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Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH • São Paulo, julho 2011 1
História e Arte: as invenções da paisagem.
MARIA LÚCIA BASTOS KERN*
1. Introdução
A retomada da paisagem pelas artes contemporâneas tem suscitado reflexões
teóricas e historiográficas, motivadas pelas questões decorrentes das imagens criadas
pelas novas tecnologias, bem como pelas suas modalidades estéticas de apresentação da
natureza e das relações do homem com a mesma. O presente ensaio tem em vista
retomar as distintas acepções históricas da paisagem e das relações do homem com o
seu entorno, a partir do estudo de alguns momentos e obras selecionadas, de suas
conexões com a ciência, a tecnologia e o sensível.
2. As invenções da paisagem
A paisagem é um fenômeno tipicamente moderno, que emerge no Ocidente com
o desenvolvimento do conhecimento científico, a progressiva dessacralização da
natureza e o crescimento das cidades. Ela transgride a concepção religiosa do pecado ou
da criação divina da natureza e permite ao homem descortinar o espaço e lhe sugerir o
sentimento de maior controle sobre o seu mundo, num momento em que a cartografia e
outros avanços no campo da ciência colaboram para o sucesso das expedições marítimas
e dos descobrimentos de novos territórios.
Esse gênero de arte evidencia o olhar mais objetivo e sensível, distante,
investigativo e poético do homem sobre a natureza, fato que o conduz a sua reinvenção
e a expressar o seu prazer. Assim, a paisagem é uma criação artificial e estética que
representa a contemplação e a observação prazerosas (MADERUELO, 2007: 16) do
homem em relação à natureza, revela a sua necessidade de imprimir uma percepção
ordenada do mundo e a tomada de consciência de si, como sujeito.
A paisagem surge como paradigma da modernidade e da experiência
intimamente subjetiva, relatada, inicialmente, pelo poeta Francesco Petrarca, cuja
escalada ao Monte Ventoux (1336) permitiu descortinar o espaço, desfrutar de um novo
olhar e lhe sugerir o sentimento de liberdade e de apropriação do mundo. A experiência
narrada é a experiência do existir, simboliza a mudança do sujeito e a sua descoberta da
* PUCRS, Doutorado e Pós-Doutorado, CNPq.
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beleza da natureza e do prazer desinteressado em contemplá-la, a expressão de sensação
do espaço livre e da visualidade infinita.
Mais tarde, no Renascimento, com a criação da pintura de cavalete, a paisagem
se configura como cenário da narrativa, a partir da invenção da perspectiva, como
espaço construído, de forma homogênea e ilusionista, distante da natureza dada. Nesse
momento, concretiza-se a ficção do olhar monocular que rege essa noção de espaço, que
não é natural e nem imutável, mas permeado pelo avanço da geometria e pelas
fundamentações filosófica e estética 1(JAKOB, 2009: 31-40).
A paisagem narrada por Petrarca apresenta certas similitudes com aquela pintada
pelos artistas italianos, nos séculos XV e XVI, e que se difunde no Ocidente, porém
preservando as singularidades culturais de cada sociedade e definindo o posicionamento
do observador face à mesma. Essa por sua amplitude e como janela que descortina o
mundo possibilita ao espectador se integrar e ter o sentimento de proximidade. O
discurso dominante que se instaura é o do espaço universal, imutável e ordenado pelo
desenho geométrico e outras convenções que se praticam até o século XIX.
Esse fenômeno é paralelo à revolução de Copérnico que simboliza o início do
mundo moderno e possibilita o descentramento cosmológico, assim como a observação
mais objetiva da natureza. As novas descobertas científicas aliadas às conquistas de
novos territórios ampliam os horizontes relativos ao conhecimento do mundo e das
distintas civilizações.
