Post on 25-Nov-2015
Orelhas
Em Munique, durante a Oktoberfest, o carnaval da cerveja e da
libertinagem na Alemanha, ocorrem trs crimes de morte com todos os sinais
de uma crueldade requintada: as vtimas so mortas a golpes de uma
machadinha de aougueiro e os cadveres literalmente reduzidos a pedaos.
As caractersticas comuns desses crimes fazem a polcia (o inspetor-chefe
Bauer, de Munique) pensar que se trate de um manaco. E no s. As vtimas
apresentam extraordinria semelhana fisionmica a conhecidas
personalidades da era nazista: Goering, Tauber, Himmler. Seria um fantico
judeu caador de nazistas? Seria um indivduo enlouquecido pela dor e pelo
sofrimento nos campos de concentrao e que, muitos anos depois, resolvesse
vingar-se? Com o decorrer dos dias, o inspetor Bauer se v s voltas com um
passado seu que supunha sepultado para sempre, e as lembranas daqueles
dias de insnia, antes e durante a Segunda Guerra Mundial, vm martelar sua
memria e a memria de uma moa israelense de origem alem, srta.
Madeline Kress, que o ajuda na soluo do mistrio.
Muito mais que leitura para entretenimento casual, este novo livro de
Frank De Felitta, autor j bem conhecido pelos seus livros anteriores As
Duas Vidas de Audrey Rose (1980), Por Amor a Audrey Rose (1983), A
Entidade (1980) e Vingana em Alto-Mar (1981) , aponta para problemas
de relacionamento e compreenso entre pessoas de raas diversas, separadas
por um dio que se reflete nos seus menores gestos e atitudes. Toda uma
estrutura moral e mental se assenta com base nesse dio, que as pessoas mais
bem intencionadas procuram desesperadamente suavizar, se no extinguir de
todo. Mas intil. O prprio dio o que mantm viva e atuante a srta.
Madeline Kress, por mais que o inspetor-chefe Bauer busque a sua
compreenso e at mesmo a sua amizade. So as paixes, violentas e
irrefreveis, que conduzem os atos e o modo de pensar das criaturas, das
quais o criminoso apenas um exemplo extremo, correspondente oposto
barbrie que sobre sua raa se abatera.
O livro de De Felitta merece ser lido e meditado. O problema do
preconceito racial, que j produziu tantas guerras e homicdios em massa, no
se esgota evidentemente em algumas palavras e boas intenes. Mas dever
haver um meio para que as atrocidades ainda to recentes e traumatizantes
no se repitam jamais. E o Terror na Oktoberfest de De Felitta pode, quando
nada, manter os olhos abertos para tal problema.
FERNANDO PY
COLEO MESTRES DO HORROR E DA FANTASIA
O PAS DE OUTUBRO - Ray Bradbury
O ENIGMA DO TREM PERDIDO - Sir Arthur Conan Doyle
A LTIMA ESPERANA SOBRE A TERRA - Richard Matheson
O RETRATO DE DORIAN GRAY - Oscar Wilde
FOBIA - Thomas Luke
SOMBRAS DA NOITE - Stephen King
O PASSA-PAREDES - Marcel Aym
A ASSOMBRAO DA CASA DA COLINA - Shirley Jackson
A CASA DAS BRUXAS - H. P. Lovecraft
AS MQUINAS DO PRAZER - Ray Bradbury
POR AMOR A AUDREY ROSE - Frank De Felitta
A ILHA DO DR. MOREAU - H. G. Wells
CHRISTINE - Stephen King
O ALIMENTO DOS DEUSES - H. G. Wells
Frank De Felitta
TERROR NA OKTOBERFEST
Traduo
Luiz Horcio da Matta
Francisco Alves
1973 by Frank De Felitta
Ttulo original: Oktoberfest
Reviso tipogrfica: Umberto Figueiredo Pinto e
Ana Maria Caldeira
Impresso no Brasil
Printed in Brazil
1984
Todos os direitos desta traduo reservados :
Livraria FRANCISCO ALVES EDITORA S.A.
Rua Sete de Setembro, 177 - Centro
20050 - Rio de Janeiro - RJ
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Digitalizao, Reviso, Formatao e restaurao capa(s)
Luis Antonio Vergara Rojas
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minha esposa
Os personagens deste livro so inteiramente fictcios,
inclusive os que desempenham funes pblicas, tais
como: funcionrios da Prefeitura de Munique e membros
de seu Departamento de Polcia, bem como todos os
funcionrios mencionados tanto no Tombeau de Martyr
Juif Inconnu, em Paris, e no Yad Vashem, em Israel. Toda
e qualquer semelhana com pessoas reais, vivas ou
mortas, mera coincidncia.
AGRADECIMENTOS
Desejo expressar minha gratido ao Sr. Steven Weiner, ao
Professor Irwin R. Blacker, ao Sr. e Sra. Ben Schanzer, ao Sr.
Gene Lesser, ao Sr. Tini Seldes e minha editora, Srta.
Diane Cleaver, pela confiana, estmulo e auxlio na
elaborao deste livro.
"Raa maldita, fazendo das suas outra vez!
Quantas vezes j provamos, fora de dvida,
Que fantasma algum pode agir normalmente?
Mesmo assim, vocs ousam danar como mortais!"
GOETHE (Fausto/Noite de Walpurgis)
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MUNIQUE:
O Primeiro Dia da Oktoberfest
Captulo 1
No outono, os cus da Baviera se tornam de um azul
profundo e as rvores que se debruam sobre as estradas
ficam vermelhas e douradas. A nvoa cobre as encostas
alpinas. Um vento frio sobe pelas colinas verdes e
arredondadas, os campos amarelos de feno e as pequenas
aldeias brancas, brilhantes e compactas. Em Munique, as
torres de cobre brilham ao sol. a poca da Oktoberfest.
Abaixo das fachadas renascentistas e torrees em estilo
rococ, seis milhes de pessoas se acotovelam nas ruas,
comprando, bebendo e danando. Durante dezesseis dias,
perdem-se nos desfiles, no lcool e no rudo da comemorao,
at tombarem exaustas, com os olhos vermelhos; os
forasteiros comeam a partir e pequenos flocos de neve
comeam a cair no alto das montanhas. Ento, os habitantes
de Munique se levantam, limpam as ruas e voltam aos cafs
bomios na Schwabing ou ao alumnio dos escritrios das
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companhias de seguro ao longo da Maxburgerstrasse, e
aguardam pacientes os feriados de Natal.
Quando Ludwig da Baviera se casou com Therese von
Saxe-Hildburghausen, os camponeses e habitantes da cidade
comemoraram com uma corrida de cavalos e um piquenique.
Depois disso, passou a existir uma festa anual em outubro.
Vagasse Ludwig atualmente em esprito pela Campina Therese
ao final das festividades, passando sob a roda-gigante e por
entre os pavilhes de venda de cerveja, entrando nas tendas
onde homens e mulheres dormem embriagados, incapazes de
se lembrarem onde moram, talvez percebesse que os bvaros
no mudaram tanto em cento e cinqenta anos. Todavia, se
perambulasse pelo recinto da feira, veria edifcios de cromo
que se erguem inexplicavelmente onde antes existiam os
chafarizes e ptios que ele construiu e saberia que Munique
mudou muito aps 150 Oktoberfests. Na verdade, a Alemanha
inteira se alterou.
A nvoa matinal levantava-se nas encostas das montanhas
e se juntava nos vales. Dizem que as prprias montanhas
exalam esse ar vaporoso e o sol, penetrando a nvoa com raios
compridos, incide nas florestas e riachos que j existiam
desde o incio do mundo. Das profundezas de seu abrigo de
folhagens, a Virgem Maria, toscamente entalhada em madeira,
pintada de vermelho e azul, olha desinteressadamente a cena
campestre l embaixo. Equipamentos agrcolas verdes e
vermelhos movimentam-se afanosamente sobre os campos
frteis. Casas modernas, com paredes de chapas metlicas,
dominam as colinas. E serpenteando atravs dos bosques, com
os grandes portes de ferro enferrujados mas funcionando, a
muralha cinzenta do Sanatrio Brautnacht vigia os vales
adjacentes.
O homem estava sentado numa cadeira de jardim de ferro
batido. Os olhos escuros e profundos encaravam a brilhante
nvoa de outono. Encontrava-se na mesma posio em que a
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enfermeira o colocara. O sol mudara de posio, mas a cabea
do homem no se movera. As mos, grandes e fortes, pendiam
ao longo do corpo. Um lbum de fotografias desbotadas estava
aberto em seu colo. Em volta, os belos pssaros cantavam nas
rvores.
Ali perto, no gramado, estava deitado um menino que se
contorcia. Os punhos tinham sido atados com uma tira de
couro, de modo a no poderem alcanar a boca. O menino
desejava desesperadamente comer as prprias mos.
Debatendo-se para se libertar, rolou para a terra sob as
roseiras.
Uma enfermeira saiu rapidamente de um prdio de
concreto, o rosto plido, os lbios se contorcendo embora
fechados. Abaixou-se e puxou o menino do cho, apertando-
lhe a clavcula. Lentamente, a boca frentica se abriu e a
enfermeira, custa de tapas, tirou a terra que nela havia. O
menino s parou de balbuciar quando a enfermeira o largou.
Abaixou-se outra vez at o nvel das roseiras. A enfermeira o
observou severamente durante um prolongado tempo antes de
partir. Sorrindo, com lgrimas nos olhos, o menino rastejou
rapidamente pelo gramado, os braos estendidos frente,
parando finalmente para explorar os fungos brancos na base
de uma rvore.
Nenhum som tocara o homem sentado na cadeira de ferro
batido. Entretanto uma veia azul em seu dedo pulsava
depressa. Ocasionalmente, os pssaros voavam ou saltitavam
no gramado; os olhos do homem, muito abertos e vagos,
registravam as idas e vindas das aves como uma cmera sem
filme.
Ento uma ave pousou em seu chinelo, beliscou o couro e,
extravagantemente, puxou do forro um comprido fio de feltro.
A sombra do p do homem, espiou com ateno para todos os
lados antes de saltitar de volta para a luz do sol. De repente
um vulto cinzento atravessou velozmente o gramado,
golpeando com a pata. O gato ergueu a pata e examinou
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meticulosamente a ave estonteada. O sangue comeou a
aparecer nas penas e na pata. O pssaro piou
desesperadamente. O gato olhou em volta, pegou a ave na
boca e carregou-a depressa para baixo da cadeira do homem.
A mo do homem tremia. Os pios da ave no cessavam,
embora ela certamente estivesse sendo devorada. Pingos de
perspirao brotaram na testa do homem. A veia em sua
tmpora passou a pulsar em ritmo com os sons emitidos pelo
pssaro moribundo embaixo da cadeira. De repente, sua mo
agarrou o lbum num gesto espasmdico e ele se empertigou
na cadeira, arrancando do lbum uma nica fotografia. Os
pios da ave aumentaram e, ento, cessaram bruscamente. O
homem ficou em p, trmulo, as veias intumescidas, os olhos
ainda esbugalhados e fixos, mas agora alerta e cheios de um
medo animalesco. Vagarosamente, ergueu a foto at o nvel
dos olhos, fitando-a at que ela se tornou um borro diante
dele. Ento, amarrotou-a nos dedos.
