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45º Encontro Anual da ANPOCS
GT 30- Pensamento Social no Brasil
Gilberto Freyre e a força social das ideias: escravidão, família e modernidade na
sociologia global.
Pedro de Castro Picelli - Departamento de Sociologia/ Programa de Pós
Graduação em Sociologia da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP)
1. Resumo
O que pode haver de novo em um debate tão revisitado quanto o do escravismo
na obra de Gilberto Freyre? Propomos retornar à temática da escravidão em Freyre
mas, desta vez, agarrando-a enquanto categoria analítica, mobilizada
sociologicamente de maneira mais ampla. Partiremos, então, do desenvolvimento
teórico-metodológico da noção de escravidão no capítulo “O escravo negro e a vida
sexual e de família do brasileiro”, de Casa Grande & Senzala. Nos interessa pensar
maneiras pelas quais o sociólogo pernambucano reorganizou teoricamente horizontes
políticos da modernidade na periferia do capitalismo através de seus argumentos. E,
sobretudo, como estes produziram um terreno fértil para a imaginação de um Brasil
patriarcal mais que moderno de nascença. Para isso, mostraremos as referências de
nosso autor a um debate pouquíssimo mencionado nas críticas à sua obra: o do
escravismo nos Estados Unidos e os encaminhamentos teóricos desta questão no pós-
abolição. Este interesse parte da necessidade de continuar situando autores de nosso
pensamento social à sociologia global, tendo no horizonte as ideias como forças
sociais.
2. A escravidão patriarcal em Casa-Grande & Senzala: críticas, desdobramentos
e uma outra proposta.
Se olharmos para a constelação de ideias a respeito de nossa formação nacional,
uma das mais destacadas será a da escravidão benevolente. Ao consolidar-se,
organizou simbolicamente noções de um regime de sujeição menos intransponível e
mais plástico que teria permitido à sociedade patriarcal organizar-se equilibrando
antagonismos; afinando os contrários em compasso à brutalidade intrínseca ao próprio
modo de produção escravista. Não há dúvidas também de que ao mirarmos para este
corpo luminoso, encontraremos Gilberto Freyre e Casa Grande & Senzala. No
entanto, assim como a luminosidade dos astros, suas ideias só se realizaram no
movimento de encontro com seus portadores – e com as ferramentas de observação
disponíveis, em tempos e espaços diferentes.
Se do lançamento da obra, em 1933, até a década de 1950, este tipo de tese
sobre a escravidão encontrou boa recepção em parte importante da teoria social
brasileira, ela foi amplamente questionada pela “escola paulista de sociologia” e, mais
a frente, pela historiografia social dos anos 1980/1990.1 Estas “matrizes” teórico-
metodológicas de pesquisa produziram uma vasta bibliografia sobre o escravismo no
Brasil, apontando ambas para a necessidade de superação do modo freyreano de
caracterização do sistema e de seus desdobramentos; a novidade da segunda foi a
retomada desse elemento destacando também os problemas no argumento sobre a
anomia da população escravizada elaborada nos anos 1960, principalmente em A
integração do negro na sociedade de classe (1964) de Florestan Fernandes. Uma
terceira forma de contra-argumento ao modelo historiográfico de Freyre está
localizada em trabalhos que buscaram justificá-la recorrendo à origem do autor por
meio de uma “política da memória”.2
É possível destacar duas críticas recorrentes nos trabalhos de releitura de Casa
Grande & Senzala que optaram por retomar a obra a partir da caracterização do
escravismo patriarcal na economia interna do texto. Uma apontou para as fragilidades
historiográficas da obra Freyre – seja metodológica-teoricamente ou das
impossibilidades de generalização da experiência dos engenhos de açúcar nordestinos.
A outra explicou sua anterior como decorrência imediata da origem social do autor,
pressupondo seus interesses políticos no manejo das fontes para a construção
argumentativa. Entretanto, não é difícil notarmos nessas críticas uma oposição
involuntária entre aspectos internos e externos do trabalho, pouco atenta para o caráter
reflexivo que os compõe. Isto é, convencionou-se fazer a crítica agarrando-se na
ausência de “rigor científico” da obra, para também justificá-las a partir dos interesses
políticos de seu autor. Não explicitando, contudo, quais mediações analíticas são
1 Não é objetivo deste artigo desdobrar estas críticas, com as quais concordamos em grande medida.
Em período próximo ao da “escola paulista, por exemplo, temos os trabalhos da historiadora Emilia
Viotti da Costa e de outros/as historiadores que apontaram a dimensão violenta da escravidão no Brasil. Sugere-se como referência para acompanhar este debate uma breve entrevista com Jacob Gorender,
onde ele pontua autores que se debruçaram sobre a escravidão no Brasil. Liberalismo escravidão:
entrevista com Jacob Gorender; Estudos Avançados 16 (46); São Paulo; 2002. Não obstante, há
outros/outras importantes autores/autoras que se debruçaram sobre o tema e não foram citados/as aqui
por mera escolha de que o texto não se alongue em demasia.
2 Um exemplo de texto muito instigante sobre o tema é: Melo, Alfredo César; Saudosismo e crítica
social em Casa Grande & Senzala: a articulação de uma política da memória e de uma utopia; Estudos
Avançados; 23 (67); São Paulo; 2009.
possíveis de serem feitas entre elas, para não se perder de vista as possibilidades de
realização destas ideias enquanto forças sociais.3 Como nos esforçaremos em
demonstrar, a escravidão patriarcal é mobilizada interessadamente por Freyre
enquanto categoria sociológica e, portanto, política. E não porque política. Elaborada
na própria luta social empreendida pelo autor, como ele mesmo sugere em alguns de
seus textos. É este “portanto” que julgamos ser necessário compreender para
organizarmos novos horizontes críticos à obra.4
Gilberto Freyre nos oferece ao menos três pistas que nos instigam a desdobrar
esta hipótese. Duas estão colocadas imediatamente, uma após a outra, no Prefácio à
1ª edição do texto de 1933; a última, está no Prefácio à 3ª edição de Sociologia:
Introdução ao estudo dos seus princípios, texto de 1969. Apesar dos mais de trinta
anos que separam os escritos, é a preocupação do autor com a recepção de sua obra –
vejamos, por exemplo, os inúmeros novos prefácios a cada edição – que nos permite
considerarmos uma tentativa de controle argumentativo não linear entre esses
indícios. Se Casa-Grande & Senzala5 é definido pelo autor como um “ensaio de
sociologia genética e de história social” em que “pretende fixar e às vezes interpretar
alguns dos aspectos mais significativos da formação da família brasileira. (FREYRE,
2013, p.50)”, é em “Sobrados e Mucambos (1936)” e “Ordem e Progresso (1957)”
que desdobrará uma questão já presente em 1933: o pós-abolição criou “um
proletariado de condições menos favoráveis de vida do que a massa escrava”. Esta
preocupação, nitidamente de ordem política, é para Freyre também sociológica, pois
a Sociologia seria uma ferramenta fundamental para “substituir a abstração jurídica e
política por uma orientação mais ligada ao funcionamento da sociedade. (MEUCCI in
3 É importante ressaltarmos que não estamos julgando ou nos opondo a estas leituras – com as quais
concordamos. Estamos sugerindo, na verdade, uma outra forma de agarrarmos o problema e
realizarmos a crítica a Freyre pensando sempre nas consequências de suas ideias.
