Post on 10-Nov-2018
Hilda Hilst: a poesia no ato de se recontar
Johnny dos Santos Lima- UFGD 1Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Letras
da Faculdade de Comunicação Artes e Letras,
da Universidade Federal da Grande Dourados.
Bolsista CAPES/CNPq. (johnnydsl@hotmail.com)
Resumo: A poesia é a base deste trabalho, pois marca o início da escrita de Hilda Hilst. A
autora se denomina “poeta”, com o emprego masculino da palavra. É pautado nesta afirmação
que objetivamos explorar, além da obra, aspectos biográficos de Hilda Hilst pela voz da própria
autora. Pretende-se verificar como a literata utiliza o fazer poético dentro de outros gêneros
literários como a dramaturgia e a ficção, campos percorridos durante sua carreira na ânsia de
ser lida e aclamada pelo público. A apropriação da escrita hilstiana pelos três gêneros que
compõem a literatura consolida o caráter hibrido de sua obra. Essa investigação vem auxiliar e
despertar interesse de novos leitores O método de pesquisa foi de caráter bibliográfico
compostas por estudiosos da autora, entrevistas e teóricos que conceituam a poesia na
modernidade como Pécora (2010), Destri e Diniz (2010), Dias (2010) e Paz (1972). Em síntese,
a escritora passa por todos os gêneros da literatura: lírico, épico e dramático, sendo o primeiro
deles a base de sustentação para toda sua obra, além de existir uma apropriação das formas de
escrita dramatúrgicas que permaneceram também em sua ficção.
Palavras-chave: Hilda Hilst, Poesia, Literatura.
Abstract: Poetry is the basis of this work, as it marks the beginning of the writing of Hilda
Hilst. The author is called "poet", with the masculine use of the word. It is based on this
statement that we intend to explore, besides the work, biographical aspects of Hilda Hilst by
the voice of the author herself. It is intended to verify how the literata uses the poetic make in
other literary genres such as dramaturgy and fiction, fields of which the writer went during her
career in the eagerness to be read and acclaimed by the public. The appropriation of the Hilstian
script by the three genres that compose the literature consolidates the hybrid character of his
work. This research helps and arouses the interest of new readers for his work, apparently little
explored by the public in general. The research methods used were bibliographical references
composed by the author's authors, interviews and theorists who conceptualize poetry in
modernity as Pécora (2010), Destri and Diniz (2010), Dias (2010) and Paz (1972). The research
that sought to verify the work and life of Hilda Hilst by means of its voice demonstrates an
approach of the hilostian poetic make to the concepts of modern poetry of Otavio Paz. In
summary, the writer goes through all the genres of literature: lyrical, epic and dramatic, being
the first one of them, the base of sustentation for all his work, besides being an appropriation
of the forms of writing dramaturgicas that also remained in his fiction.
Keywords: Hilda Hilst, Poetry, Literature.
Introdução
Não se trata, neste trabalho, de apresentar conceitos teóricos sobre a biografia, mas
demonstrar representações de si feitas por Hilda Hilst principalmente em sua produção teatral.
Os estudos dramatúrgicos não apontam nenhuma teoria da escrita de si especifica para o teatro1,
o que podemos fazer são algumas aproximações, uma vez que também a dramaturgia de Hilda
Hilst não é autobiográfica nem biográfica, porque não fala claramente sobre sua vida e obra.
Hilda de Almeida Prado Hilst nasceu em 21 de abril de 19302, na cidade de Jaú, interior
de São Paulo, filha de Benedita Vaz Cardoso, imigrante Portuguesa, e do poeta, escritor e
fazendeiro de café Apolônio de Almeida Prado Hilst. Em 1937, ingressa no Colégio Santa
Marcelina, em São Paulo capital, como aluna interna, onde cursou o primário e o antigo
“ginásio”. Estudou na escola secundária no Instituto Presbiteriano Mackenzie, e, em 1948,
entra na Faculdade de Direito do Largo São Francisco, da Universidade de São Paulo (USP).
Publica seu primeiro livro de poesia, Presságio, em 1950, quando ainda cursava Direito, aos
20 anos. A partir daí, sua poesia ganha forma e escreve outros livros. Com a morte do pai, em
1966, muda-se para a Casa do Sol, em Campinas (SP), frequentada por artistas de diferentes
áreas. No ano seguinte, começa a escrever suas peças teatrais. As primeiras foram A Empresa
e O Rato no Muro, concluindo-as no fim de 67 e publica também mais um livro: Poesia. Casa-
se com Dante Casarini, em setembro de 1968, ano em que escreve O Visitante, Auto da barca
de Camiri, O Novo Sistema e inicia As Aves da Noite, no litoral de São Paulo. Lá constrói a
Casa da Lua para passar algumas temporadas. A morte do patriarca e O verdugo foram escritas
em 1969, à segunda recebeu Prêmio Anchieta no mesmo ano. Depois disso Hilda Hilst não
voltará a escrever teatro, sua dedicação será para os textos ficcionais e retomará a escrita
poética após uma pausa de sete anos (1967-1974). A escritora faleceu no Hospital das Clínicas
em São Paulo no dia 04 de fevereiro de 2004.