A enfermeira espiou pela janela do prdio de concreto.
Franzindo as plpebras por detrs dos culos, movimentou os
lbios numa expresso de alarme e ficou imvel. A cadeira de
ferro batido estava vazia, silhuetada contra o brilho do cu. O
homem sumira. Ela saiu cautelosamente do prdio.
O menino atado com a tira de couro rastejava na orla do
gramado. Ningum mais estava vista. S os pssaros. Uma
brisa ocasional fazia a grama ondular. A enfermeira olhou em
volta, os olhos examinando a orla distante e escura do recinto
murado. Ento ela voltou ao prdio principal.
Por detrs dela, o rosto nervoso do Dr. Gunther
Kaufmann, diretor do Sanatrio Brautnacht, surgiu no
corredor, lanando um rpido olhar por cima do ombro da
enfermeira.
Ele sumiu murmurou ela.
No sei. No pode ter ido longe. Vou procur-lo.
Sim, v procur-lo ordenou o Dr. Kaufmann.
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Procurando em vo um leno para enxugar a testa, o Dr.
Kaufmann encostou-se pesadamente parede spera e
comeou a pensar depressa em determinadas complicaes
jurdicas.
Bandas com bons e casacos pretos percorriam a cidade
velha, atravessando Munique a caminho da Campina Therese.
Carroas de cerveja puxadas por cavalos enfeitados de azul e
prateado rodavam pelo recinto da feira. Mulheres idosas em
trajes tiroleses jogavam flores nos cocheiros. Sob os toldos
dos teatros e barracas de mgicos, famlias de japoneses,
americanos e trabalhadores iugoslavos perambulavam tirando
fotografias. Enormes bales com rtulos de cervejas pairavam
sobre a multido. Entre as barracas de venda de cerveja,
arqueiros armados com bestas atiravam no veado de papelo
colocado na extremidade da alameda central. Mulheres de
bustos volumosos corriam por entre as mesas dos pavilhes
de cerveja, suando, tentando atender ao insistente clamor dos
steins batidos nas mesas por alemes que gritavam. Novas
bandas substituam as bandas exaustas e logo a multido, j
no se sentindo estrangeira, estava de p sobre bancos e
mesas, de braos dados, berrando canes dos beberres
alemes.
Parecendo surgir do ar brilhante, avanando com
dificuldade pelas velhas estradas rurais, dois poderosos
cavalos de tiro puxavam uma carroa de barris de cerveja
vazios e cinco alemes embriagados. Os cavalos avanavam
devagar pelo aclive, afastando-se das estranhas casas
modernas que pontilhavam as colinas como plantas exticas
ao sol, deixando para trs os jardins e o carnaval que
fervilhava na Campina Therese.
O cocheiro usava um traje de origem indecifrvel, de seda
e botes de lato, o nariz pintado de vermelho. A tinta se
derretera de ambos os lados, descendo-lhe at a boca. No
peito da tnica, distintivos que significavam o nmero de
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litros de cerveja de duplo teor alcolico que ele consumira
tilintavam a cada sacolejo da carroa.
Na carroa, apoiado nos barris de cerveja, nas tbuas e
nas flores, um homem em traje negro da Baviera estava
deitado no colo de duas mulheres. A cada sacudidela o brao
de algum se apoiava no corpo de outra pessoa. Piscando para
clarear a viso, o homem se ergueu gradativamente e afastou
os cabelos da testa.
Meu Deus! comentou ele, rindo. Vejam aquele
idiota correr. Deve estar treinando.
Um homem grandalho, de cala e camisa azuis, corria
descalo pelo campo de feno, de cabea baixa, atravessando a
estrada em direo ao bosque que cobria uma colina situada
nos subrbios setentrionais de Munique.
Ao penetrar no denso bosque, este lhe pareceu familiar,
mas no acolhedor. Os ramos e folhagens batiam-lhe no rosto,
rasgavam-lhe a roupa, feriam-lhe a pele das mos. Afinal, ele
parou, ofegante. A cidade surgiu na orla do bosque,
espalhando-se pela encosta abaixo, pardacenta, Confluindo no
centro, onde os ngremes telhados verdes ajuntavam-se como
dentes e as fachadas crists brilhavam elegantemente ao sol.
Temeroso, confuso, o homem comeou a descer
cuidadosamente pelas valas de escoamento de guas pluviais,
atravessando depressa as linhas de trem e as pontes,
avanando paulatinamente, sem ser visto, pelos subrbios de
Munique.
Brigavam por causa de comida. Dois meninos se
esmurravam furiosamente, o sangue escorrendo de um dente
lascado. Agarraram-se, e quando um deles conseguiu livrar-se,
golpeou o outro com toda a sua fora.
Karl! Karl! berrou uma mulher, debruando-se da
janela de um apartamento no andar de cima, o busto suspenso
sobre o peitoril de concreto. Pare com isso! Largue ele!
Desapareceu da janela.
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Um dos meninos, livrando-se, esmurrou com fora a
cabea do outro. Ambos caram ao cho.
Karl! Levante-se!
A mulher veio correndo atravs do canteiro de obras do
novo prdio. Separou os dois meninos.
Largue ele! berrou.
Ele me roubou gritou o outro menino.
Roubou! Meu filho no ladro! Voc roubou! Seu
prussiano! retrucou a mulher, pegando o brao do filho e
puxando-o para um lado. V para casa! bradou para o
outro menino. Suma daqui!
Ele roubou insistiu o outro garoto. Duas mas e
uma pra. Elas sumiram.
A mulher passou por ele, empurrando-o.
Voc as perdeu, estpido!
Caminhou com o filho atravs do terreno escavado, em
direo ao prdio de apartamentos.
Nunca confie nessa gente advertiu.
O homem observava tudo atravs de uma abertura de
ventilao. Sem achar graa ou excitar-se, espiou por uma
brecha na parede de um poro abandonado. A briga ocorrera
em seu campo visual, de modo que fora registrada. Ele se
recostou numa parede.
Era um abrigo feito de tijolos desmantelados, de vigas
que haviam cado diagonalmente e agora sustentavam um
tosco teto de concreto quebrado e vergalhes. Escombros por
todos os lados: tijolos, pedaos de fios e madeira, tiras de
papel de parede. O homem esticou lentamente as pernas,
tentando no perturbar o precrio equilbrio do teto. Caiu p
sobre seus ombros.
Da abertura de ventilao no havia local do terreno que
no pudesse ser visto. Mas no existia sada rpida; s o lento
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desembaraar-se do teto em runas. Era um perigo. Ele
aguardaria o anoitecer. Ento, tudo ficaria escuro. Ningum o
veria. Ele poderia sair. Em algum lugar, os pingos de um
encanamento furado ecoavam entre os escombros.
O homem estremeceu. Mordeu a pra. Engoliu avidamente
e depois comeou a comer as duas mas que tinha na outra
mo.
A torre da catedral bateu quinze para as oito. Barulho de
farra vinha dos pavilhes e barracas de diverses da Campina
Therese; todavia a parte velha da cidade estava silenciosa. A
escurido do velho mercado mal era penetrada pela luz dos
postes da Munique moderna. Uma velha caminhava depressa
pelas ruas caladas de pedra. Um gato permanecia sentado na
soleira de uma porta, imvel, observando. A praa, limitada
por macias paredes de pedra e pelas sombras que
dominavam as transversais estreitas, estava deserta.
Num pequeno aougue, Wolfgang Heder batia bifes com o
olho de sua machadinha de aougueiro. Heder era um homem
enorme, de bochechas rosadas, e mantinha seu queixo triplo
escrupulosamente escanhoado. Faltavam sete minutos para a
hora de fechar o aougue e ele trabalhava metodicamente,
arrumando os bifes sobre um pano e os enfeitando com folhas
de verdura e hortel. Heder franziu os pequenos lbios
vermelhos num sorriso desprovido de humor. Era um aougue
caro, s para os fregueses mais ricos.
As luzes da rua penetravam palidamente pelas vidraas da
loja. Heder trabalhou na geladeira de ao inoxidvel,
brilhantemente iluminada, e a porta automtica se fechou
silenciosamente. Heder pendurou as peas de carne nos
ganchos e limpou-as com o avental. Escutou o som abafado da
sineta da porta indicar que algum entrara na loja. Franziu a
testa, arrependido de no haver trancado a porta da frente.
Um fregus a essa hora significaria um atraso de pelo menos
quinze minutos em sua chegada ao pavilho e daria a Olga,
sua esposa, uma desculpa legitima para ficar irritada.
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Resmungando baixinho, Heder contou as caixas de verdura
arrumadas nas prateleiras inferiores. Ento acionou o fecho
interno da porta da geladeira e a empurrou.
Heder ficou imvel. Bem acima de sua cabea, refletindo a
luz, estava sua machadinha de aougueiro, empunhada por
duas mos com tanta fora que os ns dos dedos se
mostravam esbranquiados. Antes que ele se movesse, as
mos golpearam com a machadinha. A lmina o rachou,
penetrando na orelha e maxilar, e sangue vermelho jorrou com
abundncia entre pedaos de osso. Heder, os olhos dilatados,
caiu para trs no estrado de madeira que forrava o piso da
geladeira. A machadinha tornou a subir e a descer. Quando
terminou, Heder jazia banhado em seu prprio sangue, com
uma velha fotografia amarrotada enfiada na boca.
Todas as lojas estavam fechadas. Um arlequim solitrio
atravessava o velho mercado a caminho de casa. As luzes
azuis e verdes do carro da polcia giravam em frente ao
aougue. Um guarda uniformizado mantinha distncia um
grupo de curiosos. L dentro, o cadver de Heder era
meticulosa e cautelosamente examinado. Um fotgrafo da
polcia, firmando os ps em frente porta da geladeira, tirava
fotografias com uma mquina com flash. Todas as superfcies
de metal, vidro e madeira eram examinadas em busca de
impresses digitais. Num canto da loja, o Inspetor Paul
Steinmann segurava um copo de gua mineral para uma
mulher idosa sentada numa cadeira.
Por que a senhora entrou na geladeira? indagou
Steinmann.
No sei.
No um procedimento normal.
No sei o que me fez entrar l a mulher comeou a
chorar. Eu no o vi em lugar nenhum da loja.
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De modo, que foi procur-lo na geladeira?
Quisera Deus que eu no tivesse ido!
A velha fez o sinal-da-cruz com mo trmula.
