Post on 29-Nov-2020
UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA – UnB
Instituto de Humanas – IH
Departamento de Filosofia – FIL
INDI NARA CORRÊA FERNANDES COLEM
INTRODUÇÃO À BANALIDADE DO MAL EM HANNAH ARENDT:
REFLEXÕES FILOSÓFICAS EM TEMPOS SOMBRIOS
Brasília – DF
2018
INDI NARA CORRÊA FERNANDES COLEM
INTRODUÇÃO À BANALIDADE DO MAL EM HANNAH ARENDT:
REFLEXÕES FILOSÓFICAS EM TEMPOS SOMBRIOS
Trabalho de conclusão de curso
apresentado ao Departamento de Filosofia
da Universidade de Brasília – UnB para a
obtenção do título de bacharel em
Filosofia.
Orientadora: Profª Drª Maria Cecília
Pereira de Almeida.
Brasília – DF
2018
À minha avó Francisca, com amor
AGRADECIMENTOS
Agradeço a três grandes mulheres que foram imprescindíveis para a minha formação: à minha
mãe Gabrielle, que me instigou desde nova a pensar e questionar; à minha avó Francisca, que
me ensinou a ser uma mulher forte e combater de frente os percalços da vida; e à minha
orientadora, a professora Maria Cecília Pedreira de Almeida, pelas leituras primorosas de meus
textos e por todas as palavras de incentivo e afeto.
Agradeço profundamente ao meu amigo, confidente e companheiro Diogo por ter me
apresentado a filosofia. Obrigada por confiar seu sonho a mim e por ser o meu maior
incentivador e cúmplice durante todos esses anos. Tenho certeza que um dia você encontrará
seu caminho de volta para a filosofia.
Sou grata ao Professor Gilberto Tedeia por todas as provocações ao longo desses anos, tenho
absoluta certeza que elas foram fundamentais para o meu crescimento acadêmico.
Muita gratidão aos meus camaradas do Grupo de estudos em Ética e Filosofia Política da UnB.
Principalmente àqueles que tenho o prazer de compartilhar uma grande amizade: Alberto,
Felipe, Iasmin, Jade, Kethury, Lauro, Maria Clara, Michelly e Sally, obrigada por me ensinarem
grandes lições.
Agradeço ao meu querido amigo Erick por todas as discussões importantes sobre filosofia e,
principalmente, por todas as baboseiras nada importantes, mas que foram muito mais
importantes que qualquer filosofia importante. Obrigada por torcer pela minha jornada e por
me lembrar que “a vida é apenas mudança de vida”.
Gratidão ao Eufrasino pelas divertidíssimas leituras comentadas de meus textos e pelo apoio
sempre bem-humorado.
Agradeço ao meu amigão Peter por ter me orientado nos meus primeiros passos na UnB.
Obrigada por todas as leituras, comentários e revisões dos meus trabalhos, foram fundamentais
para o meu crescimento.
Por fim, mas não menos importante, agradeço aos professores Alex Calheiros, Alexandre Costa
Leite, Herivelto Pereira, Marcos Aurélio e Priscila Ruffinoni, vocês todos me inspiraram e
motivaram a querer ser uma eterna estudante de filosofia.
Faça com que a solidão não me destrua.
Faça com que minha solidão me sirva de companhia.
Faça com que eu tenha a coragem de me enfrentar.
Faça com que eu saiba ficar com o nada
E mesmo assim me sentir
Como se estivesse plena de tudo.
Receba em teus braços
O meu pecado de pensar.
Clarice Lispector
Entre mim e mim, há vastidões bastantes para a
navegação de meus desejos afligidos
Cecília Meireles
RESUMO
O presente trabalho pretende discorrer acerca dos caminhos que Hannah Arendt percorre para
entender a filosofia moral como necessária para a compreensão dos eventos políticos totalitários
de sua época. Primeiramente, apresentar os aspectos gerais que influenciaram a era moderna a
pretender uma ruptura com a tradição e como isto se relaciona com alguns eventos da era
moderna que contribuíram para o que a autora chamou de o “divórcio entre o conhecimento e
o pensamento”, assuntos trabalhados nas obras Origens do totalitarismo e A condição humana.
Em seguida, investigar como essa problemática, isto é, a separação entre pensamento e
conhecimento, se relaciona com o termo banalidade do mal. Tendo em vista que com o termo
banalidade do mal Arendt quer, em linhas gerais, afirmar a perda da capacidade de pensar, a
monografia pretende analisar a tese apresentada pela autora, na qual Eichmann e muitos dos
que participaram dos fenômenos totalitários não eram necessariamente maus, apenas não
conseguiam pensar de forma crítica os acontecimentos em que estavam inseridos. Por
conseguinte, é objetivo deste trabalho abordar as principais questões acerca da filosofia moral
– a saber, o caráter dialógico do pensar, ou seja, a relação silenciosa que o indivíduo é capaz de
estabelecer consigo mesmo como imprescindível para o pensar – às quais Arendt se deteve logo
após a sua cobertura do julgamento de Adolf Eichmann, que estão elencadas principalmente na
obra Responsabilidade e Julgamento. Por fim, pretende-se, nessa exposição, analisar a
afirmação de Arendt de que o maior mal, tratado em sua obra Eichmann em Jerusálem, é
cometido por aquele que se recusa a pensar, ou melhor, por aquele que não se reconhece mais
como seu próprio interlocutor, abandonando a si mesmo e deixando de se constituir como
alguém.
Palavras-chave: Hannah Arendt, pensamento, banalidade do mal, filosofia moral, Eichmann.
ABSTRACT
In what follows, I am going to consider the overall pathway of Hannah Arendt’s defense of
moral philosophy as a necessary condition for the appropriate perception of totalitarian political
experiences in contemporary world.