As entrevistas cedidas por Hilst, que se encontram no livro: Fico besta quando me
entendem (2013), permitem perceber uma aproximação significativa de sua vida, representada
em seus textos teatrais por um espaço biográfico da escrita, termo sugerido por Leonor Arfuch
(2010) para dar conta das novas abordagens da escrita de si, que se sobrepõem a ideia do pacto
autobiográfico defendido por Lejeune. Porque “não é tanto o ‘conteúdo’ do relato por si mesmo
1“Formalmente, ainda não está definido o que seria uma autobiografia no teatro. Tendo em vista que a condição
primeira para uma peça receber essa chancela seria a coincidência entre o nome do autor e do personagem
principal, temos que admitir que são raros os espetáculos que se incluem nessa categoria. Mesmo sem descartar a
existência de um texto dramático que cumpra tal exigência, podemos falar apenas de tentativas autobiográficas
ou mesmo de peças de inspiração autobiográfica presumida, em função de forte semelhança entre a trama
encenada e a vida do autor (TOLEDO, 2008, p.17)”. 2 Sobre a data de seu nascimento, é curioso lembrar que Hilst nasceu no dia em que morre Tiradentes, além disso,
segundo ela, foi concebida no dia da queda da Bastilha, 14 de julho: “São datas importantes demais. Tenho medo
do que pode me acontecer” (HILST, 2013, p.226).
- a coleção de acontecimentos, momentos, atitudes -, mas precisamente as estratégias -
ficcionais - de autorrepresentação que importa” (ARFUCH, 2010, p.75). Por meio deste olhar,
é importante ressaltar que Hilda Hilst escreve teatro no período em que o pais está regido pelos
militares e sua dramaturgia aparece representada por estratégias de escrita, como as metáforas
e analogias, já que a repressão tratava de calar a voz do povo:
A “escrita de si” impõe-se como necessidade de ressignificação do passado
pessoal, mas também coletivo, de outra perspectiva, já que se inscreve num
momento dramático da história brasileira, o período de ditadura militar, e
prossegue nas décadas seguintes de reconstrução democrática (RAGO, 2013,
p.57).
Hilst, além de falar de si, em muitos momentos representa a sociedade brasileira dos
anos de 1960, aponta seus costumes, o comportamento social e reescreve a história de si dentro
da história coletiva do país. A dramaturga utiliza de lembranças e influências de suas
experiências para recriar os acontecimentos de sua vida no texto teatral3, que, nas palavras de
Arfuch, “coloca em cena mais do que a lembrança de um tempo vivido, o mecanismo fascinante
da escrita, a produção incansável de intertextualidade” (p.136). A dramaturga faz uso de
recursos ficcionais de autorrepresentação, a intertextualidade de Hilda Hilst vai além de textos
referencias, mas é uma mescla de sua própria vida. A autora assume, em algumas entrevistas,
que empresta um pouco de si para seus personagens:
Eu acho que o escritor quase sempre está inteiro naquilo que escreve.
Existem, claro, momentos que não fazem parte de sua vida, mas acredito que
o escritor está totalizado naquilo que escreve e, penso, isso não é só uma coisa
minha. Você vai desdobrando possíveis personalidades suas, as
personalidades tem tudo a ver com uma parte do escritor que foi levada a um
extremo de maldade, ou de beleza, ou de perfeição (HILST, 2013, p.149).
A fala de Hilda Hilst vai ao encontro com esse espaço biográfico em que se configuram
suas obras. São os detalhes que constroem o “eu” da escrita de si hilstiana na dramaturgia, dos
quais pretendemos mostrar neste trabalho.
3 Hilda Hilst escreve de si não só porque ao ler seu teatro encontramos aspectos biográficos, que ela empresta para
as personagens, mas também, porque “escrever-se é, portanto, um modo de transformar o vivido em experiência,
marcando sua própria temporalidade e afirmando sua diferença na atualidade” (RAGO, 2013, p.56). Entendemos
“escrever-se” como alguém que se coloca na obra dentro desse espaço biográfico, que não precisa ser
necessariamente assumido pelo autor.
O escritor está sempre falando de si mesmo4
Antes de se dedicar à escrita de textos para o teatro, Hilst iniciou sua carreia de escritora
pela poesia e já demonstrava o seu “eu” na forma lírica da escrita. Segundo Cintra:
Toda obra lírica é, em sua essência, uma fala de si. Em gradações múltiplas,
por razões históricas ou por objetivos específicos, a lírica é a manifestação
literária mais proeminente do eu, o espaço privilegiado da expressão do
sujeito em seu âmbito mais pleno (CINTRA, 2015, p.155).
A afirmação de Cintra se aproxima também de definições de T.S Eliot a respeito do
papel e da função do poeta em Tradição e Talento Individual (1989), que resgata aspectos já
vistos por Aristóteles em Póetica (2008), ao afirmar que a lírica é a manifestação mais
proeminente do eu dentro da literatura. A lírica seria a representação do eu, no sentido de
criação de imagem, que estabelece uma realidade, então, o poeta “cria realidades que possuem
verdade: a de sua própria existência” (PAZ, 1976, p.45). Logo, ao representar uma realidade
que parte de sua existência o poeta escreve de si.