O mdico-legista Karl-Heinz Fischer saiu da geladeira e
pediu uma maca. Suando, parou porta e enxugou a testa com
um leno branco. Plido, sacudiu negativamente a cabea para
Steinmann. O motorista da ambulncia e o ajudante trouxeram
a maca. Fischer tornou a entrar na geladeira.
O Inspetor-Chefe Martin Bauer estava de p junto ao
balco, estudando a fotografia sem toc-la. Magro, a linha dos
cabelos apenas comeando a recuar para o alto da testa, as
feies toscas contradas numa expresso intrigada. Parecia
haver algo familiar na fotografia amarrotada e mida extrada
da boca da vtima, embora ele no conseguisse definir o que
era.
Steinmann puxou delicadamente o casaco da velha.
Responda-me, por favor, Frau Knoedler disse ele. A
senhora comprava freqentemente aqui?
Sim. Esta noite eu me atrasei. Ele costuma fechar s
oito horas.
Entendo. E a senhora chegou aqui depois das oito?
Sim.
Mora aqui perto, Frau Knoedler? No? Ento ser acom-
panhada at sua casa.
Steinmann fez sinal para um guarda uniformizado.
Entretanto talvez desejemos conversar outra vez com a
senhora amanh de manh. Muito obrigado. Cumpriu seu
dever cvico.
Steinmann fechou a caderneta de anotaes e foi juntar-se
ao seu superior junto ao balco. Os olhos de Martin Bauer
fitaram sua aproximao sem o ver, a mente ainda ocupada
nos limites da recordao. Steinmann pigarreou.
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Bem, creio que terminamos disse ele.
Desculpe-me replicou Bauer, arrancado de seu
devaneio, Sorriu. Ela culpada ou inocente?
No fao a menor idia. Sabe, com os preos que ele
cobrava, eu no a culparia se ela o matasse.
Bauer riu. Voltou fotografia. Esquecendo-se de
Steinmann, franziu os lbios ao examin-la detidamente.
Fischer j terminou o exame?
Bauer, distrado outra vez, respondeu:
Creio que no.
Steinmann olhou para a fotografia sobre o balco.
isso a?
Sim.
Est vendo algum conhecido? perguntou Steinmann
tom um sorriso.
Bauer ergueu os olhos.
Isso que engraado, Paul. Tenho a estranha
sensao de que vejo. D uma olhada.
J foi periciada?
Sim. Tinha impresses digitais.
Steinmann debruou-se para estudar a foto. Era uma
estao ferroviria. Um grupo de homens e mulheres esperava
em fila. Fazia frio, pois usavam casacos e luvas. No havia
neve no cho. Nem letreiros visveis. Aparentemente, a foto
era antiga, a julgar pelo estilo das roupas e pelo aspecto
desbotado da imagem em preto e branco.
E da? quis saber Steinmann.
Ela no lhe diz nada?
No disse Steinmann, tirando um fiapo da gola do
casaco. No foi tirada ontem. Pessoas numa estao... o que
significa para voc?
Bauer sacudiu a cabea.
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O Dr. Fischer saiu da geladeira. Ainda suando bastante,
andou at Steinmann e Bauer perto do balco.
Imaginem, suar numa geladeira. No vejo algo assim
desde os tempos de faculdade. Importam-se se eu for respirar
um pouco de ar fresco?
Comearam a andar juntos em direo porta.
Quem tinha raiva dele fez um servio completo disse
o legista. Praticamente partiu-o em pedaos...
provavelmente com um machado... e depois o pendurou num
gancho como uma pea de carne.
Est faltando uma machadinha de aougueiro infor-
mou Steinmann.
Fischer esfregou a nuca. Olharam para o ar frio da noite
enquanto a multido de curiosos, ainda fantasiados e de
rostos vermelhos, os encarava quase ansiosamente.
Bem, ento foi a arma do crime. Acham que foi obra de
um nico homem? perguntou Fischer.
Voc tem uma opinio a respeito? retrucou
Steinmann.
Fischer recuperara a compostura no ar frio de outono.
Ele tinha que ser muito forte. Heder pesava bem mais
que cem quilos respondeu ele, voltando-se em seguida para
Bauer. Farei o relatrio e o verei amanh de manh,
Inspetor.
Amanh de manh, voc ver Steinmann disse Bauer.
Partirei para Kitzbuhel esta noite.
Kitzbuhel repetiu Fischer. Eu no sabia que voc era
alpinista.
E no sou.
Ainda cedo demais para esquiar.
Eu sei.
Steinmann riu.
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Existem outras... atividades em Kitzbuhel. No
mesmo, Martin?
Bauer ficou vermelho e no fez comentrios. Elementos da
multido de curiosos j se encaminhavam de volta s zonas
mais iluminadas de Munique. Outros haviam ficado sbrios ao
se darem conta do que ocorrera. As portas da ambulncia
foram abertas.
Bem disse Fischer , eu diria que seu senso de opor-
tunidade perfeito. Oktoberfest e um assassinato macabro.
Uma tima ocasio para ir a Kitzbuhel.
Atrs deles, no interior do aougue, o auxiliar da
ambulncia enfiou a cabea para fora da geladeira.
Ei, voc a! chamou ele. Pode me arranjar algum
para dar uma ajuda aqui? O cara mais gordo que Hermann
Goering!
Os olhos de Bauer Se apertaram repentinamente. Ele
tentou mais uma vez agarrar-se idia que de sbito lhe
voltava lembrana, quase ao alcance de sua percepo. E
novamente a voz de Steinmann desfez a oportunidade.
Koenig, v ajud-los ordenou Steinmann, pousando a
mo no ombro de Bauer. Venha. Vamos buscar suas coisas e
eu o levarei estao.
Obrigado.
Voc est pensando em algo disse Steinmann. O
que , desta vez: Kitzbuhel ou a fotografia?
Antes que Bauer pudesse responder, Steinmann virou-se
para Koenig, que levantava uma extremidade da pesada maca
com o cadver de Heder:
Koenig, traga a fotografia para a Chefatura.
importante para o Inspetor Bauer.
Sim, senhor replicou Koenig.
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Koenig, o motorista da ambulncia e o ajudante
carregaram lentamente o volumoso cadver atravs da loja.
Steinmann e Bauer fitaram o corpo.
Cubra o rosto dele com um pano mandou Steinmann.
Koenig abriu caminho por entre os curiosos, o enorme
cadver foi colocado no interior da ambulncia e as portas se
fecharam. A ambulncia forou uma passagem entre o povo e
seguiu pela praa calada de lajes, tomando uma avenida larga
e bem-iluminada. Os curiosos se dispersaram. Fischer tornou
seu carro e foi para casa. Steinmann sorriu.
Se nos apressarmos, teremos tempo para um copo de
cerveja antes da partida do trem.
Se eu me apressar, mal terei tempo de arrumar a mala
replicou Bauer.
O carro azul e branco da policia freou ruidosamente em
frente ao prdio de apartamentos que dava para o escuro Isar.
Vou subir para ajud-lo disse Steinmann.
Venha.
Bauer abriu a porta do carro e saltou.
Ou devo esperar aqui?
Espere.
Prefiro subir.
A mala meio arrumada estava aberta em cima da cama
bem-feita.
Passe-me isso, est bem? pediu Bauer, apontando
para um isqueiro lindamente trabalhado que estava junto ao
cotovelo de Steinmann.
Steinmann examinou o objeto por um instante antes de
entreg-lo a Bauer.
O braso de Bismarck comentou, impressionado.
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Ganhei-o na escola. H muitos anos disse Bauer,
jogando o isqueiro dentro da mala cheia de suteres e calas,
todas da melhor qualidade. Num concurso de tiro.
Sim disse Steinmann. Voc acende o cigarro de
uma garota com ele e ela percebe logo que se trata de um
homem especial.
As luzes noturnas l fora pareciam girar no interior do
quarto. Ento Bauer se deu conta de que um automvel que
passava na rua l embaixo estava dobrando a esquina. Por
algum motivo, aquilo o desorientou. Mas a escurido voltou a
reinar, dando a impresso de reconfort-lo.
O que h de errado, Martin?
Nada. Onde esto minhas meias?
Bauer atravessou o quarto, abriu a gaveta da cmoda de
madeira escura e remexeu o interior. Steinmann observou-o da
sala de visitas. Bauer parecia desusadamente magro e
cansado, uma silhueta no interior do quarto.
Algo o preocupa, Martin disse Steinmann. o
crime?
Bauer sorriu ao regressar sala.
Escassez de cerveja respondeu.
Bem, nisso eu acredito.
Bauer lanou um olhar passagem no bolso do peito.
Steinmann seguiu-o at a porta, carregando a mala. Bauer deu
uma rpida olhada pelo pequeno apartamento e apagou a luz.
Por um instante, tudo foi vcuo. Ento seus olhos se
adaptaram ao escuro e os mveis de metal e vidro nos
aposentos, como em tantos aposentos idnticos em toda a
Alemanha, deram a impresso de piscar para ele, simples,
funcionais, estreis. Sob todos os aspectos, o apartamento era
um reflexo da essncia de sua vida, refletiu Bauer; a soma e a
substncia de seus quarenta e sete anos de existncia. Fechou
a porta atrs de si e trancou as duas fechaduras.
26
Caras de palhaos surgiram instantaneamente luz dos
faris e desapareceram com igual rapidez. O carro teve que
desviar para no os atropelar. Um carnaval para o estmago,
pensou Bauer com desagrado duas semanas de ataque ao
crebro e aos intestinos, incompreensvel...
O carro tornou a desviar-se, quase derrapando.
Perdo, senhor disse Steinmann, olhando para Bauer
de seu assento ao volante.
Por qu? O que h de errado?
Quase atropelei aquele msico.
Nem percebi.
Bauer olhou para trs. Um homem gordo, de colete e
chapu pretos, segurava sua tuba numa atitude defensiva.
Brandiu um punho em direo ao carro que se afastava
velozmente, praguejando em altos brados contra eles.
Isso o despertar riu-se Bauer.
Steinmann soltou uma risadinha. O panorama passava
depressa. As casas velhas, as paredes em mau estado,
pintadas de novo, lanavam sombras negras como a morte nas
ruas estreitas. Bauer, que nunca se casar, relembrou os
tempos de juventude, quando todas as ruas daquele tipo o
atraam como a cano de uma sereia distante, excitando
estranhamente sua fantasia masculina...
O carro passava velozmente pela multido barulhenta.
Rostos Verdes e cor de carne surgiam brevemente s luzes
noturnas do centro da cidade. Para Bauer, eram repulsivos. Ou
ser que ele via neles algo de si mesmo que lhe causava
repulsa? Bauer comeou a ansiar pelo abrigo alpino como por
um retiro religioso. De algum modo, sentia-se necessitado de
purificao. Pessoas se apinhavam nas praas, saiam correndo
da Opera; carnavalescos riam e cantavam nas escadarias dos
grandes prdios de pedra.