To begin with, based on the discussions developed in “Origins of Totalitarianism” and “The
Human Condition”, the task will be to present the main features of modernity that have led to
a significant rupture with traditional life-forms. This brief presentation should form the context
within which I attempt to characterize the process Arendt called “the divorce between
knowledge and thought”.
Then, I am going to argue that this very break between knowledge and thought relates to
Arendt’s discussions on the banality of evil, a process that according to Arendt threatens
mankind with the gradually diminishing of the capacity of thinking. In the context created by
this hypothesis, Arendt’s analysis of Eichmann’s attitudes towards Jews during the Nazi period
in Germany will be examined. More specifically, I argue that according to Arendt’s
interpretation of Eichmann’s engagement with the Nazi party the main issue concerning his
practical orientation was not the evil character of his actions per se, but rather the considerable
lack of critical understanding of the events in which Nazi officials were general involved.
Therefore, this dissertation aims at critically considering some of Arendt’s main contributions
to moral philosophy, as they were discussed for instance in “Responsibility and Judgment”,
which she developed based on her famous journalistic coverage of Eichmann’s trial. More
specifically, my exposition focuses on the so-called dialogical nature of thought, the silent
relation established by the individual with itself, and that according to Arendt constitutes an
unavoidable condition for thinking as well.
Finally, based on the interpretative hypothesis delineated along the chapters, which indicate as
characteristic for Arendt’s thought a very intense connection between moral philosophy and
political comprehension, the dissertation culminates with an attempt to interpret Arendt’s
assertion, mentioned in “Eichmann in Jerusalem”, that the greatest evil is inflicted by those who
refuse to reflect upon the circumstances which determine action, or rather by those who no
longer recognize their interlocutor, thereby abandoning themselves, as well as preventing the
very process through which one constitutes oneself as an individual.
Key-words: Hannah Arendt, Thought, Banality of Evil, Moral Philosophy, Eichmann.
SUMÁRIO
Introdução................................................................................................................................09
1. A ruptura com a tradição e a vitória do animal laborans..................................................12
1.1. Vita activa e vita contemplativa: as predileções de Platão e Marx.......................................14
1.2. A estranha preocupação com o si mesmo............................................................................19
1.3. O divórcio entre o conhecimento e o pensamento...............................................................21
2. Eichmann, um indivíduo de massa.....................................................................................30
2.1. O julgamento de Eichmann e a banalidade do mal..............................................................33
2.2. A banalidade do mal e a noção de dever..............................................................................38
3. Filosofia moral em Arendt após Eichmann em Jerusalém................................................44
1.1. Responsabilidade pessoal e responsabilidade coletiva........................................................45
1.2. Silêncio e Solidão: a relação do indivíduo com ele mesmo.................................................50
Conclusão.................................................................................................................................61
Referências Bibliográficas......................................................................................................63
9
INTRODUÇÃO
Hannah Arendt, uma das maiores pensadoras políticas do século XX, nasceu em uma
família de origem judaica na Alemanha em 1906. Ingressou na Universidade de Marburg em
1924, onde estudou filosofia com Martin Heidegger; dois anos depois passa a estudar na
Universidade Albert Ludwig em Freiburg, frequentando as aulas de filosofia de Edmund
Husserl. No entanto, é na Universidade de Heidelberg e com a orientação de Karl Jaspers que
Hannah Arendt conclui o seu doutoramento com a tese O conceito de amor em Santo Agostinho.
Estudiosa da teoria política, Arendt se envolveu ativamente com a luta contra a ascensão
do partido nazista na Alemanha. Por conta de suas origens e suas constantes críticas ao nacional-
socialismo, a autora teve que se afastar da Alemanha passando a viver em vários locais da
Europa até se estabelecer em Paris. Em 1941 consegue fugir para os Estados Unidos da
América, onde permanece até a sua morte em 1975.
Como sobrevivente de um dos períodos mais difíceis para a humanidade, a sua produção
política e filosófica é importante para a compreensão não apenas dos regimes totalitários do
século XX, mas de questões no âmbito da ética, da política, do direito e, claro, da filosofia. Seu
pensamento é bastante marcado pelas tensões de sua época e de suas experiências,
principalmente pela sua condição de apátrida. Portanto, ao investigar a teoria política ou a
filosofia arendtiana, é recorrente entre os intérpretes levar em consideração a história e a
vivência da autora, o que deve ser feito com o devido equilíbrio, sem que haja interpretações
excessivamente psicologizantes ou deterministas.
O propósito desta exposição é um exame de alguns aspectos da produção filosófica da
autora após a publicação da obra Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do
mal, publicado em 1963, especialmente a relação entre pensamento e moralidade. Para tanto, é
necessário, primeiramente, entendermos que a era moderna colaborou para o surgimento do
indivíduo de massa que, segundo a autora, é incapaz de pensamento crítico. Em seguida,
analisar como Eichmann representa a figura deste indivíduo de massa e do indivíduo como
exclusivamente animal laborans, isto é, aquele que vive apenas para trabalhar e consumir.
Finalmente, a exegese tem a finalidade de apresentar como a autora passa a investigar o conceito
de banalidade do mal, empregado em Eichmann em Jerusalém, para descrever o acusado pelo
viés da filosofia moral.
Sendo assim, o primeiro capítulo desta monografia tem o propósito de entender como
Arendt reconhece na era moderna as circunstâncias que possibilitaram o surgimento do
10
indivíduo de massa e o rompimento com a tradição do pensamento ocidental. Em um primeiro
momento, portanto, analisar o conceito de vita activa e vita contemplativa – a primazia existente
na antiguidade de uma vida contemplativa sobre uma vida ativa e a inversão dessa hierarquia
na modernidade. Em um segundo momento, investigar alguns dos principais eventos ocorridos
na modernidade que levaram a uma crescente na alienação do indivíduo em relação à terra e a
sua consecutiva preocupação com o si mesmo. Por fim, perceber as grandes consequências para
o homem como ser que pensa em decorrência da separação entre pensamento e conhecimento;
entre filosofia e ciência; e como esta separação, decorrente dos eventos a serem analisados, foi
fundamental para o desenvolvimento do indivíduo de massa, incapaz de pensar e,
consequentemente, de agir.