4 Neste sentido, partir do pressuposto de que para Freyre sua descrição do escravismo é,
simultaneamente, um exercício sociológico quanto político, nos faz sair da crítica que se contenta em
apresentar as evidentes incongruências históricas do autor. Nos obriga a pensar quais os impactos e
qual retórica argumentativa é constantemente reiterada nas tradições intelectuais conservadoras no país.
5 Neste artigo trabalhamos com o texto da 52ª edição, publicada no ano de 2013 pela Editora Global.
Freyre, Gilberto; Casa-Grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime patriarcal;
São Paulo: Global, 2013 [52ª edição].
FREYRE, 2009, p.20)”. Assim, interessa ao sociólogo pernambucano observar “em
que direção vem a Sociologia se tornando especificamente sociológica? (FREYRE,
2009, p.35)”
Nosso objetivo, a partir dos elementos expostos anteriormente, é apresentar
outra possibilidade analítica para o modo como problema do escravismo patriarcal é
construído no livro de 1933; menos retomando as críticas já realizadas, mas,
sobretudo, as colocando a partir de interesses teóricos pouco observados na obra do
próprio autor. Se tivéssemos que defini-los objetivamente: como o argumento de
Freyre bebe de uma tradição intelectual que procurou reorganizar horizontes teórico-
políticos da modernidade através da herança colonial? Ou seja, como ele pensa, de
maneira global, a organização de um Brasil moderno sem que para isso seja necessário
alterar os horizontes de participação social pós 1888? Dialogaremos com trabalhos
mais recentes na área de pensamento social, buscando os aportes teóricos e
metodológicos que eles possam nos oferecer para respondermos estas questões.
João Marcelo Maia (2011, p.71) sustenta a importância de inserirmos os
trabalhos da área pensamento social brasileiro “em uma história transnacional mais
ampla do pensamento periférico”, recuperando a “sociologia global” como recurso
analítico. Isto, pois, “se a teoria social refere-se a enunciados gerais, que visam
explicar os fundamentos da ação e da ordem, não faria sentido imaginar que ela se
pulverize em tradições nacionais, circunscritas a um vocabulário idiossincrático e/ou
paroquial.” (MAIA, 2011, p. 72) Assim, um passo adiante no diálogo com nossa
linhagem intelectual seria articular a “história do pensamento social” à “história global
da sociologia”, sem rivalizar texto e contexto. É desta maneira que sugerimos nos
apropriar de partes do argumento de Casa-Grande & Senzala. Como bússola para uma
revisitação da sociologia global, estaremos dialogando implicitamente com o trabalho
de Raewyn Connell, “O Império e a criação de uma ciência social”. A partir dele,
delimitamos os horizontes de temas e autores caros à reflexão das ciências sociais na
virada do XIX para o XX- e que foram extremamente mobilizados por Freyre ao longo
de todo o livro.
Por esta perspectiva é que nos parece fundamental engajarmos o pensamento
no “movimento reflexivo entre as ideias e a empiria do mundo social (CHAGURI,
2020, p.335). E neste sentido, tomar “o processo de avanço do capitalismo, a
consequente liberalização e o predomínio do público sobre o privado (BASTOS,
2006, p.96)” como planos de fundo da imaginação social de Freyre – mesmo que não
tenham sido sua preocupação central. Por esta razão, Casa-Grande & Senzala pode
ser lido, como nos sugere Brasil Pinheiro-Machado, enquanto um livro de crise:
material, epistemológica e cognitiva. Uma obra na qual o avanço do capitalismo não
passa despercebido.
*
Este artigo se estrutura da seguinte forma. Na próxima seção, retomaremos
brevemente o modo como Gilberto Freyre constrói seus argumentos pelas páginas de
“O escravo negro na vida sexual e de família do brasileiro”, o quarto de Casa-Grande
& Senzala. Nosso principal interesse está na elaboração teórica sobre o escravismo na
economia interna do texto, observando recurso às fontes interpretativas teóricas e as
“evidências” historiográficas levantadas por Freyre. Delimitado nosso objeto,
argumentaremos que a relação sociológica entre escravismo e patriarcalismo não está
colocada nesse capítulo de barato – seja na dimensão macro do encadeamento de
capítulos, como em suas escolhas teóricas da seção. É neste momento que Freyre
indica a escravidão enquanto uma categoria sociológica e, portanto, política. Nos
interessa mostrar como o debate estabelecido pelo autor com uma tradição liberal do
pensamento estadunidense sobre a família e sobre a abolição escravocrata no “deep
South” se constrói no encadeamento lógico do texto. É neste momento que o autor
mobiliza outros referenciais, até então pouco explorados no livro.
Nosso objetivo é mostrar que o elemento que permite mobilizar estas ideias na
obra freyreana é exatamente sua concepção de sociologia genética ou histórica social.
E isso nos possibilita retornar as consequências sociológicas e políticas produzidas
pelas ideias de Casa-Grande & Senzala; sem que para isso seja necessário apartarmos
as ideias – e nem a política- da sociedade.
3. A escravidão em “O escravo negro na vida sexual e de família do brasileiro”.
É possível acentuar uma questão que orienta o percurso analítico de Gilberto
Freyre no capítulo dedicado ao escravizado na vida íntima do brasileiro- e que aparece
de maneira tangencial nos anteriores: qual a forma de socialização possível no Brasil?
Nos parece interessante observar que ela se consolida mais na discussão sobre o
escravismo patriarcal do que no debate sobre a plasticidade do colonizador, por
exemplo. E se estamos corretos, não é a experiência histórica da escravidão que Freyre
alça ao primeiro plano do argumento, mas a forma de socialização mais duradoura
entre os atores sociais que ela permite captar sociologicamente. Em qual direção essa
escolha impacta o desdobramento da argumentação? Retomando Élide Rugai Bastos,
é – em nossa leitura- assim que o autor pode consolidar teoricamente a família
patriarcal como núcleo central da explicação sociológica, sem ter de apartá-la
politicamente da ideia de propriedade (BASTOS, 2006, p. 185). Por meio deste
enquadramento teórico-metodológico, Freyre transita a todo momento entre a crítica
da escravidão e a sua elegia, sem criar dissonâncias entre estes aspectos; sem que fosse
necessário, assim, dissociar teoria e política, amalgamando-as na ideia de
patriarcalismo como nosso índice moderno.