27
As multides aumentavam em toda parte; os botes,
lantejoulas e bordados brilhavam nas fantasias. Steinmann
freou com um gemido de pneus nos fundos da estao
rodoviria. Ali, Bauer teve a desconfortvel sensao de
afogar-se num oceano de rostos. Ento movimentou-se e
saltou do carro. Algum atirou uma garrafa em meio
algazarra infernal e o vidro se espatifou em cacos contra uma
parede distante, brilhando no ar da noite. Steinmann cutucou
Bauer e sorriu.
Uma tima noite! comentou.
28
Captulo 2
O barulho era espantoso. Todas as linhas da estao
ferroviria de Munique descarregavam hordas de passageiros.
Homens de negcios e estudantes, operrios, freiras e...
turistas... estrangeiros atravessavam em bandos as enormes
portas de vidro, formavam filas nos guichs de informaes. e
cmbio, acotovelavam-se nos bares e entravam nas filas de
espera de txis, passando s ruas feericamente iluminadas de
Munique.
Abrindo caminho contra a mar humana, Bauer e
Steinmann avanaram lentamente, enfrentando cotovelos e
carrinhos de bagagem, austracos e suos, em direo
primeira plataforma da segunda linha. Ali, aguardaram
pacientemente. sua frente estavam grupos de excursionistas
idosos, munidos de mochilas e bastes, tambm esperando
com pacincia. Era impossvel conversar naquele barulho.
Bauer sentia uma excitao inebriante, como se mesmo ali
milhares de indivduos se mesclassem numa nica massa
festiva. Steinmann deu-lhe uma palmada no ombro. No alto, os
letreiros brancos se alteraram. L na curva, bem devagar,
surgiu o trem eltrico para a ustria, penetrando sob a imensa
cpula de vidro.
O trem parou diante deles. Steinmann abriu a porta e
pegou a mala de Bauer. Seguiram pelo corredor at a primeira
cabine iluminada e abriram a porta. L dentro, uma jovem
bonita, de cabelos escuros, estava sentada no banco lendo
29
uma revista. Bauer cumprimentou-a com um aceno de cabea
ao colocar a mala no cho e tornou a sair para o corredor.
Nada m, Martin sussurrou Steinmann.
Nada m, mesmo.
Voc sabe o que dizem: durante a Oktoberfest no
existe uma s garota que no...
Sim, eu sei.
Bem, divirta-se.
Steinmann apertou a mo de Bauer, sorriu e piscou um
olho. Com um aceno de mo, afastou-se pelo corredor e
desceu do trem, misturando-se multido alvoroada. Bauer
entrou na cabine e fechou a porta. A jovem ergueu a cabea
com um olhar frio e desdenhoso.
Bauer sentou-se em frente a ela, junto janela, ajeitando
meticulosamente o vinco das calas pretas. Olhou pela janela
e, pela primeira vez, sentiu-se isolado e seguro da multido
tumultuada que se acotovelava ao longo da plataforma da
estao. Suspirou com algo que se assemelhava a
contentamento e virou-se para estudar a jovem.
Era morena, com ar travesso, faces rosadas e um nariz
petulante e arrebitado. Era bastante segura de si mesma,
as pernas longas com meias pretas, cruzadas uma sobre a
outra. Usava um casaco aberto de tweed, tendo por baixo
um fino suter branco. O corpo esbelto parecia acariciar
preguiosamente o assento. Era de origem bvara, uma
linda mistura de raas. Bauer tirou do bolso a cigarreira de
prata.
Fraulein? ofereceu ele.
Ela no deu sinal de ouvi-lo. Bauer pegou um cigarro,
tornou a guardar a cigarreira e, pouco vontade, correu os
olhos pela cabine. Era um vago antigo, datando da poca da
guerra, com uma prateleira de bagagens de madeira em vez de
alumnio, um aquecedor que no funcionava e antiquadas
30
almofadas de plstico verde. O trem deu um solavanco e
comeou a sair lentamente da estao. Bauer recostou-se no
assento e olhou pela janela.
Os escuros prdios quadrados de tijolos passavam pela
janela e Bauer pde ver, alm dos shoppingcenters, o brilho do
recinto da feira na orla da cidade. Vrias igrejas passaram,
depois uma zona escura da cidade. O trem diminuiu a
velocidade. Parou num emaranhado de desvios e pontes. Bauer
fechou os olhos. Tentou pensar nas folhas de outono, nas
encostas e nos lagos nas cercanias de Kitzbuhel.
Foi despertado por um rudo. Ainda estavam nos desvios.
Levantou-se rigidamente para consultar o relgio. Havia uma
atividade crescente no ptio de manobras. Bauer limpou a
vidraa e olhou para a escurido.
Vages de carga iluminados por holofotes montados em
postes telefnicos estavam sendo abertos. O gado
desembarcava em confuso para a plataforma e depois descia
as rampas, sendo agrupado por homens munidos de aguilhes
eltricos. Mugidos de protesto enchiam o ar, chegando at
onde Bauer espiava pela janela do trem. Os olhos dele se
apertaram. O gado era tangido pelas rampas, umas reses
pisando nas outras, entrando em passagens de arame farpado
ou cercas de madeira. Bauer arregalou os olhos e sentou-se
atordoadamente no banco.
Meu Deus disse ele.
Tinha a testa coberta de gotas de suor. A jovem o
observou detidamente, apreensiva. Ele agarrou a mala na
prateleira e saiu correndo pela porta da cabine. No final do
corredor, abriu a pesada porta de maaneta de bronze e jogou
a mala para fora do trem. A composio comeava a avanar
mais uma vez, devagar, saindo do espao iluminado. Ento,
Bauer saltou.
O relgio no alto da Odeonplatz marcava onze e quinze.
Sob a luz dos postes arqueados, rapazes e velhas esquivavam-
31
se dos bondes, voltando para casa. Bandeiras e faixas azuis e
brancas espalhavam-se pelo pavimento. Um soldado francs
encostou-se num poste, com vmitos. E durante todo o tempo,
policiais cansados mas solcitos guiavam a multido para fora
da praa, em direo s ruas estreitas e aos hotis e bairros
residenciais.
Um carro da polcia parou diante do Palcio da Justia.
Steinmann e o guarda Koenig saltaram rapidamente, galgaram
a escadaria e entraram no enorme prdio ornamentado de
esculturas.
O comprido corredor estava escuro a no ser pela luz que
jorrava de trs portas de vidro fosco, Steinmann e Koenig
andaram depressa, seus passos ecoando com um som oco.
Steinmann ergueu a mo em sinal de silncio e os dois
pararam diante do primeiro escritrio, escutando.
Mais uma vez, Frau Heder disse uma voz precisa e
montona. A senhora no se dava bem com seu marido?
Isso no significa que eu o matei respondeu Frau
Heder numa voz aptica, quase agressiva.
Ele estava a par de seu relacionamento com esse
sujeito, Nagle?
Claro que no. No sou estpida.
Era sua inteno divorciar-se dele e se casar com
Nagle?
No.
Steinmann abriu vagarosamente a porta. Frau Heder
estava sentada sob uma nica lmpada pendente do teto. Olga
Heder era uma mulher robusta, atraente, de meia-idade. Fora
do crculo de luz, a silhueta do homem que a interrogava.
Depois que a senhora e Nagle mataram seu marido, o
que fizeram da machadinha?
Eu no o matei.
Quer dizer que seu amante, Nagle, o matou?
32
No fao idia. melhor perguntar a ele.
Steinmann fechou silenciosamente a porta.
Ela um osso duro de roer disse Steinmann. Refletiu
por um momento. Oua, Koenig. Fique aqui, por enquanto.
Se houver alguma novidade, avise-me. Estarei na outra sala de
interrogatrio.
Steinmann afastou-se tranqilamente pelo corredor. Parou
na luz difusa que saa pela porta de vidro fosco. Tornou a
escutar com ateno as duas vozes que vinham do outro lado
da porta.
... eu no o matei.
Voc era amante da mulher dele.
Sim, mas... no mataria por isso... O que pensa que
sou?
Voc um homem lgico, Nagle disse Steinmann ao
abrir a porta e entrar na sala.
O gabinete era uma rplica exata do primeiro, s que
Nagle, em vez de Frau Heder, estava sentado diante de uma
mesa sob a lmpada suspensa. Nagle, um homem magro,
retorcia nervosamente a gravata com os dedos e ergueu a
cabea, amedrontado, para fitar Steinmann de p a seu lado.
Eis o que voc : um homem lgico continuou
Steinmann. Havia a mulher e o dinheiro de Heder. Voc
precisava de ambos... e o nico meio de consegui-los era
matar o marido. Voc fez o que tinha que fazer, simples e
logicamente.
Nagle sacudiu a cabea.
No... no gaguejou ele.
Sim, Nagle disse Steinmann suave, insistentemente.
E, fez um bom servio, alis. Viu o resultado de seu
trabalho?
Nagle encarou Steinmann, calado.
33
D-me as fotografias de Heder disse Steinmann ao
homem no outro lado da mesa.
Esto com o Inspetor Bauer.
Steinmann fez uma pausa.
Bauer?
Sim... Ele as levou para seu escritrio.
O Inspetor Bauer est em seu escritrio?
Sim, senhor. Neste minuto.
Steinmann refletiu por um momento, mas no conseguiu
entender.
Prossiga disse ele.
E se encaminhou para porta.
Uma voz seca e montona recomeou:
Mais uma vez, Nagle. Depois que matou Heder, o que
fez da machadinha?
Antes de poder escutar a resposta, Steinmann fechou a
porta. Olhou ao longo do corredor. Na extremidade, a luz que
saa por uma porta incidia sobre o cho de ladrilho. Steinmann
se aproximou e ouviu atravs da porta de vidro fosco a voz de
seu superior, Martin Bauer.
de Ludwigsburg? Telefonista? O qu? Oh, timo. Sim.
Al... Dr. Rucker... Sinto incomod-lo, Dr. Rucker, mas seu
nome me foi indicado pelo Inspetor Roedecker, de Bonn... Sim,
Roedecker.
Steinmann abriu a porta suavemente. A fotografia da
estao ferroviria, alisada e limpa, estava sobre um canto da
mesa. Steinmann terminou de abrir a porta e observou Bauer
ao telefone.
No, Dr. Rucker. Meu nome Bauer. Sou da Policia de
Munique.
Bauer notou a presena de Steinmann e fez sinal com a
mo para ele ficar em silncio.
34
Sinto muito, Dr. Rucker, mas no consigo escut-lo...
Sim, um pouco mais alto, por favor.
Steinmann se aproximou da mesa. Sobre ela estavam foto-
grafias de Heder depois de morto e algumas tiradas antes de
sua morte, a maioria do rosto.
Est muito melhor, Dr. Rucker... Disseram-me que sua
agncia possui arquivos referentes aos crimes nazistas.
verdade? timo. Estou particularmente interessado em provas
fotogrficas relacionadas com os campos de concentrao.
Steinmann acomodou-se lentamente numa cadeira,
olhando para Bauer.