Hilda Hilst imprimirá o “eu” de si em toda sua obra a partir da poesia, a título de
exemplificação trazemos o poema VI de Ode descontínua e remota para flauta e oboé: de
Ariana para Dionísio5, que está reunida em Da Poesia (2017):
Três luas, Dionísio, não te vejo.
Três luas percorro a Casa, a minha,
E entre o pátio e a figueira
Converso e passeio com meus cães
E fingindo altivez digo à minha estrela
Essa que é inteira prata, dez mil sóis
Sirius pressaga
Que Ariana pode estar sozinha
Sem Dionísio, sem riqueza ou fama
4 Referente à fala de Hilda Hilst em entrevista: “[...] É bem verdade que o escritor está sempre falando de si
mesmo, porque é somente através de nós que podemos nos aproximar dos outros. Desnudando-nos, procuramos
fazer com que os outros se incorporem ano nosso espaço de sedução. Estendemos as teias e desejamos que o outro
faça parte delas, não para devorá-lo, mas para que sinta perplexidade e faça a pergunta, para que tome
conhecimento da possível qualidade do nosso fio-sedução; caminhe conosco, num veículo que pode ser afetivo-
odioso” (HILST, 2013, p.34). 5 Os poemas reunidos neste capítulo do livro foram musicados por Zeca Baleiro em 2003, com aval da própria
Hilda Hilst e é interpretado por vozes grandes nomes da MPB, todas mulheres: Rita Ribeiro, Verônica Sabino,
Maria Bethânia, Jussara Silveira, Ângela Ro Ro, Ná Ozzetti, Zélia Duncan, Olívia Byington, Mônica Salmaso e
Ângela Maria.
Porque há dentro dela um sol maior:
Amor que se alimenta de uma chama
Movediça e lunada, mais luzente e alta
Quando tu, Dionísio, não estás.
(HISLT, 2017, p.259 – grifo nosso).
Hilda Hilst possuía grande admiração pelo pai e contou durante algumas entrevistas que
Apolônio teria a confundido com a mãe e pedido a ela três noites de amor, enquanto estava em
tratamento da esquizofrenia em um sanatório em São Paulo. Parece-nos que o poema retoma
este acontecimento indagando a ausência de Dionísio. A relação com o pai se tornará comum
em suas obras de ficção e é apresentada também no texto teatral6. A Casa do Sol, chamada
assim por Hilda Hilst, local em que morava em uma fazenda no interior de Campinas, esteve
sempre rodeada por cães que a autora resgatava da rua ou que apareciam por lá. Em fotografias
e relatos de amigos, Hilst é descrita ou vista em volta dos cachorros. A figueira é o elemento
símbolo da Casa do Sol, onde, segundo a própria Hilda, além dos encontros festivos em volta
da árvore, aconteciam coisas místicas. A solidão é uma das marcas registradas em sua obra,
presente nos versos e na ficção, retomada no poema ao lado da ausência da fama e da riqueza.
Sabe-se que Hilda Hilst reivindicou durante toda sua vida a ausência da crítica para seus livros
e que eles nunca ganharam o gosto popular e isso fazia com que a escritora tivesse uma
sensação de impopularidade. Os livros, durante o período em que Hilda Hilst esteve viva,
tiveram pouca tiragem e com isso ela não ganhava muito dinheiro, sobrevivia da herança dos
pais e, ao fim de sua vida, enfrentou problemas financeiros. Esta análise do poema recupera
muitos aspectos biográficos da vida de Hilda Hilst, já que:
É que a possibilidade de derivar em algum tipo de narrativa pessoal, mesmo
nos intercâmbios mais formais, parece estar sempre presente, animada pela
dinâmica mesma da relação intersubjetiva, por essa ideia de acontecimento,
algo que se produz aqui e agora, no momento da enunciação, e que, como
ancoragem na temporalidade, guarda relação com a existência (ARFUCH,
2010, p.163).
A marca de narrativa pessoal sugerida por Arfuch é ainda mais evidente na ficção de
Hilda Hilst, que resgata todos os temas já abordados em suas poesias e até mesmo em seus
6 “O ocorrido se tornaria bastante produtivo do ponto de vista literário – a figura do pai e as relações incestuosas
são recorrentes na obra hilstiana, tendo sido o episódio das três noites recriado em Kodosh (1973)” (DESTRI;
DINIZ, 2010, p. 51).
textos teatrais ligados por uma relação intersubjetiva. Entre os livros ficcionais, o destaque
para um espaço biográfico está em A obscena senhora D.. Hilst chegou a afirmar: “eu noto que
a personagem principal [Hillé] tem muito a ver com a minha pessoa” (HILST, 2013, p.149).
Alguns críticos dizem que Hillé é o alter ego de Hilda Hilst por diversas semelhanças com a
autora: a personagem tem 60 anos de idade, o texto é escrito em primeira pessoa (assim como
toda sua ficção), o nome da personagem possui semelhança com o nome da autora7. No trecho
a seguir, podemos notar novamente a alusão ao pai:
[...] amei alguém que se parecia contigo, minha filha, toca-me, talvez me
lembre, tinha um nome longo is e ás e es, mas isso não importa, cola-se àquele
rosto um outro rosto, nítidas dissimetrias, esse alguém me conhece nos meus
mínimos, esse alguém dois, essa mulher duas, Ehud, faça com que ela se deite
aqui comigo, essa tua mulher minha filha. (HILST, 2001, p.70).