Neste sentido, o percurso de caracterizações do “negro” e do “escravo” que
ocupam as primeiras páginas do capítulo IV não se torna despropositado. É no intuito
de objetivar nossa forma de socialização que o sociólogo pernambucano investe nestas
definições. A partir delas, enfatiza-se a passagem do “indíviduo” à “pessoa”
(FREYRE, 2009) através das fontes documentais de cultura popular coligidas neste
momento da obra. Seu esforço está, então, em qualificar as maneiras pelas quais o
“negro” e o “escravizado” atuaram sobre o tipo de sociabilidade do brasileiro – e como
foram afetados pelo mesmo processo; e isto se dá, sobretudo, diferenciando-os, seja
pela contraposição às explicações racialistas da virada do XIX ou pela definição dos
“estoques mais adiantados” das populações africanas que foram majoritariamente
traficadas ao Brasil. A primeira conclusão da seção é que “a formação brasileira foi
beneficiada pelo melhor da cultura negra da África [...]” (FREYRE, 2013, p.382).
Possibilitando definir, assim, uma função “civilizadora” e “criativa” para o
escravizado na colonização brasileira.
No entanto, a consideração deste papel civilizador está intrinsicamente
relacionada à “degradação” sofrida pelo africano no escravismo. Analiticamente, a
constatação sobre o aspecto violento do cativeiro faz com que Freyre abandone o
signo do “negro degradado” de sua leitura sociológica sobre nossa formação. “Sempre
que consideramos a influência do negro sobre a vida íntima do brasileiro, é a ação
do escravo, e não a do negro por si, que apreciamos. (FREYRE, 2013)” A partir de
então, não é mais a experiência histórica da escravidão que importa descrever, mas
sim a forma assumida pelo “sistema social da escravidão”. Um sistema que rebaixou
moralmente senhores e cativos, desenraizou e deformou o negro em nossa primeira
fase de vida independente, promoveu a depravação sexual e, no entanto, reuniu “duas
metades confraternizantes”; marcando, assim, a ascensão do indivíduo a “lugares de
família”, passando da condição de escravo à pessoa de casa (ibid, p. 435).
Como – e por que- a passagem do “negro” e do “escravo” aos “lugares de
família” se dá especificamente neste capítulo?
3.1 Referenciais teóricos do capítulo.
Élide Rugai Bastos (2003; 2006) observou que, a despeito dívida intelectual de
Gilberto Freyre com o culturalismo de Franz Boas, muitas das referências mobilizadas
em Casa-Grande & Senzala – em suas distintas edições e escritos posteriores-
passaram despercebidas por seus leitores. Entre elas, a influência de autores do
pensamento ibérico- como Ortega y Gasset, Unamuno, Ganivet, etc- que foram
fundamentais para Freyre ancorar suas exposições sobre o iberismo, o
lusotropicalismo e a democracia no Brasil. Também há ao longo do capítulo quatro,
infindáveis 235 notas – bibliográficas e documentais- que foram pouco exploradas
como ferramenta de leitura da obra de 1933. Nelas, a maioria dos referenciais
mobilizados por Freyre nos capítulos anteriores se dissolve. Se olhadas de maneira
mais aproximada, elas podem indicar uma mudança de caminho analítico e uma
combinação teórica interessante para o modo como o problema do livro é deixado em
aberto para Sobrados e Mucambos (1936) e Ordem e Progresso (1957).
A tradição ibérica dá espaço ao culturalismo de Boas, mas também a uma
diversidade de autores do pensamento social e político estadunidense (de maioria
liberal) que pensaram os impactos da abolição nos Estados Unidos através da família
patriarcal e do trabalho livre. No capítulo IV, esta “linhagem” é retomada através de
A social history of the American Family from colonial times to present6 obra do
sociólogo Arthur W. Calhoum; bisneto do filósofo, ex-presidente e liberal-
escravocrata John C. Calhoun. É no diálogo com a reflexão liberal que Freyre articula
as três pistas apresentadas em sua concepção sobre a prática sociológica; partindo de
Casa-Grande & Senzala como um ensaio de sociologia genética para definir a forma
de socialização brasileira, realizada pelo patriarcado e realizadora de nossa
modernidade política.
Começamos por Sociologia: introdução ao estudo de seus princípios, livro em
que Gilberto Freyre sistematiza sua “artesania de ideias sociológicas” (MEUCCI,
2009, p.12). Esta sistematização, como observa Simone Meucci (ibid, p.14), reclamou
“um esforço de conversão da “prática” interpretativa num “sistema conceitual”
passível de ser transmitido a especialistas e futuros especialistas no ramo de
conhecimento em questão.” Em nossa leitura, é no prefácio à 2ª edição, escrito entre
1955 e 1972, que o sociólogo sintetiza sua interpretação da prática sociológica. Ela
seria o “estudo principalmente de formas, de processos, de funções de convivência humana
[...]” (FREYRE, 2009, p. 66- grifo nosso). Assim, a Sociologia pôde ser apresentada como
uma “ciência mista, híbrida ou anfíbia, em parte natural, em parte cultural” (ibid, p.77) que
deve observar a “diversidade de situações humanas” (ibid, p.83).
Esta definição é desdobrada no capítulo introdutório da obra, onde seu
argumento mais geral aponta a própria disciplina como objeto e instrumento analítico
de compreensão dos contrários em convivência – subjetiva, política & teoricamente:
Não opomos, no estudo sociológico, as muitas sociologias à Sociologia única,
nem a natureza à cultura, nem diversidade à universalidade, nem a objetividade
à subjetividade como inimigos inconciliáveis, mas como antagonismo que
podem, a nosso ver, ser harmonizados; e que, de qualquer modo, possam ou não
ser harmonizados, existem. Não traímos à Sociologia geral pelas sociologias
especiais, nem a cultura pela natureza, nem a universalidade pela diversidade,
nem a objetividade pela subjetividade por inconstância ou versatilidade
6 No capítulo IV de Casa-Grande & Senzala, a obra de A.W. Calhoun é a nota de abertura e de
fechamento da seção.
intelectual: apenas reconhecemos que, em Sociologia, são inevitáveis as
especialidades e a subjetividade. O objeto de estudo sociológico nos parece ser
a Sociologia assim complexamente compreendida; e classificada como ciência ainda imatura. (FREYRE, 2009, p.84)
Assim, se as sociologias oferecem as ferramentas analíticas de conhecimento
das formas constitutivas da convivência humana, elas também o são seu objeto.
