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Gesto e
percepção"
Hubert Godard'
','''''J''''''','", ::~::ZCEPÇÁODE UM GESTO se dá de forma global e".ic;.l2'.''::llCllIIleIlIeermite que o ator ou o observador
,~c,,,,,"''';:.,c;w..I..I. os elementos e as etapas que fundam a
expressiva desse gesto. Cada indivíduo, cada2!.'>:1DOSocial,emessonância com seu ambiente, cria ,.,..:. .•.•.•.... .L ' :
i: submetido a mitologias do corpo em movimento i
='...:e constroem quadros de referência variáveis da l1';-:rcepção. Conscientes ou não, esses quadros sã~._.)3e:npre ativos.
A daQç~.i...2Jl!g<!!,po..rexcelência, que faz visível
'c' rurbilhâoemque as forças de evolução cultural se"afrontam, produzindo, controlando ou censurando
1 Este texto foi publicado como pósfacio do livro Ia danse ou
XXeme siêcle, de Marcelle Michel e Isabelle Ginot (Paris: Bordas,1995). Tradução: Silvia Sorer.
1 Pesquisador, professor do departarnenro de dança da Universidadede Paris 8 (França) c responsável pela formação em AnáliseFuncional do Movimento do Ccntre National de IaDansc (França).
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Hubert Godard
as novas atitudes de expressão de si e de impressão
do outro. Desse modo, o gesto e sua captação visual
se apóiam em fenômenos de infinita variedade que
impedem toda esperança de reprodução idêntica.O balé clássico, codificado por Beauchamps no
século XVII, não escapa dessa problemática: apesarda aparente conservação de figuras (um arabesque,
um attitude, um rond dejambe ...), o modo como os
gestos são produzidos e percebidos varia
pfôfITndâmentede uma época à outra. Uma variação
mínima da parte do corpo que inicia o movimento,os fluxos de intensidade que o organizam, a maneira
que o bailarino tem de antecipar e de visualizar o
movimento que irá produzir, tudo isso faz com que
uma mesma figura não produza um mesmo sentido.
Assim, a figura ou a forma de um gesto pouco
nos ajuda a compreender sua execuçãoe ainda menos
a compreender sua percepção pelo bailarino e peloespectador. Diante dessa dificuldade, nossa maior
; tentação é de nos contentarmos em classificar as
danças por épocas histórÍcas, por origens geográficas,
por categorias sociais, por escolhas musicais, pela
estética do figurino, da cenografia, ou ainda pela
forma dos diferentes segmentos corporais colocados
em ação. Todos esses parâmetros descrevem muito
bem o limite externo ao campo da dança, rnas pouco
· se aproximam das riquezas da dinâmica interna do
gesto, que a ele dão sentido. No entanto, é possível
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Gesto e percepção
I reconhecer certas constantes, não nos indivíduos ou
! nas figuras que eles produzem, mas nos processos
\ operadores do movimento e da sua interpretação
\visual.
o PRÉ-MOVIMENTO ou A LINGUAGEM NÃO CONSCIENTE
DA POSTURA
Como nos fazem notar Rudolf Laban (1974-
1994), Erwin Strauss (1966) e outros, a.-p5~s~.tJ:E~ereta, além do problema mecânico da locomoção,
~o~tém elementos psicológicos e expressivos, mesmo
antes de qualquer intencionalidade de movi~ento
ou 1~_~xpressão. A relação ao peso, à gravidade, ji
contém um humor,' um projeto sobre o mundo. É
essa gestão do peso, específica e individual, que nos
faz' reconhecer, sem erro' e apenas pelo ruído que
produz, uma pessoa que nos é familiar subindo uma
escada. Inversamente, como os- astronautas nos
mostramvern situações sem a ação da gravidade, a
expressividade é radicalmente outra, já que a
referência essencial que nos permite interpretar o
sentido de um gesto foi profundamente modificada.Chamaremos dt\pré-movimentó,~sa atitude em
relação ao peso, à gravidade, que existe antes mes_mo
d~ se iniciar o movimento, pelo simples fato de_o
~tarmos ~t:I!F~.sse pré-movirnento vai produzir a.