A mãe de Hilda Hilst chama-se Bedelcida Vaz Cardoso, um nome longo com “is” e
“as” e “es”, referente ao sobrenome Vaz. A passagem parece um devaneio de múltiplas vozes
que tomam conta da narrativa, remetendo a uma loucura, da qual também aparece antes deste
momento no texto. Todas parecem passagens da vida de Hilda Hilst transfiguradas em ficção,
por isso não é biográfico, porém passeia por este espaço. Antes de entramos na dramaturgia
da autora é preciso resaltar que a poesia está presente em quase todo o seu fazer teatral. Hilda
Hilst lida com a força da palavra poética ao mesmo tempo em que aprende a trabalhar com a
prosa dramática, isso faz com que seus textos teatrais tenham forte influência lírica. Marca que
parece ser à base de sustentação de toda sua carreia, seja como cronista, poeta8, ficcionista ou
dramaturga. Por isso é possível reconhecer um hibridismo na prosa teatral e ficcional de Hilda
Hilst, que parece ter aprendido muito bem a ideia de antropofagismo dos modernistas. Seus
textos são hibridados e tornam-se uma mescla dos gêneros que ela escreveu em sua carreira:
lírico, épico e dramático.
Traços biográficos na dramaturgia poética de Hilda Hilst
7 Hilda Hilst usará vários nomes de personagens iniciados com H, “como, por exemplo, os Hamat, Hiram, Hakan,
Herot, Hemin etc. [...] São flexões de Hilda, como também Hilde ou Hillé...” (PECORA, 2010, p.14). 8 “A autora toda a vida se afirmou como poeta. Alegava que o termo poetisa referia-se a moças prendadas que
escreviam versos para ocupar o tempo” (DIAS, 2010, p.31).
Para falarmos de teatro e vida de Hilda Hilst começamos com o agente mais
questionado em suas obras: Deus. No teatro hilstiano, Deus não é uma figura inocente diante
das barbáries do mundo: “Carcereiro (Interrompendo gritando): Deus não é inocente.
Maximilian (Pausa. Sôfrego, para a Mulher) E depois? E depois?” (HILST, 2008, p.263).
As aves da noite é uma peça inspirada na história do Padre Maximilian Kolbe,
prisioneiro em Auschwitz, que se ofereceu para ficar no lugar de outro homem que teria entrado
em pânico ao ser sorteado para morrer no Porão da Fome. A cela é hoje um monumento e,
posteriormente, o Padre Maximilian kolbe recebeu a beatificação em Roma. Embora a peça
tenha referência biográfica da vida de um padre, seu enredo é a exploração do que poderia ter
ocorrido dentro da cela até que todos chegassem à morte. Hilda Hilst apenas se apropria do
acontecimento histórico para colocar seus questionamentos a Deus, sendo um de seus textos
teatrais que tem maior carga poética. As personagens não possuem nomes, são apenas tipos e
são em boa parte a autorrepresentação da própria autora. Talvez seja a peça que mais evidência
e coloca Deus em uma posição de culpado abertamente, livre das entrelinhas que seus outros
textos presumem:
SS: Um poeta? Muito bonito... Hans, leva prá fora, leva prá fora o porco
poeta. (Todos se aproximam muito do Poeta) Para trás, para trás. (O ajudante
afasta todos com violência) Vamos, todos cantando, cantando, la, la, ra, la...
Não querem mais cantar? Pena, pena. (Hans começa a arrastar o corpo do
Poeta para fora) Então um poeta... muito bonito... nós também temos grandes
poetas... espera um pouco Hans. (Começa a dizer lentamente)Sobre todos os
cimos /O repouso.
Sobre todos os cumes /Apenas leve sopro./Continua comigo Hans. (Os dois
juntos) /Calam os pássaros na mata/Espera, pois, e em breve /Também
descansarás. (Vão saindo, o SS dá risadas discretas e Hans só sorri) Muito
bonito... muito bonito... (Pausa longa)
Carcereiro (Para Maximilian. Tom ferido): Olha, toca em mim, toca em
você... Você acha que deus tem alguma coisa a ver com a gente? com tudo
isso que vai apodrecer? E se Ele tem alguma coisa a ver com a gente, Ele não
é inocente, Ele sabe. (Exaltado) De qualquer jeito ele não é inocente. Perto
de nós, muito longe de nós (HILST, 2008, p.273).
Deus é posto à prova. A poesia perde a credibilidade, pois até os SSs9 podem fazer
poesia. Sugerindo a questão, também levantada por Octavio Paz (1976): qualquer um pode
fazer poesia? Na peça, o Poeta é o primeiro a morrer. Quando Hilda Hilst deixa de escrever
poesia e se dedica ao teatro, não mata a poeta que existe dentro de si porque seu teatro também
é lírico. Porém, quando assumiu a literatura erótica, a crítica levantou essa hipótese, como se a
9 Soldados da organização paramilitar ligada ao comando Nazista, à chamada Schutzstaffel.
poeta estivesse morta. No momento em que a autora se dedica à escrita teatral, estabelece uma
relação de morte consigo mesma, nos remetendo à resposta do questionamento: Não é todo
mundo que pode fazer poesia. Entretanto, Hilda Hilst, acreditava que sua poesia era muito boa,
contudo, não ser lida lhe causava a sensação de estar morta. Como poeta, e durante toda sua
carreira, dedicou-se a acertar as contas com Deus, ao colocá-lo como culpado pelo “mal do
mundo”. Desafiá-lo, na escrita, era a busca por respostas10.