Entretanto, não se trataria de afirmar qualquer experiência empírica como alvo de
interesse do sociólogo. O limiar da investigação propriamente sociológica se
assentaria na diferenciação entre o “difusamente social” e o “propriamente
sociológico”; na separação analítica entre o “fato histórico singular” e as “formas e
processos”. Estes últimos seriam, então, os elementos de interesse da “sociologia
genética ou histórica” para o estudo da articulação dos “aspectos dinâmicos e
recorrentes” de instituições e grupos (FREYRE, 2009). Recuperando o título da obra
que nos interessa, casa-grande e senzala são sociologicamente interessantes se
observadas formalmente enquanto dinâmica & recorrência. Como o autor as mobiliza
em termos sociológicos para a explicação de nossa formação social?
O primeiro passo de Freyre é definir o ensaio enquanto um esforço de
Sociologia Genética ou Histórica, entendida como
aquela sociologia cuja história de grupos, instituições e pessoas, sendo quanto
possível história natural, torna-se, de certa altura em diante, peculiarmente humana, social e cultural através não da simples descrição mas também da
compreensão pelo sociólogo, dos fenômenos sociais, pessoais e de cultura. (FREYRE, 2009, p.356)
Há dois interesses explicitados por essa definição. Primeiro, as instituições, grupos e
pessoas só podem ser de interesse da Sociologia se iluminarem o fenômeno
sociológico enquanto “processos de socialização” (MEUCCI, 2009) – ou seja, a
passagem do “indivíduo” à “pessoa”. Assim, se iluminar não é apenas descrever, mas
interpretar e compreender a realidade, pressupõe-se a capacidade do sociólogo em
produzi-la na busca pelos sentidos das ações históricas dos agentes em horizontes
determinados anteriormente.
Freyre discorre, então, sobre possibilidades metodológicas de apreensão
metodológica da “condição híbrida da realidade social” (FREYRE, 2009, p.356). Em
determinado momento, o alvo da crítica torna-se o materialismo histórico por,
segundo o autor, ter limitado a importância dos fatores físicos, culturais e pessoais
para explicação das transformações econômicas. Como exemplo, Freyre recorre à
transformação da “técnica de produção, de escravocrata em livre [...]” (ibid, p.359); a
síntese de seu argumento é que esta passagem não foi “apenas ou sempre
soberanamente econômica”, mas “antes política que econômica” (ibid). Portanto,
sociologicamente multifacetada. E em quais instituições ele ancora essa percepção
sociológica dos fatores políticos da mudança social? Na família, no casamento e em
suas “expressões naturais” (como o “sexo e a infância”). Está armado teoricamente o
problema que lhe permite construir uma sofisticada argumentação sociológica sob o
caráter político de reiteração das formas sociais. Em síntese,
[...] os aspectos jurídico e político das instituições e dos processos sociais são
especializações de formas sociais que tendem a repetir-se em espaços e épocas
diversas como formas, mas como substâncias desiguais, com conteúdos
diferentes, com significados éticos, religiosos, ideológicos, econômicos vários.
(FREYRE, 2009, p.225)
Eis o problema teórico e, portanto, político. Neste sentido, a escravidão
iluminaria tanto eventos históricos, quanto a forma de socialização brasileira
politicamente mais duradoura. Passível de ser observada enquanto um fenômeno
sociológico, de acordo com as considerações de Freyre. Então, a quem o autor recorre
para construí-la teórico-metodologicamente o capítulo IV?
O caminho argumentativo do capítulo é construído deliberadamente sob a
tensão entre o escravismo enquanto experiência histórica rebaixadora e expressão
formal de estruturas mais profundas da sociabilidade brasileira. Esta, por sua vez,
realizada na força social do patriarcalismo, teoricamente construído através do
processo social que fez do “negro”, “escravo” no complexo casa grande & senzala.
Se por um lado, a escravidão torna-se condenável ao “rebaixar moralmente”
“indivíduos”, o branco e o negro; por outro, ela é fundamental na sociabilização em
países de herança colonial, produzindo nossos processos de existência no mundo
senhorial & escravocrata.
Estes dois debates estão fundamentalmente informados pela segunda pista que
trouxemos algumas páginas atrás. No argumento do autor, o processo iniciado em
1808, e acentuado no golpe final do pós-abolição, teria criado “um proletariado de
condições menos favoráveis de vida do que a massa escrava” (FREYRE, 2013, p. 51).
Assim, do processo concluído em 1889 emergiram embates entre os agentes sociais e
forma de socialização apontada por Freyre, que complexificaram os sentidos de
ajustamento das relações vigentes. Se é neste caldo histórico em que a crise do poder
patriarcal se desenrola, é no capítulo IV da obra de 1933 da trilogia freyreana que a
família patriarcal, o escravismo e o embate político se conectam sociologicamente,
sem que para isso fosse necessário explicitar seus pressupostos.7 De onde emerge e
como localizar esse modo de colocar o problema através da economia interna do
texto? Sugiro atentarmos para as notas 1, 35 e 231 para não nos alongarmos em
demasia.
Figura 1: Tabela de notas (grifos nossos)
Nota Obras
referenciadas
Autoria Onde está a nota?
1 “A social history of
the American
family from
colonial times to
the present” (1918)
Arthur W. Calhoun No seguinte
parágrafo escrito por
Freyre:
“ Já houve quem
insinuasse a
possibilidade de se
desenvolver das
relações íntimas da
criança branca com a
ama de leite negra
muito do pendor
sexual que se nota
pelas mulheres de cor
no filho-família dos
países escravocratas.
A importância
psíquica do ato de
mamar, dos seus
efeitos sobre a
criança, é na verdade
7 Como apontamos anteriormente, as consequências da crise do patriarcalismo são melhores
trabalhadas em “Sobrados e Mucambos” (1936). No entanto, em nossa leitura, é no capítulo IV obra
de 1933 que o modo de colocar o problema se apresenta e reverbera nos trabalhos seguintes; o método
sociológico é apresentado sustentando a lógica política do embate entre as ideias sobre o escravismo,
o pós-abolição e a democracia no país.
considerada enorme
pelos psicólogos
modernos; e talvez
tenha alguma razão
Calhoun para supo
esses efeitos de
grande significação
no caso de brancos
criados por amas
negras.”
35 “The Negro in
American
Civilization”
(1930) e “Shadow
of
plantation”(1934)
Charles S. Johnson Esta nota se localiza
no momento em que
Freyre traz para o
argumento as
diferenças de Q.I
entre os “negros do
norte e do sul dos
Estados Unidos.”
No entanto, o que nos
interessa é a
justificativa que o
autor dá para seu uso
no desenrolar da
própria nota: “Todos
estes estudos
oferecem páginas de
considerável
interesse para efeitos
de comparação com a
influência do negro
na vida e na cultura
do Brasil,
particularmente sob a
influência do regime
de trabalho escravo.”
