Post on 28-Mar-2016
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histórias depontuar
ra uma vez uma história sem sinais de pontuação.
Uma história sem vírgulas, sem pontos finais e, claro, sem pontos
e vírgulas. Nesta história que parecia escrita de um só fôlego,
também não havia dois pontos nem travessões, por isso nunca
se sabia ao certo quando é que uma personagem ia falar para
dizer de sua justiça. Esta história não era, como se está mesmo
a ver, dada a grandes conversas, porque uma conversa implica
um diálogo, e um diálogo, quando é um diálogo por escrito, tem
de ter travessões. No entanto, nem por isso era uma história
sem voz, nada disso; era apenas uma história sem pausas, onde
parecia que tudo se passava sempre a correr. Era uma história
cheia de pressa, em que tudo era dito como quem está muito
cansado ou não tem tempo a perder. «Talvez o autor tivesse de
ir apanhar o comboio», diziam uns. «Talvez os pensamentos do
escritor fossem muito mais rápidos do que a velocidade da sua
Uma história para pontuar (se for caso disso)
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própria escrita», adiantavam outros, com ar introspetivo. Durante
muito tempo, nunca se soube por que razão a história não tinha
sinais de pontuação, mas isso, para dizer a verdade, também não
é muito importante. Aquilo que interessa, e isto posso afirmar
eu a pés juntos, é que foi por causa disso que os problemas
começaram.
Escrita de uma só vez e sem descanso, a história sem sinais de
pontuação estava mais sujeita do que as outras histórias a ter
várias interpretações. E por isso quem a lia acabava por não
conseguir compreender certas e determinadas coisas, porque as
ideias se atropelavam umas às outras e cada palavra parecia ser
engolida pela anterior, que, por sua vez, parecia que ia comer a
palavra seguinte. Era uma grande confusão e por isso cada leitor
lia a história à sua maneira (o que também acontece, claro, nas
histórias que têm sinais de pontuação).
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Uma decisão pontuada
oda a gente sabe onde moram os sinais de pontuação. Vivem dentro dos livros que se encontram nas bibliotecas, nas livrarias, nas casas de todos os leitores do mundo. Alguns volu-mes dedicam-lhes uma atenção particular, como por exemplo as gramáticas e os prontuários, que são livros especiais, por-que apesar de não contarem uma história definem as regras de bom comportamento da linguagem. Mas existem outros vo-lumes, como é o caso do livro onde estava escrita a história sem sinais de pontuação, que não se importam muito com isso e tratam os sinais de pontuação como se eles não existissem. E foi assim que os problemas se agravaram: os sinais de pon-tuação começaram a ficar tão indignados que por pouco não fizeram uma revolução. Mas, depois de pensarem melhor, de-cidiram simplesmente fazer uma reunião clandestina.
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Então, numa certa noite, quando já muitos leitores tinham pousado os livros que andavam a ler na mesa de cabeceira ou em cima da almofada do sofá onde dorme o gato, numa dessas noites em que já todos sonhavam uma história onde o dia de cada um se confundia com o livro que andava a ser lido, dando assim origem a milhares de sonhos diferentes com histórias onde a ficção se mistura com a realidade, nessa noite todos os sinais de pontuação se reuniram na Biblioteca Nacional para discutir aquilo que andavam a pontuar nesta vida. De uma forma ou de outra, todos pensavam que estavam a perder o que restava da sua autoestima. Queriam impor a sua presença e marcar o ritmo das narrativas, mas para isso, pen-savam eles, era necessário assentarem alguns pontos.
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epois de a D. Gramática ler a ordem de trabalhos da reu-
nião, o Sr. Prontuário deu a palavra à Vírgula, mais conhecida en-
tre alguns amigos por Virgulina. A Vírgula Virgulina estava bas-
tante transtornada e sentia que a sua vida era assombrada pela
incompreensão:
– Sou tratada de qualquer maneira! – lamentou-se ela, mais en-
roscada em si mesma do que o costume. – Estou cansada de estar
tantas vezes mal posta e tenho lutado contra isto a vida inteira!
Ora fico entre o Sujeito e o Predicado, ora me põem entre o Verbo
e o Complemento Direto, que não são lugares para mim. Outros
esquecem-se de me pôr quando sou mais precisa. Nem sei o que
será pior: estar onde não devo ou não estar onde devo estar.
A Vírgula Virgulina pede a palavra
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epois de ter feito um apelo à calma por causa da agitação em que todos se encontravam, a D. Gramática declarou com alguma cerimónia:
A revolta do Ponto de Exclamação
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– Sabem bem que são por vezes utilizados incorretamente ou então esquecem-se de vos pôr no lugar certo, o que não abona nada a meu favor. Em boa verdade, estou sempre a levar pontapés e ultimamente ando cheia de nódoas negras. Eu é que nem vos digo nada porque não gosto de me lamentar.
– Oh, e eu que o diga! Eu é que sei o tipo de abusos que tenho so-frido toda a vida, sobretudo ultimamente! – exclamou o Ponto de Exclamação todo empertigado.