No segundo capítulo o estudo pretende apresentar Eichmann como sendo a metáfora
desse indivíduo de massa. Desse modo, dando prosseguimento à investigação do capítulo
anterior, passaremos para a análise de algumas considerações sobre Eichmann e o seu
julgamento, a fim de compreender a questão da banalidade do mal e como ela está relacionada
com a figura do indivíduo de massa. Tendo em vista que, com o termo banalidade do mal,
Arendt quer, em linhas gerais, afirmar a perda da capacidade de pensar, o objetivo deste capítulo
é investigar a tese apresentada pela autora, na qual Eichmann e muitos dos que participaram
dos eventos totalitários não eram necessariamente maus, apenas não conseguiam pensar de
forma crítica os acontecimentos em que estavam inseridos. Também se pretende analisar com
a autora o equívoco de Eichmann ao se utilizar do preceito kantiano de dever na defesa de seu
julgamento como justificativa para os seus atos. Para tanto, faz-se necessário percorrer a obra
Fundamentação da Metafísica dos Costumes, de Kant, com o intuito de entender,
principalmente, a distinção feita por ele entre as ações praticadas por dever e conforme o dever.
Finalmente, o propósito do terceiro e último capítulo é investigar como a autora recorre
à filosofia moral para trabalhar as questões que lhes são lançadas após a publicação de
Eichmann em Jerusalém. Assim, este capítulo propõe, primeiramente, entender as principais
distinções entre responsabilidade pessoal e responsabilidade coletiva, como necessárias para se
discernir a importância de se atribuir responsabilidade em épocas nas quais se vê surgir o
colapso da moralidade. Em seguida, tendo como foco investigativo a relação do ser humano
consigo mesmo, ou seja, a relação silenciosa característica do sujeito que pensa, este último
capítulo pretende entender como a autora apresenta a tese segundo a qual, mesmo com a
ausência de outros, o indivíduo não se encontra totalmente sozinho, pois ele compartilha de si
mesmo. Levando essas premissas em consideração, pretende-se, por fim, analisar a afirmação
de Arendt de que o maior mal, tratado em sua obra Eichmann em Jerusalém, é cometido por
11
aquele que se recusa a pensar, ou melhor, por aquele que não se reconhece mais como seu
próprio interlocutor, abandonando a si mesmo e deixando de se constituir como alguém.
12
1. A RUPTURA COM A TRADIÇÃO E A VITÓRIA DO ANIMAL LABORANS
A Filosofia Política implica necessariamente a atitude do filósofo para com a política; sua
tradição iniciou-se com o abandono da Política por parte do filósofo, e o subsequente retorno
deste para impor seus padrões aos assuntos humanos. O fim sobreveio quando um filósofo
repudiou a Filosofia, para poder “realizá-la” na política.1
Hannah Arendt
A teoria política de Hannah Arendt, manifesta, incessantemente, a relação entre a
pretensão de ruptura da modernidade com a tradição e o surgimento dos regimes totalitários de
sua época com a formação de dicotomias conceituais, teóricas e práticas que compuseram a
história do mundo ocidental: a separação entre filosofia e política; entre filosofia e ciência; a
oposição entre uma vita contemplativa e uma vita activa e, no seu interior, a oposição entre
trabalho, obra e ação; a oposição entre o pensar e o agir; e a divisão entre o conhecimento e o
pensamento não podem ser consideradas como as principais causas para o surgimento dos
regimes totalitários e seus desdobramentos, mas são, em conformidade com a autora,
desenvolvimentos históricos importantes para a investigação não tanto da sua causa, mas,
talvez, de suas origens.
Em suas obras, A condição Humana e Entre o passado e o Futuro, Arendt afirma que
“a tradição de nosso pensamento político teve seu início definido nos ensinamentos de Platão e
Aristóteles”2 e “é produto de uma constelação histórica específica: o julgamento de Sócrates e
o conflito entre o filósofo e a pólis”3. Seu fim realizou-se “na obra de Karl Marx, de modo
altamente seletivo”4 uma vez que sua investigação não rompia especificamente com as
concepções da tradição, mas invertia a “tradicional hierarquia entre pensamento e ação,
contemplação e trabalho, Filosofia e Política”.5 Não temos o propósito de investigar o conteúdo
específico da crítica que Arendt concebe e lança a Marx nas referidas obras, mas de entender a
necessidade que levaram, não apenas Marx, como outros autores modernos como Nietzsche e
Kierkegaard, a um rompimento com o que conhecemos como a tradição do pensamento
ocidental.6
1 ARENDT. Hannah. Entre o passado e o futuro. p. 44. 2 Ibidem. p.43 3 Idem. A Condição Humana. p. 15. 4 Ibidem, p. 15. 5 Idem. Entre o passado e o futuro. p. 44. 6 De acordo com a autora, “Kierkegaard, Marx e Nietzsche desafiaram os pressupostos básicos da religião
tradicional, do pensamento político tradicional e da Metafísica tradicional invertendo conscientemente a hierarquia
tradicional dos conceitos”. Ibidem. p.53.
13
Referindo-se ao totalitarismo, Arendt identifica que estas necessidades em se pensar
para além da tradição ocidental “podem ter prenunciado esse evento e, certamente, podem
ajudar a iluminá-lo, mas não constituem sua causa”7. O totalitarismo – como o grande evento
que marca o século XX – e, consequentemente, o surgimento de indivíduos como Eichmann,
como veremos nos capítulos subsequentes, pode ser entendido como resultado de uma cadeia
de acontecimentos. Para a autora, a “rebeldia contra a tradição” de três dos maiores pensadores
do século XIX não foi algo ao acaso: “a grandeza deles repousa no fato de terem percebido o
seu mundo invadido por problemas e perplexidades novas com os quais nossa tradição de
pensamento era incapaz de lidar”8. O resultado para seus contemporâneos, já previsto por tais
pensadores, é que, nas palavras de Arendt, “jamais sejamos capazes de compreender, isto é, de
pensar e de falar sobre as coisas que, no entanto, somos capazes de fazer”9.
