhumanidade constituída”,62 e sobre o fundamento mudo do qual seedificam toda cultura e todo saber regional do ente. Se Cézanne nãopinta nada senão a “deflagração do ser”63 – esta “maravilha entre as

58. Ibid , p. 31. A André Marchand que pensa que “o pintor deve ser trespassado pelo universo enão querer trespassá-lo” (ibid.), reforça Henri Matisse, para quem “o artista incorpora, assimila,por etapas, o mundo externo, até que o objeto que ele está desenhando se torne como uma

parte dele mesmo”, levando-o a esta afirmação: “O desenho é a possessão. A cada traço devecorresponder um outro, que faça contrapeso, da mesma forma que abraçamos, que possuímoscom os dois braços. A vontade de possessão é mais ou menos forte conforme os seres, há quemdeseje brandamente” (op. cit., p. 322). Não se pode descrever melhor esta relação de abraço domundo, da qual fala Merleau-Ponty, nem sugerir melhor o duplo sentido, ativo e passivo, detoda “possessão”.59. Ibid , p. 32.60. M. Heidegger. De l’origine de l’œuvre d’art, Première version (1935). Trad. Emmanuel Martin-eau, Edição bilingüe, Authentica 1987, p. 27.61. M. Merleau-Ponty. L’œil et l’esprit . Paris: Gallimard 1964, p. 81.62. M. Merleau-Ponty. “Le doute de Cézanne”, in : Sens et non-sens. Paris: Nagel, 1966, p. 25 et 28.63. L’œil et l’esprit . Op. cit., p. 65.

56. Cf. M. Heidegger. Introduction à la métaphysique. Paris: PUF, 1958, p. 173.57. M. Merleau-Ponty. L’œil et l’esprit . Paris: Gallimard, 1964, p. 31.

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maravilhas: Que o ente é ”64 – que a filosofia, na sua dimensão com-pletamente original, que a distingue de qualquer ciência positiva,65 

tem como tarefa de pensar, porque estranhar então que o pensadore o artista se juntem na mesma epokhè, na mesma abstenção comrelação à doxa, e compartilhem do mesmo “mundo invertido” que ojovem Hegel reservava ao esoterismo filosófico?66

64. M. Heidegger. “Qu’est-ce que la métaphysique?”, in: Questions I . Paris: Gallimard, 1968, p. 78.65. L’idée de la phénoménologie. Op. cit., p. 48.66. G. W. F. Hegel. L’essence de la critique philosophique (1802). Paris: Vrin, 1986, p. 94-95: “Afilosofia é, por natureza, algo esotérico que não é feito para o vulgar, nem para ser colocado aoalcance do vulgar; só é filosofia na medida em que está precisamente oposta ao entendimentoe, por isso mesmo, mais ainda, ao senso comum humano, sob o qual entendemos a limitaçãono tempo e no espaço de uma raça de homens; com relação a esse senso comum, o mundo dafilosofia é, em si e para si, um mundo invertido” (tradução alterada).

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