No. Fotos. Fotografias dos campos, tiradas no inicio
da dcada de 40 disse Bauer, erguendo ligeiramente as
sobrancelhas. Lacunas? Entendo. Onde eu poderia encontrar
tais fotografias? Bauer anotou rapidamente o endereo.
Sim... sim... Rue Geoffrey, 17... L'Asnier, Paris 4. Sim, j
anotei... muito obrigado. Muito obrigado, Dr. Rucker.
Bauer baixou vagarosamente o fone, o rosto toldado por
reflexes. Aps um longo silncio, Steinmann pigarreou.
Julguei que o tivesse deixado num trem para Kitzbuhel
comentou baixinho.
Saltei no ptio de manobras na periferia da cidade.
Bauer levantou-se e pegou a fotografia que tinham tirado
da boca de Heder.
De repente, tudo se tornou claro para mim a respeito
desta foto. Ainda no sei exatamente o que significa, mas...
Os olhos de Bauer estavam excitados, apertados pelo
esforo de raciocinar. Rodeou a mesa e entregou a fotografia a
Steinmann.
So judeus, Paul disse ele. Esto num campo de
concentrao. Veja-as. Esto esperando. Confusos. A foto d
essa sensao.
Steinmann continuou sentado, imvel.
35
No compreende? prosseguiu Bauer. Lembro-me
dessas cenas. Voc tem que acreditar em mim. A fotografia d
essa sensao.
Steinmann olhou para a foto durante longo tempo.
Depois, largou-a em cima da mesa. Tirou um fiapo imaginrio
da cala.
E dai? indagou, afinal. Essa fotografia lhe lembra
alguma coisa. Do passado, talvez. Isso motivo para saltar de
um trem e voltar correndo para c?
Ela no me lembra, Paul. A foto de um campo de con-
centrao. Essas pessoas so judeus.
No acredito.
Bauer entregou a Steinmann uma antiga foto de Wolfgang
Heder.
Reconhece-o? perguntou Bauer.
Claro. Wolfgang Heder, a vtima.
Ele lhe lembra alguma outra pessoa?
No. Deveria lembrar?
Ele lembrou ao ajudante da ambulncia... Hermann
Goering.
Steinmann estudou detidamente a foto.
E eu concordo disse Bauer.
Uma certa exploso de riso escapou dos lbios de
Steinmann.
Ora francamente...
Por que no? Uma fotografia de um campo de
concentrao. Uma vtima parecida com Goering. Creio que
isso resulta em alguma coisa.
Martin, voc...
A porta se abriu repentinamente e Koenig enfiou a para
dentro da sala.
36
Inspetor disse ele, alvoroado. Nagle acusou Frau
Heder do crime... e ela est pronta para confessar...!
Steinmann largou a fotografia de Heder em cima da mesa.
Martin disse ele sorrindo , v para Kitzbuhel.
Escale uma montanha.
Frau Heder ria e chorava histericamente, em acessos
alternados. Bauer, Steinmann, Koenig, o interrogador e dois
guardas uniformizados a rodeavam. O interrogador segurava
diante dela um documento datilografado.
O que diz ele?! riu Frau Heder. Eu matei meu marido
e o levantei todos aqueles cento e trinta quilos num
gancho? Um toque de pavor se insinuou em seu riso. Vo-
cs acreditam? Acreditam realmente nas mentiras dele?
No inteiramente disse Steinmann. Estamos
dispostos a escutar sua verso do caso.
Frau Heder atirou a confisso no cho, levantou-se e
gritou:
No existe verso!
De repente, sua voz sumiu. Ela olhou em volta para os ho-
mens que a encaravam e, numa splica, a compostura
totalmente desfeita, sussurrou para eles num tom de urgncia:
No existe verso! No entendem que ele diria qualquer
coisa para salvar a prpria vida? Ele matou meu marido, foi
ele... por causa do dinheiro... e agora tenta envolver-me...!
Frau Heder explodiu em lgrimas e deixou-se cair
lentamente na cadeira.
No compreendem?
E chorou.
As sombras projetadas pela lmpada suspensa
permaneceram imveis. Ento Steinmann movimentou a
cabea quase imperceptivelmente na direo de Koenig.
37
V buscar caf murmurou.
Era impossvel decifrar a expresso de Bauer. Seu olhar
fixava a mulher que chorava diante da mesa. Steinmann
pegou-o pelo brao.
Pela manh, teremos a confisso dela disse em voz
baixa.
Steinmann abriu a porta e ambos saram para o corredor
escuro e empoeirado.
Venha disse Steinmann. Vou lev-lo de volta
estao.
No h outros trens para Kitzbuhel esta noite.
Bem sorriu Steinmann , se estiver disposto, preciso
de seu auxlio num projeto muito especial.
Na sala, no interior do crculo de luz, Koenig segurou um
copo de papel diante de Frau Heder, que soluava com a
cabea nos braos enquanto os outros homens retornavam
suas posies e esperavam pacientemente que ela recuperasse
a compostura. Steinmann fechou a porta de mansinho.
38
MUNIQUE:
O Segundo Dia da Oktoberfest
Captulo 3
A vizinhana estava s escuras. As folhas de outono eram
sopradas lentamente ao longo das caladas. Uma sensao de
nvoa iminente se insinuava por entre as rvores. Um
Mercedes azul dobrou a esquina oposta. Martin Bauer estava
sentado em seu apartamento, descortinando a cidade,
margem do escuro Isar, imerso em pensamentos.
A fotografia, a semelhana do aougueiro com Hermann
Goering uma coincidncia de eventos. Por causa dela, Bauer
pulara de um trem, correra de volta e fizera papel de tolo. Se
tivesse tanta certeza, poderia ter passado um telegrama de
Kitzbuhel. Bauer sabia que seu intelecto, um instrumento raro
e delicado, falhara. O prprio instinto tambm falhara, aps
anos de servio? Bauer precisava saber, mas agora estava
cansado demais para continuar pensando.
Shhh! sussurrou Steinmann. Martin est dormindo.
E eu tambm respondeu uma voz de mulher.
No, no est replicou Steinmann com uma
risadnha. Voc est de porre.
39
Estou dormindo ela balbuciou.
Bauer abriu os olhos. No sof em frente a ele uma mulher
loura, com o rosto delicadamente marcado pela fadiga, estava
deitada sobre o chapu e o casaco de Bauer. Suas pernas
compridas, sem meias, pendiam do brao do sof. Ela roncava
baixinho. A seus ps, no cho, copos de usque e pratos de
sanduches.
Steinmann estava parado porta, nu, recostado no alisar.
Lampejos de luz refletida por uma estatueta de porcelana
danavam no peito dele. Um brilho vago produzido por uma
lmpada na travessa escura entrava pelas cortinas da janela,
delineando-lhe o corpo magro e musculoso.
Steinmann olhou para o sof.
Ei, Marlene disse ele. Acorde.
Mmmmm...
Todos esto acordados, menos voc insistiu
Steinmann.
V dormir murmurou Marlene.
Steinmann sorriu outra vez e piscou o olho para Bauer.
Uma boa pequena comentou, erguendo a mo num
gesto de apreciao.
Sim. Uma criatura maravilhosa.
Steinmann observou seu superior atravs da sala. Bauer
escovava os cabelos ralos para trs. Depois, procurou os
sapatos. Bauer pensava demais, refletiu Steinmann, tentando
adivinhar se reflexo era resultado ou coisa do
envelhecimento. Riu repentinamente.
Um dia desses, convidaremos Koenig para um de
nossos projetos.
Bauer apertou o nariz com o polegar e o indicador,
comprimindo a veia, tentando clarear o crebro. Marlene, a
bebida e todos os acontecimentos da noite tinham-no
40
embotado e, depois, sensibilizado. Seus pensamentos corriam
contra a vontade. Surgiam lembranas e imagens,
apresentando-se diante dele sem nada significarem.
No pense no assunto disse Steinmann, sentando-se
no sof, cobrindo-se com o casaco de Bauer e acariciando a
perna de Marlene. Voc cometeu um engano. O mundo
inteiro no sabe disso.
No costumo saltar de trens.
Esquea.
No ajo impulsivamente, no mesmo?
No.
Bauer sacudiu a cabea.
No compreendo.
Steinmann derramou um pouco de usque no gelo que
restava num dos copos no cho.
Tome disse ele. Usque americano. Deixe a cerveja
para os camponeses.
Est bem.
Steinmann serviu-se da bebida. Beberam em silncio. Uma
buzina soou na vizinhana silenciosa e, em seguida, vozes
roucas gritaram na rua. Um automvel arrancou com um
gemido de pneus.
A Oktoberfest me amedronta disse Steinmann.
Piora a cada ano.
Sempre foi uma poca ruim.
Eles matam, roubam, vo para a cama com a mulher
dos outros. terrvel. So animais.
J foi pior.
As folhas roavam na janela e uma nvoa fria penetrou
livremente na sala. Bauer segurava na mo uma meia preta.
Steinmann ficou satisfeito por distrair o esprito de Bauer.
41
Se estiver frio para voc, posso fechar a janela
sugeriu Steinmann.
Bauer aquiesceu com a cabea e estremeceu. Lembrou-se
de que no perodo antes do restabelecimento da Oktoberfest
Os homens estremeciam ao seu redor. Fazia um frio fora de
poca. Munique exalava um hlito gelado. Todas as rvores,
com as folhas verdes cobertas de geada, estendiam-se em
grandes arcos ao longo do centro e da periferia da cidade. Os
grandes trens avanavam lentamente sobre trilhos
escorregadios.
porque os habitantes de Munique nunca foram civili-
zados. No fundo, ainda esto na Idade Mdia ecoou a voz de
Steinmann, fazendo fundo para os pensamentos de Bauer.
Bauer lembrou-se de que, na ocasio, os soldados
trmulos deitavam-se em caixas de madeira, envoltos em
trapos e jornais. Bauer evitava olhar para o sofrimento nos
olhos deles, preferindo observar a neve brilhante ao sol da
manh. Com um grande sopro de vapor, um trem chegou
vagarosamente ao ptio de manobras improvisado.
Os americanos esto chegando? perguntou Bauer.
Como vou saber? replicou o soldado a seu lado.
Bauer o reconhecera de anos passados. Tinham cursado
juntos a Academia de Polcia. Agora, o outro tentava limpar a
geada do rosto. Enfiou mais jornais nas botas.
Claro que esto chegando. O que pensou voc que
eles no viriam?
Na terra, os pinheiros de Natal sacudiam sua carga de
neve. Os vages de carga entravam em desvios no outro lado
do ptio de manobras. O hlito animal dos homens mais
prximos transformava-se em vapor atravs do couro e dos
cachecis de l. Homens e ces perambulavam por ali. Ento
as bombas caram, destroando os vages de carga. Entulho,
madeira, relgios e postes de sinalizao, todas as entranhas
de Munique expostas pelas exploses. Os homens tombavam
42
sobre as pilhas de escombros, e a neve fina como p erguia-se
alegremente por toda parte.