Todavia, esta pretensão de ruptura no século XIX não chegou às vias de fato.
Kierkegaard, Marx e Nietzsche não romperam com a tradição do pensamento ocidental, pois
permaneceram “estritamente no interior de um quadro de referências tradicionais”10. A “quebra
em nossa história”11, mesmo sendo prevista no século XIX, sucedeu-se a partir dos movimentos
totalitários do século XX:
A dominação totalitária como um fato estabelecido, que, em seu ineditismo, não pode
ser compreendida mediante as categorias usuais do pensamento político, e cujos
“crimes” não podem ser julgados por padrões morais tradicionais ou punidos dentro
do quadro de referência legal de nossa civilização. A ruptura em nossa tradição é agora
um fato acabado. Não é o resultado da escolha deliberada de ninguém, nem sujeita a
decisão ulterior.12
À vista disto, pode-se entender que este rompimento com a tradição, que começou a ser
pensado no século XIX, mas só foi possível no século XX a partir dos movimentos totalitários
que, nas análises da autora, “destruíram as categorias de nosso pensamento político e nossos
padrões de juízo moral”13, foi resultado de um processo histórico que começou, como vimos,
com a dicotomia entre o filósofo e a pólis, uma separação hierárquica entre a vita activa e vita
contemplativa.
7 Ibidem, p. 54. 8 Ibidem, p. 54. 9 ARENDT. Hannah. A Condição Humana. p. 4. 10 Idem. Entre o passado e o futuro. p. 55. 11 Ibidem, p. 53. 12 Ibidem, p. 54. 13 Idem. A dignidade da política: ensaios e conferências. p. 41.
14
Sendo assim, com a investigação do percurso histórico da era moderna, Arendt percebe
que três eventos, que veremos mais adiante, permitiram a dupla alienação do homem: da terra
para o universo e do mundo para o si mesmo. Para a autora, estes eventos proporcionaram “o
divórcio entre o conhecimento e o pensamento”; a separação entre a filosofia e a ciência; a
tendência a uma matematização das relações humanas; e a vitória do animal laborans, que,
consequentemente, colaborou para que os indivíduos abandonassem o pensamento crítico. Não
menos importante, estes eventos possibilitaram que alguns pensadores modernos pudessem
contestar a autoridade da tradição, já que ela não mais acompanhava todos os
desenvolvimentos, todas as mudanças.
1.1. Vita activa e vita contemplativa: as predileções de Platão e Marx
Em A condição humana, obra que teve sua primeira publicação no ano de 1958, Arendt
se esforça para investigar como a filosofia e a política foram pensadas no decorrer da tradição
do pensamento ocidental desde o rompimento de Platão com a pólis, após a morte de Sócrates,
até a era moderna de Marx – onde a hierarquia entre uma vita contemplativa e uma vita activa
é invertida. Sua crítica é referente justamente à forma como estes dois modos de vida foram
pensados de forma descuidada em ambas as predileções. Para tanto, ela se volta para a
teorização dos aspectos concernentes a uma vita activa para depois contrastar com o que
entende por vita contemplativa.
Para a autora, a vita activa é referente a “três atividades humanas fundamentais:
trabalho, obra e ação. São fundamentais porque a cada uma delas corresponde uma das
condições básicas sob as quais a vida foi dada ao homem na terra”14. Por conseguinte, podemos
visualizar uma estrutura importante na teoria político-filosófica arendtiana: os indivíduos, as
condições e as atividades. Isto é, aos indivíduos são dadas condições básicas para que estes
possam subsistir, e, através das atividades, essas condições são preservadas. Para Arendt, essas
condições não são únicas. Ao contrário, estão relacionadas com as condições mais gerais da
existência humana, como natalidade e mortalidade. Na verdade, ocorre que, na filosofia da
autora, tudo aquilo com que os indivíduos entram em contato torna-se necessariamente
condição de sua existência15.
14 Idem. A Condição Humana. p. 9. 15 Ibidem, p. 11.
15
É evidente que existem ao menos dois tipos de condições: aquelas básicas, dadas aos
homens, sem as quais não seriam caracterizados como são, e aquelas que são produzidas a partir
da movimentação do tempo, das novas demandas, seja do mundo ou do homem, que estão em
constantes modificações. No prólogo de A condição humana, Arendt se refere a estas constantes
movimentações: a descoberta do átomo, o homem na lua, o satélite artificial. Assim, as
condições não poderiam ser estáticas, visto que o mundo e os homens estão em movimento.
A princípio, a autora se concentra nas três atividades básicas: trabalho, obra e ação, que
constituem a vita activa. Segundo a autora, a condição humana do trabalho é a vida; da obra, a
mundanidade; e da ação, a pluralidade16. Para cada uma dessas atividades, temos uma ideia de
indivíduo: Laborans, Faber e Politikon. Em outras palavras, temos o indivíduo animal com
suas necessidades básicas de sobrevivência; o indivíduo fabricador, que através da obra
proporciona, nas palavras da autora, “um mundo artificial de coisas”17; e, finalmente, o
indivíduo político, aquele que vive entre outros indivíduos, que pratica a ação e o discurso.
De acordo com Arendt, a vita activa está enraizada na vida humana:
A vita activa, a vida humana na medida em que está ativamente empenhada em fazer
algo, está sempre enraizada em um mundo de homens ou de coisas feitas pelos
homens, um mundo que ela jamais abandona ou chega a transcender
completamente.[...] Nenhuma vida humana, nem mesmo a vida do eremita em meio à
natureza selvagem, é possível sem um mundo que, direta ou indiretamente,
testemunhe a presença de outros seres humanos18.