A mudança das relações do homem com a natureza se processa também graças
ao modo de vida urbano, que proporciona um contato menor e menos profundo com o
seu meio natural. Recuperá-lo significa construir uma relação que tem por base a perda
e reinventá-lo no plano simbólico e estético, para poder ter o prazer de desfrutá-lo
visualmente. A paisagem coloca a nu a complexidade do mundo moderno e de um novo
gênero de representação, que tem como fim apresentar o homem e o seu olhar sobre a
natureza.
Os artistas ao criarem a paisagem tornam próximo o distante e fazem da cidade o
locus de sua invenção imagética e de sua idealização. Muitas pinturas estabelecem a
separação cidade e campo, como se pode verificar na obra de Van Eyck A Virgem do
1 Apesar da ênfase dada à ciência para justificar a emergência da paisagem, deve-se destacar que a
redescoberta do espaço em perspectiva é efetuada por artistas.
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Chanceler Rolim (1437). Entretanto, o artista ainda prioriza o espaço sagrado no
primeiro plano, enquanto a cidade e a natureza estão nos planos subsequentes.
A criação da paisagem, como gênero autônomo, emerge no século XVII, na
Holanda, com pinturas que representam de modo descritivo a natureza, resultante de um
olhar acurado, do possível uso de lentes, das experiências cartográficas e científicas, em
detrimento dos procedimentos da pintura italiana, baseada na narrativa em que a
paisagem se constitui como cenário da mesma.
O gosto setentrional por esse gênero de arte é, em parte, decorrente da ampliação
do território sobre o mar e da necessidade de construir nova identidade, num momento
em que os equipamentos óticos descobertos permitem explorar melhor e detalhar o
mundo aparente, através da percepção e do olhar como meios de conhecimento. 2
(ALPERS, 1999: 159-240) A paisagem holandesa é construída com a finalidade de
recuperar as particularidades do espaço físico, das suas tradições culturais e de fazer
face ao novo território conquistado junto ao mar, cuja configuração formal é
geométrica. O espaço da paisagem pintada, ao contrário, refere-se ao antigo território e
é construído pelo olhar, sem a utilização de recursos do desenho geométrico, próprios à
arte italiana. A figura humana não é, em geral, valorizada nessas pinturas, pois a ênfase
se concentra nas longas planícies e no céu que ocupa, em geral, 2/3 da tela, se impondo
sobre elas. 3
O grande mapa que compõe A Arte de Pintar (1666-67) de Jan Veermer revela a
semelhança com as pinturas realizadas por esse e outros artistas holandeses, tais como: a
precisão da descrição física, o detalhamento das vistas topográficas de suas cidades, a
moldura, os textos e brasões. Fora o esmero da descrição gráfica, Veermer não deixa de
representar os aspectos materiais do mapa e de reivindicar a sua autoria quando assina
seu nome na borda inferior do mesmo. (ALPERS, 1999: 247) 4
2 Enquanto na Itália a arte tem como base a matemática, na Holanda a arte e a ciência apóiam-se na
observação e no olho. O conhecimento é visual.
3 O termo paisagem aparece nesse momento, como extensão de parte do país e de sua natureza. (ROGER,
1997: 171-178)
4 Ele executa outras pinturas em que os mapas descritivos de territórios são representados como cenários:
O oficial e a moça (1657), Mulher de azul lendo uma carta (1662-63), Jovem mulher com jarra de
água (1662-65), O geógrafo (1669). Em geral, são telas pequenas, sendo a maior A Arte de pintar,
120x100 cm.
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Nesse momento, a cartografia passa por um processo de renovação, ela é
altamente praticada por cartógrafos e artistas, sendo muito valorizada e objeto de
decoração nas residências das elites holandesas. Os mapas apresentam uma série de
elementos que podem ter colaborado para a emergência da paisagem enquanto gênero
pictórico autônomo. Dentre eles destacam-se a descrição dos relevos, da flora e da
fauna, dos tipos étnicos de cada região e das vistas topográficas das cidades, tais como
são representadas no mapa do Brasil de George Markgraf (1647) e na Vista de Delft
(1660-61) de Veermer.