“The American
negro” (1901)
William H. Thomas
“The Negro”
(1915)
W. E. B. Dubois
“The mobility of the
negro: A Study in
the American Labor
Supply” (1932)
E. W. Lewis
“The negro as
capitalist” (1936)
A.L Harris
“The free negro
family”(1932)
E. Franklin Frazier
“Up from
slavery”(1901)
Booker T.
Washington
231 “A social history of
the American
family from
colonial times to
the present” (1918)
Arthur W. Calhoun Parágrafo de Freyre,
onde os itálicos são
frases literais de
Calhoum:
“No sul dos Estados
Unidos, como em
Cuba, a criança e a
mulher sofreram
passivamente, nas
casas-grandes, as
mesmas influências,
não tanto de “clima”,
nem da “simiesca
lubricidade
africana”, como do
sistema de produção
econômica e de
organização
patriarcal da família,
sofridos pelo menino
e pela sihá-dona, nos
engenhos e nas
fazendas do Brasil.
No Brasil, os
meninos de engenho
anteciparam-se aos
do sertão em
experiências de
mulher, os do sul dos
Estados Unidos
anteciparam-se aos
do norte. Refere
Calhoun que um
negociante do sul em
visita a amigos de
Nova York
informou-os de que
estivera há pouco na
fazenda de um seu
irmão; e que aí todos
os escravos
domésticos estavam
sofrendo de doença
venérea; e no meio
deles, não tardando a
se infeccionarem, os
filhos do fazendeiro.
Era o mesmo que
crescessem e
educassem num
bordel. (“I told him
he might as well have
them educated in a
brothel at once”).
Interessante é
também este
depoimento do velho
escravocrata de
Alabama recolhido
por Calhoun: que na
sua fazenda, “every
young man [...]
became addicted to
fornication at na
early age”. O mesmo
que nos engenhos do
Brasil.
As referências teóricas de autores lidos por Freyre e indicados na nota 35 são,
de fato, muito interessantes para se tentar apreender certas nuances do argumento do
sociólogo. Ainda mais se contrastadas com o “objetivo” do capítulo IV, que não é o
de pensar as consequências do pós-abolição na relação entre ex-senhores e ex-
escravizados amplamente; mas, antes, delimitar a forma de socialização organizada
no modo de produção escravista nos engenhos de açúcar desde a colonização
portuguesa, com interesse na influência do “escravo” na “vida íntima do brasileiro”.
Essa nota, em específico, chama a atenção pelo trânsito entre autores negros muito
influentes no debate político estadunidense sobre as consequências do escravismo e
de sua abolição. E, se para estes, o processo abolicionista ainda não havia atingido
três gerações completas da sociedade, a situação na qual Gilberto pensava o seu Brasil
era semelhante. Os debates vão de estudos sobre as famílias libertas estadunidenses-
E. Franklin Frazier-, a mobilidade das populações negras no Estados Unidos pós-
abolicionista- Charles S. Johnson e William H. Thomas-, passando pelos debates
originados pelo “Compromisso de Atlanta” (1895) de B.T Washington e sua crítica
por W.E.B Dubois até chegar na reflexão do “negro como capitalista” - do economista
e antropólogo Abraham L. Harris.
Se tomadas apenas como notas, elas parecem pouco dialogar com o objetivo do
capítulo. Aparentemente, funcionariam mais como sugestões de leitura ou mostra de
eruditismo do que como componente fundamental do próprio texto. Contudo, é
através destes materiais que Freyre parece sedimentar teoricamente – para si e para
quem o lê- as consequências políticas e sociológicas do pós-abolição; organizando-as
através da leitura de autores negros do debate público estadunidense com os quais
tomou contato, muito provavelmente, em sua passagem pelas Universidades de
Baylor e Colúmbia. Obras cujo incômodo central ou de plano de fundo estava na
preocupação com os novos modos de convivência entre “brancos” e “negros” nas mais
diversas dimensões da vida social após a 13ª Emenda. Dito de outra maneira, nos
modos como a realização da sociedade burguesa – e de seus ideais- se tornaria possível
em uma sociedade de herança colonial. O mais provocativo, em nossa opinião, é
Gilberto Freyre cruzar comparativamente o período escravista no Brasil recorrendo às
experiências de liberdade de ex-escravizados no país norte-americano.
E esta comparação concorreria na economia interna do texto para amenizar as
brutais relações escravistas brasileiras quando contrastadas com a dos Estados Unidos,
como parte da crítica a Freyre sugeriu em relação ao trabalho de 1933? Não nos parece
ser a intenção argumentativa do autor. Sobretudo, porque ela é sociologicamente
mobilizada para posicionar o problema visando suas consequências políticas; isto é,
não se trataria de afirmar a suavidade do escravismo no Brasil – embora também se
preste a isso- mas apontar de maneira interessada8 a seleção de possíveis similitudes
políticas duradouras dos eventos históricos em países de matriz colonial. Assim, os
fenômenos sociológicos – objetos da Sociologia Genética/Histórica – de localidades
atravessadas pelo colonialismo patriarcal escravista – como por exemplo, o “deep
South” e os engenhos de açúcar brasileiros – poderiam ser tomados por sua matriz
8 Ressaltamos o termo “interessada” para sublinhar que o modo como Freyre mobiliza estes autores
parte de um interesse muito pontual do autor, sem necessariamente coincidir com a lógica
argumentativa das obras originais.
política. Se sua argumentação se constrói, então, na passagem do “negro” ao
“escravo” (do indivíduo a pessoa), ele também se arma simultaneamente no
enfraquecimento de nossa forma de socialização; que é tomado como exemplo
heurístico em Sobrados e Mocambos no problema do “mulato”.
Se - como estamos tentando demonstrar- esta preocupação já ocupa um espaço
importante na reflexão de 1933, a pergunta a ser feita, então, é qual elemento permite
a comparação sociológica esboçada por Freyre entre estas duas experiências
escravistas? Nossa hipótese está no modo de construção teórica da família patriarcal
que Gilberto Freyre encontra no trabalho de Arthur W. Calhoun.9
“A social history of the American family from colonial times to the present”
(1917) é uma obra em três volumes do professor Calhoun, cujo desenvolvimento é
an attempt to develop an understanding of the forces that have been
operative in the evolution of family instutions in the United States. They
set forth the nature of the influences that have shaped marriage,
controlled fecundity, determined the respective status of the father,
mother, child, attached relative, and servant, influenced sexul morality,
and governed the function of the family as na educational, economic,
moral and espiritual institution as also its relation to state, industry, and
society in general in the matter of social control. The work is
primarily a contribution to genetic sociology. (CALHOUN, 1917, p.9,
grifos nossos)10
Esta proposta buscou compreender e sistematizar, segundo o próprio autor (ibid), a
família estadunidense enquanto instituição social e uma das forças operativas no
desenvolvimento material da sociedade estadunidense.