Hilda Hilst utiliza das lembranças da infância para dar voz às personagens, recriando
na ficção, um pouco de sua memória:
Mulher (Como uma confissão): Padre, eu quero dizer que... quando eu sinto
tanta alegria de não estar ali daquele jeito, o senhor entende? Eu consigo sentir
tanta alegria... é quase igual... quando eu era criança, a visita para os mortos
era um passeio lindo para mim, lindo. Eu nunca ficava triste quando visitava
os mortos, eu me dizia: eles não sentem mais nada, e eu estou aqui respirando
e dentro de mim havia um frescor, eu respirava várias vezes, sempre
repetindo: eu estou viva, eu estou viva... e tudo em volta de mim era
vida...apesar dos mortos. Eu olhava para o céu e de vez em quando passava
um bando de passarinhos e eu me lembro que um dia... quando eu era ainda
tão pequena... eu fiquei tão contente de estar ali, perto dos mortos, todavia
viva, fiquei tão contente de estar viva... eu era tão pequena...sabe o que eu
fiz? Eu levantei o meu vestidinho e comecei a rodar a rodar a rodar, até que
minha mãe pensou que algum espírito tinha me possuído, imagine... ela
chegou a pensar isso... um espírito.
Carcereiro (Interrompendo com desprezo): O espírito de quem?
Mulher: ... E eu continuava a rodar de alegria. E via o céu azul e os olhos da
minha mãe, escuros enormes...o céu azul e os olhos escuros... (A Mulher
parece ter se esquecido que está ali. Está contente) Que alegria de estar viva!
(O Carcereiro olha fixamente para a Mulher) Não me olhe assim. Você
parece o demônio (HILST, 2008, p.281).
A mulher conta sua relação com os mortos na infância e como a mãe reagiu. Hilda Hilst
reconheceu, por diversas vezes, que via anjos quando criança11 e já na vida adulta recebia a
visita de pessoas mortas, o que influenciou suas pesquisas radiofônicas com os colegas físicos.
A mulher de As aves da noite também se assemelha à Hilda Hilst:
Estudante: Você tem mulher?
Joalheiro: Tinha. Agora não sei mais.
Estudante: E os filhos?
10 “E eu desafiei-O muitas vezes em meus livros como uma blasfêmia, para ver se de repente dava um furor Nele
e Ele dizia: Está bem, eu estou aqui, ou seja o que for, surgisse qualquer luz impressionante, qualquer explicação
de algum ato mínimo da minha vida. Pois eu não compreendo mesmo nada”(HILST, 2013, p.91). 11 “Eu era menina, tinha uns sete anos, e um dia, dormindo com a minha mãe, abri os olhos e vi um anjo. Cutuquei
minha mãe e falei: Mãe, um anjo. E o anjo fez um sinal assim, para eu ficar quieta” (HILST, 2013, p. 205).
Joalheiro: Ela dizia que uma alma masculina tinha entrado no seu corpo.
Estudante: Sua mulher dizia isso?
Joalheiro: E quando uma alma masculina entra no corpo de uma mulher... ela
nunca tem filhos, você sabia? (HILST, 2008, p.289).
Os personagens de Hilda Hilst passeiam pela loucura causada pela dor e solidão,
inspirado em seu desejo de compreender a loucura do pai. Ela afirmou que não teve filhos por
medo de nascerem com esquizofrenia, já que médicos disseram ser uma possibilidade. Como
vemos, as referências biográficas se constituem nos detalhes. Hilst, enquanto mulher declarou
escrever como homem, não no sentido técnico, porém na forma de observar o mundo e
transportá-lo para o papel. Ela “possuía uma alma masculina”, como a mulher do joelheiro
representada em sua dramaturgia.
O verdugo trabalha com os dilemas de um homem, o Verdugo, que se encontra
desconsertado após ter visto os olhos do Homem e se encontrado através deles. Para ele o
Homem possui uma boa alma e ele não quer executa-lo. A Mulher e a Filha querem que o
Verdugo mate o homem, porque a justiça irá pagar bem pelo serviço e a filha poderá se casar.
O Filho é o único que fica ao lado do pai e acredita que o Homem é inocente. Ele é culpado de
“agitar as gentes, de falar demais”. Como o Verdugo não quer executar o serviço, sua esposa
se oferece para matar o Homem. No início os juízes ficam resistentes, mas, com a popularidade
do homem crescendo, decidem permitir que a mulher se disfarçasse de verdugo e faça o
trabalho. Filho e Verdugo acabam presos para que a mulher possa cumprir a tarefa, mas, no
desenrolar da história, conseguem escapar e vão até a praça onde aconteceria a execução do
Homem. A população fica confusa, começa a defender o Homem, mas quando sabem que teria
dinheiro envolvido em sua morte, mudam de ideia. Os juízes prometem dividir o dinheiro com
a população, o Verdugo tenta impedir a morte do Homem, mas acaba morto junto com ele.