Com o contínuo crescimento das ciências da natureza, do empirismo e o
surgimento da Estética a prática do gênero da paisagem se expande ao longo dos séculos
XVII e XVIII. A defesa de J. Winckelman de que a beleza da natureza seria o meio
viável para a criação da arte do futuro, constitui juntamente com as reflexões estéticas
pressupostos significativos para romper definitivamente com a separação arte e
natureza, proclamada por Platão na Antiguidade. Esta mudança de concepção está
presente também no pensamento estético de Edmund Burke, que enfatiza o belo como a
síntese entre o sujeito e o objeto, a liberdade individual de julgar e o conceito de
sublime como forma particular de sentimento estético. Ele, ao repudiar as convenções
clássicas e a geometria, estimula a imaginação e os artistas a pesquisarem livremente
novas modalidades de expressão visual. (BURKE, 2005: 9-14)
Na Alemanha, o belo e o sublime convergem, antes de ser separado por Kant, 5 e
se concretizam nas paisagens de Caspar David Friedrich. Nestas, o sublime se relaciona
com o espantoso, o desmesurado e, algumas vezes, o terrível. Na Inglaterra, o sublime
apresenta outra acepção, desconectado com o belo, porém atrelado ao prazer e ao temor.
(D’ANGELO, 1999: 167-8) Já a paisagem do pitoresco é elaborada por representações
do meio campestre e expressa as peculiaridades físicas e culturais, bem como os efeitos
da luz em detrimento do rigor do desenho.
Nesse momento, é generalizada a convicção a respeito da beleza da natureza
como forma de prazer estético. As poéticas do sublime e do pitoresco evidenciam
distintos modos do homem se relacionar com a natureza, de concebê-la e de imaginá-la,
5 Kant em A crítica da faculdade de julgar apresenta arte e natureza de forma mais equiparada, porém
salienta a superioridade do homem perante a mesma.
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numa época em que os ientistas viajam pelo mundo para conhecer territórios distantes e
pouco pesquisados, estudar as suas singularidades e explorar as suas riquezas naturais.
É nesse contexto científico, reflexivo e da nascente indústria, em pleno
Romantismo, que surge a noção de meio ambiente como fenômeno conjunto, objetivado
pela ciência e manipulado pela técnica. (BERQUE, 2000: 67-70) Noção que será
debatida e revista ao longo da modernidade, motivada pelas recorrentes intervenções do
homem no seu entorno.
A utilização e o aperfeiçoamento da câmara escura, o desejo de registrar
imagens realistas e as investigações relativas às reproduções gráficas, condicionadas
pela demanda social após a Revolução Industrial, condicionam os artistas e os cientistas
a pesquisarem novas modalidades de precisão e fixação da imagem, que acabam dando
origem à fotografia e às representações de detalhes que a olho nu não são possíveis.
A fotografia de paisagem começa a ser praticada, segundo construções espaciais
semelhantes e tradicionais da pintura e da gravura em que a geometria é um dos meios
de ordenação do espaço representado. No Brasil, a fotografia de Marc Ferrez apresenta
como as pinturas de Félix Taunay e Manuel Araújo Porto Alegre um caráter
monumental, no qual se destaca a natureza exótica tropical com suas singularidades.
(FABRIS, 2009: 62-64) A fotografia estabelece um diálogo com a pintura ao registrar
imagens cujos temas, composições e atmosferas da natureza apresentam certas
semelhanças, apesar do achatamento dos planos e da definição de linhas como
elementos de estruturação próprios da sua linguagem.
A fotografia, juntamente com a pintura e a literatura, colabora também para a
construção do lugar, quando, no século XIX, emergem os Estados Nacionais e as
peculiaridades de cada território são configuradas nas paisagens. Esse gênero torna-se
mais recorrente graças também às pesquisas e importantes tratados que são elaborados
sobre a luz e as cores, que aliados aos estudos e às sensações dos artistas junto à
natureza estimulam a pintura de efeitos atmosféricos, a captação de instantes efêmeros,
a imaginação e a plasticidade, em detrimento do desenho rigoroso.
