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IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS PELO PODER JUDICIÁRIO
Luiz Ferreira Tôrres Neto
1. Introdução
Sabe-se que ao Estado apenas não é imposta a obrigação de se quedar inerte frente
ao indivíduo integrante da respectiva sociedade, consagrando-se, com isso, os direitos
fundamentais de primeira geração ou dimensão. Bem ao revés, ao Estado também é
imposto o encargo de assegurar liberdades positivas, implementando políticas públicas.
No Brasil, percebe-se que o ordenamento jurídico, desde a Constituição de 1934
(esta, aligeire em sublinhar, sofreu forte influência da Constituição de Weimar da
Alemanha de 1919), impõe ao Poder Público a obrigação de assegurar direitos
fundamentais de segunda geração ou dimensão, que são, a bem da verdade, os direitos
sociais.
Tal conduta comissiva da República Federativa do Brasil implementada tipicamente
pelos Poderes Executivo e Legislativo. Isso porque, enquanto este elabora o ato normativo,
aquele concretiza o que lastreado neste ato.
Ocorre que, não raras vezes, o Poder Judiciário, sob o manto do ativismo judicial,
implementa políticas públicas em um dado caso concreto que lhe foi posto. Esta conduta
judiciária, entretanto, devendo ser excepcional.
O presente artigo, portanto, tem o escopo de demonstrar qual a causa que justifica a
atípica atuação positiva do Poder Judiciário na implementação de políticas públicas,
afastando as demais, sob pena de afronta à princípios e características a seguir esmiuçados.
Inicialmente, será estudada a força normativa da Constituição, justificando-se,
assim, a obrigatoriedade na efetivação dos direitos fundamentais, em especial, os de
segunda geração ou dimensão. Posteriormente, o termo “políticas públicas” será
conceituado, aliado à reserva do possível. Em seguida, demonstrar-se-á os Poderes com a
típica função de implementar políticas públicas, justificando-se a excepcional atuação do
Poder Judiciário nesta implementação. Por fim, mas não menos importante, o artigo em
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apreço traz à baila o alicerce que assegura a excepcional implementação de políticas
públicas pelo Estado-Juiz.
2. Força normativa da Constituição
Durante a idade média, entendia-se que o monarca era um representante de Deus,
estando, por isso, acima do ordenamento jurídico da época. Pairava o jusnaturalismo e a
Constituição era apenas encarada com um instrumento de orientação política.
Após as revoluções iluministas, com a separação do Estado e da religião, mormente
o monarca tenha se submetido ao ordenamento jurídico que, frise-se, restringia-se ao que
disposto na regra positivada, a Constituição ainda era vista sob o prisma da orientação.
Neste período, pairava o positivismo e o Direito era apenas o que entoado em lei.
Outrossim, havia uma separação do Direito, da moral e da ética, sendo o Estado Juiz mero
aplicador da regra positivada em dado caso concreto. Os princípios, mormente existentes,
exerciam função secundária, não integrando o conceito de norma jurídica.
Foi com o surgimento do pós-positivismo, também chamado de
neoconstitucionalismo, que a Lei Maior ganhou força normativa, tornando-se não como
uma orientação, mas, sim, como uma lei fundamental que deve ser cumprida. Ressalte-se
que o pós-positivismo ganhou força no fim da segunda guerra mundial, onde se verificou
que o Direito não poderia ser apenas encarado como a regra positivada, sendo mais que
isso. Nesta fase (que vigora até os dias atuais), os princípios integram o conceito de norma
jurídica, o magistrado passou a ser intérprete da norma diante de um caso concreto,
surgindo, com isso, o ativismo judicial. Há, ademais, uma aproximação do Direito com a
justiça, com a ética e com a moral.