Com o passar dos anos, o Ponto de Exclamação tinha ficado bastante amargurado e, tal como aconteceu no caso do Ponto e Vírgula, tinha perdido grande parte da sua pinta. Não era para menos, tendo em conta a forma como o tempo levara o seu encanto e alterara grande parte do seu sentido. Havia, sobretudo nos últimos anos, uma ten-dência estranha para o porem a propósito de tudo e de nada e assim se ia vulgarizando a capacidade de o Ponto de Exclamação causar espanto. Por uma frase sem importância, por qualquer coisinha que fosse, lá estava ele no final para obrigar os leitores a ficarem admira-dos à força.
– E alguns de vocês até são, se quisermos ser honestos, não pro-priamente esquecidos mas excessivamente utilizados! – concluiu o Sr. Prontuário, com o bom senso que lhe era habitual.
Ponto de Exclamação ofendia-se bastante com esta atitude
e não quis deixar de manifestar perante os presentes o seu ressen-
timento. Sentia-se cada vez mais atormentado sempre que pensava
que era vítima de um grande atrevimento e utilizado com excesso de
ligeireza:
– Eu sirvo para criar emoções súbitas, para espantar e para comover!–
declarou o Ponto de Exclamação todo exaltado, utilizando-se a si pró-
prio. – Se existo é para instaurar o espanto e a surpresa, que diabo!
– Apoiado, apoiado! – gritaram as Reticências com uma voz fininha
e bastante irritante. As Reticências tinham uma paixão antiga pelo
Ponto de Exclamação e faziam questão de lhe lembrar isso mesmo
sempre que podiam.
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s Parênteses eram os únicos que ainda não tinham dito
uma palavra. Estavam geralmente de acordo um com o outro e
pouco se queixavam da vida que levavam. Como eram particu-
larmente prestáveis, decidiram propor-se para fazer voluntaria-
do entre os sinais de pontuação:
– Gostamos de dar uma ajuda quando é preciso esclarecer al-
guma coisa, por isso queríamos propor-nos como voluntários –
argumentou um dos Parênteses com ar decidido. – Além disso,
não temos grandes apartes metidos entre nós e formamos uma
dupla eficaz. Até podemos substituir de boa vontade um par de
vírgulas, se for preciso.
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Ninguém tinha dúvidas de que os Parênteses podiam fazer um
excelente serviço de voluntariado, sobretudo porque ajudavam
muitas vezes a simplificar aquilo que nem sempre era muito
claro. A ideia foi tão bem acolhida que a D. Gramática e o Sr.
Prontuário consideraram que o melhor era porem um ponto
final na reunião (mesmo que um ponto final, como se sabe, nem
sempre seja único nem final). Mas nem todos os sinais de pon-
tuação acharam boa ideia terminar com um ponto final, e eu,
claro, era um deles:
– E por que é que se há de pôr um ponto final quando não se
chegou a conclusão nenhuma sobre a crise em que vivemos?
Temos de ser produtivos!
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nasceu em Moçambique. Quando tinha 4 anos, disseram-lhe que o Pai Natal não existia, mas isso nunca a impediu de pensar que podia levar a vida inteira a ler e a fazer viagens extraordinárias, nas quais é preciso apanhar sem falta o Expresso do Oriente e o Transiberiano. Estudou Filosofia na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, onde também concluiu o mestrado em Estudos Americanos, variante de Literatura e Cinema. É investigadora do Centro de Estudos Anglísticos da mesma instituição e trabalha numa editora. Em 2007, venceu o prémio literário Maria Rosa Colaço com O Tamanho da Mi-nha Altura (Assírio & Alvim). Mora em Lisboa, numa casa com as três ár-vores mais bonitas do mundo: uma oliveira despenteada, uma laranjeira circunspecta e um limoeiro temperamental. Não gosta de usar relógio para poder estar sempre a beber mais uma chávena de chá como se fossem cinco da tarde (de preferência com uma fatia de bolo de maçã e canela). Coleciona edições da Alice no País das Maravilhas e entre os seus objetos preferidos está uma máquina de escrever Royal de 1925.
Suzana Ramos
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nasceu no Porto, poucos dias antes do 25 de Abril. É professora, cenógrafa e ilustradora. Estudou cenografia em Londres na Central Saint Martins e Design de Comunicação na Fa-culdade de Belas Artes de Lisboa, onde também concluiu o mestrado em Desenho. Ao longo dos últimos anos, fez diversos trabalhos para teatros e bibliotecas (entre outros lugares extraordinários). Ilustrou vários livros para a infância e na gaveta da sua secretária há umas quantas ideias por revelar. Um dia, quando O Tamanho da Minha Altura (Assírio & Alvim) era apenas meia dúzia de folhas de papel dobradas ao meio, meteu-o numa mala de viagem igualzinha à da Vírgula Virgulina e foi para Itália desen-volver ideias num dos workshops da Mostra de Ilustração de Sarmede, uma aldeia próxima de Veneza. Enquanto professora, gostava de imprimir no coração dos seus alunos algumas memórias felizes das suas aulas, uma cer-ta esperança na humanidade e muitas imagens improváveis sobre o mundo não exatamente como ele é, mas sim como poderia ser.
Marta Neto
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