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UNIVERSIDADE DE COIMBRA
FACULDADE DE DIREITO
2 CICLO DE ESTUDOS EM DIREITO
IMUNIDADE DE JURISDIO DOS ESTADOS
E DIREITOS HUMANOS
Uma crtica ao Caso Ferrini
Eliane Romeiro Fernandes Golin
Coimbra
2013
UNIVERSIDADE DE COIMBRA
FACULDADE DE DIREITO
2 CICLO DE ESTUDOS EM DIREITO
IMUNIDADE DE JURISDIO DOS ESTADOS
E DIREITOS HUMANOS
Uma crtica ao Caso Ferrini
Eliane Romeiro Fernandes Golin
Dissertao apresentada no mbito do 2. Ciclo de Estudos em Direito da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. rea de Especializao: Cincias Jurdico-Polticas Meno: Direito Internacional Pblico e Europeu Orientador: Prof. Doutor Jnatas Eduardo Mendes Machado
Coimbra
2013
ELIANE ROMEIRO FERNANDES GOLIN
IMUNIDADE DE JURISDIO DOS ESTADOS
E DIREITOS HUMANOS
Uma crtica ao Caso Ferrini
Aprovado em: __/__/__
BANCA EXAMINADORA
__________________________________________________
__________________________________________________
__________________________________________________
___________________
A obra encontra-se redigida segundo as regras ortogrficas e gramaticais vigentes
no Brasil e de acordo com as normas tcnicas da Associao Brasileira de Normas
Tcnicas (ABNT).
Dedico este trabalho a voc Raphael,
companheiro no amor, na vida e nos
sonhos, que sempre me apoiou nas horas
difceis e compartilhou comigo as alegrias.
AGRADECIMENTOS
Agradeo primeiramente a DEUS, que foi meu maior porto seguro. Com a
ajuda Dele eu tive foras para chegar ao final dessa jornada. Foi Ele quem me deu
toda coragem que eu precisava para ir alm dos meus limites nesta etapa da minha
vida e no me deixou faltar foras para ir at o final e quebrar as barreiras.
A minha me Elva, responsvel por cada sucesso obtido e cada degrau
avanado pelo resto da minha vida. Durante todos esses anos voc foi para mim um
grande exemplo de fora, de coragem, perseverana e energia infinita para nunca
desistir diante do primeiro obstculo encontrado, voc e sempre ser meu maior
porto seguro, meu maior exemplo de vitria, minha herona e simplesmente aquela
que mais amo. Obrigada por estar sempre comigo. Obrigada simplesmente por
participar comigo durante essa caminhada, me ajudando a construir os alicerces de
um futuro que comea agora, aps anos dedicados a uma paixo que surgiu na
infncia. Voc me ensinou direta e indiretamente lies pra toda uma vida.
A minha sogra Ione e ao meu sogro Milton, pelo carinho, apoio e incentivo,
por sempre terem torcido por mim, almejando pelo meu sucesso.
Ao Raphael agradeo pela pacincia, pelo incentivo, pela fora e
principalmente pelo carinho. Valeu a pena toda distncia, todo sofrimento, todas as
renncias. Valeu a pena esperar. Hoje estamos colhendo, juntos, os frutos do nosso
empenho!
Aos meus queridos amigos Patrcia e Allan que sempre estiveram presente
nos momentos em que precisei de uma mo amiga, me dando fora e alegrando a
minha caminhada.
Ao Senhor Professor Doutor Jnatas Eduardo Mendes Machado, meu
orientador, pelos preciosos ensinamentos e pela inestimvel contribuio para a
realizao deste trabalho e, indubitavelmente, pelo incentivo moral e pela liberdade
proporcionada em sua realizao. Obrigada por contribuir com tantos ensinamentos,
tanto conhecimento, tantas palavras de fora e ajuda. Carrego tudo isso comigo
juntamente com seu exemplo de profissionalismo.
A essncia dos Direitos Humanos o direito
a ter direitos
(Hannah Arendt)
RESUMO
O direito internacional passou por profundas alteraes no ltimo sculo. De uma
perspectiva centrada na figura do Estado, passou-se a uma concepo que se
preocupa cada vez mais com o papel do indivduo, em um processo que se
consolidou por intermdio do reconhecimento da importncia dos direitos humanos.
Atentar-se-, precipuamente, sobre a influncia de tal transformao na esfera da
imunidade jurisdicional do Estado, que tem sido ultimamente contestada, tambm,
quando as demandas que envolvem violaes aos direitos humanos. Procurar
analisar atravs da evoluo do direito internacional o impacto das normas
imperativas de direito internacional na esfera da imunidade jurisdicional do Estado. A
principal questo que se descortina : se a violao de uma norma jus cogens, ou
seja, uma norma aceita e reconhecida pela comunidade internacional dos Estados
em seu todo, como norma da qual nenhuma derrogao permitida, no resultaria,
mesmo, na perda de imunidade do Estado, como a jurisprudncia no caso Ferrini
afirma. Ademais, prope-se demostrar, atravs de uma crtica ao Caso Ferrini, a
necessidade de um novo paradigma no qual os direitos humanos devem prevalecer
em detrimento da imunidade jurisdicional do Estado. Alm de que, alvitrar que os
Estados, que perpetrarem atos contrrios s normas imperativas de direito
internacional, no devem permanecer inclumes diante de tais atos ilcitos.
Palavras-chave: Imunidade Jurisdicional do Estado, violaes de normas jus
cogens, responsabilidade do Estado.
ABSTRACT
International law has undergone in profound changes over the last century. From the
perspective centred in the figure of the State, it moved to a figure that is concerned
more with the individual's role in a process which was consolidated through the
recognition of the importance of human rights. Considering, mainly, that the influence
of such a transformation in the sphere of State immunity, which has lately been
challenged, too, as the demands involving human rights violations. Will attempt to
examine, through the evolution of international law, the impact of peremptory norms
of international law in the sphere of State immunity. The main question that unfolds
is: if the violation of jus cogens norm, which means a norm accepted and recognized
by the international community as a whole, as a norm from which no derogation is
permitted, wouldnt truly result in the loss of the State immunity, as asserted in the
Ferrini case law. Furthermore, it is proposed to demonstrate, through a critique of the
Ferrini case law, the need for a new paradigm in which human rights must prevail
over the rule of State immunity. Moreover, will put forward that that a State who
perpetrates acts contrary to peremptory norms of international law, should not remain
unscathed before such a wrongful act.
Keywords: Jurisdictional Immunity of State, violations of jus cogens norms, state
responsibility.
SUMRIO
INTRODUO ................................................................................................. 12
1 O IMPACTO DOS DIREITOS HUMANOS NA NOO DE SOBERANIA
DO ESTADO .................................................................................................... 14
1.1 Constitucionalizao do Direito Internacional ...................................... 14
1.2 A Primazia do Indivduo e dos Direitos Humanos ............................... 18
1.3 A Soberania como Responsabilidade ................................................. 24
2 RESPONSABILIDADE INTERNACIONAL DO ESTADO NO DOMNIO DO
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS ............................... 29
2.1 A questo da Imputabilidade dos Estados .......................................... 35
2.2 Responsabilidade por Violaes de Obrigaes Internacionais .......... 39
2.3 Direito Reparao dos Indivduos Vtimas de Violaes Graves aos Direitos Humanos e de Direito Internacional Humanitrio ............................. 44
2.3.1 O Dever do Estado de Prover Reparao aos Indivduos Vtimas 44
3 IMUNIDADE DE JURISDIO DO ESTADO ............................................ 48
3.1 Conceituando Imunidade de Jurisdio .............................................. 48
3.2 Desenvolvimento Histrico da imunidade de Jurisdio do Estado Estrangeiro .................................................................................................... 55
3.2.1 O advento da Imunidade de Jurisdio: a transposio do rei para
o Estado ..................................................................................................... 56
3.2.2 A Teoria Absoluta da Imunidade................................................... 58
3.2.3 A Teoria Relativa da Imunidade.................................................... 61
3.3 A Conveno das Naes Unidas sobre Imunidade de Jurisdio dos Estados Estrangeiros e seus Bens ............................................................... 72
4 A IMUNIDADE DE JURISDIO DO ESTADO ESTRANGEIRO E AS
VIOLAES AOS DIREITOS HUMANOS ....................................................... 80
4.1 Jurisdio Territorial ............................................................................ 81
4.2 As normas peremptrias do Direito Internacional (jus cogens) podem afastar a aplicao da regra internacional consuetudinria relativa imunidade de jurisdio? .............................................................................. 84
4.3 A violao da imunidade como fato gerador de responsabilidade internacional .................................................................................................. 93
4.4 Caso Ferrini: Imunidades de Jurisdio do Estado (Alemanha v. Itlia; Grcia intervindo) .......................................................................................... 96
4.5 Aspectos fticos .................................................................................. 96
4.6 O caso no Tribunal Internacional de Justia ..................................... 100
4.6.1 Questo jurdica: Normas jus cogens v. imunidade de jurisdio 101
4.6.2 A posio alem ......................................................................... 101
4.6.3 A defesa da Itlia ........................................................................ 103
4.6.4 A interveno da Grcia ............................................................. 105
4.7 Deciso e seus fundamentos ............................................................ 108
4.8 Declaraes de voto e votos de vencido ........................................... 111
4.9 Anlise: o posicionamento doutrinal sobre a imunidade do Estado v. jus cogens ........................................................................................................ 114
4.9.1 Argumentos Soberanistas .......................................................... 114
4.9.2 Argumentos humanistas ............................................................. 118
4.9.2.1 A Teoria da Hierarquia Normativa ........................................ 118
4.9.2.2 A Teoria da Cumplicidade .................................................. 121
4.9.2.3 A Teoria da Qualificao.................................................... 122
4.9.2.4 A Teoria da "Renncia implcita" .......................................... 123
4.9.2.5 A Teoria da Jurisdio Universal ....................................... 125
4.10 Discusso e tomada de posio ....................................................... 127
CONCLUSES .............................................................................................. 135
BIBLIOGRAFIA .............................................................................................. 138
12
INTRODUO
O direito internacional passou por profundas alteraes no ltimo sculo. De
uma perspectiva centrada na figura do Estado, passou-se a uma concepo que se
preocupa cada vez mais com o papel do indivduo, em um processo que se
consolidou por intermdio do reconhecimento da acuidade dos direitos humanos. A
primazia atribuda proteo dos direitos humanos acarretou transformaes em
diversos institutos do direito internacional, cuja aplicao passou a se pautar
tambm por estes valores.