O interesse pela pintura de paisagem en plein air surge na Itália, entre 1780 e
1830, e a utilização da técnica da aquarela, começa a ser praticada pelos ingleses que
estiveram na Península. Essas iniciativas colaboram para a expansão do gênero
pictórico, sobretudo, no que se referem ao registro do instante e à captação da luz, que
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se constituem como significativos componentes da paisagem moderna. Apesar da
historiografia da arte apresentar, geralmente, a pintura de paisagem junto ao tema como
tendo iniciado pelos artistas impressionistas franceses, negligenciando muitas vezes a
importância das obras de italianos, ingleses, alemães, bem como as paisagens realistas.
Esse gênero assume também novas dimensões com o aparecimento dos
panoramas (1792), que conciliam técnica, arte e espetáculo.6 Segundo Walter Benjamin,
essa modalidade de imagem “anuncia(m) uma transformação significativa na relação da
arte com a técnica e traduz(em) ao mesmo tempo um sentimento novo da vida.” Para
ele, o homem urbano tenta introduzir o campo na cidade, através das imensas
representações ilusionistas da paisagem, cujas telas circulares de 360 graus
proporcionam ao espectador visões amplas e infinitas de imagens fixas, até então
impossíveis de serem desfrutadas. Ele passeia como o flaneur, deslocando-se de um
espaço a outro da paisagem contemplando-a e descobrindo novos fenômenos ou ângulos
a serem observados, porém dentro de um espaço fechado que separa o seu olhar da
cidade. Distinto da pintura de cavalete, na qual o espectador com um golpe de vista
penetra na paisagem, o panorama exige o deslocamento do corpo no espaço. Os grandes
e elevados eixos de circulação permitem o caminhar do olhar de cima (BEUVELET,
2008) sobre a paisagem ou sobre as representações de panoramas urbanos, sem
estabelecer limites em nenhuma direção.
Os panoramas ao ultrapassarem os limites do quadro de cavalete criam a ilusão
no espectador de dominar a visão da paisagem e das cidades representadas podendo o
mesmo perceber os espaços externos, porque produzem a sensação de autonomia dos
espaços vizinhos e os tornam potencialmente infinitos. Eles ao focalizarem os grandes
centros cosmopolitas, segundo Maupassant, despertam no espectador “uma visão mais
completa e sensação mais surpreendente” da vida. O espectador pode também visualizar
“aos seus pés Paris, com todos os monumentos, suas ruas, seus arredores e o coração
mesmo da França até o mar.” (MAUPASSANT, 1980: 309-337)
Essas pinturas proporcionam a ilusão no público de se integrar à cena e ao falso
espaço tridimensional da mesma. Por todos esses procedimentos ilusionistas, nos quais
6 O termo panorama significa “vista que abarca tudo”, sendo concebido na época como “nature à cout
d’oeil” e produzido como modalidade tanto de lazer, como educativa. Para a realização do panorama é
necessário a construção de um edifício, com uma abertura central para a entrada de luz, sendo a tela
circular para que o público circule e visualize de cima e com certa distância a paisagem.
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as representações substituem o mundo real e instituem outra realidade, os panoramas
tornam-se verdadeiros espetáculos e atrativos ao grande público. Eles despertam
também o interesse dos escritores realistas e naturalistas, levando-os a refletir sobre
questões estéticas e filosóficas relativas à representação do real, como por exemplo,
Emile Zola. O panorama, executado por artistas e por fotógrafos, estimula o turismo ao
apresentar belas paisagens, sobretudo, dos Alpes nevados e de grandes capitais
europeias.