~ga expressiva do movimento que ir~I1?-0~xecut~:r---·._ ·~ ... _ ..~ _
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Hubert Godard
A mesma forma gestual, por exemplo de um ara
besque, pode estar carregada de significações
diferentes, dependendo da qualidade do pré-
movimento. Este, por sua vez, será submetido a
grandes variações durante a permanência da forma
É ele que determina o estado de tensão do corpo e
que define a qualidade e a cor específica de cada
gesto. O pré-movimento age sobre a organização
gravitacional, isto é, sobre a forma como o sujeito
organiza sua postura para ficar em pé e responder
lei da gravidade, nessa posição. O sistema dosmúsculosgravitacionais3. cuja ação escapaem-grand
parteàconsciência e à vontade, é encarregado deassegurar nossa P?stura. -São esses músculos que
mantêmnossoequilíbrio e que nos permitem fica
em pé sem que tenhamos de pensar. São ainda essemúsculos que registram as mudanças em no~so
estadosafetivoe_eID95~_i9E_~.ssim, toda modificaçãde nossa postura terá uma incidêrid~ em nosso
estado emocional e, reciprocamente, toda mudança
afetiva provocará uma modificação, mesmo que
imperceptível, em nossa postura.
Os músculos gravitacionais, encarregados d
garantir nosso equilíbrio, antecipamo-sea cada um
.3 ,N_ do T Utilizou-se o termo gravitacional, no original gravitaire, par
""p~eservaro sentido manifesto pelo amor de interaçâo com a gi-ãvidadé_ N
literatura em português, a musculatura tônica pode ser chamada d
musculatura antigravitacionaL.
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Gesto e percepção
' . .1
de nossos gestos. Por exemplo: se quero esticarmeu
braço à frente, o primeiro músculo a entrar em ação,
antes mesmo que meu braço semexa, será o músculo
da panturrilha, antecipando a desestabilização que
o peso do braço irá
provocar. É o pré- Os músculos
movimento, invisível,
imperceptível para o
próprio indivíduo,
que acionará, simul-, .taneamente, os nrvers
mecânicos e afetivos de
sua organização.De acordo com nosso humor e com
o imaginário do momento, a contração da pan-
turrilha que prepa!"a,à n~ssa revelia, o movimentodo braço será mais ou menos forte e modificará a
.significação percebida. A cultura, a história dodançarino, a sua maneira de perceber uma situação,
de interpretar, vai induzir uma "musicalidade pos-
tural" que acompanha ou despista os gestos
intencionais executados. Os efeitos desse estado
ri afetivo que concedem a cada gesto sua qualidade,
cujo mecanismo compreendemos tão pouco, não
podem ser comandados apenas pela intenção. É issoque confere, justamente, a complexidade do trabalho
do dançarino ... e do observador.
No filme Ziegfeld follies, de Vincent Minelli, de
1945, Fred Astaire e Gene Kelly executam um duo
gravitacionais,
encarregados de garantir
nosso equilíbrio,
antecipam-se a cada um denossos gestos.
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Hubert Godard
. em que realizam exatamente os mesmos gestos, ao
mesmo tempo. No entanto, o efeito produzido por
cada um dos dançarinos é radicalmente diferente.
Como explicar essa diferença? Ao assistir ao filmeem sloto rnotion, quadro a quadro, podemos ver que,
apesar da intenção dos dançarinos de produzir os "
mesmos movimentos, a antecipação do ataque do
gesto, o pré-rnovimento, é oposto em cada um dos
dóis.
Num primeiro momento, Gene Kelly garante seu
contato com o solo através de um movimento depernas e de uma espécie de recolhimento do corpo
(movimento concêntrico). Em seguida, orienta-se
no espaço pelo olhar ou pelo braço e amortece seu
ataque em um movimento de "empurrar" o chão,
seguido de uma' extensão na direção escolhida. Ele
.organiza sua relação com a gravidade de baixo para
cima, de dentro para fora. Em oposição, FredAstairecomeça sempre por um movimento de orientação
no espaço pelo olhar, pela cabeça ou pelo braço. Isso
provoca, primeiro, uma extensão, uma suspensão
(movimento excêntrico), e depois leva a um
desequilíbrio, que é, em seguida, estabilizado por
um movimento de pernas na direção do chão. Fred
Astaire organiza sua relação com a gravidade de cimapara baixo e de fora para dentro. Ainda em sloio
motton, podemos reparar que Gene Kelly sempre
inicia a seqüência um pouco mais tarde e a termina
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~---------- __--------------------~ ..?W~._Gesto e percepção
antes, já que essa "concentração antecipadora" dá a
ele uma qualidade explosiva, particular à qualidade
felina de seu movimento. A maneira de Fred Astaire
é mais dissolvida no tempo, pela graça de sua
inimitável suspensão.