A representação da mulher em O verdugo é extremamente forte, demonstra uma
personagem feminina à frente de seu tempo, assim como Hilda Hilst era vista pela sociedade
paulista na juventude. A personagem decide que se o marido não fizer o serviço, ela o fará, em
outras palavras, toma partido da situação. Ela acredita que apenas irá cumprir as ordens da lei:
“Mulher: Matar o homem... Que jeito de falar. Eu quero que as Excelências saibam que eu
posso cumprir a lei” (HILST, 2008, p.385). Vemos aqui, semelhança com o protagonismo
feminino de Hilda Hilst, por meio das tomadas de decisões. Um bom exemplo é quando decide
ir para a Casa do Sol com o intuito de se dedicar à literatura, já que em meio à sociedade
paulista, ficaria muito difícil ter tempo e tranquilidade para a escrita.
A lei é mostrada como corrupta, engana o povo e cumpre ordens de interesses
superiores, mostrando a hierarquia das relações humanas. O capitalismo é apresentado, vale
tudo por dinheiro, até mesmo matar. A mulher é inferiorizada em várias passagens; os homens
podem tudo, um alerta para a diferença dos direitos entre homens e mulheres. A destituição do
poder é apresentada quando qualquer um pode matar, semelhante a As Aves da noite, em que
qualquer um poderia ser poeta:
Verdugo (Ainda sem acreditar): Eu é que sou o verdugo, mulher.
Mulher: Qualquer um pode ser verdugo.
Verdugo (Lentamente): Fique quieta.
Mulher (Para os juízes): Os senhores não me deixam fazer o
serviço? (Os juízes abaixam as cabeças. Pausa longa)
Mulher (Para o verdugo): Claro, homem eles deixam.
(Os juízes continuam calados)
Verdugo (Para os juízes): Os senhores vão dar consentimento? A lei não
permite. Os senhores sabem que a lei não permite.
(Silêncio um pouco esticado)
Filho (Em tensão): Isso está certo. O pai tem razão. Não é permitido.
Filha (Desesperada, para o irmão): Você quer estragar a nossa vida? Sai
daqui.
Juiz jovem: Deixa, ele pode ficar. (Aproxima-se do jovem) Olha, moço, você
vai entender. (Para o verdugo) O senhor também. Não temos muito tempo
para explicar... mas...de uma certa forma também cumprimos ordens. Há
gente mais importante do que nós. Devemos dar atenção a certa gente
(HILST, 2008, p.387- grifo nosso).
No trecho acima, percebemos traços biográficos da personalidade que Hilda Hilst
apresenta em suas entrevistas. O descontentamento com a sua escrita que é vista, ao menos por
ela, como menor, por ser mulher, por escrever em português. Hilst alegou que, ao começar a
escrita de ficção erótica, não possuía leitores, também por ser mulher, enquanto outros autores
eróticos estavam no auge das vendas. Mesmo que a relação não esteja explícita, não deixamos
de refletir a respeito das marcas que Hilda Hilst transfere para as personagens, tornando-se
também uma forma de revelar sua visão de mundo e seus pensamentos: porque afirmou que
tudo o que desejou falar, escreveu.
Viver em um ambiente como o centro paulista, em que o supérfluo está instaurado, foi
um marco para Hilda Hilst. Transitar na noite e nos grupos de alta classe fez com que a autora
representasse a sociedade do consumo que marcava a época:
Verdugo (Para a filha): Esse dinheiro vai queimar a tua carne.
Filha (Tom suplicante): Pai, o homem já morreu. Não somos nós que vamos
matá-lo. Ele já está morto. Só falta a terra em cima do cara.
Verdugo: Está vivo. Vivo igual a mim.
Filha (Suplicante, amorosa): O senhor não vai agüentar muito tempo fazendo
o serviço. (Aproxima-se do pai) Não vai agüentar. O senhor é... bom demais...
e os outros pisam em nós quando não se tem dinheiro. (Tom entre choroso e
contente) Nós vamos ter coisas, vamos ter coisas.
Verdugo (Enojado): Que coisas?
Filha: Uma casa melhor, roupas.
Verdugo (Enojado, voz crescente): Uma casa? Esta não é uma casa? O que
eu tenho no corpo não é roupa? O que você veste não é roupa? O que você
come não é comida?
Filha (Com ódio): Não. É lixo. É lixo.
Noivo: A gente quer melhorar. A gente é jovem (HILST, 2008, p.398).
O desejo de possuir é característica da sociedade moderna, como observa Bauman em
Modernidade Líquida (2001). O “querer ter” é representado como desnecessário, é o ser
humano que está sempre descontente com o que tem. A peça de Hilda Hilst remete à
representação do religioso: Judas trai Jesus por algumas moedas e depois se arrepende do que
fez; a peça também gira em torno dessa representação. As mulheres querem o dinheiro, para
isso prendem o Filho e o Verdugo. Ao final, o marido acaba entregue aos juízes e é morto pela
população. Elas se arrependem do que fizeram, no entanto já é tarde, o filho, que escapa da
morte pelo povo, segue em frente com os coiotes, da mesma forma que fizeram os apóstolos
de Jesus após a sua morte. Hilda Hilst levanta mais questionamentos em seus textos teatrais do
que traz respostas.