Com o aparecimento do cinema essa prática de lazer é paulatinamente
abandonada, tornando-se inviável a sua manutenção. Entretanto, as visões amplas dos
panoramas cinematográficos, segundo alguns estudiosos, são provavelmente também
oriundas das percepções que os homens têm nos transportes urbanos e que se
constituem em imagens em movimento, porém preservando a imobilidade do corpo do
espectador.
As investigações formais que os artistas fazem a respeito da paisagem, ao longo
do século XIX, no que se referem à luz, às cores, à atmosfera e ao espaço permitem, por
um lado, acentuar o gosto e aproximá-los da natureza, mas, por outro, condicionam ao
gradativo abandono da representação do mundo aparente em prol da autonomia da arte e
de seus componentes plásticos.
Apesar do prazer despertado no homem pela beleza da natureza, as suas
relações com o meio ambiente modificam-se na medida em que ele organiza de forma
racional os dispositivos para melhor explorá-lo, desde a agricultura até a crescente
industrialização e a contínua extração de riquezas e energia. O processo de mecanização
do mundo moderno começa a evidenciar os problemas inerentes, como a destruição do
meio ambiente e o desenvolvimento descontrolado das cidades, propiciado pelo êxodo
rural. O território das cidades avança sobre o campo e não oferece as condições
necessárias de infra-estrutura para a população crescente. Somado a isso, o meio
natural, aos poucos, é cortado por estradas de ferro, pontes, viadutos, túneis e outros
mecanismos de circulação que vão intervindo e deformando-o em prol do progresso. A
ciência, por sua vez, desmistifica os fenômenos naturais e, juntamente, com a expansão
tecnológica contribui para o fortalecimento do sentimento de domínio do homem sobre
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o seu meio. No entanto, essas mudanças colocam em xeque a noção de perenidade da
natureza e estimulam certo desencantamento com a modernidade. 7
Com o avanço tecnológico surgem aparelhos óticos mais precisos que somados à
velocidade do mundo moderno e aos meios de locomoção mecanizados condicionam
um novo olhar, que contribui também para as transformações nas representações da
paisagem. A velocidade do trem permite outra percepção, que não é mais de frente, nem
de uma natureza estável e contínua, mas de lado, baseada na descontinuidade e na
fragmentação. O ponto de vista não é único, mas plural e em movimento, fatos que
estimulam a sensação de deslocamento e de dificuldade de apreensão da natureza em
sua totalidade. O fragmento percebido de forma transversal pelo passageiro de trem
logo desaparece. Diante desses fenômenos produzidos pela velocidade e pelas
impressões passageiras provocadas, as representações da paisagem enfatizam aspectos e
fragmentos do mundo natural, em detrimento dos grandes panoramas ilusionistas,
configurados na imutabilidade do espaço ordenado em perspectiva, e das visões
infinitas.
Claude Monet quando pinta o lago com as plantas aquáticas do seu jardim de
Giverny, estabelece a ruptura com a concepção de paisagem como espaço estendido,
redefinindo a relação do espectador com o quadro. Ele extrai a linha do horizonte e
corta a distância necessária para permitir ao espectador a visão ampla da paisagem, ao
aproximar o ângulo de representação, terminando, assim, com as noções de pintura
como janela aberta e de paisagem instituídas no Renascimento. O sujeito que olha o
quadro é perturbado pela dificuldade em penetrar na cena ao perceber dispositivos, tais
como as manchas que ora se aproximam da aparência da natureza, ora se constituem em
elementos essencialmente plásticos. Monet instaura uma relação de instabilidade entre o
espectador e a obra, decorrente da sensação que o artista tem diante da natureza e do
instante registrado em movimento. O espectador é também submetido ao movimento,
principalmente no dispositivo cinético inventado no final de sua vida. (JAKOB, 2009:
81-82)
Apesar de a arte moderna afastar-se do mundo aparente e das modalidades
plásticas da representação humanista, ela continua mantendo fortes relações com a
7 A preocupação com a destruição do meio ambiente já é expressa por Félix Taunay e Manuel Araújo
Porto Alegre, na metade do século XIX, quando denunciam as queimadas que de forma recorrente
destroem as florestas brasileiras.