Contudo, A Condição Humana não trata apenas destas atividades básicas. Ao longo de
toda a sua obra, outras atividades são mencionadas, como a atividade do pensar, por exemplo,
de que trataremos também neste trabalho. Embora a autora se dedique à vita activa nos seus
primeiros capítulos, a vita contemplativa exerce grande destaque no decorrer de todo seu
discurso. É necessário, portanto, compreender esse modo de vida, por muito tempo considerado
o modo de vida do filósofo19.
Compreende-se como vita contemplativa o modo de vida tranquilo, no qual o repouso é
a única forma de alcançar a verdade. Ou seja, apenas através da completa quietude do corpo e
do espírito é possível a experiência do eterno. Arendt analisa a vita activa e a vita contemplativa
valendo-se da comparação entre imortalidade e eternidade, a fim de mostrar que, por mais que
16 Ibidem, p. 10. 17 Ibidem, p. 10. 18 Ibidem, p. 27. 19 ARENDT, Hannah. Trabalho, obra, ação. p. 177.
16
o indivíduo seja mortal, através da vida ativa é capaz de produzir feitos imortais. Por outro lado,
a eternidade se alia ao pensamento metafísico, que só é possível por meio da contemplação.
Dado o significado da autora para esses dois conceitos, é imprescindível salientar que a
vita activa e a vita contemplativa não surgiram na filosofia política de Hannah Arendt, e, por
conta disso, é de suma importância uma boa compreensão da forma com que a autora se apropria
destes conceitos para construir seu pensamento político. Essas apropriações foram feitas com
cautela e ressalvas, visto que o termo vita activa, por exemplo, é, nas palavras da autora,
“carregado e sobrecarregado de tradição”20. Sobre a apropriação do termo vita activa, Adriano
Correia explica na introdução da obra A condição humana, afirmando que Arendt:
Busca se desvencilhar da sua caracterização tradicional como derivativo da vita
contemplativa e hierarquicamente inferior a ela, cuja implicação básica foi o
obscurecimento das diferenças e articulações no interior da própria vita activa. Ao se
voltar sobre as próprias atividades, Arendt se pergunta principalmente sobre suas
condições, seus espaços, suas temporalidades, suas razões de ser, as dimensões
humanas e mentalidades a elas associadas, as redenções de suas infortunas e, por fim,
sobre as transformações que sobrevieram a elas, notadamente na era moderna21.
O comentário do autor a respeito desse tema pode ser melhor compreendido se levarmos
em conta o texto Trabalho, obra, ação, escrito por Arendt em 1960 para complementar a análise
acerca da vita activa e vita contemplativa. Neste escrito, Arendt nos apresenta de forma bem
clara as distinções que os antigos empregam a esses dois termos – enfatizando que não são
apenas dois conceitos distintos, mas também dois modos distintos de vida. Para os gregos, a
vida ativa era apenas um meio para atingir os fins da contemplação.
Como mostra a autora:
Pois é próprio da condição humana que a contemplação permaneça dependente de todos
os tipos de atividades – ela depende do trabalho para produzir tudo que é necessário
para manter vivo o organismo humano, depende da fabricação para criar tudo o que é
preciso para abrigar o corpo humano e necessita da ação para organizar a vida em
comum dos muitos seres humanos, de tal modo que a paz, a condição para a quietude
da contemplação esteja assegurada22.
Dessa forma, podemos compreender que a vita activa sempre foi pensada, pelos antigos,
a partir da contemplação. Ou seja, existia um caráter submisso que fazia com que
desaparecessem todas os vínculos possíveis e necessários no interior da vita activa. Há, por
assim dizer, certa hierarquia entre os dois modos de vida. Assim, compreendemos que, sendo a
20 ARENDT. Hannah. A Condição Humana. p. 15. 21 CORREIA. Adriano. In A condição Humana. grifo do autor. 22 ARENDT, Hannah. Trabalho, obra, ação. p. 176.
17
vita activa pensada a partir da contemplação, não haveria espaço para o desenvolvimento de
uma teoria que visasse o seu estudo individual – com fim nele mesmo. Fica claro que houve
uma carência de conceito para essa experiência, uma carência que não permitiria que Arendt
desenvolvesse seus estudos sobre a condição humana e seus desdobramentos. O termo vita
activa possui significados oriundos da filosofia antiga, é carregado de tradição, porém pode se
modificar com o tempo e de acordo com as demandas e pensamentos de cada época, pois não
foi exaurido.
Visto que a maioria dos homens, como evidencia a Arendt, “está engajada ou não pode
escapar da vida ativa”23, é necessário que se pense a vita activa, bem como a vita contemplativa,
de forma independente, mas ao mesmo tempo complementares. Pois, sabe-se que ambas
contribuem para as experiências humanas em geral. O que está em jogo nessa forma hierárquica
dos conceitos é a perda da pluralidade, que trouxe consequências desastrosas ao indivíduo
moderno, como, por exemplo: a alienação do homem, a falta de tolerância, os regimes
totalitários, o obscurecimento da esfera pública e tantas outras.
Na filosofia medieval, por exemplo, o termo vita activa surge com Agostinho como
vita negotiosa ou actuosa, que para Arendt remete ao bios politikos aristotélico. Este denota em
Aristóteles uma vida voltada para o âmbito público, ou seja, vita negotiosa ou actuosa no
medievo significa “uma vida dedicada aos assuntos público-políticos”24. Contrário a isto temos
o bios theoretikos - vita contemplativa: vida voltada para a contemplação.