9 Arthur Wallace Calhoun iniciou seus estudos na Universidade de Pittsburgh, passando ainda pelas
Universidade de Wisconsin (1913), Clark Univesity (1916) e completando-os na Universidade de
Columbia. Lecionou disciplinas de Língua Inglesa, Alemã e Latim, além de História e Sociologia, no New Windsor College, St.Petersburgh High School, Florida State College, etc. É no retorno a Clark
University (1916) que Calhoun se torna membro de um seleto grupo de pesquisas e professor assistente
de economia. O currículo universitário do autor é marcado pelas passagens por inúmeras instituições
(dentre elas, como professor assistente da cadeira de Sociologia na Universidade de Kentucky). No
entanto, são os seus trabalhos na educação de trabalhadores no Brookwood Labor College que o torna
reconhecido
10 Optamos por conservar a citação no idioma oficial para que uma tradução nossa não provocasse
alterações significativas no texto original.
O primeiro volume da trilogia nos parece explicitar as ferramentas teóricas e
metodológicas que Gilberto Freyre mobiliza intensamente, embora sem explicitá-las,
em Casa-Grande & Senzala. A escrita do livro I por Calhoun cobre o período colonial,
apresentando o desenvolvimento da família nos Estados Unidos como um produto: a)
dos folkways europeus; b) da transição econômica para o capitalismo moderno; c) e
do distintivo meio ambiente, ainda virgem (CALHOUN, 1917, p. 10). Calhoun esboça
um ponto de partida de pesquisa que nos sugere ter sido retomado por Freyre como
linha guia de sua obra- seja no método, como na escolha teórica.11 Isto é, ambos
definem a família como complexo social resultante de três fatores fundamentais: da
influência de tradições colonizadoras, da transição econômica e do meio ambiente
(entendidos em termos culturais e/ou raciais). E, no limite, como instituição que existe
como produto das experiências humanas e as condicionam.
Se estes elementos parecem inspirar o ensaio sobre a formação da família
patriarcal brasileira, é na defesa de Calhoun do abolicionismo como uma das formas
de modernização do sul escravocrata – pela superação do patriarcalismo- que se dá o
distanciamento de Freyre. Principalmente, pois aquele o coloca sob a chave do
controle social; enquanto um problema que viria a ser superado na evolução histórica
– e não na dinâmica sociológica - das instituições que foram pilares da sociedade
colonial: o casamento, a casa e a família.12 Ou sintetizando através da questão
levantada por Calhoun (CALHOUN, 1919 apud HOWARD): "free, democratic
society care to exercise such rigorous social control as to produce the externals of
conformity to any particular marriage type?” Assim, a reflexão de Calhoun se
sustenta predominantemente na explicação histórica da vida social, o que para Freyre
11 Freyre, em Sociologia (2009, p.350) reconhece que esta obra de Calhoun é um dos poucos trabalhos
da sociologia norte-americana que se apresentaram como importantes obras de Sociologia Genética ou
Histórica.
12 Há uma interessante resenha deste trabalho de Calhoun publicada na seção “Reviews” da “The
American Journal of Sociology”, de autoria de George Elliot Howard (presidente da American
Sociological Society em 1917). Embora tenhamos encontrado o texto em formato digital, não localizamos suas referências catalográficas e nem o anos de escrita. Entretanto deixamos o link para
consulta (https://www.journals.uchicago.edu/doi/pdf/10.1086/213002) e faremos referência apenas
pelo sobrenome do autor. Segundo Howard, Calhoun define o “household” (doméstico/domesticidade)
como resultado da influência de uma “trindade”: o lar, o casamento e a família.
– como estamos apontando- não seria suficiente, posto que deixaria de articular os
“aspectos dinâmicos e recorrentes” próprios dos desenvolvimentos históricos. Não
apreendendo a forma de socialização que informaria os próprios processos históricos
(a própria família patriarcal).
Para Calhoun “in general, the colonial family is presented as a property
institution dominated by middle class standards, and operating as an agency of social
control in the midst of a social order governed by the interests of a forceful aristocracy
which shaped religion, education, politics, and all else to its own profit.”
(CALHOUN, 1917, p.10). Se este autor aponta para as “patologias familiares”13 como
consequências do modo de formação patriarcal no sul dos Estados Unidos, Freyre o
contrapõe em Casa-Grande & Senzala afirmando que elas são constitutivas da própria
formação destas sociedades14; pois não existiria escravidão – e, portanto, a
socialização colonial, que transforma indivíduos em pessoas- sem “depravação
sexual” (Freyre, 2013) e violência. Não haveria, portanto, incompatibilidade teórica
e, muito menos, política em afirmar caracterizar a escravidão como Freyre o faz; ela
seria um fenômeno histórico e sociológico. É com este horizonte que o autor
encaminha seus argumentos; não enxergando problema algum na violência de nossa
sociabilidade.
Historicamente – em sua “substância” - possível de ser condenada, mas
sociologicamente – em sua “forma” - condição de existência do patriarcalismo. O que
permite com que o autor faça as passagens de uma para outra é o modo como constrói
a categoria de escravidão informada pela disputa política constitutiva do exercício
sociológico, como já expusemos. “[...] Os aspectos jurídico e político das instituições
e dos processos sociais são especializações de formas sociais que tendem a repetir-se
em espaços e épocas diversas como formas, mas como substâncias desiguais, com
13 O capítulo XIII de Calhoun é intitulado “Family pathology and social censorship in the colonial
South” e é aberto com a seguinte frase: “The colonial South had its share of irregularities in the relations
between husbands and wives, parents and children.” (Calhoun, 1917, p.300). É a partir desta seção que
Calhoun desdobra o problema da servidão e da sexualidade no sul escravocrata.
14 Esta contraposição é explicitada nas notas 88 e 89 do capítulo IV de Casa Grande & Senzala, quando
Freyre retoma passagens da obra de Calhoun em relação a sexualidade no sul escravocrata.
conteúdos diferentes, com significados éticos, religiosos, ideológicos, econômicos
vários.” (FREYRE, 2009, p. 225) No entanto, qual o aparato que sustenta a reflexão
e os elementos desdobrados em 1936 e 1957?
3.2- Referenciais políticos do capítulo: hipóteses para uma agenda de pesquisa.