Como lei fundamental dotada de força normativa, aos direitos fundamentais,
“...enquanto pressupostos básicos para a realização da liberdade e da dignidade da pessoa
humana, atribuir-se-á uma nova abordagem, menos política, mais jurídica, vez que passam
a ser considerados não como meros valores abstratos, mas sim como normas jurídicas
dotadas de superioridade jurídica, as quais se deve dar efetividade através do cumprimento
da Constituição”.
Nas precisas palavras de Dalton Santos. Verbis:
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Deixou-se, portanto, de considerar-se a Constituição como um mero ideário
político ao dirigente da vez, para considerá-la como estatuto normativo
dotado de superioridade jurídica, não só formal, mas material, sobre todo o
restante do ordenamento jurídico de uma dada sociedade. Esta compreensão
é denominada como força normativa suprema da Constituição, segundo a
qual as disposições do Texto Constitucional devem ser observadas como
normas jurídicas superiores, tanto formal quanto materialmente, que, caso
não observadas espontaneamente, devem ser impostas pelo Estado Juiz.
Com esta novel concepção, portanto, as normas de envergadura constitucional
adquiriram caráter normativo, impositivo. Não só os diplomas e legislações de envergadura
infraconstitucional, mas, também, os Poderes de República, demais órgãos, instituições,
bem como a sociedade civil, devem estrita obediência ao que lastreado pela Lei Maior.
3. Direitos fundamentais
3.1. Conceito de direitos fundamentais
Nas precisas lições de Alexandre de Morais, os direitos fundamentais são um
“conjunto institucionalizado de direitos e garantias do ser humano, que tem por finalidade
básica o respeito a sua dignidade, por meio da sua proteção contra o arbítrio do poder
estatal e o estabelecimento de condições mínimas de vida e desenvolvimento da
personalidade humana...”.
Utilizando-se de outras palavras, mas buscando o mesmo sentido, Uadi Lammêgo
afirma que os direitos fundamentais são “...o conjunto de normas, princípios, prerrogativas,
deveres e institutos inerentes à soberania popular, que garantem a convivência pacífica,
digna, livre e igualitária, independentemente de credo, raça, origem, cor, condição
econômica ou status social” (destaque do autor).
Portanto, os direitos em liça traduzem a essência do Estado Democrático de Direito,
eis que, regulando e disciplinando a vida social, buscam salvaguardar a dignidade da pessoa
humana, prevenindo ou reprimindo conduta, quer seja do particular quer seja do próprio
Estado, respaldada na arbitrariedade ou, até, na inverdade.
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3.2. Geração dos direitos fundamentais
Aflorando com as revoluções francesa e inglesa, frente ao absolutismo monárquico,
apregoando, outrossim, a “liberdade, igualdade e fraternidade”, tradicionalmente os direitos
fundamentais podem ser agrupados em três distintas gerações ou dimensões.
A primeira delas (primeira geração), consagra a completa não intervenção do Estado
na sociedade e se justifica pelo próprio contexto histórico à época, qual seja, o fim do
absolutismo monárquico (onde se constatava um forte intervencionismo estatal). São
exemplos de direitos fundamentais de primeira geração, entre outros: liberdade de
locomoção, direito à vida e à inviolabilidade domiciliar.
Já os direitos fundamentais de segunda geração surgiram durante as revoluções
industriais, aliado ao fato de que o não intervencionismo moderado do Estado representaria,
a bem da verdade, na sobreposição do mais forte sobre o mais fraco.
Com precisão, os direitos fundamentais da supracitada geração visam consagrar
uma conduta comissiva do Estado que, note-se, efetiva uma liberdade outrora apenas
experimentada formalmente. São direitos fundamentais de segunda geração: a
implementação de políticas públicas destinadas à saúde, segurança e educação, por
exemplo.
Por fim, tem-se os direitos fundamentais de terceira geração. São os direitos difusos,
coletivos ou individuais homogêneos que, além de não pertenceram a um indivíduo tão
somente, clamam uma conduta comissiva não apenas do Estado, mas, de igual modo, da
sociedade que, frise-se, também tem a obrigação de defendê-los. Basicamente, surgiram
após a segunda grande guerra mundial e se desenvolveram a partir de então.