A Mulher de As aves da noite sentia-se culpada por estar mostrando a contradição das
ações do ser humano diante das situações limites. Já o Verdugo se sente comovido com tudo
que é vivo e que não era:
Verdugo (Muito comovido): No começo eu pensei que fosse só a emoção de
estar vivo, você compreende? Eu pensava: (Tranqüiliza-se um pouco) É, eu
me comovo com a vida, com tudo o que está vivo, é isso. (Emociona-se
novamente) Mas depois essa coisa foi crescendo e até uma casa, uma parede
meio gasta me comovia... e até...
Filho: Até o que, pai? (Pausa)
Verdugo: Um osso, meu filho. Um osso me comovia. (Lentamente. Em voz
baixa) Não só a vida. A morte, a cinza das coisas, o vazio me comovia.
Filho: Meu Deus, pai. (Rumores lá fora)
Verdugo: É como eu sou, você compreende? Eu tentei... (Rumores mais altos
lá fora. Desesperado) Nós precisamos sair daqui (HILST, 2008, p.404).
Este recorte é retomado por Hilda Hilst em uma entrevista cedida em 1975 para
Delmiro Gonçalves na Folha de São Paulo12, para lembrar a sua sensibilidade, a fragilidade
enquanto escritora e a sua maneira de representar o mundo:
Em minha peça O verdugo, uma personagem diz que tudo a comovia; um
osso, as cinzas das coisas, um canto na parede, tudo era motivo de comoção,
para a pergunta, a pergunta nunca respondida inteiramente. Também o ato de
escrever para mim revela às vezes a insegurança, pois o escritor é um ser
frágil, inseguro, ansioso, que procura respostas para todos os mistérios da vida
(HILST, 2013, p.29).
Hilda Hilst buscou representar a mulher nessa peça de duas maneiras:
Cidadão 5: Mulher não pode ser verdugo.
(Frase solta: “A minha bem que podia” - Algum riso - Rumores)
Juiz velho: Esperem, nós queremos ser honestos com vocês. (Risos mais
audíveis) Escutem, se nós não cumprirmos a lei agora, amanhã vocês é que
serão mortos.
(Frases: “Nós?” - “Mortos?” - “Por quê?”)
Verdugo (Exaltado): É mentira, é mentira.
Cidadão 5 (Para os juízes): Por que a mulher está aí?
(Frases dos cidadãos: “É isso mesmo” - “Isso não pode” - “Por que,
hein?”) (HILST, 2008, p.410).
Primeiro, pelo empoderamento feminino, representado por uma mulher ousada e que
toma atitudes, que não se detém diante do que deve ser feito para garantir seus interesses.
Depois, apresenta uma sociedade patriarcal que despreza esse tipo de mulher, colocando
imposições sociais como o que uma mulher deve ou não fazer. Aqui está clara a menção a
comportamentos binários de distinção de gênero herdados de um passado que ainda se faz
presente. Mais uma vez, temos a comprovação da atemporalidade de sua escrita, que em
determinados momentos, apesar de todo o lirismo transposto da poesia para a dramaturgia, nos
parece tão atual. Notamos também que a opressão e a ameaça à população nos remetem ao
estado de exceção que viviam os brasileiros dos anos 60.
A peça O visitante é a que mais se difere de todas as outras, porque não discute
exatamente sobre a repressão como é possível perceber em outros textos teatrais de Hilst,
todavia apresentam concepções da traição e da beleza, heranças do patriarcado de uma mulher
que vivia rodeada de artistas e intelectuais da cidade de São Paulo. Hilda Hilst era uma mulher
muito desejada na juventude, sempre elogiada por sua beleza; seu pai também é referido como
12 No livro de entrevistas que Cristiano Destri organizou em 2013: Fico besta quando me entendem.
um homem muito bonito. No texto teatral, Ana e o Homem são descritos como personagens
que representem a beleza. Não convém entrar em uma definição do belo, mas podemos dizer
que, para a autora, o belo do homem e da mulher se relacionam com o que a sociedade aceita
como bonito ou feio.
O enredo faz relação com moralismos sociais como a traição, porque Ana está,
“milagrosamente”, grávida, em uma casa em que divide apenas com sua filha Maria e marido
dela (o Homem). Recebem uma visita de outro homem, o Meia – Verdade, o nome da
personagem é uma analogia a própria história da peça porque Maria desconfia da traição do
marido com a Mãe, até que Meia- Verdade chega para uma visita, um desconhecido que o
Homem encontrou no caminho e convidou à sua casa. No meio do conflito entre Ana e Maria,
Meia-Verdade tenta defender Ana e Maria passa a acreditar que o filho que Ana espera é dele
e não de seu Marido, o texto não deixa claro se Ana traiu ou não Maria com o Homem, então
temos a meia- verdade.