Este estudo, portanto, ir abordar essencialmente o efeito de tais
transformaes sobre a imunidade jurisdicional do Estado estrangeiro, norma de
origem ancestral cuja aplicao passou por um processo de limitao no ltimo
sculo e que, atualmente, tem sido contestada, tambm, quando as demandas que
envolvem violaes aos direitos humanos.
Em 23 de dezembro de 2008, a Alemanha recorreu ao Tribunal Internacional de
Justia alegando que a Itlia, estaria ferindo a sua imunidade de jurisdio, ao julgar
a Repblica alem em suas cortes civis por violaes aos direitos humanos
ocorridos na Segunda Guerra Mundial. O Tribunal Internacional de Justia, em 3 de
fevereiro de 2012, decidiu que, mesmo em casos de violaes graves aos direitos
humanos, um pas no pode ser julgado pelo Judicirio de outro. Ainda nestes
casos, a imunidade dos Estados prevalece.
O trabalho ora encetado, procura analisar atravs da evoluo do direito
internacional o impacto das normas imperativas de direito internacional na esfera da
imunidade jurisdicional do Estado. Ser que a violao de uma norma jus cogens, ou
seja, uma norma aceita e reconhecida pela comunidade internacional dos Estados
em seu todo, como norma da qual nenhuma derrogao permitida no resultaria,
mesmo, na perda de imunidade do Estado?
Para os fins deste estudo, a presente dissertao abordar em seu primeiro
captulo, o impacto dos direitos humanos na noo de soberania do Estado.
13
Num segundo momento, tratar-se- sobre a responsabilidade Internacional do
Estado no domnio do Direito Internacional dos Direitos Humanos.
Na terceira parte, ser elucidada a questo da imunidade de jurisdio,
especificamente, e sua flexibilizao no decorrer dos anos.
Por fim, o quarto e ltimo captulo desdobrar-se-, especificamente, sobre
imunidade de jurisdio do Estado estrangeiro em casos envolvendo violaes aos
direitos humanos.
14
1 O IMPACTO DOS DIREITOS HUMANOS NA NOO DE SOBERANIA DO
ESTADO
1.1 Constitucionalizao do Direito Internacional
A Constitucionalizao do Direito Internacional no uma temtica nova no
Direito Internacional. 1 Tampouco assunto suscetvel de uma s interpretao,
podendo receber inmeros significados devido polissemia do termo constituio.
No presente trabalho ao tratarmos da constitucionalizao do direito
internacional, estaremos nos referindo ao processo de desenvolvimento de um
direito internacional objetivo, que vincula as relaes entre os sujeitos do direito
internacional. 2
Tradicionalmente, o uso do termo constituio limitava-se as constituies
domsticas. Como cedio, as constituies nacionais que conhecemos hoje so
frutos da filosofia jurdica dos sculos XVIII e XIX, criados com o escopo de facilitar a
transio do feudalismo para o liberalismo. As constituies escritas foram
empregadas como meio de limitar a interferncia do Estado sobre os direitos e as
liberdades privadas e de garantir a participao poltica dos cidados. 3 Atualmente,
as constituies nacionais apresentam um conjunto de preceitos fundamentais que
regem a organizao e o desempenho das atribuies governamentais em um
determinado Estado, alm de regularem as relaes entre as autoridades dos
Estados e seus cidados.
1 Para mais detalhes vide QUEIROZ, C. Direito Constitucional Internacional. Lisboa: Coimbra Editora, 2011. p. 17 et seq.
2 TRINDADE, O. C. A constitucionalizao do Direito internacional: mito ou realidade? Revista de Informao Legislativa, Braslia, abr./jun. 2008. p. 271-272.
3 Cf. WET, E. D. The international constitutional order. International & COmparative Law Quarterly, v. 55, n. 1, p. 51-76, 2006; WALTER, C. Constituzionalizing (Inter)national Governance - Possibilities for and Limits to the development of an Intenational Constitutional Law. German Yearbook of International Law, v. 44, p. 170-201, 2001; FASSBENDER, B. The meaning of international constitutional law. In: TSAGOURIAS, N. Transnational constitutionalism: international and european models. Cambridge: Cambridge University Press, 2007. p. 307-328.
15
Contudo, no h motivo para utilizar o termo "constituio" exclusivamente
para designar a lei fundamental e suprema de um Estado soberano constitudo por
um nico poder constituinte, uma vez que os Estados Federais, como a Alemanha, o
Brasil e os Estados Unidos reconhecem as constituies subnacionais das suas
unidades federativas. Mais importante ainda, no entanto, o processo de
constitucionalizao no mbito da Unio Europeia (UE), que resultou no Tratado que
estabelece uma Constituio para a Europa. 4 De acordo com Wet a elaborao da
Constituio da Unio Europeia tem desafiado a noo de que uma ordem
constitucional necessariamente implica na existncia do demos constitucional
tradicional. A arquitetura constitucional da Europa no foi validada mediante um
processo de demos constitucional e vem de encontro a um dos requisitos clssicos
de uma constituio, nomeadamente, a ligao intrnseca de uma Constituio e da
Lei constitucional com o Estado e o povo. 5 Diferentemente das constituies
tradicionais, a constituio da Unio Europeia prev a concorrncia de politicas
nacionais com uma ordem poltica maior, na forma de valores compartilhados e de
organizao poltica. 6 Assim, prev a coexistncia de ordens constitucionais
nacionais dentro de uma ordem constitucional supranacional, na figura da UE. De
tal modo, a Constituio europeia marca um momento inteiramente novo do
constitucionalismo, no qual o homem tem a primazia sobre as teorias e as prticas
at aqui adotadas. 7
A discusso concernente constitucionalizao da Europa traz baila a
questo da transposio da noo de constitucionalismo abstrato esfera ps-
nacional, com o intuito de adquirir controle sobre a tomada de decises realizada
4 JORNAL OFICIAL DA UNIO EUROPEIA. Tratado que estabelece uma Constituio para a Europa. Comunicaes e Informaes. 2004/C 310/01.
5 WET, E. D. The international constitutional order. International & COmparative Law Quarterly, v. 55, n. 1, p. 52, 2006; KLABBERS, J.; PETERS, A.; ULFSTEIN, G. The constitutionalization of international law. New York: Oxford University Press, 2009. p. 19-25.
6 MADURO, M. P. Europe and the constitution: what if this is a good as it gets? In: WEILER, J. H. H.; WIND, M. European constitutionalism: beyond the state. Cambridge: Cambridge University Press, 2003. p. 81-86.
7 GOMES, P. P. J. Direito Constitucional em evoluo: perspectivas. Curitiba: Juru, 2005. p. 97.
16
fora das fronteiras nacionais. 8 Esta questo diz respeito transposio das noes
que vo desde valores humanistas neokantianos da democracia, responsabilidade,
igualdade, a separao de poderes, o Estado de Direito e os direitos fundamentais.
Em essncia, os constitucionalistas europeus demonstraram como o
constitucionalismo pode servir de referencial para um sistema normativo vivel e
legtimo para qualquer comunidade poltica, inclusive, em um cenrio ps-nacional,
ou seja, ordens constitucionais que so formadas alm do Estado, que podem ser
de natureza regional, internacional ou supranacional. 9
De acordo com uma importante linha doutrinal, o desenvolvimento do direito
internacional nas ltimas dcadas possibilita que este seja compreendido atravs da
sintaxe, da semntica e da pragmtica do direito constitucional. 10 Um dos
advogados dessa teoria Jrgen Habermas. Ao reexaminar a viso Kantiana de
uma repblica mundial, este doutrinador delineou a estrutura de uma politica
constitucional de uma sociedade mundial descentralizada como um sistema de
governo multinvel. Baseada em uma anlise imparcial da situao mundial atual, o
mesmo vislumbra um possvel conceito de um sistema poltico multinvel que, como
um todo, no um Estado, mas, no entanto, capaz de salvaguardar, sem um
governo mundial, em um nvel supranacional, a paz e os direitos humanos. e para
solucionar a nvel transnacional os problemas da poltica domstica global
(Welttinnenpolitik). 11
8 WALKER, N. Postnational constitutionalism and the problem o translation. In: WEILER, J. H. H.;
WIND, M. European constitutionalism: beyond the state. Cambridge: Cambridge University Press, 2003. p. 27-54.
9 WET, E. D. The international constitutional order. International & COmparative Law Quarterly, v. 55, n. 1, p. 52-53, 2006; WALKER, N. Postnational constitutionalism and the problem o translation. In: WEILER, J. H. H.; WIND, M. European constitutionalism: beyond the state. Cambridge: Cambridge University Press, 2003. p. 27-54. Cambridge: Cambridge University Press, 2003. p.34 et seq; MADURO, M. P. Europe and the constitution: what if this is a good as it gets? In: WEILER, J. H. H.; WIND, M. European constitutionalism: beyond the state. Cambridge: Cambridge University Press, 2003. p. 84 et seq.
10 WALTER, C. Constituzionalizing (Inter)national Governance - Possibilities for and Limits to the development of an Intenational Constitutional Law. German Yearbook of International Law, v. 44, p. 170-201, 2001; MACHADO, J. Direito internacional: do paradigma clssico ao ps-11 de Setembro. Coimbra: Coimbra Editora, 2006. p. 51.
11 HABERMAS, JRGEN. Der gaspaltene Westen. Apud FASSBENDER, B. The meaning of international constitutional law. In: TSAGOURIAS, N. Transnational constitutionalism: international and european models. Cambridge: Cambridge University Press, 2007. p. 314.
17
Nas palavras de Gomes 12:
[...] o novo constitucionalismo o da tica democrtica justa e social,
fundada nos princpios da participao pluralista, solidria e ativa,
organizada para absorver e no para excluir pessoas, grupos e povos. o
constitucionalismo da tica da solidariedade de uma sociedade pluralista,
poder-se-ia afirmar, a dizer, aquele que libertador e organizador,
promovendo uma arquitetura jurdica que propicie a unio das pessoas e
dos povos para resguardar a individualidade sem o individualismo e a
identidade sem a segregao e isolacionismo de grupos. O
constitucionalismo contemporneo expe-se abertura e ao intercambio e
complementaridade com os outros ramos do conhecimento, como sejam, a
poltica, a biotica, dentre outros. No faz, assim, uma interseo do Direito,
como antes pretendeu, mas a sua integrao com os ramos do
conhecimento humano que sejam pertinentes aos tema de seus cuidados.