Importante não olvidar que alguns autores, a exemplo de Uadi Lammêgo Bulos,
defendem a existência de um direito fundamental de quarta geração. Seriam os relativos à
“informática, softwares, biocências, eutanásia, alimentos transgênicos, sucessão de filhos
gerados por inseminação artificial, clonagens, dentre outros ligados à engenharia genética”.
Outrossim, Paula Bonavides traz à baila uma quinta geração de direitos
fundamentais. Seria o direito à paz que “deve ser tratado em dimensão autônoma...”, eis
que “...a paz é axioma da democracia participativa, ou, ainda, supremo direito da
humanidade”.
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À evidência, o surgimento de uma geração não possui o condão de eliminar a outra,
já que todas vivem harmoniosamente e se completam.
4. Políticas Públicas
Conforme já mencionado, o surgimento da segunda geração dos direitos
fundamentais, aliado à concepção da força normativa da Constituição, impôs ao Estado o
dever de não mais se quedar inerte, mas, ao revés, atuar positivamente, concretamente,
proporcionando ao setor menos favorecidos da sociedade direitos que, outrora, eram
experimentados apenas do ponto de vista formal.
Nasce as políticas públicas que, atualmente, podem ser traduzidas na conduta
comissiva do Estado em assegurar educação, saúde, alimentação, trabalho, moradia, lazer,
segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância e, bem assim, assistência
aos desamparados, todos insculpidos no art. 6º, caput, da Constituição da República, com a
redação que lhe foi dada pelas Emendas Constitucionais de n.º 26/2000 e n.º 64/2010,
verbis:
Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a
moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à
maternidade e à infância, a assistências aos desamparados, na forma desta
constituição.
Deveras, cuida-se do que se denomina de “Estado Social de Direito”, tendo como
documentos de destaque a Constituição Mexicana de 1917, a de Weimar de 1919 e a do
Brasil de 1934.
De bom alvitre mencionar que “...no período que sucedeu a Primeira Guerra
Mundial, a expressão direito social referia-se basicamente aos direitos trabalhistas. Estava
relacionada, pois, a apenas um grupo determinado de pessoas. Somente mais tarde é que os
direitos sociais passaram a corresponder ao direito de acesso a serviços oferecidos em
caráter universal, como saúde e educação”.
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5. Poderes da República Federativa do Brasil com a típica função de implementar políticas
públicas
O conceito “tripartição dos poderes” se originou ainda na Grécia Antiga por
Aristóteles, em sua obra “Política”. Referido pensador defendia a existência de três funções
distintas exercidas pelo poder soberano, quais sejam: “...a função de editar normas gerais a
serem observadas por todos, a de aplicar as referidas normas ao caso concreto
(administrando) e a função de julgamento, dirimindo os conflitos oriundos da execução das
normas gerais nos casos concretos”.
Perceba-se que, mormente tenha identificado a existência das supracitadas funções,
Aristóteles defendia a concentração do poder. Em outras palavas, as funções do Estado
deveriam ser concentradas unicamente na pessoa do soberano, detendo este um poder
“incontrastável de mando”.
Reconhecida a existência das três funções, Montesquieu, em sua obra “O espírito
das leis”, traz à baila a noção de que estas deveriam ser exercidas por “...órgãos distintos,
autônomos e independentes entre si. Cada função corresponderia a um órgão, não mais se
concentrando nas mãos únicas do soberano”.
Ocorre que os órgãos distintos, autônomos e independentes entre si só poderiam
exercer as suas funções típicas, não sendo dada a possibilidade de um órgão
excepcionalmente exercer a função específica de outro.
Atualmente, a “tripartição dos poderes” é adotada pela grande maioria dos Estados,
só que de forma abrandada. É que, além da função típica, é dado ao Poder a possibilidade
de realizar função tipicamente desempenhada por outro poder, excepcionalmente. É o que
se fala de função atípica.