A autora nos chama atenção para a principal diferença entre o bios politikos aristotélico
e a vita negotiosa ou actuosa do medievo. Para os antigos, a atividade (a obra) do artesão era
uma forma de escravização, no sentido de que ele dependia daquilo para viver. Sendo assim, o
artesão não poderia ser diferente do escravo: ambos não tinham uma vida verdadeiramente livre,
diferentemente da atividade do filósofo, que se ocupava da contemplação, ou daqueles que se
dedicavam à vida na pólis. A explicação de Arendt é elucidativa nesse ponto:
Nem o trabalho nem a obra eram tidos como suficientemente dignos para constituir
um bios, um modo de vida autônomo e autenticamente humano; uma vez que serviam
e produziam o que era necessário e útil, não podiam ser livres e independentes das
necessidades e carências humanas. Se o modo de vida político escapou a esse
veredicto, isso se deveu à compreensão grega da vida na pólis, que, para eles, denotava
uma forma de organização política muito especial e livremente escolhida, e de modo
algum apenas uma forma de ação necessária para manter os homens juntos de um
modo ordeiro25.
23 Ibidem. p. 176. 24 ARENDT. Hannah. A Condição Humana. p. 15. 25 Ibidem, p. 17.
18
Portanto, a grande diferença entre as expressões, antiga e medieval, que conceituavam
esses modos de vida, dava-se pela exclusão, por parte dos gregos, do trabalho e da obra. A ação
como praxis, nos antigos, era considerada um bios devido ao entendimento de que os homens
que se dedicavam à vida na pólis eram homens verdadeiramente livres, pois não eram obrigados
a fazê-lo. Na filosofia medieval, diferentemente, a vita actuosa abandona a ideia de ação como
unicamente política, e passa a assumir todo envolvimento ativo e necessário dos homens na
terra.
Nesse sentido, a ação como prática política perde seu caráter livre por compor o quadro
de atividades necessárias a vida terrena. Isso se deu com as mudanças no cenário político: o
desaparecimento da Cidade-Estado grega, a ascensão, e posteriormente queda de Roma, e o
surgimento do cristianismo com seu poder político e religioso. Sendo assim o bios theoretikos
ou vita contemplativa passa ser o único modo de vida verdadeiramente livre.
Assim, diz Arendt:
É claro que isso não queria dizer que a obra e o trabalho tinham ascendido na
hierarquia das atividades humanas e eram agora tão dignos quanto a vida dedicada à
política. De fato o oposto era verdadeiro: a ação passara a ser vista como uma das
necessidades da vida terrena, de modo que a contemplação (o bios theoretikos,
traduzido como vita contemplativa) era agora o único modo de vida realmente livre26.
Na era moderna não foi diferente. Para Arendt, Marx teve dificuldades ao pensar o
significado conceitual desses dois modos de vida. Segundo ela, não houve uma teorização, por
parte do autor de O capital, com o objetivo de entender como estes influenciam na vida privada
e pública. Houve somente uma inversão nos valores atribuídos pelos gregos a essas atividades.
Marx, ao centralizar suas máximas na atividade do trabalho e antepondo de lado as outras
atividades que constituem a vita activa e a vita contemplativa, possibilitou, novamente, a
hierarquização, sem, contudo, pensar de forma crítica suas relações internas e externas.
Diante deste quadro, Hannah Arendt – ao apresentar as predileções de Platão e Marx, e
como ambos negligenciaram as relações importantes e necessárias entre vita activa e a vita
contemplativa – rompe de forma crítica com estas práticas de hierarquizações conceituais,
teóricas e práticas. Para ela, a antiguidade, o medievo e a modernidade de Marx não se deram
conta de que os homens são plurais, que as formas de vida devem, por essa razão, ser plurais
também.
A hierarquização não ajuda a compreender as relações humanas e políticas, ao contrário
impede que essas relações se concretizem de forma harmônica. Veremos, nos próximos
26 Ibidem, p. 17. Grifos da autora.
19
parágrafos, que essa visão de mundo – quando um dia a vita activa foi pensada pela vita
contemplativa de forma a perder suas articulações, noutro a vita contemplativa é rebaixada e
esquecida – favorece o afastamento do homem de seu lugar por excelência – o âmbito público;
favorece o direcionamento do homem para o si mesmo; e, por fim, favorece o divórcio entre o
conhecimento e pensamento, entre a filosofia e a ciência.
1.2. A estranha preocupação com o si mesmo
Hannah Arendt nos chama a atenção para três grandes eventos que teriam dado início a
era moderna, são eles: a descoberta da América através dos grandes navegadores; a Reforma
de Martinho Lutero; e a invenção do telescópio por Galileu Galilei27. Podemos inferir de suas
investigações, que tais eventos foram, igualmente, estímulos para o surgimento de governos
totalitários e indivíduos que perderam a capacidade de desenvolver pensamento crítico, seja ele
qual for.
Destes três eventos, a invenção do telescópio foi a que menos chamou a atenção, porém
a que mais influenciou no desenvolvimento do que seria o homem e o mundo moderno. Através
desta invenção, a ciência começou a lançar passos largos e descobrir os segredos não apenas do
mundo, como os do universo também28. O telescópio, como nos lembra Arendt, foi o “primeiro
instrumento puramente científico já concebido”29.
Com este novo instrumento o homem moderno dá início a uma nova era científica,
proporcionando várias descobertas, tal como ela mostra:
Na verdade, a descoberta do planeta, o mapeamento de suas terras e o levantamento
cartográfico de seus mares levaram muitos séculos e só agora estão chegando ao fim.
Só agora o homem tomou plena posse de sua morada mortal e agrupou os horizontes
infinitos, tentadora e proibitivamente abertos a todas as eras anteriores, em um globo
cujos majestosos contornos e detalhada superfície ele conhece como as linhas na
palma de sua mão30.