Os fluxos de organização gravitacional, que
acontecem antes do ataque do gesto, vão modificar
profundamente a qualidade desse gesto e colori-Io
de nuanças que nos saltam aos olhos, sem que nem
sempre possamos entender a razão. Podemos, então,distinguir movimento e gesto. Movimento é aquicompreendido como um fenômeno que descreveos
deslocamentos estritos dos diferentes segmentos do/ .
corpo no espaço, do mesmo modo que uma
máquina produz movimento. Já gesto se inscreve
na distância entre essemovimento e a tela de fundo
.tônico-gravitacional do indivíduo, isto é, o pré-movimento em todas as suas dimensões afetivas e
projetivas. É exatamente aí que reside a
expressividadedo gesto humano, expressividadeque
a máquina não possui.
Do CENTRO DE GRAVIDADE ... À EXPRESSMDADE
Heínrich von Kleist descreveu perfeitamente esse
fenômeno em um texto fundamental, sobre o Teatro
de marionetes, em que dialogam um primeiro-
bailarino clássico e um espectador de marionetes.
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o bailarino exprime sua paixão pelas marionetes":
"[...] um bailarino, querendo aprimorar-se, poderia
aprender muitas coisascom elas".E se explica: "Pois
a afetação aparece, como o senhor sabe, quando aalma (vis motrix) encontra-se em qualquer outro
ponto que não seja o centro de gravidade do
movimento". O dançarino define a graça como o
estado em que não há distância entre o centro de
gravidade e o centro do movimento. A marionete
seria, nesse caso, portadora de um signo puro: por
estar suspensa pelo alto do corpo, em vezde repousarno chão, ela não tem de dar conta de seu próprio
peso. Seussegmentos corporais, portanto, obedecem
apenas às leis mecânicas. Se lançarmos uma
marionete no espaço, a trajetória descrita por seus
membros em to~no do centro de gravidade será
sempre uma parábola perfeita. Ao contrário do
homem, a marionete não é atormentada pelahesitação da afetividade, que cria uma distância en-
tre o centro de gravidade e o centro de movimento,
imperfeição cinética gerada pela interferência dos
afetos. É na distância entre o centro motor do
movimento e o centro de gravidade, é nessa tensão
que reside a carga expressiva do gesto. O bailarino
de Kleist, criticando o maneirismo de sua época,solicita a radicalidade plena de significados da
.,
<"i!1"'.~';.~,.c~
~~.~
~J'4 ·1, .~
~ Usamos aqui a tradução em língua portuguesa feita por Pedro Süssekind(Rio de Janeiro: Serre Letras, 1997).
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Gesto e percepção
:::'"
marionete. Nesse caso, a expressividade é da
competência do marionetista que dá vida aos
impulsos do centro de gravidade, sendo a marionete
apenas uma intérprete neutra que não interfere
nesses impulsos.
As resistências internas ao desequilíbrio,
organizadas pelos músculos d2_~~stemagr~:,itacional,
vão induzir a qualidade e a carga afetiva do gesto.
O aparelho psíquico se exprime através do sistema
gravitacional e é por seu intermédio que carrega desentido o movimento, modulando-o e colorindo-o
de desejo, de inibições, de emoções. O tônus
resistente do sistema gravitacional se instala antes
mesmo do gesto, desde o momento em que se for-
mula o projeto de uma ação e, portanto, sem que o
indivíduo se dê conta e antes de atingir sua
consciência em estado de vigília. É por essa razãoque os profissionais do movimento, os dançarinos
em particular, sabem que, para melhorar, modificar
ou diversificar a qualidade do gesto, é preciso atingir
todas assuas dimensões, inclusive o pré-movimento
que somente o acesso ao imaginário permite tocar.