Pois bem. Ressalvada a Constituição do Império de 1824, que instituiu o Poder
Moderador, todos os demais diplomas constitucionais brasileiros consagraram a tripartição
dos Poderes/funções, consubstanciada no Legislativo, Executivo e Judiciário.
À evidência, assim resta insculpido pelo art. 2º da atual Constituição da República
Federativa do Brasil. Verbis:
Art. 2º São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o
Legislativo, o Executivo e o Judiciário.
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Logo, é dada ao Legislativo a funções típicas de legislar e, bem assim, de fiscalizar
o Executivo, com o auxílio do Tribunal de Contas. Sendo conferida ao Executivo as
funções típicas de prática de atos de chefia de Estado, de chefia de governo e atos de
administração. Por fim, atribuindo-se ao Judiciário a típica função de exercer a jurisdição
diante de um dado caso concreto.
Porém, excepcionalmente, nada impede que o Legislativo julgue ou administre que
o Executivo legisle ou julgue e que o Judiciário legisle ou administre.
Note-se, portanto, que a implementação de políticas públicas repousa como
atividade comissiva típica dos Poderes Legislativo e Executivo. Ora, o parlamentar cria a
lei (respaldada na Constituição) que implementa teoricamente a ação do Estado ao passo
que o Executivo concretiza, de fato, o que lastreado no ato normativo primário,
construindo, à guiza de esclarecimentos, uma escola ou um hospital públicos.
E não é só! Além da separação dos poderes, é o princípio democrático que legitima
a implementação de políticas públicas pelos Poderes Executivo e Legislativo.
Pautando-se num dos fundamentos da República Federativa do Brasil, qual seja, a
soberania popular, o princípio em apreço traz à baila a noção de que o Poder emanado do
povo surge, em grande parte, pelo exercício do voto (capacidade eleitoral ativa). Fazendo
uso de outras palavras, o povo, com o Poder que lhe é inerente, elege seus representantes
legais para o Legislativo e para o Executivo e estes, agindo em nome e sob a
responsabilidade do povo, escolhem, priorizam e implementam as políticas públicas.
Acerca do princípio democrático, precisas são as lições de Graziela Mayra
Joskowicz:
Esse princípio funda-se na ideia de soberania popular, expressa no art. 1º,
parágrafo único, da Constituição Federal, que se concretiza, em nosso
sistema jurídico e político, especialmente, através da eleição, pelo povo, de
seus representantes dos Poderes Executivo e Legislativo.
Portanto, são esses dois Poderes que refletem a escolha do povo e que têm
a competência para a elaboração de leis, a decisão sobre alocação de
recursos e a criação e execução de políticas públicas. (…), são os órgãos
representantes do povo que têm a competência para definir a forma e a
medida de concretização dos direitos sociais, dentro das possibilidades
fáticas ou jurídicas.
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Logo, frente à separação dos poderes e ao princípio objeto de estudo, abusiva seria a
habitual atuação do Poder Judiciário implementando políticas públicas.
6. Reserva do Possível
Ingo Wolfgang Sarlet traz à lume três dimensões da “reserva do possível”, a saber:
a) efetiva disponibilidade fática dos recursos para a efetivação dos direitos
fundamentais; b) disponibilidade jurídica dos recursos materiais e
humanos, que guarda íntima conexão com a distribuição das receitas e
competências tributárias, orçamentárias, legislativas e administrativas,
entre outras, e que, além disso, reclama equacionamento, notadamente no
caso do Brasil, no contexto do nosso sistema constitucional federativo; c)
já na perspectiva (também) do eventual titular de um direito a prestações
sociais, a reserva do possível envolve o problema da proporcionalidade da
prestação, em especial no tocante a sua exigibilidade e, nesta quadra,
também da sua razoabilidade.