Nesse diapaso, a teoria da constitucionalizao do direito internacional parte
da premissa de que a consolidao de uma comunidade internacional detentora de
valores fundamentais, que originam normas jurdicas consagradoras de obrigaes
erga omnes 13, assim como, a sua codificao em termos quase constitucionais, so
necessrias e urgentes. Jnatas Machado, sabiamente ensina que a comunidade
internacional apresenta-se, cada vez mais, como comunidade constitucional, ao
passo que o direito internacional assume uma funo constitucional, em contraponto
dimenso parcial assumida com intensidade crescente pelo constitucionalismo
nacional. 14 Num tal contexto, retoma-se o ideal Kantiano de uma ordem
constitucional cosmopolita interestadual. 15
Apesar da inexistncia de um poder constituinte formal escala global, ele
incutido a partir de valores compartilhados por um nmero significativo de
constituies estaduais ao redor do mundo. A partir do momento em que um
conjunto crescente de povos aderem, em sede constituinte, os preceitos dos direitos
humanos, da democracia, do Estado de direito, da resoluo pacfica dos conflitos,
do desenvolvimento social, etc., para conduzirem a vida dentro de suas fronteiras,
12 GOMES, P. P. J. Direito Constitucional em evoluo: perspectivas. Curitiba: Juru, 2005. p. 96
13 FASSBENDER, B. The meaning of international constitutional law. In: TSAGOURIAS, N. Transnational constitutionalism: international and european models. Cambridge: Cambridge University Press, 2007. p.315-321
14 MACHADO, J. Direito internacional: do paradigma clssico ao ps-11 de Setembro. Coimbra: Coimbra Editora, 2006. p. 51
15 KANT, I. A paz perprtua e outros opsculos. Lisboa: Edies 70, 2009.
18
pode-se concluir que os mesmos povos objetivam que as suas relaes
internacionais se subordinem queles valores, conferindo-lhes uma funo
materialmente constituinte de direito internacional. 16
Os valores supracitados so a representao dos interesses gerais da
comunidade internacional, da crescente dependncia mtua dos Estados e da busca
do bem comum internacional, impondo uma significativa transformao e mudana
de conceitos jurdico-internacionais tradicionais, nomeadamente, de Estado,
soberania, tratado internacional, dentre outros, e edificando uma ordem
constitucional internacional, conformada por uma noo de estadualidade aberta e
interdependente, acompanhada da estruturao hierrquico-normativo do
ordenamento jurdico internacional e do primado do respectivo direito constitucional.
17 Os mbitos em que este fenmeno se d com maior intensidade so os dos
direitos humanos, a paz e a segurana internacionais, a organizao da economia e
do comrcio internacional e a proteo dos espaos interacionais e do meio
ambiente.
A constitucionalizao do direito internacional considerada como a mudana
estrutural do direito internacional mais significativa das ltimas dcadas. Entretanto,
imperioso enaltecer que a sua negao por parte de muitos Estados perdurar,
rejeitando a sobre interpretao dos tratados internacionais vigentes. 18
1.2 A Primazia do Indivduo e dos Direitos Humanos
Antes da criao da Organizao das Naes Unidas, em 1945, a proteo
dos direitos humanos e liberdades fundamentais era assunto essencialmente do
direito interno dos Estados 19.
16 MACHADO, J. Direito internacional: do paradigma clssico ao ps-11 de Setembro. Coimbra: Coimbra Editora, 2006. p. 51-52
17 Ibidem, p. 52
18 Ibidem, p. 52
19 O termo essencialmente utilizado nessa frase porque j naquela poca o direito internacional se preocupou em proibir a prtica to odiosa e degradante como a escravido (Congresso de Viena 1815), e admitiu, em contrapartida, as chamadas intervenes em razo da humanidade.
19
Neste sentido, Henkin elucida que historicamente, a forma pela qual um
Estado trata o indivduo em seu territrio era assunto de seu interesse exclusivo,
decorrente de sua soberania relativamente ao seu territrio e da liberdade de agir.
20 E, o fundamento para tal costume se dava pelo uso indiscriminado do discurso da
manuteno de suas sob eranias, que no conceito clssico a traduo do poder
absoluto e perptuo do Estado, podendo ser compreendida como a prerrogativa que
possui o Estado de conduzir em suas fronteiras, definindo, assim, o prprio destino
de seus nacionais, seja ditando comportamentos, infligindo sanes; em fim,
desempenhando a sua jurisdio domstica, refletindo a imagem de uma fortificao
medieval praticamente inexpugnvel. Desse modo, a soberania atribua aos Estados
um domnio reservado, que era invocado em detrimento de qualquer ato de
ingerncia, mesmo que em sede de proteo de seus nacionais.
No obstante, h que se assinalar certa modificao no quadro acima
elucidado avistando ainda na era moderna, o advento dos direitos humanos no
pensamento filosfico ocidental do sculo XVII, operando como uma teoria abstrata,
cuja fora se sintetiza nas exigncias formuladas ao poder pblico, que se
encontrava constitudo, buscando estabelecer limites aos atos dos governantes,
reagindo contra o Estado absolutista que no reconhecia a separao entre o poder
pblico e o privado, e, contestando os atos do soberano que ao instituir as leis no
se sente sujeito a observ-las. 21
Acerca da percepo no momento histrico, onde ocorreram as maiores
progresses no sentido de se ter aes efetivas na esfera da proteo dos direitos
humanos, Hlio Bicudo ensina que [...] ainda que a proteo dos direitos humanos
conhecesse desde a cidade antiga antecedentes notveis; sua histria no se
desenvolve verdadeiramente seno com o Estado moderno, que reflete
fundamentalmente as novas compreenses das relaes entre o indivduo e o
poder. 22
20 HENKIN apud PIOVESAN, F. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. So Paulo: Saraiva, 2010. p. 120.
21 AMARAL JNIOR, A. D. Curso de Direito Internacional Pblico. 2. ed. So Paulo: Atlas, 2011. p. 476.
22 BICUDO, H. Direitos Humanos e sua proteo. So Paulo: FDT, 1997. p. 32.
20
Nesse mesmo sentido, Jnatas Machado entende que embora os
fundamentos remotos dos direitos fundamentais, de natureza civil poltica e
econmica, social e cultural, possam ser encontrados em boa medida, nas tradies
greco-romana e judaico-crist, a atual considerao do indivduo como sujeito de
direito internacional o resultado de um longo processo histrico que vai buscar os
seus antecedentes tradio de direito natural, Reforma e Paz de Vesteflia. 23
A corroborar o exposto, o reconhecimento dos direitos humanos, semelhante
ao que se tem atualmente, tornou-se possvel unicamente aps um longo trabalho
preparatrio, centrado em torno da limitao do poder poltico e no reconhecimento
de que os governados tm prevalncia em detrimento dos governantes. 24
Contudo, somente a partir do sculo XVIII surgem textos declarativos de
direitos no sentido moderno, com especial mrito para a Declarao de
Independncia dos Estados Unidos da Amrica (1776) e a Declarao dos Direitos
do Homem e do Cidado adotada pela Assembleia Constituinte francesa de 1789. 25
Nas palavras de Fbio Konder Comparato: As declaraes de direito norte-
americanas, juntamente com a Declarao francesa de 1789, representaram a
emancipao histrica do indivduo perante os grupos sociais aos quais ele sempre
se submeteu: a famlia, o cl, o estamento, as organizaes religiosas.
A passagem histrica ocorrida em 26 de agosto de 1789 assinala o momento
a partir do qual surge a mais importante e famosa declarao de direitos
fundamentais, a Declarao dos Direitos do Homem e do Cidado, marcada em sua
essncia pela universalidade dos direitos inaugurados, e que firma solenemente que
a sociedade em que no esteja assegurada a garantia dos direitos fundamentais
nem estabelecia a separao dos poderes no tem Constituio. 26
23 MACHADO, J. Direito internacional: do paradigma clssico ao ps-11 de Setembro. Coimbra: Coimbra Editora, 2006. p. 361-362.
24 COMPARATO, F. K. A afirmao histrica dos direitos humanos. 6. ed. So Paulo: Saraiva, 2008. p. 41.
25 Para mais detalhes vide LUO PREZ, A. E. Temas clave de la Constitucion Espanla: Los derechos fundamentales. 5. ed. Madrid: Tecnos, 1993. p. 35-38.
26 ASSEMBLEIA NACIONAL DA FRANA. Declarao de Direitos do Homem e do Cidado. Frana, 26 de agosto de 1789. Artigo 16.
21
Esse evento histrico marcante, pois no apenas utopicamente, como
tambm legalmente, o homem passa a ser visto como detentor de direitos, e no
unicamente de deveres. A partir desse momento, o Estado absolutista deixa de ser o
sujeito exclusivo de direitos na seara internacional. Podendo-se arrazoar, inclusive,
que com tal marco d-se o primeiro passo para a legitimao dos anseios populares,
e para uma limitao do poder soberano do Estado.
De acordo com Jos Afonso Silva: o texto da declarao de 1789 de estilo
lapidar, elegante, sinttico, preciso e escorreito, que, em dezessete artigos,
proclama os princpios da liberdade, da igualdade, da propriedade e as garantias
individuais liberais que ainda se encontram nas Declaraes contemporneas, salva
as liberdades de reunio e de associao que ela desconhecia, firmando que estava
em uma rigorosa concepo individualista.27
Ao analisar a teoria individualista, Norberto Bobbio chega concluso de que
esta teoria desempenhou funo de grande relevncia ao colocar o indivduo
singular, com valor em si mesmo, em primeiro plano, ajeitando o Estado em uma
posio secundria. Deste modo, o Estado seria feita pelo indivduo, e no feita pelo
Estado. 28
Com base nessa inovao, Luigi Ferrajoli afirma que com a Declarao dos
Direitos do Homem e do Cidado, de 1789, e depois coma as sucessivas cartas
constitucionais, muda a forma do Estado, e, com ela muda, at se esvaziar, o
prprio princpio da soberania interna. 29
O doutrinador italiano complementa seu entendimento afianando que: De
fato, diviso dos poderes, princpio da legalidade e direitos fundamentais
correspondem a outras tantas limitaes e, em ltima anlise, as noes de
soberania interna. Graas a esse princpio, a relao entre Estado e cidados j no
uma relao entre soberanos e sditos, mas sim entre sujeitos, ambos de
27 SILVA, J. A. D. Curso de Direito Constitucional Positivo. 22. ed. So Paulo: Malheiros Editores, 2003. p. 158.
28 BOBBIO, N. A Era dos Direitos. Nova. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. p. 56.
29 FERRAJOLI, L. A soberania no mundo moderno: nasccimento e crise do Estado nacional. So Paulo : Martins Fontes, 2002. p. 28.