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natureza por meio de associações e de equivalências. A natureza é concebida como
cosmos, força vital, energia e plenitude pelos artistas abstratos que acabam deixando em
suas telas traços da mesma. (JAKOB, 2009: 85) Com isso, esse gênero artístico é, aos
poucos, relegado nas suas modalidades tradicionais pelos artistas que se direcionam à
criação da nova arte e à absorção de signos modernos, presentes sobretudo no espaço
urbano.
A cidade pelo seu caráter dinâmico e pela pluralidade desperta o interesse de
escritores e artistas, pois proporciona novas percepções a respeito das noções de espaço
e tempo, concebidas como entidades vivas e em constantes transformações. Ela
constitui-se como o espaço privilegiado para ostentar a modernidade e criar a nova arte,
visto que os artistas sensíveis às mudanças captam no seu fluxo incessante os signos dos
novos tempos. (KERN, 2004: 67)
Com os movimentos de vanguarda a paisagem, na sua acepção de origem, deixa
de ser o foco central dos artistas, que percebem na cidade e na mecanização do mundo
moderno formas puras e funcionalidade, dispositivos importantes para a criação de
novas linguagens visuais.
A paisagem urbana que é praticada, tanto na pintura como na fotografia, não
apresenta, em geral, a noção de amplitude e nem de visão total, porque os espaços da
cidade são múltiplos e fragmentados e não permitem a definição da linha do horizonte.
De fato, elas representam ângulos de vista, nos quais procuram captar a velocidade e os
processos de mudança que se instauram na mesma, sem deixar de lado as questões
formais.
Fernand Léger, ao destacar a beleza mecânica e perceber nela a genialidade
plástica, afirma que “O homem moderno vive cada vez mais numa ordem geométrica
preponderante” e “toda a criação mecânica e industrial depende de uma vontade
geométrica”, a qual não se encontra na natureza. (LÉGER, 1965: 53-58) Os mitos de
pureza e da máquina permeiam as novas experiências plásticas e o gênero da paisagem
desperta menor interesse, porém esse se intensifica com a pós-modernidade que põe em
xeque os pressupostos modernos e, ao mesmo tempo, coloca o homem diante de novos
condicionamentos em relação ao meio ambiente.
As grandes e rápidas mudanças tecnológicas, ocorridas no século XX, propiciam
novas percepções e relações do homem com a natureza. O discurso inicial e dominante
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enfatiza a ideia de progresso e de integração perfeita entre os dois mundos, apesar de a
velocidade que se intensifica com o automóvel 8 e o avião, as construções de estradas,
hidrovias, hidroelétricas e usinas nucleares que demonstram como o homem continua
deformando a natureza, esgotando suas riquezas, elevando os índices de poluição e
terminando com o equilíbrio do meio ambiente.
O processo de degradação da natureza e das cidades acentua-se nos últimos
decênios e revelam os malefícios produzidos pelo uso inconsciente da ciência e da
tecnologia, em prol do progresso. Face aos problemas produzidos pelo homem no meio
ambiente, são traçados projetos e políticas de preservação do patrimônio natural e
programas ecológicos, que evidenciam a sua consciência e preocupação, mas que nem
sempre alcançam resultados satisfatórios. Esses programas direcionados a assegurar a
vida e preservar a natureza são fundamentados em discursos científicos que não são
neutros e, muitas vezes, estão permeados por interesses econômicos e políticos.
As manifestações ecológicas nas práticas artísticas são recorrentes, sobretudo,
nos anos de 1970, quando os artistas começam a refletir sobre o seu entorno e a fazer
intervenções no mesmo.