Ana Carolina Lopes Olsen, de outra banda, defende que a “reserva do possível”
ostenta duas facetas: a da lógica e a da existência dos recursos naturais. No plano da lógica,
a “reserva do possível” impede que pretensões em face do Estado desprovidas de qualquer
respaldo legítimo venham a lograr êxito. É o caso, por exemplo, de se exigir do Poder
Público o fornecimento de remédio para pessoa que não está doente. Já no da existência dos
recursos naturais, a “reserva do possível” serve como limitação à implementação dos
direitos sociais, ante a limitação dos recursos públicos.
Fácil perceber que a concretização de políticas públicas implica em um
imprescindível gasto ao Poder Público. É que, diferentemente da efetivação das liberdades
negativas, os direitos sociais atuam diretamente sobre o Estado, exigindo conduta
comissiva deste.
Certo que os direitos de defesa implicam em um dispêndio financeiro, mas que não
variantes em função dos direitos a serem protegidos. Tal não ocorrendo com os direitos
sociais, já que o montante gasto pelo Estado resta diretamente ligado ao bem fundamental
que se quer proteger.
A “reserva do possível”, nessa senda, serve como limitação à plena efetivação dos
direitos sociais. Impedindo que pretensões despropositadas sejam deferidas, justifica, ainda,
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conduta estatal tolhida às dotações orçamentárias que, frise-se, são limitadas. É que não se
pode exigir do Poder Público atuação para além do possível.
À evidência, note-se o que dito por Gustavo Amaral e Danielle Melo, verbis:
...afirmar que alguém tem o direito de receber dada prestação do Estado,
sem limites nas possibilidades, demanda que se admita, ao menos
implicitamente, um custeio ilimitado, a despeito das garantias
constitucionais ligadas à tributação, ao respeito da propriedade e dos
contratos, que protege não apenas os que contratam com o Poder Público,
mas também os direitos dos servidores aos seus vencimentos.
Logo, a concretização dos direitos sociais por parte dos Poderes Legislativo (quando
da elaboração da lei) e do Executivo (quando na implementação da lei) restam restringidas
à limitações fáticas. Por isso, compete a estes Poderes, pautando-se na oportunidade e na
conveniência, priorizar determinados direitos sociais em detrimento de outros, elaborando
as leis orçamentárias e as políticas públicas.
No mais, importante não olvidar que a “reserva do possível” foi primeiramente
aplicada pelo Tribunal Constitucional Federal da Alemanha, no caso conhecido como
numerus clausus33.
7. Implementação de Políticas Públicas pelo Poder Judiciário
Influenciado pelo neoconstitucionalismo, o ativismo judicial (onde o magistrado
deixa de ser mero aplicador da norma para interpretá-la diante de um caso concreto) fez
nascer uma atuação política do Poder Judiciário, além da jurídica. Em outras palavras,
passou o Poder Judiciário a influenciar diretamente o contexto social com a determinação
de implementação de políticas públicas, por exemplo.
Contudo, a atuação do Poder Judiciário na implementação de políticas públicas deve
ser vista com cautela, já que amparada na sua função atípica.
Ora, o Poder Judiciário, regra geral, exerce a jurisdição diante de um caso que lhe é
posto. Na implementação de políticas públicas, pelo contrário, faz-se necessário uma visão
ampla, global, do contexto social. Aceitar a habitual intervenção do Poder Judiciário sobre
o Executivo e o Legislativo na efetivação das políticas públicas seria o mesmo que permitir
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a satisfação daquele que teve meios para buscar as vias judiciais sobre os demais membros
sociais menos favorecidos.
E mais! A habitual intervenção do Poder Judiciário implicaria necessariamente no
realocamento de receitas, prejudicando, em demasiado, política pública específica.
À evidência, afirma Luiz Roberto Barroso acerca das políticas de saúde, que os
excessos cometidos pelo Judiciário “põem em risco a própria continuidade das políticas de
saúde pública, desorganizando a atividade administrativa e impedindo a alocação racional
de recursos públicos”.