22
soberania limitada [...] Sob esse aspecto, o modelo do estado de direito por fora do
qual todos os poderes ficam subordinados lei, equivalente negao da
soberania. 30
E, acrescenta: Com a subordinao do prprio poder legislativo de maioria
lei constitucional e aos direitos fundamentais nela estabelecidos, o modelo do
estado de direito aperfeioa-se e completa-se no modelo do estado
constitucional de direito, e a soberania interna como potestas absoluta (poder
absoluto), j no existindo nenhum poder absoluto, mas sendo todos os poderes
subordinados ao direito, se dissolve definitivamente. 31
Destarte, para Ferrajoli, soluciona-se a questo da limitao da soberania
interna dos Estados, que, frente ao Estado democrtico de direito, no teve outra
sorte, a no ser de dissolver.
J a soberania externa tomou um rumo diametralmente oposto. No perodo
que compreende as duas guerras mundiais, de 1914 a 1945, tal fenmeno teve o
seu apogeu. No obstante, com a criao da ONU (organizao das Naes Unidas)
em 1945 e via da Declarao Universal dos Direitos do Homem, em 1948, ocorre o
seu declnio, acarretando a limitao da soberania externa, em outras palavras, a
soberania deixa de ser livre e absoluta; passando a se subordinar a dois preceitos
fundamentais: o imperativo da paz e a tutela dos direitos humanos. Com essa
mudana fulcral o prprio conceito de soberania internacional absoluta ou ilimitada,
seguindo os passos trilhados pela soberania interna, torna-se incongruente. 32
Ante o exposto, pode-se arrazoar que com a queda do poder soberano
tradicional, o indivduo passa a ocupar o posto de sujeito de direito internacional,
posio a qual, at ento, era de domnio exclusivo do Estado, dando incio, assim,
a um processo de internacionalizao dos direitos humanos.
A corroborar o exposto, a consolidao do Direito Internacional dos Direitos
Humanos s se deu em meados do sculo XX, com a percepo dos males
30 Ibidem, p. 28.
31 Ibidem, p. 33.
32 Ibidem, p. 39-40.
23
advindos do segundo conflito blico mundial, precisamente em 1945, com o seu
termo. 33
Sobre este episdio da histria, Flvia Piovesan ensina que: A barbrie do
totalitarismo significou a ruptura do paradigma dos direitos humanos, por meio da
negao do valor da pessoa humana como valor fonte do direito. Diante dessa
ruptura, emerge a necessidade de reconstruir os direitos humanos, como
referencial e paradigma tico que aproxime o direito da moral. Nesse cenrio, o
maior direito passa a ser, adotando a terminologia de Hannah Arendt, o direito a ter
direitos. 34
Nesse diapaso impende destacar que, a Declarao Universal dos Direitos
Humanos, adotada e proclamada pela Resoluo 217 da Assembleia Geral das
Naes Unidas, de 10 de dezembro de 1948, sopesada como o marco da criao
do chamado Direito Internacional dos Direitos Humanos.
Sobre o assunto em tela, Fbio Comparato sabiamente sublinha que:
Inegavelmente, a Declarao Universal de 1948 representa a culminncia
de um processo tico que, iniciado com a Declarao de Independncia dos
Estados Unidos e a Declarao dos Direitos do Homem e do Cidado, da
Revoluo Francesa, levou ao reconhecimento da igualdade essencial de
todo ser humano em sua dignidade de pessoa, isto , como fonte de todos
os valores, independentemente das diferenas de raa, cor, sexo, lngua,
religio, opinio, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou
qualquer outra condio, como se diz em seu artigo II.
Ainda sobre o tema, relevante o pensamento de Norberto Bobbio,
afianando que:
Com a Declarao de 1948, tem incio uma terceira e ltima fase, na qual
a afirmao dos direitos , ao mesmo tempo, universal e positiva: universal
no sentido de que os destinatrios dos princpios nela contidos no so
33 COMPARATO, F. K. A afirmao histrica dos direitos humanos. 6. ed. So Paulo: Saraiva, 2008. p. 55 et seq; BOBBIO, N. A Era dos Direitos. Nova. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. p. 62 et seq.; PASTOR RIDRUEJO, J. A. El proceso de internacionalizacin de los derechos humanos. El fin del mito de la soberana nacional (I). Plano Universal: La obra de las Naciones Unidas. In: Consolidacin de derechos y garantas: los grandes retos de los derechos humanos en el siglo XXI: seminario conmemorativo del 50 aniversario de la Declaracin universal de los derechos humanos. Madrid: 1999. p. 35-46.
34 PIOVESAN, F. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. So Paulo: Saraiva, 2010. p. 122.
24
mais apenas os cidados deste ou daquele Estado, mas todos os homens;
positiva no sentido de que pe em movimento um processo em cujo final os
direitos do homem devero ser no mais apenas proclamados ou apenas
idealmente reconhecidos, porm efetivamente protegidos at mesmo
contra o prprio Estado que os tenha violado. 35
Assim, pode-se, finalmente, arrazoar que o nvel de abstrao das teorias
iniciais do sculo XII, foi transcendido, desaguando em um senrio onde so
construdas garantias jurdicas do cumprimento dos direitos humanos, at mesmo
contra o prprio Estado que os violar.
Nessa perspectiva, pode-se dizer que o significado da institucionalizao dos
direitos humanos na ordem interna dos Estados, assim como no mbito
internacional, ganha relevo, ocasionando com que esses direitos sejam acautelados
e tutelados numa esfera erga omnes, sendo algumas normas neste domnio
reconhecidas como jus cogens. 36
Muito embora a proteo dos direitos humanos na esfera internacional tenha
evoludo, ainda podem ser observadas, em boa medida, dificuldades em sua
propagao, uma vez que os desafios no so poucos quando se encontram em
pauta questes to controversas aos Estados. Motivo esse que acarreta com que o
sistema de proteo internacional dos direitos humanos esteja longe de condizer
com o que se espera quando se afirma a primazia dos indivduos na ordem
internacional.
1.3 A Soberania como Responsabilidade
Desde o seu nascedouro no sculo XVII, com os Tratados de Vesteflia, que
deram termo guerra dos 30 anos, o Direito internacional clssico tem por elemento
35 BOBBIO, N. A Era dos Direitos. Nova. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. p. 29-30.
36 INTERNATIONAL COURT OF JUSTICE. Barcelona Traction. ICJ Reports (1970); Cf. MACHADO, J. Direito internacional: do paradigma clssico ao ps-11 de Setembro. Coimbra: Coimbra Editora, 2006. p. 363-364.
25
basilar o Estado, 37 componente fundamental da macro poltica europeia aps o fim
do feudalismo e a derrocada da Igreja catlica e do Santo Imprio Romano.
Consagrou-se, assim, uma nova fase na histria poltica europeia, alicerada
no reconhecimento da igualdade soberana e na independncia mtua dos Estados,
concernente s relaes internacionais, e na extino da dependncia de todos
relativamente Santa S. Mormente, imperioso enaltecer a rejeio dos Estados
perante a subordinao de qualquer autoridade superior. 38
O princpio da soberania foi o princpio no qual os monarcas encontraram a
justificao do seu absolutismo, apoiados e alentados pelos maiores filsofos da
poca (Jean Bodin, Vettel, Maquievel, Hobbes, Hegel, Jellinek, etc.). Num tal
contexto, a vida internacional europeia passou a ser regida pelo princpio do
equilbrio de foras, do equilbrio poltico ou da balana de poderes. 39
A soberania do Estado consiste no direito do Estado de estabelecer de forma
independente seus assuntos internos sem interveno de um Estado terceiro.
Resultante da ideia de que todos os Estados so iguais perante a comunidade
internacional. O princpio da soberania era um dos pilares sustentadores do modelo
de Vesteflia do sculo XVII. 40
Ainda na teoria tradicional, a soberania definia-se como competncia
exclusiva do Estado de livremente decidir sua poltica interna sem qualquer
37 De acordo com a clebre teoria dos trs elementos, na doutrina do direito internacional tradicional, o Estado o representante de uma populao, regido por um governo, num determinado territrio. Uma vez que esses trs elementos, o povo, o territrio e o governo soberano, encontrem-se em consonncia, um Estado, na acepo legal, existe. Vide MACHADO, J. Direito internacional: do paradigma clssico ao ps-11 de Setembro. Coimbra: Coimbra Editora, 2006. p. 182-215; NGUYN, Q. D.; DAILLIER, P.; PELLET, A. Direito internacional pblico. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 2003. p. 432-477.
38 Vide NGUYN, Q. D.; DAILLIER, P.; PELLET, A. Direito internacional pblico. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 2003. p. 54 ss, 433-434; CAMILLERI, J. A.; FALK, J. The end of sovereignty?: The politics of a shrinking and fragmenting world. Aldershot: Edward Elgar, 1992. p. 12-15.
39 Sobre este tema Cf. CUNHA, J. D. S.; PEREIRA, M. D. A. D. V. Manual de direito Internacional Pblico. Coimbra: Almedina, 2004. p. 138; MACHADO, J. Direito internacional: do paradigma clssico ao ps-11 de Setembro. Coimbra: Coimbra Editora, 2006. p. 213-215; ALMEIDA, F. F. D. Direito Internacional Pblico. Coimbra: Coimbra Editora, 2003. p. 217-221; GOMES, C. A. A evoluo do conceito de soberania : tendncias recentes. Scientia Iuridica, p. 185-212, Jul./Dez. 1998. NGUYN, Q. D.; DAILLIER, P.; PELLET, A. Direito internacional pblico. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 2003. p. 383-394.