Cabo disse Bauer.
O que ?
Veja.
O cabo olhou com dificuldade para a poeira de neve que
se levantava. Um brao cara da pilha de madeira e canos,
rolando com a mo crispada, descendo lentamente at os
trilhos. Civis e soldados afastavam-se vagarosamente dos
destroos. Ningum parecia demonstrar qualquer emoo.
Limitavam-se a andar, flexionando as mos para aquec-las e
para se certificarem de que a vida ainda flua dentro delas.
Bauer calou a outra meia.
O qu? perguntou ele, dando-se conta de que
Steinmann fizera alguma pergunta ou comentrio e ele no
escutara.
Steinmann sacudiu a cabea e se levantou. Espreguiou o
corpo esguio, caminhou at a janela e olhou para a noite l
fora. As folhas coloridas se tornavam midas medida que a
vizinhana era coberta por uma densa nvoa. A gua gotejava
irregularmente das rvores. Acima das silhuetas escuras das
casas, os letreiros vermelhos dos cafs da Schwabing
brilhavam na escurido. Steinmann refletiu quanto era linda a
noite de outono, com Marlene e usque americano, margem
do usar escuro em Munique.
Bauer se levantou e foi juntar-se a Steinmann na janela.
Sabe, Paul, houve um tempo em que eles atiravam uns
contra os outros nas ruas. Depois da guerra, montei guarda
nos trilhos da ferrovia. Atirvamos em vrios saqueadores
todos os dias.
Voc pensa demais disse Steinmann. um mau
costume.
43
Bauer sorriu.
Esquea disse Steinmann. Beba. Viva. Oktoberfest.
Um leve ronco partiu do casaco no sof. Marlene virou-se
desconfortavelmente, os braos procurando cobrir os olhos,
tentando dormir luz irreal que vinha da Schwabing.
Os dedos de nevoeiro apertaram-se sobre a vizinhana. A
atividade amainou e logo as pedras do calamento brilhavam
sozinhas sob as lmpadas de rua que pendiam dos fios
estendidos entre as rvores. Comeou a cair uma chuva fina.
Nos conjuntos habitacionais, os alemes orientais, trazidos
aos milhares depois da guerra, tambm comemoravam a
Oktoberfest, mas reservadamente. E agora, sendo
predominantemente operrios, dormiam pesadamente por
detrs das janelas sem cortinas. Um velho veio caminhando
rapidamente pelas ruelas, com barba crescida, ombros
encurvados. Os sinos da torre da Frauenkirche soaram a hora.
O velho apertou o passo, cortando caminho por um canteiro
de obras, passando pelos fundos da padaria e se
encaminhando para os conjuntos habitacionais.
Ernst Frisch estava atrasado. A coleta de lixo era de
madrugada. Certa vez, haviam-no apanhado com uma garrafa
de gim no bolso, dormindo no poro. Se o pegassem atrasado,
ele teria que viver nas ruas, como um rato. Firsch sabia que os
alemes orientais nasciam e morriam prussianos. Assumiam
paulatinamente o controle dos vizinhos, a exemplo dos
judeus. Frisch, natural da Baviera, j estava reduzido a
manter-lhes as fornalhas em funcionamento. Sentiu-se melhor
ao descer os degraus do poro e fechar a porta atrs de si.
Aos 53 anos de idade, Frisch adquiria uma profunda des-
confiana da maioria das coisas. S pedra e ao lhe davam
qualquer sensao de confiana. Trabalhando com percia,
rolou os barris de cinzas para a carrocinha de madeira e, de
costas, tornou a sair para a noite. As rodas sacolejavam nos
44
degraus de pedra, ecoando ruidosamente. Um repentino
movimento do vento revelou uma lmpada de rua que parecia
observ-lo por detrs das folhagens. Ele no fazia idia da
hora. Apressou-se em subir a escada.
Frisch no tinha a inteno de comemorar a Oktoberfest
nos pavilhes ou em qualquer outro lugar, pois as multides
enchiam-no de estranha ansiedade. Ainda assim, notou que os
alemes orientais que dormiam em fileiras acima de sua
cabea tinham festejado. Agora, ele era o nico acordado e
trabalhando. Barulhentamente, rolou os barris da carrocinha e
os colocou junto grade de ferro.
Frisch tornou a descer ao poro, pegou uma p e acendeu
a luz. Fechou a porta.
A fornalha era grande e escura, iluminada apenas por uma
nica lmpada nua pendente do teto. As sombras se
movimentavam na parede. A fornalha era feita de tijolos, com
trs tubos de ventilao embaixo e grades nos lados e em
cima. A cpula curva era recoberta com uma substncia
alcatroada e telhas, alm de tijolos, e a boca formava uma
espcie de lbio, dobrado para baixo de modo a facilitar a
remoo das cinzas, com uma p, para um balde metlico.
Frisch assoou ruidosamente o nariz e piscou os olhos ao fitar
o brilho ainda quente no interior da fornalha.
Pequenos montes e pilhas de cinzas brilhavam em tons
iridescentes de vermelho e negro, sugerindo formas ainda
conservadas. Frisch empunhou a p e escorregou-a por entre
as cinzas macias e desprovidas de resistncia. As pilhas se
desfizeram sobre a p. O metal raspou no cimento. Frisch
depositou as cinzas no balde. No percebeu que a porta fora
aberta. Continuou a transferir a cinza para os baldes.
Ento um vulto saltou sobre ele. A princpio Frisch julgou
que fossem os prussianos. Teve ento uma sensao terrvel e
compreendeu que ia ser morto. Escorregou no prprio sangue
e caiu no cho, emitindo um grito agudo, alto, feminino. Um
lquido quente o sufocou. Ele tateou o cho. Alguma coisa
45
tornou a golpe-lo e Frisch se desintegrou numa escurido
sinistra e horrvel.
A fornalha se tornou fria e mida. Poas escuras e
circulares de gua da chuva se formaram no cho do poro.
Perto das vigas de madeira junto porta, tentculos de sangue
se estenderam com a gua. O sangue permaneceu na
superfcie, coagulado. O corpo queimado e mutilado de Ernst
Frisch jazia sob um cobertor.
Arranjem-me uma toalha disse Fischer.
Bauer estava em p, desconfortvel, fitando os crculos de
vermelho e preto que se infiltravam atravs do cobertor. O Dr.
Fischer se ajoelhara ao lado do cadver encolhido, afastando o
cobertor. A gua da chuva encharcara-lhe os ombros do casaco
preto, manchando as lapelas.
Foi um instrumento pesado disse Fischer. Muito
afiado.
L em cima, nos apartamentos, operrios ainda no
vestidos e mulheres envelhecidas trajando roupes
observavam a polcia trabalhar l embaixo. Tinham rostos
plidos e inexpressivos como as janelas do prdio. O nevoeiro
se infiltrava por entre as rvores, trazendo um estranho
cheiro de carvo e alcatro. Um gato parou no asfalto
brilhante da travessa, uma pata erguida.
Foi uma machadinha de aougueiro, no foi? disse
Bauer.
Sim. Creio que sim.
Portanto, foi o mesmo homem.
Bauer nada mais disse. Ento estremeceu e ajeitou melhor
o casaco nos ombros.
Cortes mltiplos das artrias... fraturas completas...
tecido cerebral... dizia o Dr. Fischer em voz baixa. Koenig,
atrs de Bauer, anotava tudo numa caderneta de capa preta.
46
... laceraes acima do olho direito... separao das
vrtebras...
Bauer saiu para a escada. Limpou o nariz com um leno,
branco. O vento soprava gua da travessa para os degraus.
Steinmann, com uma gravata que no combinava com a roupa
por causa da pressa com que se vestira, observava Bauer.
Bem disse Bauer , duvido muito que Nagle tenha
fugido da cadeia durante a noite para fazer isto.
Steinmann ficou vermelho.
E duvido que Frau Heder tenha bandos de capangas
solta para matar faxineiros idosos continuou Bauer raivosa-
mente. Parece-me que conseguimos uma confisso intil.
Os policiais estavam reunidos em semicrculo diante da
porta do poro. S a gua da chuva fazia barulho, escorrendo
depressa dos patamares superiores e correndo ao longo das
grades de ferro. Os homens sentiam frio no interior das
botas e seus hlitos se transformavam em leve vapor.
Pareciam aguardar alguma coisa. Bauer olhou para o canteiro
de obras no lado oposto da travessa, a imensa grua amarela
imvel, fustigada pelo nevoeiro que agora se transformava
em chuva.
Quem o encontrou? quis saber ele em voz mais
baixa.
Os lixeiros disse Steinmann.
Interrogue-os. Descubra tudo a respeito de Frisch.
Vasculhe seu passado... suas tendncias polticas durante a
Guerra. Entendeu?
Sim, senhor disse Steinmann.
Ajeitou o sobretudo em volta das pernas e, encolhendo-se
contra a chuva, subiu depressa os degraus at o nvel da rua.
Koenig.
Senhor?
47
Interrogue os moradores do prdio. Descubra quem no
quer falar com voc. Verifique onde morava o velho. E se ele
trabalhava para a Prefeitura, deve haver uma fotografia sua
em algum lugar. Eu a quero.
Koenig colocou o bon fonado de plstico na grande
cabea bovina e assentiu. Subiu os degraus em direo aos
apartamentos. Bauer refletiu um momento. Fez sinal com a
cabea para que o fotgrafo comeasse a trabalhar. Em
seguida subiu para o nvel da rua.
Martin.
Sim?
O Dr. Fischer juntou-se a Bauer, calando os dedos limpos
em luvas de couro forradas de pele.
Voc deve saber que o agressor era muito forte.
O que quer dizer com isso?
Tivemos que arrancar o cadver do interior da
fornalha. Normalmente, ele no caberia l dentro.
Bauer empalideceu.
O que est acontecendo? Que tipo de animal esse?
Fischer sacudiu a cabea.
Algum sempre enlouquece nesta poca do ano
replicou ele. Acontece.
Era um pobre velho. Conheo o tipo. Vivia sozinho, sem
amigos, sem dinheiro; jogava cartas uma vez por ms. No h
motivos para matar um homem como ele.
Duvido muito que o motivo tenha relao com o caso
declarou Fischer.
O chuvisco frio dava a impresso de cair em mil e um
buracos e esconderijos escuros no canteiro de obras, bem
como entre os arbustos e travessas. Atravs dos subrbios, a
caminho do trabalho ou dos pavilhes de cerveja, uma dzia
48
de suspeitos andava circunspectamente fora do alcance da luz
verde que girava na capota dos carros da polcia.
Bauer ergueu a mo enluvada. No interior do grande
veculo azul, o motorista da ambulncia acordou o ajudante e
ambos desembarcaram, usando impermeveis amarelos e
carregando uma maca dobrvel. Bauer observou-os descer a
escada do poro.
No gosto disso, Karl disse ele. No gosto da apa-
rncia nem da sensao.