O bom domínio da organização gravitacional e
de suas modulações, próprio ao trabalho da dança,
é o que permite aos dançarinos de Pina Bausch
dissociarem radicalmente dois níveis de expressão.
Permite, por exemplo, que eles falem um texto
desenvolvendo uma seqüência gestual que traz uma
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carga significativa oposta àquilo que é dito.
A distorção entre a expressividade vocal e a
expressividade do gesto é tarefa mais difícil para os
.,' atores, cujo trabalho procura, ao contrário, atransparência entre a proposta do texto e a atitude
corporal.
As ATITUDES POSTURAIS COMO LUGAR DE INSCRIÇÃO
DA HISTÓRIA
r>.
,/ A organização gravitacional de um indivíduo éI determinada por uma mistura complexa deI,
i parâmetros filogenéticos, culturais e individuais.
I Trata-se tanto da passagem da fase quadrúpede àvertical na história da humanidade e na evolução da
marcha quanto deyma história individual inserida
em determinado ambiente cultural. Para o
j\ indivíduo, o aprendizado da linguagem, em paraleloao aprendizado da marcha, organiza sua autonomia
no mundo, levando em consideração, entre outros,
os caminhos complexos do processo de separação
mãe!criança.
T<?4~~es~~selementos contribuem para tec.er a
relação simbólica que vai vincular, no indivíduo"
atitude corporal, ãfetividadé e expressividade, sob apressão flutuante do meio em que está inserido.
Qualquer modificação do meio levará a uma
modificação da organização gravitacional do
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Gesto e percepção
,~'.'indivíduo ou do grupo em questão. A mitologia do ~\\-.'.] . ~ . ,---- .. - - ":-"-,._----'--- ,
.o-, .:' . c~lP.2_~güecirculaem um g~~po socialse ..Ii1~:~~~ye.rió~~istem~ji9j~ur~~.~, reciprocamente; a atitude .
corporal d~~ i~divíduos serve de veículo para essa',Il!,~~?"~?gi5!~.Determin(J.d~. _
r~p.~~en_~ç~~s4~CO!po. _A mitologia do corpo que
q~e-~~!.ge~.:~-tod~ as circula em um grupo so-
telas de televisão ..e .de ciaI se inscreve no sistema
qfi.em.. ..partici pam na postura! ...constituição dessa mito-
~ogi_Ck)~.arquitetura, o urbanismo, asvisõesde espaçoe o ambiente no qual o indivíduo evolui exercerão
influências determinantes em seu comportamento
gestual.
O interesse pela organização vertical e a conquista
de novos territórios encontra na Alemanha dos anos
30 duas vertentes radicalmente opostas. Em Mary
Wigman, a atitude de feiticeira, de rezadeira, marca
a afirmação de uma tensão axial para cima, ligada à
exploração de um espaço imaginário interior que
irá, por sua vez, contradizer essa ascensão, numa
perpétua redefinição das fronteiras de seu próprio
corpo. Ao mesmo tempo, com a subida do regime
nazista ao poder, um "outro corpo" se desenha em
torno de um eixo sólido: um corpo armado, cujas
fronteiras fixasnão deixam mais abertura àsvariações
das fronteiras internas, irá conquistar "outros
territórios" pela força de um outro "eixo". Para esse
r, .
\·LJ
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Hubert Godard
regime, a atitude de Mary Wigman é decretada
degenerada.
Essas duas concepções, urna trabalhando o
imaginário e a outra constrangendo-o por umaideologia, marcarão a organização _o_t~nico-.
gravitacional que antecipa e acompanha qualquer
gesto e qualquer atitude corporal. Os filmes de Le
Rienfenstahl (Les dieux du stade, sobre os jogos
ulímpicos de Munique de 1936) e os filmes de Mary
Wigman carregam o rastro dessas oposições no
".))
pensamento em movimento .Os dançarinos que partilham a experiência so-
cial comum ao grupo a que pertencem irão trabalhar
com essa experiência corno substrato, com suas
danças constituindo, alternadamente, expressão ou
instrumento de questionamento dessa experiência.