Até aqui buscamos revisitar o problema da escravidão em Gilberto Freyre
argumentando que ela seria melhor enfrentada na economia interna do texto se tomada
em uma leitura que privilegiasse a reflexividade social do próprio texto. Nosso
pressuposto era de que esta escolha implicaria no esforço de, em um primeiro
momento, abstrairmos as qualificações possíveis ao esforço descritivo de Freyre. Isto,
porque, não se trataria de opor a leitura textual à contextual da obra, mas mostrar como
estas dimensões são constitutivas uma da outra dentro da própria intencionalidade do
argumento do autor. Logo, nossa hipótese é a de que objeto da Sociologia é
sociológico à medida que também é político nas reflexões de Freyre; e entre elas não
haveria relação de anterioridade ou causalidade, mas de mútua implicância. É esta
compreensão que permite interpelar as ideias como forças sociais, mas também
imaginar formas de confrontá-las em seus desdobramentos.
Para isso, retornamos a Sociologia (2009) a fim de entender a proposta de Freyre
em seu “ensaio de sociologia genética ou histórica” - escrito revisitado pelo autor
sempre que possível. Não retomaremos ponto a ponto o que já foi escrito, no entanto
gostaríamos de ressaltar elementos que nos parecem fundamentais para
encaminharmos o fechamento deste texto. O primeiro deles é a necessidade de
inserção de Gilberto Freyre em um debate sociológico transnacional mais amplo; o
segundo é a sua construção metodológica a respeito do objeto da sociologia levando
em conta as especificidades dos problemas de interesse sociológico em países
colonizados serem antes de ordem política do que econômica; e por fim, a inspiração
de Freyre no trabalho de Calhoun sobre a formação da família patriarcal no sul dos
Estados Unidos. Defendemos que estes elementos se combinariam de maneira
particular no capítulo IV ao caracterizar a forma de socialização possível e duradoura
no país. Curiosamente é através da escravidão que Freyre a define mais enfaticamente,
pois permitiria captar os traços históricos e sociológicos de nossa formação íntima –
definida de maneira próxima ao do “deep South”, e não em sua contraposição.
O desenrolar da argumentação, no entanto, se afasta substancialmente dos
desdobramentos presentes em sua obra de referência teórico-metodológica, “A social
history of the American family from colonial times to the present”. E este movimento,
como já dissemos anteriormente, não se realiza no sentido de marcar a particularidade
da formação brasileira. Mas antes, na direção de apontar as consequências políticas
transnacionais da decadência patriarcal em sociedades de formação colonial escravista
- basicamente o que é feito nas obras 1936 e 1957. Ou seja, a suposta formação de
uma massa trabalhadora em piores condições de existência que os escravizados-
problema ainda apontado no Prefácio à 1ª edição de 1933. A trilogia de Freyre oferece
poucas evidências bibliográficas para mapearmos as origens desta tese e com quais
obras ele a compartilhava. Contudo, é evidente que este debate é profundamente
influenciado pela passagem de Gilberto pelos Estados Unidos, como o próprio autor
revela no mesmo prefácio ao citar suas companhias de viagem pelo sul dos Estados
Unidos. Entre elas está o historiador Francis Butler Simkins e seus estudos sobre a
Carolina do Sul e a “Era de Reconstrução”, no pós guerra de secessão estadunidense.
Assim, nos parece evidente que o sociólogo brasileiro teve, em alguma medida,
contato com as reflexões políticas estadunidense a respeito das consequências
imediatas do fim do escravismo e das relações estabelecidas a partir de então.
Contudo, as referências bibliográficas apontadas em Casa Grande & Senzala
tendem a considerar o processo de decadência do patriarcalismo escravista sem muitas
ressalvas. O que difere frontalmente do desdobramento argumentativo de Freyre. Mas
com qual literatura ele estaria dialogando, então? Nossa hipótese, acidentalmente
formulada através de leituras paralelas, está no debate liberal do sul escravocrata da
primeira metade do século XIX.
Abrimos um rápido parênteses. Sempre nos interessou, a partir de leituras dos
trabalhos do pensamento social, as maneiras pelas quais a escravidão se consolidou
enquanto um imaginário capaz de orientar as descrições e os possíveis rumos da
sociedade brasileira. Mesmo enquanto um evento de concretude histórica das
sociedades coloniais, nos chamava atenção como sua caracterização sempre foi alvo
de intensas disputas da reflexão sobre a mudança social. Um objeto em que se investiu
profundamente nossa memória coletiva; a despeito, inclusive, dos estudos
historiográficos contemporâneos que nos permitem iluminar o passado de outros
modos.
Em determinado momento das leituras a respeito desse tema, cruzamos com o
problema clássico de nosso pensamento social sobre o liberalismo em um país
escravocrata. Demos um passo atrás, buscando compreender em quais medidas o
pensamento liberal em países que haviam passado por “revoluções liberais” havia se
preocupado com esta questão. Chegamos em “Contra-História do Liberalismo”, obra
de Domenico Losurdo. Nela tínhamos como interesse principal, investigar as
maneiras pelas quais os “clássicos” do pensamento liberal abordavam o problema da
escravidão. Neste livro, há dois interessantes capítulos – “Liberalismo e escravidão
racial: um singular parto gêmeo” e “Os servos brancos entre metrópole e colônias: a
sociedade protoliberal”-, em que Losurdo retoma autores consagrados nesta matriz
teórica para demonstrar as articulações do repertório liberal de “igualdade” às
questões do escravismo.
Nestes textos, Losurdo vai de Grotius a Locke, recuperando Monstesquieu, na
tentativa de situar as “bandeiras de liberdade” e o desenvolvimento da escravidão
como “duas faces” de uma mesma moeda – paridas em um mesmo parto. No entanto,
as relações estabelecidas entre elas seriam cheias de “tensões e contradições”
(LOSURDO, 2006, P.58-9). Tentando apreendê-las a partir do próprio movimento
histórico, o autor chega aos debates prévios a Guerra de Secessão (1861-1865). Surge,
então, referências sucessivas a John C. Calhoun, ex-vice presidente dos Estados
Unidos durante as presidências de John Quincy Adams (1825-1829) e Andrew
Jackson (1829-1832). Estávamos lendo Freyre e Losurdo simultaneamente. E,
portanto, convivendo com dois Calhouns; os dois da mesma família- Arthur bisneto
de John.15 O mais novo não faz referências ao bisavô no livro que Freyre usa como
15 A partir da repetição de sobrenomes, consultamos dois historiadores para saber a possibilidade de
descobrirmos se existiu algum tipo de parentesco entre os autores e, se sim, qual o grau. Entre as sugestões, surgiu a possibilidade de investigarmos as árvores genealógicas através da plataforma
internacional Family Search (https://www.familysearch.org/pt/). Por meio delas, descobrimos esse
grau de parentesco. Agradecemos, então, a Talison Pichel e Vitor Menini pela contribuição de enorme
valia.
referência no quarto capítulo de Casa-Grande & Senzala. No entanto, o argumento
do mais velho ressoa no texto do sociólogo pernambucano eloquentemente.