40 FOX, H. The law of state immunity. Oxford: Oxford University Press, 2002. p. 24.
26
interferncia externa e, igualdade entre todos os Estados na esfera internacional. 41
Ademais, trata-se, como bem observa Jontas Eduardo Mendes Machado, do
terceiro elemento constitutivo do Estado, ou seja, concerne ao governo soberano,
poder supremo, poder constituinte, autoridade ltima, poder dos poderes,
competncia das competncias, no ncleo de uma comunidade poltica
territorialmente delimitada. 42
O conceito de soberania , atualmente, profundamente questionado. E, mais
do que nunca, os avanos do Direito Internacional questionam os limites do princpio
da soberania do Estado em relao ao ser humano, atualmente elevado a mbito
global e reconhecido no unicamente como sujeito de Direito Internacional, mas
como fim ltimo deste. 43
No conceito contemporneo, a soberania, apesar de constituir a fonte das
competncias estaduais, deixa de ser absoluta. A soberania de cada Estado
limitada por idntico atributo de todos os outros que lhe so iguais juridicamente,
sendo, por consequncia as necessidades de coexistncia entre os sujeitos
primrios de Direito Internacional, e no propriamente a vontade dos Estados, a
determinar a compreenso daquela majestosa. 44
A doutrina voluntarista j admitia a limitao supramencionada: As limitaes
da liberdade de um Estado, quer derivem do direito internacional comum quer de
41 Schulz elucida que: A principle contributor to the idea was Thomas Hobbes; his Leviathan--the sovereign state to which all individuals owed their loyalty--became a central part of the concept of sovereignty. Hugo Grotius argued that the law of nations generated force from the mutual consent of state sovereigns, who divined the sole power to make laws for their subjects from God. HUMES-SCHULZ, S. Note: Limiting Sovereign Immunity in the Age of Human Rights. Harvard Human Rights Journal, n. 21, p. 105, Winter 2008.
42 MACHADO, J. Direito internacional: do paradigma clssico ao ps-11 de Setembro. Coimbra: Coimbra Editora, 2006. p. 213-215.
43 Nesse sentido, Kant j ensinava que: Admitindo, porm, que haja alguma coisa cuja existncia em si mesma tenha um valor absoluto e que, como fim em si mesmo, possa ser a base de leis determinadas, nessa coisa e s nela que estar a base de um possvel imperativo categrico, quer dizer, de uma lei prtica. Ora, digo eu: - O homem, e, de uma maneira geral, todo ser racional, existe como fim em si mesmo, no s como meio para o uso arbitrrio desta ou daquela vontade. Pelo contrrio, em todas as suas aes, tanto nas que se dirigem a ele mesmo como nas que se dirigem a outros seres racionais, ele tem sempre de ser considerado simultaneamente como fim. KANT, I. Fundamentao da metafsica dos costumes: texto integral. Porto : Areal, 2005. p. 76.
44 ALMEIDA, F. F. D. Direito Internacional Pblico. Coimbra: Coimbra Editora, 2003. p. 217.
27
compromissos contrados, no afetam de modo algum, enquanto tais, a sua
independncia. 45
Contudo, imperioso enaltecer que, apesar do modelo de Vesteflia ter sido
superado, com a limitao da soberania do Estado pelo Direito Internacional,
especificamente o direito internacional dos direitos humanos, o Estado continua a
desempenhar um papel de extrema relevncia no direito internacional. Nesse
mesmo diapaso, no h de se falar na superao do Estado, haja vista que o
Estado no deixa de existir, mas sim numa evoluo, num aperfeioamento do
conceito de soberania. 46
Insta salientar que, o principal escopo e fundamento do direito internacional
moderno a limitao da soberania do Estado, o que no significa que o mesmo
esteja subordinado a um outro, mas sim no surgimento de um dever do Estado de
respeitar regras mnimas que iro garantir igual privilgio a todos os outros Estados.
47 Ademais, como salienta Machado, afasta-se hoje o entendimento de que os
Estados so pessoas morais e reala-se o fato de que os mesmos so apenas
recursos institucionais ao servio dos cidados. 48
O conceito acima aludido revela o entendimento contemporneo da noo de
soberania como responsabilidade. 49
O ento Secretrio-Geral da ONU, Boutros-Ghali mencionou, em seu relatrio
Un programa para paz, o conceito de soberania com responsabilidade ao afirmar
que: La piedra angular de este labor es y debe seguir siendo el Estado. El respecto
45 Opinio dissidente de Anziotti no caso do Regime aduaneiro austro-alemo, T.P.J.I., srie A/B, n 41, p. 57. Cf. NGUYN, Q. D.; DAILLIER, P.; PELLET, A. Direito internacional pblico. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 2003. p. 385.
46 MACHADO, J. Direito internacional: do paradigma clssico ao ps-11 de Setembro. Coimbra: Coimbra Editora, 2006. p. 182-216.
47 NGUYN, Q. D.; DAILLIER, P.; PELLET, A. Direito internacional pblico. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 2003. p. 85-86.
48 MACHADO, J. Direito internacional: do paradigma clssico ao ps-11 de Setembro. Coimbra: Coimbra Editora, 2006. p. 214.
49 Nesse sentido, Slaughter afirma que: A state's ability to control its own territory without external interference is no longer sufficient to allow it to govern its people-to provide security, economic stability and a measure of prosperity, clean air and water, and even minimum health standards. SLAUGHTER, A.-M. Security, Solidarity, And Sovereignty: The Grand Themes Of Un Reform. The American Journal Of International Law, v. 99, p. 619-631, 2005.
28
de su soberana e integridad fundamentales es crtico en todo progreso internacional
comn. No obstante ha pasado ya el momento de la soberana absoluta y exclusiva;
su teora nunca tuvo asidero en la realidad. Hoy deben comprender-lo as los
gobernantes de los Estados y contrapesar las necesidades de la nueva gestin
interna con las exigencias de un mundo cada vez ms interdependiente. 50 O
mesmo, ainda, elucidou a ideia da inevitvel relao entre ordem interna e ordem
externa.
Soberania como responsabilidade traduz-se, primeiramente, no
comportamento do Estado, na esfera internacional, como sujeito de direito. Em
segundo lugar, a soberania deve ser interpretada como direito/dever de cada Estado
de desempenhar suas funes de Estado com responsabilidade seguindo as
diretrizes do direito internacional. Por ltimo, a soberania est intimamente atrelada
a responsabilidade de acautelar os direitos fundamentais dos cidados e de
fomentar o seu bem estar econmico e social, alm de cooperar com a comunidade
internacional na soluo de problemas comuns. Destarte, a soberania encontra-se
umbilicalmente atrelada a proteo dos direitos humanos. Em sntese, a soberania
do Estado potencialmente ilimitada no plano interno, encontra-se, na realidade,
subordinada ao direito internacional e aos valores transnacionais de respeito pela
dignidade da pessoa humana e pelos seus direitos bsicos. 51
Immanuel Kant j ensinava que, a soberania deriva dos direitos universais
dos indivduos ao afirmar que, no Estado de Direito Cosmopolita, os Estados
reconhecem uma ordem jurdica a eles superior, direito que deve ser seguido,
mesmo com a ausncia de uma autoridade central. Tal entendimento vem ao
encontro da teoria contempornea do Direito Internacional dos Direitos Humanos
que impe a primazia dos Direitos Humanos, cuja proteo est acima da soberania
do Estado. Ademais, para Kant os direitos do homem devem ser considerados como
50 BOUTROS, BOUTROS-GHALI. Un programa de paz: Diplomacia preventiva, establecimiento de la paz y mantenimiento de la paz. Memorial del secretario General sobre la labor de la organizacin. (ONU A/47/277 S/2411, 17 junio 1992). p. 9.
51 MACHADO, J. Direito internacional: do paradigma clssico ao ps-11 de Setembro. Coimbra: Coimbra Editora, 2006. p. 214.
29
algo sagrado, por maiores que sejam os sacrifcios que ele custa ao poder
dominante. 52
Nessa esteira, a existncia do estado est intimamente atrelada proteo
dos direitos e liberdades do seu povo. Deste modo, a soberania pode ser
considerada como uma conexo entre o indivduo e o plano internacional.
Diferentemente da teoria tradicional - na qual ela configura o poder soberano sobre o
povo- a soberania atualmente sinnimo da responsabilidade do Estado de
representar o seu povo com justia. 53
Sublinhe-se que, negligenciar a proteo dos direitos humanos universais e
permitir que um Estado atue como uma entidade alheia ao seu povo, seria
abandonar a ideia de que os Estados no existem para si, mas para servir, proteger
e representar seu povo. Essa omisso pode levar a negao de que o indivduo
possui o direito proteo dos seus direitos humanos fundamentais. 54
A corroborar o exposto, soberania como responsabilidade nada mais do que
o dever do Estado de assegurar os direitos e liberdades fundamentais do indivduo.
A sua inobservncia pode acarretar na perda da legitimidade do Estado como
membro da comunidade internacional.
2 RESPONSABILIDADE INTERNACIONAL DO ESTADO NO DOMNIO DO
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
52 O direito dos homens deve considerar-se sagrado, por maiores que sejam os sacrifcios que ele custa ao poder dominante; aqui no se pode realizar uma diviso em duas partes e inventar a coisa intermdia (entre direito e utilidade) de um direito pragmaticamente condicionado, mas toda a poltica deve dobrar os seus joelhos diante do direito, podendo, no entanto, esperar alcanar, embora lentamente, um estdio em que ela brilhar com firmeza. KANT, I. A paz perprtua e outros opsculos. Lisboa: Edies 70, 2009. p. 177.
53 MORIKAWA, M. M. Deslocados internos: entre a soberania do Estado e a proteco internacional dos Direitos do Homem : uma crtica ao sistema internacional de proteco dos refugiados. Coimbra: Coimbra Editora, 2006. p. 282-283.
54 Cf. TESN, F. R. A Philosophy of International Law. Boulder: Westview Press, 1998.
30
A responsabilidade internacional do Estado consiste, para a maior parte da
doutrina, em uma obrigao internacional de reparao frente a uma violao prvia
de norma internacional. o que expe Ian Brownlie ao afirmar que: o Direito da
responsabilidade diz respeito incidncia e as consequncias de atos ilegais e, em
particular, ao pagamento de uma indenizao pelos danos sofridos. 55 A
responsabilidade do Estado caracterstica precpua de um sistema jurdico
alicerado no princpio da igualdade soberana dos Estados e no princpio da
reciprocidade de direitos e deveres entre os Estados. 56 De fato, todos os Estados
exigem o cumprimento dos acordos e tratados que os beneficiam e,
consequentemente, no podem desobrigar-se a cumpri-los, uma vez que todos eles
so iguais. Sendo assim, a responsabilidade uma decorrncia das relaes
simtricas de reconhecimento recprocas. 57
Por sua vez, a jurisprudncia consagrou a responsabilidade internacional do
Estado como princpio geral do Direito Internacional. Tal consagrao pode ser
vislumbrada em algumas decises judiciais, nomeadamente a do caso do S. S.