Percebeu-se, então, que a Terra já não era considerada uma grande imensidão: o
universo finalmente fora apresentado ao homem. É perceptível que não só as novas descobertas
astrofísicas foram determinantes. Como aponta Arendt, as novas tecnologias das ferrovias; dos
27 Ibidem, p. 307. 28 Ibidem, p. 309. 29 Ibidem, p. 309. 30 Ibidem, p. 309.
20
grandes navios; dos aviões; e pequenos recursos como cartas e mapas de navegação,
influenciaram no “encolhimento” da Terra31. Para a autora, esses avanços em direção ao
universo e os consecutivos avanços tecnológicos só foram possíveis através do afastamento do
homem de seu ambiente habitual. Ela utiliza como exemplo a invenção do aeroplano: “o
apequenamento decisivo da Terra foi consequência do aeroplano, isto é, de ter o homem
deixado inteiramente a superfície da Terra.”32.
Outro evento significante que auxiliou o esclarecimento da alienação do homem em
relação à Terra e a sua consecutiva preocupação com o si mesmo foi o fenômeno de
expropriação. O processo de expropriação de pessoas, muito provavelmente, teve início com a
expropriação do campesinato – consequência da expropriação da propriedade da igreja, como
afirmou Arendt33.
Com esse fenômeno, surgiu uma massa de pessoas desprovidas de suas terras, dispostas,
assim, para o mercado de trabalho. Consequentemente, ocorreu um grande aumento de
produção e um rápido acúmulo de riquezas. Para exemplificar esse fenômeno ocorrido em todo
o mundo moderno, a autora nos apresenta o chamado “milagre econômico alemão” – o que na
verdade não foi um milagre propriamente dito, mas um processo desenfreado de produção.
Para entendermos melhor esse evento, a citação direta de Arendt faz-se pertinente:
O exemplo alemão demonstra muito claramente que, nas condições modernas, a
expropriação de pessoas, a destruição de objetos e a devastação de cidades
converteram-se em um estímulo radical para um processo não de mera recuperação,
mas de acúmulo de riquezas ainda mais rápido e mais eficaz – bastando para isso que
o país seja suficientemente moderno para responder em termos do processo de
produção. [...] O resultado foi quase o mesmo: um aumento súbito da prosperidade
que, como ilustra a Alemanha do pós-guerra, se alimenta não da abundância de bens
materiais ou de qualquer outra coisa estável e dada, mas do próprio processo de
produção e consumo34.
Logo, de acordo com a autora, tal processo induz um movimento que acaba por fazer
com que o indivíduo se volte adentro de si mesmo. O grande problema dessa atitude moderna,
e consequentemente contemporânea, foi a perda da experiência – da relação do homem com o
mundo, do homem com seus semelhantes. Arendt lembra que Max Weber foi um dos primeiros
pensadores que colocou esta questão em pauta ao estudar as origens do capitalismo. Weber,
como analisou nossa autora, demonstrou as implicações que essas expropriações, que tiveram
31 Ibidem, p. 310. 32 Ibidem, p. 311. 33 Ibidem, p. 311. 34 Ibidem, p. 313.
21
origem provavelmente com a Reforma e seus eventos subsequentes, provocaram a perda de
cuidados com mundo, por exemplo.
Junto com a economia capitalista, surgiu paralelamente uma massa de homens que
necessitavam de trabalho – já que tiveram seu pedaço no mundo alienado. Essa classe
trabalhadora, como lembra Arendt, vivia somente para manter o processo biológico do corpo
humano. Foram alienados, portanto, não apenas de um espaço no mundo, como também de
todas as outras atividades que constituem a condição humana. No que tange a economia
capitalista, essa não cessou. No entanto, a classe trabalhadora não foi beneficiada com o
acúmulo de riqueza, já que não houve redistribuição. Todo esse processo de maior
produtividade, maior número de apropriações e acúmulo de riqueza, que se estendeu por toda
a sociedade, pode ser entendido se levarmos em conta a força de trabalho predominante na
época:
A liberação da força de trabalho como processo natural não se restringiu a certas
classes da sociedade, e a apropriação não terminou por conta das necessidades e
desejos; o acúmulo de capital, portanto, não levou a estagnação que conhecemos tão
bem dos ricos impérios que precederam a era moderna, mas propagou-se por toda a
sociedade e deu início a um fluxo constantemente crescente de riqueza. [...] O
processo de acúmulo de riqueza tal como o conhecemos, estimulado pelo processo
vital e, por sua vez, estimulando a vida humana, é possível somente se o mundo e a
própria mundanidade do homem forem sacrificados35.
Diante disso, Arendt afirma que o processo vital individual – prerrogativa da família,
ou seja, do âmbito privado – foi suprimido para, então, ver a sociedade como protagonista deste
processo. Vemos que a sociedade passou, portanto a substituir a família. Nesse cenário,
verifica-se o surgimento do Estado-nação e, consequentemente, das classes sociais. No entanto,
todos esses eventos não se dão de modo a preservar os domínios públicos e privados, mas,
diferente disso, vemos seu declínio. O homem, desde então, é pertencente a um todo social,
mas, apesar disso não possui mais o gozo privado de uma parte do mundo. Foi alienado de seu
lugar de direito36.
35 Ibidem, p. 316. 36 Ibidem, p. 318.
22
1.3. O divórcio entre o conhecimento e o pensamento
Neste tópico, pretendemos elucidar como e por qual motivo deu-se o “divórcio entre o
conhecimento (no sentido moderno de conhecimento técnico [know-how] e o pensamento”37.
Para isso, é importante entender como a ciência se desenvolveu durante a era moderna e como
a filosofia passou a seguir essa ascensão. Pretendemos, também, descrever as implicações
decorrentes da inversão entre contemplação e ação, bem como a inversão hierárquica da vita
activa e vita contemplativa que trabalhamos no primeiro tópico deste capítulo.
No que diz respeito à ciência, a descoberta do ponto arquimediano, decorrente da
fabricação do telescópio, também favoreceu a alienação do homem, a estranha preocupação
com o si mesmo e o desprezo para com o mundo, mas não apenas isso. Com o advento da nova
ciência moderna, fazendo referência à separação entre ciência e filosofia, verifica-se um
desprezo por tudo aquilo que não tem como meta resultados práticos ou matemáticos.