Outra questão que deve ser observada: a frequente atuação do Poder Judiciário na
implementação de políticas públicas fere o princípio democrático, estudado alhures. Uma
determinação judicial não parte dum representante do povo (tal como o parlamentar ou o
administrador público), mas, sim, de magistrado que, para o exercício da função, ao invés
do voto, necessitou lograr êxito em concurso público.
Outrossim, também a separação dos poderes é desrespeitada quando há a desmedida
atuação do Poder Judiciário na concretização de Políticas Públicas. É que este Poder,
quando impõe ao Executivo ou ao Legislativo a obrigatoriedade do cumprimento da ordem
judicial, adentra, não raras vezes, no mérito do ato administrativo, agindo como se
administrador ou legislador fosse.
E não para por aí! Aliado a todos esses fatos, há a reserva do possível como
limitação fática à implementação de políticas públicas pelo Executivo, em cumprimento ao
ato normativo emitido pelo Legislativo. Quando o Judiciário, desprovido de qualquer
parâmetro acerca desta limitação, determina uma conduta comissiva do Executivo na
concretização de específico direito social, faz com que este Poder seja forçado a realocar
receitas previamente programadas, causando, com isso, um manifesto prejuízo em outras
atuações do Poder Público, além de lesionar a sociedade indiretamente.
Portanto, só em situações excepcionais é que se deve admitir a atuação comissiva do
Poder Judiciário na implementação de políticas públicas.
À evidência, legítima será a atuação do Poder Judiciário na concretização de
políticas públicas apenas quando for caracterizada a abusividade governamental. Faz-se
necessário verificar se a ausência de recursos para uma específica prestação não é
proveniente de alocação de recursos feita pelo Poder Público contrariamente às disposições
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constitucionais. Se é certo que a Lei Maior não específica detalhadamente como serão
aplicadas as receitas ou quais políticas públicas devem ser fomentadas (com exceção da
educação e da saúde) também é certo que é possível extrair da Constituição as prioridades
eleitas pelo Constituinte, entre as quais está a efetivação dos direitos fundamentais.
Há de se diferenciar, portanto, a situação legítima do Poder Pública em não prestar
determinada política pública, quando limitado pela dotação orçamentária, daquela que
impede a concretização do direito social devido à alocação de receitas em desconformidade
com o ordenamento jurídico.
Pela riqueza de detalhes, tome-se os ensinamentos trazidos à baila pelo Min. Celso
de Mello ao apreciar o Recurso Extraordinário de n.º 482611/SC, in verbis:
É certo – tal como observei no exame da ADPF 45/DF, Rel. Min. CELSO
DE MELLO (informativo/STF n.º 345/2004) – que não se inclui,
ordinariamente, no âmbito das funções institucionais do Poder Judiciário –
e nas desta Suprema Corte, em especial – a atribuição de formular e
implementar políticas públicas (JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE,
“Os Direitos Fundamentais na Constituição portuguesa de 1976”, p. 207,
item. n. 05, 1987, Almedina, Coimbra), pois, nesse domínio, o encargo
reside, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo.
Impede assinalar, no entanto, que a incumbência de fazer implementar
políticas públicas fundadas na Constituição poderá atribuir-se, ainda que
excepcionalmente, ao Judiciário, se e quando os órgãos estatais
competentes, por descumprirem os encargos político-jurídicos que sobre
eles incidem em caráter mandatório, vierem a comprometer, com tal
comportamento, a eficácia e a integridade dos direitos individuais e/ou
coletivos impregnados de estatura constitucional, como sucede na espécie
ora em exame.
Não deixo de conferir, no entanto, assentadas tais premissas, significativo
relevo ao tema pertinente à “reserva do possível”..., notadamente em sede
de efetivação e implementação (sempre onerosas) dos direitos de segunda
geração (direitos econômicos, sociais e culturais), cujo adimplemento, pelo
Poder Público, impõe e exige, deste, prestações estatais positivas
concretizadoras de tais prerrogativas individuais e/ou coletivas.