Parece-nos que em O visitante também se faz, novamente, a referência a história do pai
com a autora, entretanto numa versão invertida, porque na peça é a mãe que trai a filha. Essa
inversão também aparece em O Verdugo, ao apresentar um filho que, segundo a mãe, tem os
mesmos pensamentos do pai13, assim como Hilst. Talvez, tal alteração, tenha ocorrido pelo fato
da autora se identificar como um escritor, ou por declarar um tipo de preconceito contra a
escrita das mulheres14. Em todas as peças anteriores, o amor é apontado como a solução para
o mundo. Nesta, o amor encontra-se em crise, pois se relaciona não mais com as atitudes do
homem e do mundo, mas sim com o desejo da carne, do corpo. O que para Oliveira (2013) é a
primeira aparição do erotismo de Hilda Hilst antes de seus escritos, também o autor relaciona
a peça com Matamoros [Da Fantasia], primeira novela de Tu não te moves de ti (1991), escrita
posteriormente por Hilda Hilst; uma releitura da peça.
A dramaturga representa a gravidez de Ana com certo tom milagroso, indicado pelas
luzes que sugere a rubrica. Esta composição também pode ser correlacionada à sua infância,
em que dizia que queria ser santa15. Mesmo que esta não seja uma peça que trate exatamente
13 Hilda Hilst disse, em entrevistas e documentários, que a Mãe sempre lhe dizia que ela era como o pai,
referindo-se não aos aspectos físicos, mas de personalidade. 14 “Eu tenho uma certa diferença com as mulheres, porque sinto que elas não são profundas. Eu tenho um
preconceito mesmo em relação à mulher. Nunca conheci mulheres muito excepcionais como, por exemplo, Edith
Stein. Ela era uma mulher deslumbrante e uma santa também” (HILST, 2013, p.197). 15 “Quando eu tinha oito anos, minha maior vontade era ser santa. Eu estudava em um colégio de freiras, rezava
demais, vivia na capela. Sabia de cor a vida das santas. Eu ouvia a história daquela Santa Margarida, que bebia a
da censura, da repressão, do caráter humanitário que ela trabalha em outros textos, ainda assim,
mantém a ideia do aprisionamento humano, lida com o desejo, a traição, o milagre, a beleza
que é aceita pela sociedade, e, como afirma Oliveira (2013), é uma peça que retrata a quebra
da moral e dos bons costumes.
Considerações finais
Podemos notar que falta ainda uma teoria de si que dê conta do texto teatral, mas
consideramos que há espaços biográficos em todos os gêneros escritos por Hilda Hilst
representados por meio de sua marca poética. Definimos seu teatro como lírico para mostrar
que a autora está sempre se recontando por meio da poesia. Buscamos dar ênfase em sua
dramaturgia, por ser ainda um gênero pouco explorado dentro das obras estudadas de Hilda
Hilst. De modo geral, o teatro autobiográfico não é frequente nos estudos da dramaturgia.
Hoje, existem alguns musicais que trabalham com a biografia de artistas, principalmente de
músicos e alguns espetáculos inspirados na vida dos atores.
Hilda Hilst representa em sua dramaturgia uma escrita de si que fala da busca por
respostas de Deus, sempre levantando questionamentos que a própria autora assumiu durante
toda a sua vida e em toda sua produção literária. Nos textos teatrais também aparecem
questionamentos como a função e profissão do poeta, como notamos em As Aves da Noite.
Essa relação é vista como um conflito existencial de Hilda Hilst com a poesia, porque se
ausenta do fazer poético e se aventura pelo teatro e pela ficção.
O resgate das memórias de infância, com suas experiências com o divino, são traços
que aparecem em uma personagem mulher que estava relembrando, resgatando sua memória.
A loucura é o tema mais presente em suas obras, que no teatro aparece como um levantamento
crítico da capacidade do ser humano em compreender a si mesmo, retomando um pouco da
escrita de si. As mulheres do teatro hilstiano são personagens fortes que buscam o
enfrentamento social, que assumem posições masculinas na sociedade. Hilda Hilst dizia que
sua escolha por ser escritora deu-se não só porque o pai era poeta, mas porque queria provar
para ele que era brilhante, depois de saber que ele havia reprovado seu nascimento, ao ser
informado de que a criança não era um homem. Vemos aí que a autora se coloca no lugar do
água dos leprosos, e ficava impressionadíssima. Vomita todas as vezes que as freiras falavam disso. Elas diziam:
Não é para vomitar! Eu queria demais ser santa” (HILST, 2013, p.197).
pai, uma escritora que prefere ser chamada de poeta, uma mulher que decide escrever, atitude,
até então, consagrada por um cânone masculino.
Hilda também questiona a superficialidade dos grandes centros, um dos motivos para
abandonar São Paulo e morar no interior. Contudo, a autora deixa a escrita de si ao recontar-se
com nuances poéticas em toda a sua obra. Faz parte de uma história coletiva, pois resgata os
valores e costumes religiosos, ideológicos, binários e moralistas vividos durante o regime da
ditadura militar brasileira, e ainda assim consegue deixar a atemporalidade na escrita teatral
nos remetendo a atualidade. Em suma, seus textos teatrais apresentados neste trabalho
representam a si e ao momento histórico do Brasil na década de 1960, reafirmando um
hibridismo poético que marca toda sua obra, sem deixar de passar também por um espaço
biográfico, isto é, é sempre a poesia no ato de recontar-se.
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