Paralelo às mudanças das relações do homem com a natureza, a arte moderna
entra em fase de crise e de abandono de certas premissas que a institucionalizaram,
começando as mesmas a serem questionadas pelos artistas e, nos anos 80, a noção de
pós-modernidade é objeto de debate pela intelectualidade. As tradicionais categorias de
pintura, escultura, desenho, gravura desaparecem, bem como os postulados de pureza,
autonomia, originalidade e de gosto universal não se aplicam mais, diante da mescla da
arte com outras atividades, de sua pluralidade, ambiguidade, desmaterialização e de
criações efêmeras.
Os artistas contemporâneos concretizam o projeto sonhado pelos modernos de
integração da arte com a vida, muitos transgridem o sistema das artes, assumindo
posições contra as políticas de mercado e de legitimação do objeto artístico, a partir de
suas intervenções no meio ambiente que se constituem em acontecimentos efêmeros.
A Land Art é um exemplo desse tipo de prática, que emerge no final dos anos de 1960
nos EUA, onde os artistas redescobrem o sublime e o pitoresco, os vestígios de
8 O automóvel resgata a percepção da paisagem de frente e de forma panorâmica, porém em movimento
sem permitir um olhar mais detalhista.
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construções pré-históricas e de antigas culturas orientais Suas intervenções são
efetuadas nos espaços naturais, cujas ações e produções, em geral, trazem a marca do
efêmero, outras vezes são mais permanentes e transformam o ambiente natural,
provocando significativos impactos visuais. Os artistas também fazem intervenções
nas áreas industrializadas e poluídas, impossíveis de serem habitadas, mas que
despertam certa atração visual a partir de artifícios engendrados. As obras são
produzidas, com frequência, afastadas dos centros de turismo e das galerias de arte,
simbolizando os gestos de oposição dos artistas em relação ao consumo comercial; e
colocando em xeque o domínio do homem sobre o meio ambiente. Elas têm,
geralmente, a duração temporal da natureza, sendo as mesmas preservadas pelo
registro de vídeos e de fotografias.
François Soulages salienta que a fotografia, como registro do acontecimento, é
transformada em tempo da obra, via eternidade da arte, da precariedade em
perenidade, do vivido em representação, da morte da arte num gesto para ressuscitá-la.
A fotografia, como o vídeo, desempenha um papel importante, visto não se constituir
apenas como memória do acontecimento, mas também pela mudança de estatuto da
não-arte para arte. (SOULAGES, 2005: 286)
No mundo contemporâneo, as imagens passam por um processo de
transformação significativo com o cinema e a televisão, cujas cenas se movimentam
sem o deslocamento do corpo humano; e, mais recentemente, com a web e as imagens
numéricas que produzem rupturas com os registros de paisagens da fotografia, do
cinema e da televisão, possibilitando novas percepções do mundo e de simulação da
realidade. Essas imagens criam uma segunda realidade, muitas vezes sem conexão com
o referente, que estimulam os artistas e teóricos a reverem o conceito de verdade
absoluta. Anne Cauquelin (2007: 98-100) as denomina de “paisagem contra a natureza”,
visto que as mesmas são elaboradas pelo cálculo matemático e se assemelham às
paisagens representadas. Basta identificar um modelo matemático que “simule a
superfície do mar e das ondas. O modelo anima as partículas de água sobre as órbitas
circulares ou elípticas.” Esse modelo é calculado para representar a topografia do fundo
do oceano, a velocidade e a duração, permitindo visualizar a estrutura física.
(CAUQUELIN, 2000: 167) Os artistas produzem representações fictícias, configuradas
segundo a realidade física do espaço e do tempo, cuja modalidade apresenta forte
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aparência realista. Essas novas imagens ao apresentarem simulações do real estimulam a
revisão dos paradigmas relativos à relação do homem com a técnica, do sujeito com o
objeto e do conceito de paisagem na sua origem.
Apesar de a imagem ser produzida pelo computador, partindo ou não do
referente, ela é artificial como aquela criada no Renascimento, cuja estrutura espacial é
construída pela geometria e falsa em relação ao mundo natural. Entretanto, ambas têm
suas especificidades e são criadas pelo pensamento cognitivo, sendo que a imagem
numérica pode se configurar como “um mundo antes de qualquer construção.”