O sentido ligado àsmodulações do pesoque seexerce
sobre o eixo gravitacional permite o reconhecimentode evoluções profundas da história da dança. Por
exemplo, o desenvolvimento da estética do balé
romântico está, inevitavelmente, vinculado à busca
de elevação que se exprime através do uso das
sapatilhas de ponta, das máquinas que trans-
portavam as bailarinas pelo ar e, sobretudo, através
da evolução da técnica que, ao longo dos anos,"esticou" o corpo até a morfologia característica das
bailarinas balanchinianas (cuja organização
gravitacional se aproxima daquela de Fred Asraire,t' __ .•~
~
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ainda que os sinais corporais se apresentem de modo
diferente). Ao contrário, a dança moderna marca o
retorno ao peso, à queda e ao pé descalço.Outras nuanças serão introduzidas nas diferentes
qualidades de "trans-
ferência de peso", cen-
tro das atenções de uma
Doris Humphrey ou de
uma Mary Wigman.
Não existe, no en-tanto, nenhuma re-gra
linear que permita ima-
ginar que qualquer modificação no espaço social
leve, imediatamente, a mudancas reconhecíveis na>
produção coreográfica. O que se observa são
períodos de acumulação de tensões estéticas que
podem encontrar uma expressão artística só muitomais tarde, do mesmo modo que uma explosão so-
cial também é fruto de acumulações de tensões que,
num determinado dia, atingem um limite que obriga
sua expressão.
I
r"
000 o que vejo produz o que
sinto e, reciprocam ente,
meu estado corporal inter-
fere, sem que eu me dê
corrtã, na interpretação
daqu ilo que vejo.
A PERCEPÇÃO E O OLHAR SEM PESO
São os fenômenos complexos da percepção que,
ao controlar as rédeas do movimento, permitem
chegar à compreensão dos processos que se operatn
no momento em que somos espectadores de dança.
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o movimento do outro coloca em jogo a experiência
de movimento própria ao observador: a informação
visual provoca no espectador uma experiência
cinestésica (sensações internas dos movimentos de
seu próprio corpo) imediata. As modificações e as
intensidades do espaço corporal do dançarino vão
encontrar ressonância no corço do esçectador, O
visívele o cinestésico, absolutamente indissociáveis,
farão com que a produção de sentido no momento
de urn acontecimento visual não deixe intacto o
estado do corpo do observador: o que vejo produz o
que sinto e, reciprocamente, meu estado corporal
interfere, sem que eu me dê conta, na interpretação
daquilo que vejo.
É a sensação de nosso próprio peso que nos
permite não nos confundirmos com o espetáculodo mundo. Quando nosso trem parte da estação, é
possível que não saibamos se é nosso trem que se
move ou aquele que está ao lado. No caso de um
espetáculo de dança, essa distância subjetiva que
separa o observador do dançarino pode variar (quem
se move realmente?), provocando um certo efeitode "transporte". "Transportado" pela dança, tendo
perdido a certeza do seu próprio peso, o espectador
se torna, em parte, o peso do outro. Vimos a que
ponto essa gestão do peso modifica a expressão.
Vemos, agora, a que ponto ela modifica para o
espectador suas impressões. Como a gravidade
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Gesto e percepção
organiza o que vem antes do movimento, organiza
também o que vem antes da percepção do mundo
exterior. Quando, pelo transporte, o olhar é
restringido emmenor intensidade pelo peso, eleviajadiferentemente. É isso que podemos chamar de
empatia cinestésica ou de contágio gravitacional.
Temos aqui um ponto essencial: no corpo do
dançarino, em sua relação com outros dançarinos,
ocorre uma aventura política, a partilha do território.
Uma novaorganização do espaço e das tensões que
o habitam vai- lnte!r~gar os espaços e as tensões
próprias do espectador. -É a natureza desse
"transporte" que organiza a percepção do espectador.
É, então, impossívelfalarda dança ou do movimento --I
do outro sem lembrar que falamos de uma \
percepção particular, e que a significação do
movimento ocorre tanto no corpo do dançarino,
como no corpo do espectador. Assim, a rede
complexa de heranças, aprendizagens e reflexos que
determina a especifidade do movimento de cada
indivíduo determina também o modo de perceber
o movimento dos outros.
