Gil Vicente, Farsa de Inês Pereira -...

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Trata-se de um género pertencente ao modo dramático que apresenta normalmente o tema do engano. De acordo com Teresa Gonçalves, na entrada «Farsa», E-Dicionário de termos literários de Carlos Ceia: «É um género dramático que representa cenas da vida profana, simultaneamente agressivas, pela sátira contundente, e festivas, pelo cómico hilariante».

Gil Vicente, Farsa de Inês Pereira

Farsa

A peça foi representada pela primeira vez em 1523, no mosteiro de Tomar,

perante o rei D. João III, e é considerada a obra mais complexa que Gil Vicente compôs.

Segundo a tradição, a peça foi escrita em resposta a um desafio lançado por alguns homens sábios de Lisboa, que colocaram em dúvida a autoria das obras de Gil Vicente, sugerindo tratar-se de plágio. A fim de provar a sua inocência, o dramaturgo pediu que lhe dessem um tema qualquer para que produzisse uma peça e foi-lhe proposto, então, que criasse um enredo a partir do mote «Mais quero asno que me leve que cavalo que me derrube», ditado popular muito comum na época.

Gil Vicente, Farsa de Inês Pereira

Ponto de partida

A peça não possui qualquer divisão em atos e cenas; no entanto é

possível estabelecer várias sequências dramáticas, com a entrada e saída de personagens.

Estrutura

Gil Vicente, Farsa de Inês Pereira

Inês Pereira, moça solteira e fantesiosa 1

Inês Pereira é uma jovem emancipada e sonhadora que se sente entediada com o trabalho doméstico. Contra a opinião da Mãe, ambiciona casar-se a seu gosto, para se libertar do que considera ser uma vida de escrava.

Gil Vicente, Farsa de Inês Pereira

Lianor Vaz propõe um pretendente: Pero Marques 2

Lianor Vaz, a alcoviteira, traz-lhe uma proposta de casamento com Pero Marques, um camponês rico, disposto a aceitar Inês sem dote, de tanto que gosta dela.

Gil Vicente, Farsa de Inês Pereira

Pero Marques: o pretendente rústico rejeitado 3

Inês despreza o pretendente arranjado pela alcoviteira Lianor Vaz, pois embora rico, mostra-se desajeitado, ingénuo, grosseiro e ignorante, não correspondendo, de modo nenhum, ao que Inês exigia de um marido: discrição, isto é, estatuto social superior ao seu, capacidade de falar bem, de tocar viola…

Gil Vicente, Farsa de Inês Pereira

Brás da Mata: o pretendente trazido pelos judeus casamenteiros. Ilusão. Casamento de Inês 4

Inês casa-se, então, contra os conselhos da Mãe, com Brás da Mata, um pretendente apresentado por dois judeus casamenteiros, e que, aparentemente, era tudo o que Inês queria: era discreto, falava bem, sabia tocar viola, era escudeiro, tinha um Moço ao seu serviço.

Gil Vicente, Farsa de Inês Pereira

Desilusão: o discreto marido revela-se um tirano 5

Mas depressa Inês descobre ter feito a escolha errada. Brás da Mata revela-se um marido ciumento e tirano: maltrata-a e proíbe-a de sair de casa, de falar com quem quer que seja e, ainda por cima, obriga-a a trabalhar, sempre vigiada pelo criado. A vida de escrava regressou… Inês lamenta amargamente a sua sorte, o seu engano. Mas Brás da Mata parte para a guerra…

Gil Vicente, Farsa de Inês Pereira

Inês Pereira viúva! Novo casamento com Pero Marques: a experiência vence a ilusão 6

Três meses após a sua partida, Inês recebe a notícia de que o seu marido fora morto por um «mouro pastor», enquanto fugia da batalha, no Norte de África. Inês rejubila e decide encontrar novo marido – em tudo diferente do anterior: a lição foi aprendida!

Gil Vicente, Farsa de Inês Pereira

Liberdade, enfim! 7

Com a morte de Brás da Mata, Inês aceita o pedido de casamento de Pero Marques, que a trata bem e lhe faz todas as vontades. Inês passa a explorar a liberdade e a dedicação que ele lhe dá, chegando a, literalmente, carregá-la nas costas para atravessar um rio, a fim de ir ver um ermitão que se tornara seu amante.

Gil Vicente, Farsa de Inês Pereira

«Mais quero ASNO que ME leve que CAVALO que me derrube.»

Pero Marques

Escudeiro Brás

da Mata

Inês Pereira

Comprova-se, assim, o provérbio que havia sido proposto a Gil Vicente como tema da farsa.

Inês aprendeu a lição: mais vale um camponês humilde, que lhe faça todas as vontades («asno que me leve»), do que um marido de comportamento refinado, mas que a maltrate («cavalo que me derrube»).

Gil Vicente, Farsa de Inês Pereira

Crítica de Inês, a quem chama preguiçosa, quando constata que ela se quer casar para passar a ter uma vida de liberdade, começa por lhe dizer que ainda é cedo para o fazer; quando entende que Inês está decidida a casar com o Escudeiro, percebendo quem ele é, tudo faz para a dissuadir; contudo, uma vez a filha casada, aceita com compreensão o facto, dá-lhe bons conselhos e organiza uma festa. É a Mãe conselheira – embora não ouvida.

Mãe

Gil Vicente, Farsa de Inês Pereira

Pretende casar-se, pois está convencida de que o casamento a libertará do trabalho a que a Mãe a obriga; mas só casará com um homem discreto, isto é, que saiba falar bem, que seja educado, e – imprescindível – que saiba tocar e cantar. Isso é o que importa – e não a riqueza.