Wimbledom, na qual, a ento existente, Corte Permanente de Justia Internacional
determinou que o descumprimento de uma obrigao internacional acarretaria em
uma obrigao de reparar os danos causados; o que caracterizava, para a Corte, em
um princpio de Direito Internacional. 58 Esse princpio foi estabelecido pela Corte
Permanente de Justia no caso envolvendo a fbrica de Chorzw, ao deliberar que
[...] It is a principle of international law that the breach of an engagement involves an
obligation to make reparation in an adequate form. Reparation therefore is the
indispensable complement of a failure to apply a convention and there is no
necessity for this to be stated in the convention itself. 59 Acrescenta, ainda, em seu
julgamento que: [...] that it is a principle of international law, and even a general
55 BROWNLIE, I. Princpios de direito internacional pblico. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 1997. p.458.
56 MACHADO, J. Direito internacional: do paradigma clssico ao ps-11 de Setembro. Coimbra: Coimbra Editora, 2006. p. 565-566.
57 RAMOS, A. D. C. Responsabilidade Internacional do Estado por Violao de Direitos Humanos. Revista CEJ, Braslia, n. 29, p. 53-63, abr./jun 2005.
58 PERMANENT COURT OF INTERNATIONAL JUSTICE. Case S.S. Wimbledom, P.C.I.J Series A, n 1, Julgamento de 17 August 1923.
59 PERMANENT COURT OF INTERNATIONAL JUSTICE. Case concerning the factory at Chorzw (Jurisdiction), Sentena de 26 de jul. de 1927, P.C.I.J. Series A. p. 21.
31
conception of law, that any breach of an engagement involves an obligation to make
reparation. 60
De acordo com o exposto, verossmil a existncia de um consenso quanto
existncia do princpio da responsabilidade do Estado por atos ilcitos internacionais.
Com a anlise das definies dadas pela doutrina e pela jurisprudncia, a
responsabilidade internacional do Estado pode ser entendida como, em essncia,
uma relao jurdica apreciada como instituto jurdico, princpio de direito, obrigao
jurdica ou ainda como uma situao jurdica, pela qual o Direito Internacional
confronta as violaes perpetradas contra suas normas, ordenando imperiosamente
a reparao dos danos causados, com o intuito primordial de preservar a ordem
jurdica vigente. 61
As questes concernentes responsabilidade internacional do Estado
comearam a ser consideradas desde 1956 pela Comisso de Direito Internacional
da ONU (CDI), que a partir de ento passou a basear os seus trabalhos em matria
de responsabilidade estadual nessa premissa fundamental. Inicialmente estava em
causa a responsabilidade internacional dos Estados frente os cidados e sociedades
comerciais estrangeiras no quadro das nacionalizaes e da afirmao da soberania
dos Estados sobre os recursos naturais. 62 Com o avano da matria a aplicao da
lgica da responsabilizao internacional dos Estados frente violao de normas
internacionais alcanou toda a extenso do direito internacional.
Contudo, a CDI desenvolveu seus trabalhos relativos responsabilidade
internacional a partir de uma viso centrada nas relaes entre Estados, 63 deixando
de lado a situao em que os Estados incorrem em responsabilidade por
60 PERMANENT COURT OF INTERNATIONAL JUSTICE. case concerning the factory at Chorzw Merits, julgamento de 13 de Set. de 1928, P.C.I.J. Series A, n. 17, p. 29.
61 RAMOS, A. D. C. Responsabilidade Internacional do Estado por Violao de Direitos Humanos. Revista CEJ, Braslia, n. 29, p. 53-63, abr./jun 2005. p. 53-63.
62 ROSENTOCK, R. The ILC and State Responsability. American Journal of International Law, v.
96, n. 4, p. 792-856, 2002. p. 792-856; CRAWFORD, J. The international law commission's articles on state responsibility: introduction, text and commentaries. Cambridge: Cambridge University Press, 2002. p. 1 e ss.
63 Cf. MCCORQUODALE, R. Impact on State Responsability. In: KAMMINGA, M. T.; SCHEININ, M. The impact of human rights law on general international law. Oxford; New York: Oxford University Press, 2009. p. 235-254.
32
desrespeitar normas internacionais em detrimento de indivduos e grupos. E
precisamente sobre isso que a seo do Direito Internacional Pblico denominado
Proteo Internacional dos Direitos Humanos versa.
A proteo internacional aos Direitos Humanos teve seu nascedouro nas
cartas de represlia, - que representam os primrdios da proteo diplomtica -
sistema pelo qual o indivduo que sofresse algum dano em territrio estrangeiro
possua a prerrogativas de apelar para o Estado de sua nacionalidade com o
objetivo que este exigisse a reparao do Estado responsvel pelo dano. 64
Apesar de ter como seu antecedente histrico a proteo diplomtica, a
responsabilidade internacional do Estado por violaes dos Direitos Humanos no
pode ser considerada como fundamento da mesma, principalmente pelo fato da
proteo diplomtica considerar a leso aos direitos de um indivduo como uma
leso indireta ao Estado, ou seja, a proteo diplomtica embasa-se na teoria de
que o dano ao indivduo estrangeiro configura dano indireto ao Estado de sua
nacionalidade. Deste modo, o Estado ao conceder proteo diplomtica a seu
nacional, estaria exercendo direito prprio reparao por dano indireto perpetrado
por outro Estado. De fato, em 1924, a Corte Permanente de Justia Internacional
estabeleceu a primeira referncia jurisprudencial nessa rea, com o paradigmtico
caso Mavrommatis Palestine Concessions, Grcia vs. Reino Unido, no qual concluiu
que o Estado ao conceder a proteo diplomtica a seu nacional, est, na realidade,
reafirmando seu direito de ver respeitadas as normas de Direito Internacional. 65
A responsabilidade internacional do Estado por violaes dos Direitos
Humanos encontra-se balizada no Direito Internacional dos Direitos Humanos, no
qual o dano causado a um indivduo passa a ser essencialmente do mesmo, sem a
necessidade de mediao estatal, ante a natureza objetiva da obrigao de proteo
64 No medievo, os suseranos que residiam no continente europeu emitiam cartas de represlia a seus sditos no exterior, quando eram lesados em seus pases de domicilio. Cf. TRINDADE, A. A. C. O direito internacional em um mundo em transformao: ensaios, 1976-2001. Rio de Janeiro; So Paulo: Renovar, 2002. p. 499-527
65 PERMANENT COURT OF INTERNATIONAL JUSTICE. Judgment of 30 August 1924. Case Mavrommatis Palestine concessions. PCIJ Series A, n. 2.
33
aos Direitos Humanos. Ademais, esse ramo do Direito confere a todo indivduo um
rol de direitos internacionalmente consagrados. 66
A corroborar o exposto, originalmente, o regime da responsabilidade
internacional do Estado tratava unicamente das disputas entre Estados. Todavia, a
evoluo das relaes internacionais irrompeu uma nova vertente de disputas no
Direito Internacional, na qual os danos deixavam de ser diretamente do Estado,
passando a ser, tambm, dos seus nacionais. Desse modo, apesar da
responsabilidade internacional do Estado por violao de direitos humanos ter sua
raiz na responsabilidade internacional do Estado por danos causados a estrangeiros,
o seu prisma sofreu alteraes fulcrais, antes, direcionado ao Estado, agora, no
indivduo.
O regime acima elucidado foi expandido com o intuito de proteger os
indivduos de um Estado contra os arbtrios de um Estado estrangeiro. Como bem
acentua Ferreira:
Com a criao e a ratificao dos tratados internacionais de direitos
humanos a partir do fim da Segunda Guerra Mundial, os Estados
provocaram uma transformao radical no regime da responsabilidade
internacional. A partir de ento, a responsabilidade internacional deixou de
proteger apenas os interesses e reparar os danos e prejuzos causados por
disputas internacionais. Estado X Estado ou por um Estado contra o
nacional de outro. Agora, pela primeira vez, incorre em responsabilidade
internacional o Estado que viola um dispositivo internacional que protege o
direito de seus prprios nacionais. 67
Nesse diapaso, sublinhe-se que, no que tange a proteo dos direitos
humanos no h mais que se discutir, no estgio hodierno da sociedade
internacional, sobre sua fora vinculante, mas sim mecanismos que os proteja com
efetividade. Nesse sentido, Bobbio ensina que: no se trata de saber quais e
quantos so esses direitos, qual sua natureza e seu fundamento, se so direitos
naturais ou histricos, absolutos ou relativos, mas sim qual o modo mais seguro
66 Este entendimento pode ser vislumbrado no caso Ahmadou Sadio Diallo. INTERNATIONAL COURT OF JUSTICE. Ahmadou Sadio Diallo (Republic of Guinea v. Democratic Republic of the Congo), Merits, Judgment, I.C.J. Reports 2010. p. 639.
67 FERREIRA, P. G. Responsabilidade Internacional do Estado. In: LIMA JR., J. B. Direitos Humanos Internacionais: avanos e desafios no incio do sculo XXI. Recife: Movimento Nacional de Direitos Humanos, Regional Nordeste (MNDH - NE), 2001. p. 24
34
para garanti-los, para impedir que, apesar das solenes declaraes, eles sejam
continuamente violados. 68
Nessa esteira, imperioso enaltecer que, o Estado est incumbido de
respeitar e garantir os direitos elencados nas normas internacionais, dentre eles os
Direitos Humanos. 69 Tal obrigao pode ser observado na Declarao Programa de
Ao da Conferncia Mundial de Direitos Humanos de Viena de 1993, 70 que afirma
o dever dos Estados de implementar os direitos previstos nos tratados e convenes
internacionais. Ademais, o programa assinala diversas recomendaes para ampliar
o grau de aplicao das normas internacionais de proteo dos Direitos Humanos.