John C. Calhoun também foi um filósofo político estadunidense e passou maior
parte de sua vida na Carolina do Sul. A principal tese defendida por ele, ainda na
metade do século XIX, foi a da escravidão enquanto um “bem positivo” (Calhoun
apud Losurdo, 2006, p.83). Isto porque, para o autor, foi o Norte responsável pela
“traição dos princípios liberais da Revolução Americanas” (Losurdo, 2006, p.83).
Losurdo recupera Calhoun em um ponto fundamental: “a defesa da liberdade humana
contra as agressões de um poder despótico foi sempre particularmente eficaz nos
estados nos quais a escravidão doméstica se firmou” (Calhoun apud Losurdo, 2006,
p.183). Isto pois, por exemplo, as próprias condições dos “escravos americanos”
seriam mais positivas que às “dos detentos da Inglaterra nas casas de trabalho ou nos
abrigos paras pobres: os primeiros cercados de cuidados [...] os segundo reduzidos a
uma condição ‘desumana e ‘abjeta’” (Calhoun apud Losurdo, 2006, p.91). Os textos
de J. Calhoun recuperados por Losurdo foram compilados em Union and Liberty: the
political philosophy of John C. Calhoun em 1992 por Ross M. Lence. Nos parece que
um deles antecipa uma série de questões colocadas por Freyre em sua trilogia. É de
“Speech of the reception of abolition petitions” (Calhoun, 1992) que traremos
algumas questões.
Este “discurso” – de 6 de fevereiro de 1937- realizado por Calhoun é
consequência das inúmeras petições recebidas por ele no Congresso que pediam a
restrição da abolição da escravatura, em especial no distrito de Columbia. O filósofo
e político argumentava que, no limite, estas questões não estavam na competência
desta instância legislativa, posto que a própria constituição deixava sob
responsabilidade dos estados decidirem sobre esta questão (Lence apud Calhoun,
1992, 461). De acordo com Lence (1992), é nesta reflexão que Calhoun articula a
ideia de que a escravidão poderia ser visto como um “bem positivo”; neste sentido, as
petições tornavam-se hostis não à escravidão mas a todo modo de vida e cultura do
Sul. E esse modo de vida escravista, segundo Calhoun, não poderia ser tomado em
sua abstração- entendida, por exemplo, através do horror produzido por ela- mas pela
“justaposição” entre “duas raças de homens, de diferentes cores, em notáveis
diferenças de formações, hábitos, e milhares de outras particularidades [...]” (Calhoun,
1992, p.467). Here the existence of slavery as good to both. (ibid)
E ela só se tornaria um bem pois as condições de vida no sul escravocrata seriam
mais “confortáveis, respeitáveis e civilizadas” do que aquelas encontradas pela “raça
da África Central” (ibid). O desdobramento do argumento se dá na observação das
condições de vida no sul- o reproduziremos integralmente, já nos desculpando pela
extensão. É este tipo de lógica argumentativa que acreditamos informar a dimensão
política da retórica teórica freyriana no capítulo IV de Casa Grande & Senzala.
Obviamente, esta hipótese carece de ser desdobrada – ou descartada- em futuras
agendas de pesquisa que investiguem as aproximações de Freyre com o pensamento
“liberal” pré-abolicionista dos Estados Unidos. No entanto, ele nos parece bastante
provocativo para consolidar o argumento explorado neste paper.
The population doubled in the same ratio with that of the whites--a proof
of ease and plenty; while, with respect to civilization, it nearly kept pace
with that of the owners; and as to the effect upon the whites, would it be
affirmed that they were inferior to others, that they were less patriotic,
less intelligent, less humane, less brave, than where slavery did not exist?
He was not aware that any inferiority was pretended. Both races,
therefore, appeared to thrive under the practical operation of this
institution. The experiment was in progress, but had not been completed.
The world had not seen modem society go through the entire process, and he claimed that its judgment should be postponed for another ten years.
The social experiment was going on both at the North and the South--in
the one with almost pure and unlimited democracy, and in the other with
a mixed race. Thus far, the results of the experiment had been in favor of
the South. Southern society had been far less agitated, and he would
venture to predict that its condition would prove by far the most secure,
and by far the most favorable to the preservation of liberty. (CALHOUN,
1992, 467-8)
4. Conclusões.
Este paper buscou apresentar uma outra possibilidade de leitura da escravidão
na obra de Gilberto Freyre; especificamente, a partir do capítulo “O escravo negro
na vida sexual e de família do brasileiro”, quarto capítulo de Casa-Grande &
Senzala. Procuramos nos distanciar teórica e metodologicamente das críticas
anteriores. Isto é, acreditamos que o paradoxo da escravidão em Freyre é melhor
tomado se entendido enquanto uma categoria teórica, portanto, política. Isto é,
demonstrando como texto e contexto vão se implicando mutuamente na economia
interna do argumento, sem que para explicá-la seja necessário separar a explicação
contextualista da textualista.
Aproximando-se da filosofia política e do pensamento sociológico
estadunidense do século XIX e início do século XX, Freyre organiza seu raciocínio
tomando a Sociologia enquanto uma prática teórica reflexivamente política. Ela,
pois, seria uma das ferramentas capazes de orientar – ou melhor compreender- as
formas sociológicas que alicerçariam o desenvolvimento histórico das sociedades.
É no emaranhado sociologia/política que Freyre pode afirmar o patriarcalismo
enquanto a força inescapável a que as dinâmicas sociais brasileiras – mas também
as de herança colonial- estariam submetidas. Ele seria o responsável por nossa
condição moderna, a despeito dos efeitos do escravismo que Freyre aponta. O que
se impõe, em nossa percepção, é repensar leituras críticas do escravismo em
Gilberto Freyre, sabendo que é fundamental encará-lo em sua sofisticada
amarração sociológica. Nos valendo teórica & politicamente da Sociologia como
uma ferramenta de luta social para a ampliação dos horizontes de participação
democrática. Solapando, assim, nossas “noções de modernidade” como oposição a
cultura de direitos, ideia politicamente acentuada por Gilberto Freyre.
Bibliografia:
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Meucci, Simone; “Singularidades, revelações e ocultações da “Sociologia de Gilberto
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Paulo: É Realizações, 2009.
Nota Bibliográfica:
Howard, George E.; Neste paper utilizamos uma resenha da obra de A.W. Calhoun
publicada na seção “Reviews” da “The American Journal of Sociology”, de autoria
de George Elliot Howard (presidente da American Sociological Society em 1917).
Embora tenhamos encontrado o texto em formato digital, não localizamos suas
referências catalográficas e nem o ano de publicação. Entretanto deixamos o link para
consulta (https://www.journals.uchicago.edu/doi/pdf/10.1086/213002).