A filha – Inês Pereira

Gil Vicente, Farsa de Inês Pereira

Recusa um pretendente que não tem as qualidades exigidas e acaba por se casar – apesar dos avisos da Mãe – com o homem dos seus sonhos, que rapidamente se revela um pesadelo… Mas, uma vez morto, Inês muda de ideias, pois a «experiência» mostrou-lhe outro caminho a seguir: casar-se com quem seja rico, embora atoleimado, e a deixe fazer o que entender.

A filha – Inês Pereira (continuação)

Gil Vicente, Farsa de Inês Pereira

É a intermediária entre Inês Pereira e o pretendente Pero Marques, tanto na primeira tentativa deste – infrutífera – como na segunda – que resultou. Amiga da Mãe, dá, como esta, conselhos idênticos aos que ela dava à filha – no sentido de um casamento de natureza prática, racional. Falhou na primeira tentativa, conseguiu na segunda.

Gil Vicente, Farsa de Inês Pereira

A alcoviteira – Leanor Vaz

Contratados por Inês para lhe encontrarem o marido discreto, conseguem-no no Escudeiro, depois de muito procurar. São eles que casam ambos, rindo por vezes das suas atitudes e criticando-os em apartes.

Os judeus casamenteiros – Latão e Vidal

Gil Vicente, Farsa de Inês Pereira

O modelo do homem nada fadado para a relação com as mulheres. Cobre-se de ridículo na primeira aproximação a Inês: não sabe falar, desorienta-se, revela não ter hábitos sociais – rústico, desconhece o que é e para que serve uma cadeira – oferece a Inês presentes dos quais ela se ri, enfim, o oposto do homem caracterizado pela discrição que Inês pretendia.

Gil Vicente, Farsa de Inês Pereira

Pero Marques

Conseguindo finalmente casar-se com Inês, cobre-se de maior ridículo na cena final, quando a leva às costas para ir ter com um amante dela.

Pero Marques (continuação)

Gil Vicente, Farsa de Inês Pereira

Brás da Mata, vindo da baixa nobreza arruinada, mas bem-falante, tocador de viola, fazendo-se passar por quem não é – tem até um criado que lhe dá um pretenso estatuto social –, é o homem discreto por quem Inês anseia. E com quem casa.

O escudeiro Brás da Mata

Gil Vicente, Farsa de Inês Pereira

Mas depressa se revela um marido tirano – prende a mulher em casa, não a deixando sair por motivo nenhum. Justifica-se dizendo ser ela um «tesouro» que um homem «discreto» como ele deve saber guardar, esconder.

Decide ir para o serviço militar e morre – não em combate, mas a fugir, covardemente, da «batalha».

O escudeiro Brás da Mata (continuação)

Gil Vicente, Farsa de Inês Pereira

É a voz que critica e denuncia a pobreza do Escudeiro, a

fome que o faz passar, as promessas nunca cumpridas de

pagar o que lhe deve… Apesar de mal tratado, lamenta a

morte do Escudeiro em contraste com Inês Pereira, que

com ela rejubila.

Gil Vicente, Farsa de Inês Pereira

O moço

São amigos de Inês trazidos pela Mãe para a festa do

casamento com Brás da Mata. Participam no baile,

cantam, desejam felicidades aos noivos.

Fernando e Luzia

Gil Vicente, Farsa de Inês Pereira

Clérigo sensual, servidor «de Cupido», mais um na galeria vicentina, seduz Inês estando já casada com Pero Marques. Promete-lhe que o pecado será remido pelas esmolas que ela lhe dá.

O Ermitão

Gil Vicente, Farsa de Inês Pereira

A sátira, estreitamente ligada ao cómico, ao riso e ao caricatural, recai principalmente sobre as personagens de Inês Pereira, Pero Marques e Brás da Mata.

Gil Vicente, Farsa de Inês Pereira

Dimensão satírica

Inês Pereira é alvo do riso do espetador porque:

se apresenta como revoltada contra os trabalhos domésticos;

pretende libertar-se através de casamento desigual;

tem uma noção idealizada do casamento, muito longe da realidade;

pretende um marido que seja bem-falante, tocador de

viola, sedutor, mesmo que nada tenha de comer;

é castigada quando vê desabar, na prática, o seu engano, a sua conceção de casamento;

se encaminha, às costas do marido, para um encontro amoroso que fará de si adúltera.

Dimensão satírica

Gil Vicente, Farsa de Inês Pereira

O riso solta-se nos espetadores quando Pero Marques:

é visto pela primeira vez a caminhar desajeitadamente em busca da casa de Inês;

revela incapacidade de falar, de seduzir;

traz presentes inadequados para Inês;

expõe a sua rusticidade do campónio que desconhece a função da cadeira;

Gil Vicente, Farsa de Inês Pereira

Dimensão satírica

mostra a sua ingenuidade em assuntos amorosos, pois, encontrando-se de noite

com Inês, não aproveita para lhe dizer palavras de amor;

leva a mulher às costas , com docilidade e ingenuidade, para se encontrar com um amante: é o modelo do marido enganado e complacente – sem perdão, é castigado pelo riso.

A irrupção do riso do espetador perante Brás da Mata deve-se: ao reconhecimento, aquando da sua entrada em cena, acompanhado pelo

Moço, de uma figura velha conhecida: o escudeiro pelintra, fanfarrão, pretensioso;

às palavras do Moço, que, direta ou indiretamente, em vários apartes, castiga o amo ao lembrar-lhe a pobreza esfomeada e descalça em que vive, ou se espanta com as manias de grandeza de quem até a viola tem de pedir emprestada…;

às respostas do Escudeiro aos pedidos do Moço, a indicar caminhos de mentira e de dissimulação, ou a propor-lhe o roubo para se alimentar;

à notícia do modo como morreu: fugindo covardemente da luta.

Gil Vicente, Farsa de Inês Pereira

Dimensão satírica