Desse modo, faz-se necessrio observar, como a aplicao dos preceitos gerais que
regem a responsabilidade internacional do Estado, a sua adequao ao contexto do
direito internacional dos direitos humanos, evitando assim que se desenvolvam
prticas internacionais estanques sobre a matria. 71
A adequao acima elucidada verifica-se, ainda, mais premente nos casos de
violaes dos valores fundamentas que afetam no unicamente um grupo de
indivduos, mas a comunidade internacional como um todo. Esse tipo de violao
desafia a conscincia jurdica universal, motor da evoluo de todo Direito,
sintomaticamente ameaando a integridade dos pilares sustentadores do direito
internacional. 72
Desta feita, a partir da tica dos direitos humanos, a responsabilidade
internacional do Estado deve abarcar, de maneira certeira, conjunturas em que
68 BOBBIO, N. A Era dos Direitos. Nova. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. p. 25.
69 MCCORQUODALE, R. Impact on State Responsability. In: KAMMINGA, M. T.; SCHEININ, M. The impact of human rights law on general international law. Oxford ; New York: Oxford University Press, 2009. p. 246-247.
70 O 13 reza que: Existe a necessidade dos Estados e organizaes internacionais, em cooperao com as organizaes no-governamentais, criarem condies favorveis, aos nveis nacional, regional e internacional, para garantir o gozo pleno e efetivo dos Direitos Humanos. Os Estados devero eliminar todas as violaes dos Direitos Humanos e respectivas causas, bem como os obstculos ao gozo desses direitos.
71 RAMOS, A. D. C. Responsabilidade internacional por violaes de Direitos Humanos: seus elementos, a reparao devida e sanes possveis: teoria e prtica do direito internacional. Rio de Janeiro: Renovar, 2004.p. 15.
72 TRINDADE, A. A. C. Os rumos do direito internacional contemporneo: de um jus inter gentes a um novo jus gentium no sculo XXI. In: TRINDADE, A. A. C. O direito internacional em um mundo em transformao: ensaios, 1976-2001. So Paulo: Renovar, 2002. p. 1088.
35
violaes de certos preceitos de direito internacional, perpetradas por determinado
Estado, atentem contra a comunidade internacional e no somente situaes em
que tem-se um Estado vis--vis outro Estado. No obstante, a responsabilidade
internacional do Estado por tais violaes, consideradas graves, no deve perder
seu carter objetivo, cuja natureza est no dever de reparar os danos causados aos
indivduos lesionados. 73
2.1 A questo da Imputabilidade dos Estados
A atribuio ou imputao de uma conduta a um Estado um dos problemas
com que a doutrina da responsabilidade internacional se depara. A principal questo
que abrolha nessa matria quais so os atos ilcitos ou omisses, que somente
podem ser praticados por um indivduo, que podero ser atribudos a um Estado
(pessoa abstrata), uma vez que o Estado s ser responsabilizado por tais atos se
os mesmos forem a ele atribudos. 74
A imputao largamente admitida desde que o ato denunciado emane de
pessoa ou de rgo sob a efetiva autoridade do Estado. 75
Nas palavras de Shaw a imputabilidade seria the legal fiction which
assimilates the actions or omissions of state officials to the state itself and which
renders the state liable for damages resulting to the property or person of an alien, 76
ou seja, o elemento que vincula a conduta do agente ao Estado responsvel.
Desse modo, o Estado enquanto ente pblico comete atos ilcitos atravs de seus
agentes. Avaliaremos a seguir quais desses atos podem vincular o Estado.
73 RAMOS, A. D. C. Responsabilidade internacional por violaes de Direitos Humanos: seus elementos, a reparao devida e sanes possveis: teoria e prtica do direito internacional. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. p. 410.
74 O'BRIEN, J. International law. London [etc.]: Cavendish Publishing, 2002. p. 367 ss.
75 NGUYN, Q. D.; DAILLIER, P.; PELLET, A. Direito internacional pblico. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 2003. p. 788.
76 SHAW, M. N. International law. 5th. ed. Cambridge: Cambridge University Press, 2003. p. 701.
36
Nos termos do projeto da CDI, a imputabilidade de um ato ilcito a um Estado
verifica-se quando tal ato perpetrado por um dos rgos do Estado, dos poderes
constituinte, legislativo, administrativo e jurisdicional, das foras armadas 77, a
qualquer nvel de autoridade, de acordo o disposto no direito constitucional do
Estado, ou por qualquer entidade a quem tenham sido legalmente atribudas
garantias de direito pblico, na hiptese de estarem no exerccio das mesmas. 78 A
imputao de uma conduta a um Estado tambm pode ocorrer quando tal conduta
praticada por rgo de outro Estado, mas que esteja colocado ao servio do
primeiro. 79
A imputao de um ato ilcito verifica-se, mesmo, quando determinado rgo
do Estado atua excedendo os limites de sua competncia fixados pelo Estado, em
outras palavras, a conduta ser imputada ao Estado mesmo se o agente tenha agido
ultra vires. 80 De acordo com o Relatrio da 53 Sesso da CDI, o Estado no pode
refugiar-se por trs da noo de que, de acordo com as disposies de seu direito
interno ou com as instrues que podem ter sido dadas a seus rgos ou agentes,
suas aes ou omisses no deveriam ter ocorrido ou tenha tomado uma forma
diferente. Isso se d ainda que o rgo ou entidade em questo tenha
manifestamente cometido atos ilcitos ao abrigo de seu status oficial ou excedido
suas competncias. 81 Dessa maneira, no caso Caire 82, o Mxico foi
responsabilizado pelos atos ilcitos praticados por suas foras armadas, pelo fato
dos mesmos estarem no exerccio de suas funes. Assim sendo, o presidente da
Comisso de Reclamaes Franco-Mexicanas, explicou:
77 Nas palavras de OBrien in the law of state responsibility, armed forces will be regarded as part of the executive, although in most states subject to the direction of civilian politicians. O'BRIEN, J. International law. London [etc.]: Cavendish Publishing, 2002. p. 367.
78 Essa abordagem reflete o Direito consuetudinrio. SHAW, M. N. International law. 5th. ed. Cambridge: Cambridge University Press, 2003. p. 70-702; p. 239
79 UNITED NATIONS. Draft Articles on Responsibility of States for Internationally Wrongful Acts. Resolution 56/83 of 12 December 2001, and corrected by document A/56/49. Artigos 4 ao 6.
80 Ibidem, art. 7.
81 INTERNATIONAL LAW COMMISSION. Draft Articles on Responsibility of States for Internationally Wrongful Acts. Suplement N. 10 (A/56/10), chp.IV.E.1November 2001. p. 45.
82 UNITED NATIONS. Estate of Jean-Baptiste Caire (France) v. United Mexican States. Reports of International Arbitral Awards, volume 7, June 1929. p. 516-534.
37
[...] O Estado assume tambm a responsabilidade internacional por todos os
atos cometidos pelos seus funcionrios ou rgos que constituam um delito
de acordo com o Direito Internacional, independentemente de saber se o
funcionrio ou rgo atuou dentro dos limites da sua competncia ou o
excedeu [...]. Contudo, a fim de justificar a admisso desta responsabilidade
objetiva do Estado por atos cometidos pelos seus funcionrios ou rgo fora
da sua competncia, necessrio que estes tenham agido, pelo menos
aparentemente, como funcionrio ou rgo autorizado, ou que, ao agirem,
tenham recorrido a poderes ou medidas apropriadas ao seu carter oficial
[...].
Ao Estado podem ser igualmente imputados os atos praticados por indivduos
ou grupos por ele trainados, equipados, armados, financiados ou apoiados para a
realizao de atividades militares e paramilitares contra outro Estado. 83 O mesmo
preceito se se aplica as aes realizadas no exerccio de poderes pblicos em
substituio ou na ausncia do Estado. 84
J no caso das condutas de um movimento insurreto que deem origem a um
novo governo de um Estado ou a um novo governo, ao Estado em causa sero
imputados os atos ilcitos praticados pelas autoridades constitudas, pelos seus
agentes, assim como aqueles perpetrados pelos insurretos. 85
Existe, ainda, a possibilidade de um Estado ser imputado por ato a ele no
atribuvel quando o mesmo reconhece e adota a conduta em causa como sua. 86
Tambm pode ser verificado, em alguns casos, a corresponsabilizao de outro
Estado, que ciente das circunstncias, preste assistncia ou auxlio, ou que adote
83 UNITED NATIONS. Draft Articles on Responsibility of States for Internationally Wrongful Acts. Resolution 56/83 of 12 December 2001, and corrected by document A/56/49. Artigo 8; Cf. MACHADO, J. Direito internacional: do paradigma clssico ao ps-11 de Setembro. Coimbra: Coimbra Editora, 2006. p. 574-575; MIRANDA, J. Curso de direito internacional pblico. 4 ed. rev. e actualiz. ed. Parede: Princpia, 2009. p. 330-331.
84 UNITED NATIONS, op.cit., art. 9; Cf. SHAW, M. N. International law. 5th. ed. Cambridge: Cambridge University Press, 2003. p. 705-706.
85 UNITED NATIONS, op.cit., art. 10; Cf. O'BRIEN, J. International law. London [etc.]: Cavendish Publishing, 2002. p. 370-371.
86 UNITED NATIONS, op.cit., art. 11; Cf. INTERNATIONAL LAW COMMISSION. Draft Articles on Responsibility of States for Internationally Wrongful Acts. Suplement N. 10 (A/56/10), chp.IV.E.1November 2001. p. 52-54; SHAW, M. N. International law. 5th. ed. Cambridge: Cambridge University Press, 2003. p. 707; MACHADO, J. Direito internacional: do paradigma clssico ao ps-11 de Setembro. Coimbra: Coimbra Editora, 2006. p. 575.
38
uma posio de direo e controle, na prtica de uma conduta ilcita, como tal
qualificvel, se o mesmo tivesse sido perpetrado apenas por ele. 87
Sublinhe-se que, mesmo quando um Estado coagir outro a perpetrar ato ilcito
internacional, tanto o Estado coagido quanto o que coagiu, respondero pelo ilcito
cometido, j que no fica prejudicada a responsabilidade do Estado que
efetivamente cometeu o ato. 88
Comumente, o nexo de imputao dado pela culpa do agente, abarcando
situaes de dolo direto, dolo necessrio e dolo eventual, assim como a negligncia.