A FIGURA E o FUNDO
Pela natureza dos transportes colocada em jogo,as estéticas particulares de Merce Cunningham e
Trisha Brown podem esclarecer dois modos de
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Hubert Godard
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operação distintos das vias da percepção. Mere
Cunningham eTrisha Brown se afastam de qualquj
conteúdo narrativo que, com freqüência, nas danç~
que os precediam, conferia-lhos textura e orientà.-<
o espectador a captar a figura observada.
Numa de suas peças, Cunningham retoma o qüe
é chamado no balé clássico de promenade: uma:
bailarina em meiaponta, em apoio sobre uma perna;
as duas mãos colocadas sobre o braço de seu part~
ner, gira no eixo levada pelo passeio?que seu part~
ner efetua em torno dela. Essa figura, eternamentepresente nos p as-de-deux clássicos, encontra'
habitualmente no balé uma carga ligada ao amor,
confirmada pela natureza dos olhares trocados pelos
partners.
Em Cunningham, essa figura é valorizada de
forma tão· diferente que dificilmente nos damos
conta de que se trata também de uma promenade.Os partners não estão preocupados com sua relação
psicológica, nenhuma tensão se lê em seus olhares,
como se seus olhos escutassem simplesmente o eco
longínquo do recorte que provocam no espaço,
talvez um eco longínquo do pensamento de Kleist.
As danças de Cunnigham impõem distância e
interditam a transferência. Elasobrigam o espectador
..a ver o signo e a figura pelo que são. Privado de um
26
o,' ~"" •• ~ ..••••• -;":
"", .~.
.~.
.~ \i-,.,
5 N. do T. Em francês, a palavra promenm/esignifica passeio.
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"~.
!..
\
\
Gesto e percepção
/
movimento "já interpretado", o espectador se vê
colocado diante de novos códigos estéticos. O pudor
do coreógrafo passa pelo dançarino: este conhece
ou a forma à qual deve chegar ou as regras dodispositivo que fará com
que essaforma emerja (e
que pode integrar jogos
aleatórios);9 dançarinosabe que deve desenhar
; f~rma sem ruído, para.
não imprimir alteraçãonessa construção. Ele não está lá para se ser visto,
mas para permitir o surgimento do signoprocurado
ou provocado pelo acaso.
Podemos considerar a atitude postural e o pré-
movimento, qus;antecipam' inevitavelmente o gesto,
corno um,plano de fundo:'sobre o qual se desenha o
movi'ment() aparente: a figura. O dançarino de
Cunnigham ofereceuma superfícieneutra, invisível,
pouco impregnada de afeto, para que a figura
permaneça nítida, para que não seja borrada pelo
fundo. A ausência de modificação perceptível
antecipando o movimento permite que vejamos não
mais o indivíduo que dança, mas a figura que é
desenhada.
O distanciamento entre a emoção do dançarino
e aquilo que ele produz ocorrerá, em seguida, no
espectador: entre a figura observada e sua própria
/
É a sensação de nosso, .
propno peso que nos
permite não nos
confundirmos com o
espetáculo do m undo.
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Hubert Gogard
emoção. Nesse caso, o espectador não pode sedeixar
levar diretamente pela dança. Privado desse dado
cinestésico imediato, o observador fica preso em seu
imaginário perceptivo. A ele é dada a opção de um
prazer traduzido pelo sensível, em jogos de ficção
perceptiva e perspectiva. Ele recria, finalmente, seu
próprio turbilhão interior. A partir daí o espectador,
mais que o dançarino, torna-se o verdadeiro
intérprete da dança de Cunningham.
Em outro registro, o exemplo mais extremo da
pesquisa de Trisha Brown é seu solo Ifyou couldn't
see me, de 1994. Integralmente dançado de costas,
esse solo é a quintessência de dezenas de anos de
trabalho. Em oposição à estética de Cunningham,
nessa obra não se vê praticamente nenhum signo
afirmativo: braços-e pernas não se fixam em forma e
> -parecem ser apenas prolongamento de tensões que
trabalham com o espaço original, no nível da
emergência do pré-rnovimento, precisamente lá
onde se joga o equilíbrio postural. O público nãotem outra saída a não ser ver "a tela de fundo'~ o
lugar de origem do movimento: o rnarionerista é
desnudado. Fazendo isso, 'IrishaBrown esconde
também o~signosproduzidos pela face,sendo o rosto
um dos raros lugares do corpo onde se inscreve uma
retórica imediatamente legível. Escondendo seu
rosto, ela priva o público de signos de afeto, proíbe
qualquer interpretação intempestiva de sua dança e
_ T
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Gesto e percepção
impõe a visão do fundo.