Não se ignora que a realização dos direitos econômicos, sociais e culturais
– além de caracterizar-se pela gradualidade de seu processo de
concretização – depende, em grande medida, de um inescapável vínculo
financeiro subordinado às possibilidades orçamentárias do Estado, de tal
modo que, comprovada, objetivamente, a alegação de incapacidade
econômico-financeira da pessoa estatal, desta não se poderá razoavelmente
exigir, então, considerada a limitação material referida, a imediata
efetivação do comando fundado no texto da Carta Política.
Não se mostrará lícito, contudo, ao Poder Público, em tal hipótese, criar
obstáculo artificial que revele – a partir da indevida manipulação de sua
atividade financeira e/ou político-administrativa – o ilegítimo, arbitrário e
censurável propósito de fraudar, de frustrar e de invibializar o
estabelecimento e a preservação, em favor da pessoa e dos cidadãos, de
condições materiais mínimas de existência...
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Cumpre advertir, desse modo, que a cláusula “reserva do possível” -
ressalvada a ocorrência de justo motivo objetivamente aferível – não pode
ser invocada, pelo Estado, com a finalidade de exonerar-se, dolosamente,
do cumprimento de suas obrigações constitucionais, notadamente quando,
dessa conduta governamental negativa, puder resultar nulificação ou, até
mesmo, aniquilação de direitos constitucionais impregnados de um sentido
de essencial fundamentalidade.
Constatada a abusividade governamental, e apenas nessa situação, é que legítima
será a atuação do Poder Judiciário na formulação e implementação de políticas públicas.
Caracterizada a abusividade governamental, a atuação do Poder Judiciário estará respaldada
na força normativa da constituição (já comentada alhures), na garantia do mínimo
existencial e no princípio da vedação ao retrocesso dos direitos sociais.
7.1. Mínimo existencial
Antes de ser analisado o que seria mínimo existencial, faz-se necessário tecer
comentários acerca do princípio da dignidade da pessoa humana, um dos fundamentos da
República Federativa do Brasil (art. 1º, inciso III, da Lei Maior).
Afirma Alexandre de Morais que a “...dignidade da pessoa humana é um valor
espiritual e moral inerente a pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação
consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por
parte das demais pessoas, constituindo-se em um mínimo invulnerável que todo estatuto
jurídico deve assegurar, de modo que apenas excepcionalmente possam ser feitas limitações
ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima
que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos”.
Portanto, o princípio da dignidade da pessoa humana busca individualizar o ser
humano, destacando-o do contexto social que o envolve. Logo, ao passo que assegura uma
proteção da pessoa humana em relação ao próprio Estado ou aos demais indivíduos,
estabelece, de igual modo, conduta comissiva do Poder Público em assegurar tratamento
igualitário dos semelhantes, sem desconsiderar um mínimo necessário para uma existência
digna.
À evidência, valendo-se das palavras de Miguel Reali, afirma Gilmar Ferreira
Mendes que “toda pessoa é única e que nela já habita o todo universal, o que faz dela um
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todo inserido no todo da existência humana; que, por isso, ela deve ser vista antes como
centelha que condiciona a chama e a mantém viva, e na chama o todo instante crepita,
renovando-se criadoramente, sem reduzir uma à outra; e que, ao final, embora precária a
imagem, o que importa é tornar claro que dizer pessoa é dizer singularidade,
intencionalidade, liberdade, inovação e transcendência, o que é impossível em qualquer
concepção transpersonalista, a cuja luz a pessoa perde os seus atributos como valor-fonte da
experiência ética para ser vista como simples 'momento de um ser transpessoal' ou peça de
um gigantesco mecanismo, que, sob várias denominações, pode ocultar sempre o mesmo
'monstro frio': 'coletividade', 'espécie', 'nação', 'classe', 'raça', 'ideia', 'espírito universal', ou
'consciência coletiva”.