(CAUQUELIN, 2000: 170)
A paisagem do Renascimento representa um momento eternizado, paralisado e
atemporal, distinto da imagem virtual cujo tempo é evidenciado pelo percurso efetuado,
isto é, pelo movimento em direção ao fundo que se constitui pelas sequências de
tempos. No entanto, o espaço representado no mundo virtual não é o espaço vivido pelo
homem, ele não é naturalizado porque ele não lhe é ainda necessário como meio de
apreensão do mundo em sua totalidade. Ele é um espaço de experimentações, que não
contém estruturas estáveis e nem conexões com as percepções que o homem tem no
cotidiano. Cabe ao artista contemporâneo, a partir de suas práticas, fornecer subsídios
para pensar as novas experiências que estão em vias de realização e estabelecer os
agenciamentos e as interfaces entre o homem e a rede. (CAUQUELIN, 2007: 190-196)
É o artista que revela a essência da técnica e que a utiliza como mecanismo para
apresentar a paisagem, estabelecer os focos de visão do espectador e possibilitar a sua
imersão, como é o caso das instalações digitais. Os procedimentos ilusionistas não
diferem muito daqueles utilizados nos panoramas do século XIX, pois permitem ao
observador uma experiência sensorial e emocional que encobre qualquer visão mais
crítica.
As instalações digitais abordam distintos problemas do ponto de vista técnico-
estético e tratam de grande variedade de temas, dentre os quais se destacam as questões
relativas ao meio ambiente e as ameaças sofridas que dificultam a sua preservação.
Na atualidade, a paisagem volta a ser representada de forma ampla, porém não é
mais construída pela concepção antropocêntrica do Renascimento. Ela é suplantada pela
técnica da máquina e dos satélites, cujas imagens informativas não se limitam a
apresentar vistas surpreendentes da superfície terrestre, mas a descrever detalhadamente
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o globo. Essas visões aéreas da terra descartam o homem, negando ao espectador a
experiência do vivido. Os novos meios técnicos suplantam a atenção do espectador em
relação ao mundo real pelo da representação objetiva, fato que se percebe também na
arte contemporânea ao privilegiar a fotografia e o vídeo. Hoje, o real é conhecido pela
imagem. (JAKOB, 2009: 143-6) O homem vive num mundo saturado de imagens, nas
quais a realidade está perdendo substância.
3. Conclusões
O presente ensaio procurou demonstrar como a noção de paisagem se constitui
na modernidade, numa construção estética, permeada pelas modalidades de pensar,
perceber, sentir e ordenar o mundo, suas crises e as distintas soluções. Todas essas
questões articuladas a elementos selecionados da natureza possibilitam aos artistas a
invenção subjetiva de paisagens, porém conectadas com suas poéticas, suas percepções
de mundo e finalidades éticas e coletivas. As formas visíveis da pintura de paisagem
nada mais são do que representações de convicções invisíveis, em geral, distantes da
natureza propriamente dita, sem deixar de revelar as relações do homem com a mesma.
Entretanto, no mundo contemporâneo ocorre a reaproximação do homem com o seu
meio ambiente, mas de forma ambígua no que se refere à imagem representativa do
mesmo. Ela é essencialmente produto tecnológico e da ação do artista que apresenta
simulações do mundo natural, distantes do mesmo, fenômeno ainda experimental e que
tem sido objeto de debate. No entanto, as simulações já existem desde a criação dos
panoramas no final do século XVIII, que procuram trazer o espectador para o centro da
paisagem representada, possibilitando a sua imersão na mesma. Logo, os dispositivos
ilusionistas e virtuais da contemporaneidade não fogem completamente de mecanismos
utilizados no passado, vinculados aos modos convencionais de perceber o mundo e de
convencimento a respeito do real.
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