--EIlquâiitü'-()dançarino de Cunningham elimina
qualquer traço de sua própria emoção, qualquer
forma de interpretação da figura que ele mostra, odançarino de Trisha
Brown é, o tempo todo,
alimen tado por seu
próprio movimento,
levando em conta o que
ele cria, deixando sua
própria sensibilidade ser
afetada por essemovimento, reinterpretando a figura
que ele produz num jogo de auto-afecção (Bernard
1990) de seu próprio gesto completamente diferenteda prática de Cunnigham. O dançarino de Trisha
Brown é menos fiel ao espaço, porém mais atento a
uma dinâmica particular do movimento, que
necessita uma escuta e uma sensação da frase vivida,
do mais ínfimo rastro de sua origem: no pré-movimento. Aqui, o cinestésico passa à frente doolhar. Trisha Brown considera que o dançarino deve
se deixar tocar por seu próprio gesto, tocando assim
o espectador. Considera também que a presença do
espectador e do meio podem influenciar e modificar
a representação. A partir daí, dançarino e espectador
embarcam na direção da terra incognita de espaçossensíveis a serem descobertos.
Para retornar à metáfora da tela de fundo e da
"Transportado" pela dança,
tendo perdido a certeza dor •
seu propno peso, o
espectador se torna, em
parte, o peso do outro.
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Hubert Gogard
figura, Trisha Brown, ao contrário de Cunningham,
dá visibilidade ao fundo, o pré-rnovirnento, na sua
origem e cujos ecos continuam a habitar a forma
produzida. A estimulação causada pelo espetáculoseguiria, então, dois trajetos diferentes nas esferas
perceptivas do observador. Em Trisha Brown, essa
estimulação tocaria primeiro o sensível,o cinestésico
(ainda não interpretado) para emergir, em seguida,
como percepção consciente. Em Cunnigham, em
primeiro Iugar viria a interpretação perceptiva
(construção/desconsrrução), que trabalha a matériaobservada e qUe toca, em seguida, o sensível
cinestésico do espectador.
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INTERESSES POLÍTICOS: VARIAÇÓES DO MESMO SIGNO
Nas abordagens do movimento de Cunningharn
e de Trisha Brown estamos diante de dois projetos
políticos, dois modos de relação com o mundo. Épreciso, ainda, que as leituras se afinem para
podermos ver de que modo, no interior de uma
mesma linguagem de acordo com períodos de
tempo, os dançarinos da companhia ou o trabalho
de um coreógrafo sofrem modulações.
É o que observamos, claramente, emMartha Gra-
ham, cujas escolhas técnicas fundadas sobre a íamosa
alternância contraction/release perduraram por um
período bastante longo.
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Gesto e percepção
Documentos filmados de diferente~ épocas
permitem ver que a contração - encurvamento
complexo da parte baixa das costas -corresponde a
uma forma bastante constante através dos anos, massofre va-riações im-
portantes, de qua-
lidade e de signi-
ficação, de acordo com
..os períodos. Nos anos 3D, no início da obra de Gra-
ham, essacontração acontecia como um movimento
concêntrico, como uma ação de «recolhimento"
Ó~~bremos do estilo Gene Kelly descrito ante-
riormente). Em obras mais recentes, vê-se
exatamente o contrário. Ainda que a forma pareça a
mesma, o movimento de contração tornou-se
excêntrico (organização de Fred Astaire}, mais
próximo de um alongamento ou de uma linha de
espaço que se curva ao estirar-se que de uma
contração propriamente. O nome da figura não
mudou, mas a significação tornou-se praticamente
oposta e já prepara para a curue' de Cunningham.
A dificuldade em dar conta dessesfenômenos está
na base de toda a obra de Laban (1994, 1974), que
opunha "pensamento motor" e "pensamento empalavras".Ele defendia a idéiade que osfundarnentos
de uma cultura se jogam nas relações particulares
É no gesto que a produção
de sentido se organiza.
r. N. do T Flexáo do tronco realizada com movimento excêntrico.