Fischer e Bauer ajeitaram os sobretudos e embarcaram no
carro da patrulha. Fecharam as porta. Um grupo de escolares
portando colagens feitas com folhas de outonos se aproximou,
pulando as poas d'gua. O carro da patrulha partiu ao longo
da comprida rua de asfalto brilhante, em direo ao centro da
cidade, as luzes verdes girando, impotentes, no dia cinzento e
embaado.
49
PARIS:
Terceiro Dia da Oktoberfest
Captulo 4
A chuva acompanhou Bauer at Paris.
L, ele olhou pela janela de seu quarto de hotel e viu o
trfego fluindo pelos bulevares. As velhas que vendiam flores
nas esquinas escondiam-se em seus abrigos. A umidade
enevoada parecia brotar das caladas.
Nos quarteires de edifcios de pedra, homens de camisa
branca olhavam desconsoladamente de suas bancas de frutas.
Africanos atravessavam as ruas correndo, os casacos
pendurados nos ombros. Todas as cores pareciam escuras e
sem brilho. Por detrs de tudo, erguiam-se as paredes verdes
da igreja em estilo franco.
O crebro do Inspetor-Chefe, porm, estava ocupado com
dois assassinatos brutais. Sentado na beirada da cama, ele
acendeu a lmpada da mesinha-de-cabeceira. Trs fotografias
estavam enfileiradas em cima da cama. Wolfgang Heder, a
estao ferroviria com o grupo que aguardava, e agora uma
velha foto de Ernst Frisch, o faxineiro morto.
Bauer examinou-as pela ltima vez e guardou-as no bolso
interno do palet. Levantou-se e vestiu o casaco.
50
Mirou-se no espelho. Escovou para trs os cabelos ralos.
Tinha a aparncia de um homem de relevo pblico. Todavia os
lbios carnudos e sensveis, bem como os olhos escuros e fun-
dos, traam a existncia de um homem mais suave em seu
interior. Recuou e examinou-se luz fraca do quarto de hotel.
Tinha que tomar cuidado, muito cuidado, com o que estava
fazendo. Ento, saiu de mansinho e desceu rapidamente a
escada acarpetada.
Vamos Rue Geoffrey, 17 disse ele ao motorista do
txi.
O txi percorreu velozmente a cidade, levantando gua do
calamento das ruas. Colunas, cafs e gua que escorria nas
sarjetas passavam com rapidez pelo campo de viso de Bauer,
que observava as paredes frias e verdes das igrejas.
Monsieur novo em Paris?
Mas o Inspetor-Chefe nem escutou. No ouvia nada. Seus
dedos tamborilavam nervosamente na perna da cala e ele
apalpou cuidadosamente as fotos que trazia no bolso.
Chegamos, Monsieur. o Velho Bairro Judeu.
Bauer desembarcou. Era um mausolu. Uma edificao
quadrada s margens do lamacento Sena engrossado pela
chuva. Em Memria do Mrtir Judeu Desconhecido, dizia a
inscrio em francs. Na parede da frente tambm havia
inscries em ingls e hebraico.
A chuva aumentou. Um cilindro de bronze no ptio uma
urna funerria brilhava de gua, fustigada pela chuva. O
vasto mausolu branco e acachapado estendia-se por quatro
andares abaixo do solo. Um comprido corredor levava aos
locais escuros do subsolo.
Bauer hesitou. Ento, com o vento soprando suas costas,
desceu cripta.
Uma jovem ergueu a cabea.
Bem-vindo ao Monumento da Lembrana disse ela.
51
Bauer meneou a cabea, pingando gua do rosto e das
roupas. Seguiu a jovem, tencionando falar-lhe, mas ela o
conduziu ao interior do edifcio.
Existem seis arcas embutidas nas paredes disse ela
em voz baixa. Dentro delas esto livros nos quais foram
registrados milhares de nomes.
A jovem parou e aguardou que Bauer refletisse sobre
aquilo. Manteve-se nas sombras. Bauer observou-a por um
instante. Quando ele estava prestes a falar, ela disse:
A cripta no formato da Estrela de David contm as
cinzas de vtimas dos principais campos de concentrao e da
Rebelio do Gueto de Varsvia.
Bauer parou um momento diante da enorme estrela negra
no cho. Uma luz suave iluminava as paredes e o teto. O
silncio era mortal.
Olhe... veja se existe sofrimento como o meu leu a
jovem.
Bauer fitou-a vagarosamente, estudando os olhos escuros
e os cabelos da jovem judia.
isto que est escrito em hebraico disse ela
baixinho, olhando a inscrio na parede.
Os olhos de Bauer se dirigiram legenda hebraica gravada
acima da estrela negra. Comeou a sentir-se decididamente
pouco vontade. Aproximou-se da jovem e sua voz ecoou
estranhamente no mausolu escuro ao indagar:
Perdo. Onde fica o Centro de Documentao Judaica?
A jovem fez uma pausa momentnea e virou-se devagar,
dando as costas cripta que continha as cinzas.
O senhor ter que subir disse ela ao chegar
novamente porta. Sorriu, compreensiva. Pergunte por
Isaac Schneer.
Sim, eu sei disse Bauer. Muito obrigado.
52
s suas ordens replicou ela, pegando seu livro sobre
a mesa. A paz esteja com o senhor.
Bauer balanou desajeitadamente a cabea e subiu
depressa a escada. L em cima, entrou em outro vasto salo,
iluminado suavemente por luminrias fluorescentes
quadradas embutidas no teto. Estava deserto. Bauer caminhou
lentamente pelo salo, observando as paredes que pareciam
observ-lo tambm.
Ol.
Bauer virou-se. Um homem idoso o fitava de uma pequena
porta. Tinha uma testa saliente e uma pequena deformidade
nas costas. Sorria para Bauer, que se aproximou dele.
Dr. Schneer?
Sim.
Bauer tirou do bolso duas cartas de apresentao.
Sou o Inspetor-Chefe Martin Bauer, do Departamento de
Polcia de Munique.
Deu ao Dr. Schneer tempo para examinar os documentos,
mas o velho se limitou a fit-lo diretamente, com ar agradvel.
Creio que poder ajudar-me disse Bauer.
Certamente. De certo modo, posso. Sente-se, por favor.
O Dr. Schneer foi at uma cafeteira escondida entre livros
encadernados com anis metlicos e pastas amarradas com
fitas marrom-escuro.
Quer tomar caf? Recebemos to poucos visitantes. E
quando eles aparecem, sempre est chovendo riu o Dr.
Schneer. Por favor, coloque seu casaco em cima do
aquecedor.
Bauer sentou-se diante da mesa de trabalho.
53
Muito bem, ento disse Schneer. Antes de tudo,
falemos alemo, est bem? Ser mais fcil para ambos.
O alemo de Schneer era impecvel, embora com um leve
sotaque, como se ele o tivesse aprendido numa universidade.
O velho se sentou, limpando as manchas de caf no tampo da
escrivaninha de madeira. Ergeu os olhos para Bauer.
Preciso perguntar-lhe, Inspetor Bauer, se o senhor
representa seu governo.
No. Oficialmente, estou de licena.
Oh?
Um caso... me interessou pessoalmente.
O olhar de Schneer atenuou-se ligeiramente por detrs das
grossas lentes.
O senhor procura algum? Um amigo, talvez?
No. No se trata disso.
Duvido que esteja tentando localizar um parente.
Dr. Schneer, eu quis apenas dizer que estou
profundamente envolvido no caso.
Entendo.
Bauer teve a impresso de que os olhos azuis assumiram
uma expresso mais dura. No obstante, o Dr. Schneer
continuou a fit-lo com a mesma cortesia amistosa e
desinteressada. Bauer comeou a sentir-se pouco vontade.
Seus dedos tremiam ao tirar do bolso interno do palet as trs
fotografias.
Preciso de certas informaes referentes a essas fotos
disse ele. Creio que o senhor talvez as conhea, ou as
possua em seus arquivos.
Schneer pegou as fotos. Tirou os culos e ergueu a
fotografia de Heder. O sorriso azedo do aougueiro refletiu a
luz.
54
Uma fisionomia tipicamente germnica comentou
Schneer.
Teria alguma semelhana com alguma pessoa famosa
do passado?
Schneer olhou outra vez a foto.
Alguma pessoa infame do passado? sugeriu Bauer.
Hermann Goering?
Precisamente. Hermann Goering.
Sim, existe uma remota semelhana.
Bauer empurrou para Schneer a segunda foto.
E essa? indagou Bauer.
Schneer pegou a fotografia da estao ferroviria.
Parece-me um grupo de judeus numa estao de trem.
Principalmente pela expresso dos rostos. Uma espcie de...
espera. Descrena. Tpicas roupas alems de trinta anos
atrs.
Schneer tornou a erguer os olhos e prosseguiu:
Mas no existem emblemas, armas, guardas, letreiros ou
nomes em lugar nenhum. Poderia ser mera coincidncia
fotogrfica.
O sobretudo de Bauer, colocado sobre o aquecedor emitia
vapor e aumentava a umidade ambiente. Bauer suava
profusamente. Sentia que sua misso estava resultando em
fracasso. Ampliaes fotogrficas de judeus moribundos
afixadas s paredes amarelo-claro do salo pareciam
confront-lo pessoalmente. Bauer passou as pontas dos dedos
pela testa.
Dr. Schneer, se isso fosse um campo de concentrao e
os judeus tivessem acabado de desembarcar de um trem, que
campo seria?
55
Schneer ergueu uma sobrancelha e tornou a estudar a
estao ferroviria.
Se fosse esse o caso respondeu ele, pensativo , a
julgar por aquela torre ali... est vendo?... eu diria que uma
torre como aquela aparece em muitas fotografias de
Auschwitz.
Poderia estender-se um pouco mais sobre o assunto,
Dr. Schneer?
Certamente. Est vendo essa rampa? Existia uma como
ela na estao de Auschwitz, que foi modificada e ampliada
em 1944 para acomodar um nmero maior de judeus. Aqui
est uma tpica construo alem, est vendo?
Sim disse Bauer com voz sumida.
Mas talvez no seja nada disso. Ns pulamos para uma
concluso.
Sei disso, Dr. Schneer.
Bauer indicou com um gesto de cabea a terceira foto.
Poderia examinar aquela, por favor?
Schneer estudou a velha fotografia de Ernst Frisch, que
parecia fit-lo com ar arrogante. Frisch sorria, deixando
mostra dentes pontudos e separados. Antes de ser
assassinado, Frisch fora magro, com olhos estreitos e
penetrantes. Schneer sacudiu negativamente a cabea.
O senhor no faz idia?
Nenhuma.
Schneer continuou a examinar a foto de Frisch, mas sem
resultado.
Sinto muito disse ele afinal. Levantou-se, com as
costas dobradas num ngulo, e esfregou os olhos, Sabe,
Inspetor, minha memria se apagou um pouco com a idade. Os
rostos ficam indistintos ou desaparecem por completo...
algo que s vezes me proporciona muita paz.