No mais, ressalte-se que “...a Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada
e proclamada pela Resolução nº 217 A (III) da Assembleia Geral das Nações Unidas, em
10-12-1948, e assinada pelo Brasil na mesma data, reconhece a dignidade como inerente a
todos os membros da família humana e como fundamento da liberdade, da justiça e da paz
do mundo”.
Pois bem. Foi com amparo na dignidade da pessoa humana que surgiu o direito a
um “mínimo existencial”, podendo este ser compreendido como a obrigação do Estado em
assegurar ao indivíduo o mínimo necessário à existência digna.
Nas precisas lições de Luiz Roberto Barroso, o mínimo existencial “...corresponde
às condições elementares de educação, saúde e renda que permitam, em uma determinada
sociedade, o acesso aos valores civilizatórios e a participação esclarecida do processo
político e no debate político”.
Desenvolvida, inicialmente, pela Corte Constitucional Alemã, a teoria do mínimo
existencial, não raras as vezes, é mencionada e citada pela Corte Suprema Brasileira.
7.2. Cláusula de vedação ao retrocesso
Valendo-se das palavras de J. J. Gomes Canotilho, afirma Ricardo Maurício Freire,
que “...a vedação do retrocesso desponta como o núcleo essencial dos direitos sociais,
constitucionalmente garantido, já realizado e efetivado através de medidas legislativas,
devendo-se considerar inconstitucionais quaisquer medidas estaduais que, sem a criação de
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outros esquemas alternativos ou compensatórios, se traduzam, na prática, numa anulação,
revogação ou aniquilação pura e simples desse núcleo essencial”.
Portanto, quando o Poder Público ocupa certa posição na conquista de
implementação de políticas públicas, quer devido à atuação comissiva do Legislativo quer
devido à conduta positiva do Executivo, fica-lhe vedado retroceder, sem a criação de outros
esquemas alternativos ou compensatórios. Em outras palavras: a retrocessão na
implementação de políticas públicas desprovida de medidas alternativas afronta a
Supremacia e a força normativa da Constituição, caracterizando a abusividade
governamental e, com isso, justificando a excepcional atuação do Poder Judiciário na
efetivação dos direitos sociais.
A vedação ao retrocesso, como se percebe, representa um forte mecanismo de
limitação da discricionariedade do Poder Público.
8. Conclusão
A força normativa da Constituição, aliada à sua Supremacia, impõem ao Estado o
dever de agir comissivamente na implementação de políticas públicas, direitos
fundamentais de 2ª geração. Esta conduta do Estado se consubstanciando, em regra, pelo
Legislativo (criando legislação infraconstitucional) e pelo Executivo (pondo em prática o
que insculpido na legislação), eis que são Poderes que conhecem e administram a dotação
orçamentária, obedecem o princípio democrático e possuem uma macrovisão social.
Admitir-se-á a atuação comissiva do Poder Judiciário na efetivação de políticas
públicas quando caracterizada estiver a abusividade governamental. Excepcionalmente,
porém.
Ora, os membros do Poder Judiciário não se submetem a processo eleitoral e, por
isso, não foram indicados pelo povo a assumir a responsabilidade da escolha de qual
política pública concretizar. Outrossim, o Judiciário não conhece a dotação orçamentária,
esta sendo legítimo instrumento de limitação fática à efetivação dos direitos sociais.
Ademais, diferentemente do Poder Judiciário, que se limita às barreiras de um caso
concreto, a política pública clama por uma macrovisão social.
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E mais! Tem-se a separação dos poderes que, atribuindo ao Judiciário a típica
função de exercer a jurisdição, conferiu-lhe, de forma atípica, o encargo de atuar com se
administrador ou legislador fosse.
No mais, importante não olvidar que quando constatada a abusividade
governamental, a atípica função do Poder Judiciário na efetivação dos direitos sociais
encontrará escoro no mínimo existencial e na cláusula de vedação ao retrocesso.
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REFERÊNCIAS
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