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Hubert Gogard1~1entre uma determinada gestão do peso e os valo
de expressividade, através dos fluxos e d
tratamentos do espaço e do tempo.:~
impossibilidade de nossa organização lingüísticaabarcar o sentido profundo do movimento levo
à aventura do seu sistema de notação, que não
apóia numa metáfora lingüística, e sim nu
representação pictográfica que respond
analogicamente, aos estados do corpo ainda
projetados na esfera da interpretação lingüística
A atenção àquilo que está contido no movimenà sua qualidade, mais que aos limites externos
movimento ( época, cenografia, figurinos, narraç
música etc.), seu contorno, faz jorrar correlaçõ
semelhanças entre danças que estariam, em ge
dassificadas em categoriasseparadas.É no gesto
a produção de sentido se organiza. As;lm, podemaproximar o estilo de Agrippina Vaganova ao
Doris Humphrey e trazer para a mesma famíl
estilo da Ópera de Paris e Merce Cunnigham. N
dois primeiros, opta-se pela não-frontalidade
corpo do bailarino, há grande mobilidade da c
torácica, grande importância do epaulé (levetor
da cintura escapular), deformando o plano do bu
o que se tornará um ponto forte de
expressividade. O braço aceita o movimento
escápula antes de se deslocar, fazendo escapar
do afeto, o que dá esse sentimento de qualid
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expressiva, particular à Escola de Vaganova ou aolirismo de Doris Humphrey.
Ao contrário, em Cunningham e em parte da
Escola Francesa, o corpo do dançarino se apresentade forma muito mais frontal (para Cunnigham, essa
frontalização do corpo do bailarino se dá em
contrapartida à desfrontalização do espaço cênico).
A escápula émais controlada, o movimento do braçonão é acompanhado pelo movimento do ombro, o
que imprime uma certa sobriedade na exposição do
sentimento. Desse modo, a caixa torácica écontrolada pelo solo, atravésda bacia, enquanto que
nos dois primeiros é o centro da caixa torácica (cara
a Delsarte) querll inicia o movimento. Essas duas
abordagens da expressão da parte superior do corpo
irão impor trabalhos de pernas diferentes,
desenvolvendo técnicas distintas.
Assim, é a análise e a compreensão dos conteúdos
dinâmicos do gesto que permitem reali-
zar aproximações entre famílias estéticas
tradicionalmente opostas: a técnica de Vaganova,
desse ponto de vista, seria próxima do trabalho de
Doris Humphrey. Poderíamos ainda traçar uma
ligação entre o estilo Bournonville e o de Domi-
nique Bagouet, quanto à qualidade da relação do
corpo com o solo e a liberdade dos fluxosescapulares.
Ou ainda, ao contrário, numa forma aparentemente
idêntica de batidas aos pés no solo, comum ao
Gesto e percepção
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Hubert Godard
Kathakali, ao Flamenco ou ao Tap Dance, perce
diferentes acentos na dinâmica do peso e
suspensão que identificam, para o espectador
natureza particular de cada uma dessas danças.>
Sobretudo, esse modo de abordagem recoloc
acento no trabalho do dançarino, naquele
condiciona plenamente a produção de senti
É de fato perturbado r ver a que ponto a históriadeixa inúmeros dados sobre os figurinistas,
músicos, os coreógrafos, mas se fazmuda quando
tra.tade falar sobre o dançarino e seu trabalho,
treinamento; suas técnicas corporais, enfim, so
os reais fundamentos da dança.
Seria esse silêncio simples conseqüência
tradição de transmissão eminentemente oral
"dança?Ou será que es~~véu faria descobrir que
, publica carrega consigo necessariamente uma c
dose de restrição imposta pela res corporea? O d
çarino seria, então, um arauto, testemunha
rrlovimentos da cultura que repousam, talvez, a
de tudo, nas profundezas da gênese do gesto..
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Tradução: Silvia Soter
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Gesto epercepção
BIBLIOGRAFIA
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1990.LABAN, Rudolf. La maitrise du mouvement. Paris: Acres Sud,
1994.LABAN, Rudolf. Effort. Macdonald 6-Evans, 1974.
KLEIST, Heinhich von. Les marionnettes.Trad. Flora Klee-Palyi
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