56
Bauer tambm se levantou. Andaram juntos at a porta.
Todavia, tenho um assistente que est escrevendo um
livro e possui excelente memria.
O Dr. Schneer fez sinal para que Bauer aguardasse onde
estava. Enfiou a cabea pela esquina do corredor e chamou
algum.
Sr. Picard disse ele. Quer fazer o favor de vir aqui?
Soaram passos no corredor. Um homenzinho bem-
arrumado, sorrindo nervosamente, surgiu porta do salo.
Bauer observou-o cuidadosamente. O sujeito parecia jovem,
mas era morbidamente plido.
Sr. Picard disse Schneer , este o Inspetor Bauer,
da Polcia de Munique.
A mo mida de Picard apertou a de Bauer e os olhos
escuros se fixaram nos do Inspetor.
Inspetor? repetiu Picard.
Sim confirmou Bauer.
De Munique? perguntou Picard. Algo no tom de sua
voz deixou Bauer ainda menos vontade. A cidade da arte e
da cultura, no mesmo?
J foi chamada assim disse Bauer.
S ento Picard soltou a mo de Bauer.
O Inspetor Bauer precisa identificar uma fotografia
disse o Dr. Schneer. Talvez voc conhea esse rosto, no?
Schneer segurou diante de Picard a foto de Frisch. Um
tanto embaraado, Picard forou a memria para descobrir
alguma semelhana. Bauer viu os olhos midos se
imobilizarem e, depois, se arregalarem ao reconhecerem a
fisionomia. Mas Picard devolveu a foto.
Nada? indagou Schneer.
Nada respondeu Picard.
57
Tem certeza? insistiu Bauer.
claro.
O Dr. Schneer se voltou para Bauer.
Sinto muito disse ele. Talvez nos lembremos mais
tarde. Pelo menos o Sr. Picard pode verificar para o senhor
nossos arquivos de Auschwitz em relao a fotografias da
estao. Talvez alguma delas se parea muito com a sua.
Muito obrigado disse Bauer, Eu ficaria devendo um
grande favor.
O Dr. Schneer vestiu um comprido sobretudo cinzento e
pegou seu guarda-chuva.
Agora, preciso ir disse ele. A idade cobra um
preo alto e hoje em dia eu s trabalho meio expediente. O Sr.
Picard cuidar do senhor.
Agradeo-lhe mais uma vez, Dr. Schneer.
Bauer fez uma breve e correta inclinao de cabea.
Schneer observou-a e trocou um olhar com Picard. Depois,
retribuiu o simulado cumprimento e preparou seu guarda-
chuva.
Bom-dia, Inspetor disse ele. E saiu.
Picard foi at os arquivos de metal. Bauer observou os
dedos finos manusearem as pastas. O Inspetor se aproximou,
vendo de relance as fotografias: chamins, cercas de arame
farpado. Picard lanou-lhe um olhar sombrio.
A luz, senhor.
Perdo disse Bauer, afastando-se.
De onde estava, Bauer viu braos e pernas esquelticos
passarem rapidamente sob os dedos de Picard no interior da
gaveta metlica. O Inspetor tentou no olhar e, afinal, Picard
fechou violentamente a gaveta, com um som que ecoou
atravs do mausolu.
58
O senhor perceber a semelhana disse Picard, entre-
gando a Bauer a fotografia de uma estao ferroviria.
Sim, claro. Isso Auschwitz?
Auschwitz.
Pode me arranjar uma duplicata?
Naturalmente. Picard foi a uma copiadora xerox com a
marca 4000 Convenience Copier. O aparelho emitiu um
zumbido.
Quem aquele homem? quis saber Bauer.
Que homem, senhor?
O homem na foto.
No sei, senhor.
Sabe, sim.
Picard permaneceu calado. Abriu bruscamente a gaveta do
arquivo e tornou a guardar o original da foto da estao de
Auschwitz, entregando a cpia a Bauer. Depois, seus olhos
fitaram os do Inspetor com o dio mais violento que Bauer j
vira.
Eu disse que no, senhor.
Bauer perdeu-se nas poas de escurido dos olhos do
homenzinho. Uma espcie de magnetismo prendeu-o ali.
Depois, Bauer se afastou para apanhar suas trs fotografias
em cima da mesa e guard-las no bolso interno do palet.
Ento, dobrou o sobretudo sobre o brao.
O senhor poderia me ajudar muito...
No o ajudarei, Inspetor.
Finalmente, Bauer ficou calado. Encaminhou-se porta,
sentindo que Picard o observava. Ento, virou-se.
Seus arquivos esto abertos ao pblico?
No existe duplicata daquele rosto em nossos arquivos.
59
Bauer olhou atravs do salo ladrilhado para o
homenzinho parado porta do escritrio. Picard exibiu um
sorriso estranho.
Ter que ir a Israel, Inspetor.
Israel?
Sim respondeu Picard, de p meia-luz, a voz
ecoando pelo mausolu e os reflexos das luzes vibrando
sutilmente nas paredes. Os arquivos mundiais esto em Israel.
Com todos os rostos.
Bauer vestiu o sobretudo, vendo a luz do dia l fora.
Sentiu a presena de Picard s suas costas, embora
distncia. Ento, colocou o chapu, abotoou o sobretudo e
tornou a sair energicamente para a luz cinzenta do dia. A
chuva fustigava o trfego que passava por ele. O barulho da
cidade o engolfou.
Desesperanado, Bauer tentou lembrar-se do que fizera de
errado. Abordara Picard de modo incorreto e agora os
arquivos de Paris estavam fechados para ele. No obstante,
Picard sabia algo a respeito de Frisch. Bauer tinha certeza
disso.
Monsieur?
Bauer ergueu os olhos.
Seu caf.
Obrigado.
Vrios parisienses estavam sentados sob o desbotado
toldo vermelho do caf ao ar livre. A chuva caa
desconsoladamente dos toldos, pingando nas caladas,
avenidas e vasos de samambaias. A rua em frente ao caf era
lavada por uma torrente de gua limpa. O garom parecia
meditar sobre a cena.
Est frio comentou o garom.
Bauer concordou.
60
So os americanos. Trazem o frio com eles. Trazem
com eles tudo de ruim disse o garom.
Bauer tornou a concordar com a cabea.
No quer bolo com o caf?
No, obrigado.
O garom se foi, tornando a entrar no caf em direo
cozinha e s outras mesas forradas com toalhas vermelhas.
Velhos sentados s mesas mais afastadas jogavam xadrez.
Pareciam a Bauer os velhos judeus que freqentavam os cafs
da Schwabing antes da guerra, entrando a intervalos para
tomarem caf forte, com tabuleiros de xadrez e jornais sob o
brao.
O senhor deseja mais alguma coisa?
No.
Bauer pagou a conta e saiu.
Caminhou sob a chuva que amainava, perambulando pela
cidade cinzenta, pensando. As luzes das ruas tinham-se acen-
dido cedo, criando pequenos focos luminosos no nevoeiro. As
pessoas vultos sombrios andavam vagarosamente nas
pontes. Bauer caminhou at sentir-se mais frio, de cabea
fresca, controlado.
Um trem passou vibrando sob seus ps. Olhando para
baixo, avistou sob a ponte o trem de carga que demandava o
ptio de manobra, rodando sobre os trilhos brilhantes e
desaparecendo na cortina de nvoa. Bauer observou o pesado
trem comprimir os trilhos contra a terra, bem como a gua
que escorria pelas agulhas dos desvios das linhas. Sempre
soubera por que motivo saltara do trem em Munique. E agora a
cpia da fotografia em seu bolso vinha confirmar tudo.
Ele fora soldado na frente russa. Estavam regressando, no
final da desastrosa campanha. Os homens ocupavam a cabine
61
elo trem como sardinhas em lata, balanando e sacudindo
como alquebrados fantoches a cada solavanco do trem.
Bauer, sentado janela, olhava para fora, um jovem cujo
rosto ainda no se acostumara lmina de barbear. De
repente, um vago de carga com paredes de madeira e vapor
escapando pelas laterais passou na mesma direo.
Judeus disse algum. Judeus.
Bauer no compreendeu. Ento os trens diminuram a
velocidade e pararam. Os pinheiros pareciam sacudir a gua
da chuva torrencial. Guardas e ferrovirios andavam entre as
rampas, na lama. No lado oposto do ptio de manobras, o
outro trem estava parado, entre vages de carga isolados e
pilhas de carvo.
Vejam! gritou algum.
Os vages de carga se abriram. Em vez de gado, deles
saram pessoas. Vinham em grupos compactos, com as mos
na cabea. Esperaram, hesitantes. Os guardas ento as
empurraram pelas rampas.
Judeus repetiu algum.
Bauer olhou em volta, para os homens que ocupavam a
cabine. Eram prematuramente envelhecidos, com uma sombra
da morte j em seus olhares. Alguns fitavam o cho, tossindo
e cuspindo, outros fitavam o vcuo. Bauer virou-se outra vez
para a janela. Os judeus j formavam um cortejo que passava
silenciosamente pelos pesados vages de carga parados no
ptio, a caminho dos acessos cercados e das torres distantes.
O que isso? perguntou Bauer.
Vo para Birkenau, o campo de extermnio disse uma
voz rouca vinda de cima.
O que est dizendo? Um campo de extermnio?
retrucou Bauer. um campo de trabalho! Fbrica de
munies!
62
O Capito soltou uma risada spera e amarga e todos os
imitaram. O trem comeou a avanar mais uma vez. Ao passar
pela estao, Bauer viu o letreiro: Auschwitz.
Auschwitz, pensou Bauer, agora mais velho, parado na
ponte em meio ao nevoeiro. Era noite. As luzes refletiam, nas
caladas e no pavimento.
Bauer se deu conta de que o caso o arrastava de volta a
lembranas que ele h muito esperava que estivessem mortas.
Agora, porm, constatou que estavam, muito vivas e
desconcertantemente ntidas. Ele se lembrava de ter baixado a
cortina da janela do trem. Baixara a cortina e a amarrara com o
cordo parte inferior da esquadria. Que outra coisa poderia
ter feito?
Bauer caminhou de volta ao hotel. O desalento lhe pesava
ao percorrer as ruas estreitas cheias de nvoa. Sentiu mais do
que viu os gatos que remexiam nas latas de lixo e caixotes de
verduras. O nevoeiro parecia dobrar as esquinas.
J no havia dvida de que Frisei fora um nazista ou se
parecia com algum deles. Mesmo a contragosto, Picard se
trara. Parecia haver uma ligao, mas no existiam provas.
Bauer precisava de provas.
Abriu a porta do hotel. Subiu a escada e destrancou a
porta do quarto.
Tentou lembrar-se de quanto dinheiro ainda lhe restava.
Sentou-se na beira da cama e examinou os canhotos do talo
de cheques. No