Quando a determinao dos elementos subjetivos relevantes no for difana, a
imputao poder depender da existncia de uma conduta internacionalmente
imputvel a um determinado rgo do Estado ou de uma falha no servio. No
Direito Internacional, torna-se particularmente difcil fazer a prova dos elementos
subjetivos e funcionais da negligncia, pelo que o acento tnico reside na imputao
a um Estado de uma conduta internacional ou perigosa, violadora de uma obrigao
internacional. 89 Uma violao de obrigao internacional tambm pode ser
objetivamente imputvel a um Estado, nesse caso no h a necessidade de se
verificar qualquer culpa subjetiva ou falha de servio. Essa a chamada
responsabilidade objetiva, que apesar de no constituir o objeto central e imediato
da CDI, emerge com frequncia no Direito Internacional especial.
Como j observado, a responsabilidade internacional determinada pela
secundarizao dos elementos subjetivos atinentes culpa do agente.
Foi observada pela doutrina uma recente evoluo nesse campo, evidenciada
por jurisprudncias do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem e do Tribunal
Interamericano dos Direitos do Homem, no sentido de ampliar a imputao dos atos
privados aos Estados, desde que tais condutas sejam perpetradas com a
87 UNITED NATIONS. Draft Articles on Responsibility of States for Internationally Wrongful Acts. Resolution 56/83 of 12 December 2001, and corrected by document A/56/49. Art. 16 e 17; MACHADO, J. Direito internacional: do paradigma clssico ao ps-11 de Setembro. Coimbra: Coimbra Editora, 2006. p. 576.
88 UNITED NATIONS, op.cit., art. 18; Cf. INTERNATIONAL LAW COMMISSION. Draft Articles on Responsibility of States for Internationally Wrongful Acts. Suplement N. 10 (A/56/10), chp.IV.E.1November 2001. p. 69-70.
89 MACHADO, J. op.cit., p. 576.
39
cumplicidade regulatria do Estado. 90 Assim, atualmente, pode ser vislumbrado um
novo aspecto das funes tradicionalmente desempenhadas pelos Estados.
2.2 Responsabilidade por Violaes de Obrigaes Internacionais
A violao de uma obrigao internacional consiste num fato
internacionalmente ilcito, podendo constituir em uma ao ou omisso; sendo
suficiente o fato de que o comportamento no esteja em consonncia com uma
regra internacional de carter consuetudinrio ou convencional. 91
Para um melhor entendimento sobre a violao de uma obrigao
internacional, acima definida, imperioso tecermos algumas consideraes sobre a
obrigao internacional em si, haja vista que, a inobservncia da segunda resulta na
primeira.
De acordo com a diferenciao das obrigaes internacionais elaborada por
Fitzmaurice, James Crawford em seu Terceiro Relatrio sobre a responsabilidade
internacional para o Tribunal Internacional de Justia, delineou a distino entre as
obrigaes internacionais bilaterais e as obrigaes internacionais multilaterais.
Segundo Crawford as obrigaes bilaterais podem resultar de uma variedade de
fontes, incluindo o direito internacional geral, tratados bilaterais ou multilaterais ou
atos unilaterais. 92 Tais obrigaes podem ser divididas em: obrigaes inter partes e
erga omnes partes, sendo que a primeira resulta de um tratado bilateral ou
multilateral restrito e a segunda diz respeito proteo de um interesse coletivo
90CHARLESWORTH, H.; CHINKIN, C. The boundaries of international law: a feminist analysis. Manchester: Manchester University Press, 2000. p.148-151.
91 NGUYN, Q. D.; DAILLIER, P.; PELLET, A. Direito internacional pblico. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 2003. p. 782; UNITED NATIONS. Draft Articles on Responsibility of States for Internationally Wrongful Acts. Resolution 56/83 of 12 December 2001, and corrected by document A/56/49. Artigos 2 e 3.
92 UNITED NATIONS. Document A/CN.4/507. Third report on State responsibility. International Law Commission Fifty-second session. 15 March 2000. 100.
40
definido por Estados partes num tratado multilateral aberto. 93 J as obrigaes
multilaterais tratam-se das obrigaes integrais erga omnes, que so aquelas
devidas comunidade internacional na sua totalidade.
As obrigaes erga omnes, como acima exposto, so um tipo de obrigao
multilateral devida a comunidade internacional como um todo, sintomaticamente,
todos os Estados possuem o interesse legal em seu cumprimento. 94
A importncia central em categorizar certas obrigaes como de natureza
erga omnes tornar possvel o entendimento de que em certos casos a
responsabilidade internacional pode revestir-se de carter multilateral. Esta
categoria de obrigaes foi consagrada no direito internacional pelo Tribunal
Internacional de Justia, no conhecido caso Barcelona Traction, ao afirmar que [...]
the responsibility engaged by the breach of these obligations is engaged not only in
regard to the state which was the direct victim of the breach: it is also engaged in
regard to all the other members of the international community [...]. 95
Ademais, nesse mesmo caso, a Corte elaborou a distino entre as
obrigaes erga omnes e as outras obrigaes do Direito Internacional:
[...] In particular, an essential distinction should be drawn between the
obligations of a State towards the international community as a whole, and
those arising vis--vis another State in the field of diplomatic protection. By
their very nature the former are the concern of all States. In view of the
importance of the rights involved, all States can be held to have a legal
interest in their protection; they are obligations erga omnes. 96
Da sentena do Caso Barcelona Traction podem ser extradas duas
caractersticas das obrigaes erga omnes. A primeira a universalidade, uma vez
93 MACHADO, J. Direito internacional: do paradigma clssico ao ps-11 de Setembro. Coimbra: Coimbra Editora, 2006. p. 577; UNITED NATIONS. Document A/CN.4/507. Third report on State responsibility. International Law Commission Fifty-second session. 15 March 2000. 103 e 104.
94 Cf. JORGENSEN, N. H. B. The responsibility of states for international crimes. Oxford: Oxford University Press, 2000. p. 93-96.
95 UNITED NATIONS. A/CN.4/SER.4/1976/Add. 1 (Part 2). Yearbook of the International Law Commission. Vol. II, Part Two, 1976. Report of the Commission to the General Assembly on the work of its twenty-eighth session. p. 99.
96 INTERNATIONAL COURT OF JUSTICE. Barcelona Traction, Light and Power Company, Limited (Belgium v. Spain) (New Application: 1962). Idem, 33.
41
que tais obrigaes vinculam todos os Estados sem exceo. A segunda a
solidariedade, no sentido de que todos os Estados e no unicamente o Estado
lesado com a prtica do ilcito estariam habilitados a reagir, nomeadamente
exigindo a reparao dos danos causados ou lanando mo de contramedidas. 97
Um exemplo claro de obrigao erga omnes so as obrigaes decorrentes
dos direitos humanos, isso porque, essas obrigaes no constituem unicamente
uma promessa a um ou mais Estados individualmente, mas sim uma promessa
perante a comunidade internacional, abrangendo muitos outros sujeitos e atores
para alm deles. O objetivo da obrigatoriedade dos direitos humanos
essencialmente o de prevenir o Estado de violar os direitos dos seus prprios
nacionais. Para salvaguardar este objetivo os Estados curvam-se no a um outro
Estado em particular, mas a todos os Estados. Do mesmo modo que a violao de
um Direito Internacional no qual um Estado viola os direitos dos seus prprios
cidados, no afeta, em princpio, um Estado mais que o outro. Tal violao lesa a
coletividade de todos os Estados no seu conjunto. 98
Por derradeiro, insta salientar que, atualmente, assiste-se uma clara
superao do relativismo tradicional no plano normativo. A superao da regra
segundo a qual as obrigaes internacionais s vinculam os Estados mediante o seu
consentimento deu passo a um mecanismo de proteo das obrigaes erga omnes
ao dispor de todos os Estados semelhantes a uma espcie de actio popularis
umbilicalmente atrelada ideia, acima elucidada, de universalizao da
responsabilidade internacional do Estado. 99
97 RAGAZZI, M. The concept of international obligations Erga Ommes. Oxford: Clarendon Press, 1997. p. 12 ss; ALMEIDA, F. F. D. Direito Internacional Pblico. Coimbra: Coimbra Editora, 2003. p. 229-231.
98 PAUWELYN, J. Conflict of norms in public international law: how WTO law relates to other rules of international law. Cambridge : Cambridge University Press, 2003. p. 65.
99 NGUYN, Q. D.; DAILLIER, P.; PELLET, A. Direito internacional pblico. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 2003. p. 206-207; GONZALEZ CAMPOS, J. D.; RODRIGUEZ, L. I. S.; MARIA, P. A. S. D. S. Curso de derecho internacional publico. Madrid: Editorial Civitas, 1998. De acordo com Almeida No mbito da proteo pela via jurisdicional, tal ato popularis parece, todavia no passar, por ora, de um exagero otimista, esbarrando no princpio da consensualidade subjacente ao funcionamento da justia internacional; o que o prprio TIJ no deixou de reconhecer no caso de Timor-Leste, que, em 1995, ops Portugal Austrlia. ALMEIDA, F. F. D. Direito Internacional Pblico. Coimbra: Coimbra Editora, 2003. p. 230.
42
Chegou o momento de analisar qual a funo do jus cogens na esfera da
responsabilidade do Estado. Se as violaes de obrigaes erga omnes implicam
um regime especial de responsabilidade, de se esperar que um regime ainda mais
particular seja reservado s violaes do jus cogens, devido a sua importncia
mxima para a ordem jurdica internacional.
Nessa esteira mister tecermos acerca da distino entre o jus cogense e as
obrigaes erga omnes. Primeiramente, sublinhe-se que o direito cogente
compreende normas que se diferenciam das demais pela sua imperatividade. J as
obrigaes erga omnes so obrigaes determinadas por normas que podem ter a
natureza cogente ou no. Por conseguinte, pode-se dizer que, em regra, as normas
de jus cogens do origem s obrigaes erga omnes, haja vista, destinam-se
comunidade internacional como um todo. 100 A recproca, entretanto, no
verdadeira, uma vez que nem todas as obrigaes erga omnes derivam de normas
imperativas. Representadas pela doutrina como dois crculos concntricos, as
obrigaes erga omens constituem um crculo maior que contm o crculo das
normas imperativas, sem se limitar a estas. 101
O direito cogente no mencionado nominalmente pela Comisso em seu
Projeto, entretanto a expresso empregada - imperativa de direito internacional
geral, anloga da Conveno de Viena sobre o Direito dos Tratados uma
meno incontestvel a tais normas.
O jus cogens tratado pela CDI no Captulo III da 2 Parte do Projeto,
composto por apenas dois artigos reproduzidos a seguir:
Article 40. Application of this chapter
1. This c