Antes da invenção do telescópio, do surgimento da ciência moderna, os homens se
mantiveram presos a Terra, seus conhecimentos a respeito desta e do universo eram adquiridos
através da contemplação. Com Galileu e seu instrumento científico, os segredos do universo
puderam ser desvendados e proporcionados à cognição humana. Se, antes da era moderna os
conhecimentos acerca do universo eram incertos, com essa nova ciência os homens foram,
então, capazes de adquirir certezas demonstráveis a respeito daquilo que era apenas
especulação.
A Terra passou a ser pensada a partir de leis universais, assim como os homens que nela
habitam passaram de seres terrestres a seres universais. O grande questionamento da autora
sobre esse processo é como ele foi dado:
Esse amor ao mundo foi a primeira vítima da triunfal alienação do mundo da era
moderna. Antes, foi a descoberta, devida ao novo instrumento, de que a imagem de
Copérnico – do “homem viril que, posicionando-se no Sol (...), contempla os planetas”
– era muito mais que uma imagem ou um gesto; era de fato, um indicio da assombrosa
capacidade humana de pensar em termos de universo enquanto permanece na Terra,
e de talvez ainda mais assombrosa capacidade humana de empregar leis cósmicas
como princípios orientadores da ação terrestre38.
Ou seja, Arendt questiona a relação entre essas novas descobertas que acontecem em
âmbito universal e o indivíduo, que tem suas condições humanas presas na Terra. Dessa forma,
37 Ibidem, p. 4. 38 Ibidem, p. 327.
23
a ciência pretenderia aplicar leis universais como princípios da ação terrestre. A autora
questiona, também, sobre quais seriam as implicações e consequências desta atitude.
Fica claro que essa nova ciência só foi possível graças ao impetuoso avanço matemático:
No experimento, o homem efetivou sua recém-conquistada liberdade dos grilhões da
experiência terrena; ao invés de observar os fenômenos naturais tal como estes se lhe
apresentavam, colocou a natureza sob as condições de sua própria mente, isto é, sob
condições atingidas de um ponto de vista universal e astrofísico, uma perspectiva
cósmica localizada fora da própria natureza.[...] Foi por essa razão que a matemática
passou a ser a principal ciência da era moderna39.
Podemos adiantar aqui que a contemplação não se fazia mais pertinente. A vita
contemplativa parece ter perdido sua significância, visto que a partir de agora era necessário a
ação, o fazer acontecer. A atividade de fabricação, por exemplo, foi bastante utilizada na era
da ciência. Através dela os homens conseguiam instrumentos que auxiliavam em novas
descobertas. A vita activa passou a fazer mais sentido para o indivíduo moderno. Aqui está
contida a grande problemática que permeia o mundo moderno, e, por conseguinte, o mundo
contemporâneo: por mais que o homem possa agir de um ponto de vista universal e absoluto,
ele não é capaz de pensar em termos universais e absolutos40. Há, então, o divórcio entre o
pensamento e o conhecimento.
A dúvida cartesiana é a reação direta a essa nova ciência e realidade de mundo. Com
Descartes, vimos surgir uma filosofia moderna pensada de forma negativa. Pois, o objetivo da
filosofia é alcançar a verdade, porém, com a filosofia cartesiana, a certeza de que se possa
alcançá-la é posta em dúvida. Na era moderna, percebemos a separação não apenas do
pensamento e do conhecimento, mas também da ciência com a filosofia.
Arendt percebe que essa separação trouxe grandes consequências ao homem como ser
pensante. Uma delas foi a análise de que as grandes mudanças ocorridas no mundo com o
advento da nova ciência moderna deram-se como consequência da fabricação, e não da razão.
Ou seja, o pensamento crítico acerca do mundo e do universo não foi o meio para chegar a essas
verdades absolutas e universais. A realidade, ou a verdade, não foi revelada através da
contemplação, como se supunha antes do advento da ciência moderna. Não foi através da união
entre sentidos e razão. O que alterou a concepção de mundo foi a fabricação de um instrumento
científico: o telescópio.
39 Ibidem, p. 329. 40 Ibidem, p. 335.
24
A realidade, ou a verdade, só passam a ser conhecidas através das interferências na
aparência, pois estas não se apresentam aos sentidos e a razão tal como são. Se, portanto, os
sentidos não são capazes de conhecer a realidade tal como ela nos é mostrada, então não mais
se pode confiar neles. Está formada a filosofia cartesiana: tudo que for entregue pelos sentidos
deve ser posto em dúvida. A certeza antiga e tradicional de que se podia encontrar a verdade se
perdeu. O homem, a partir de agora, só é capaz de conhecer aquilo que ele mesmo produziu.
Arendt prevê as consequências:
Aqui a famosa reductio scientiae ad marhematicam permite substituir o que é dado
através dos sentidos por um sistema de equações matemáticas nas quais todas as
relações reais são dissolvidas em relações lógicas entre símbolos criados pelo homem.
É essa substituição que permite à ciência moderna cumprir a sua “tarefa de produzir”
[producing/produzieren] os fenômenos e objetos que deseja observar. E o pressuposto
é que nem um Deus nem um espírito mau podem alterar o fato de que dois mais dois
são quatro41.
Com tudo que foi exposto até agora, podemos constatar dois processos desenvolvidos
na modernidade: o homem que se desprende da Terra para o universo com o advento da ciência
de Galileu; e o homem que se afasta do mundo para dentro de si mesmo com a filosofia de
Descartes.
A consequência, como dito anteriormente, foi a inversão entre contemplação e ação, a
inevitável inversão hierárquica entre uma vita contemplativa e uma vita activa. Para a autora,
ao se depositar confiança apenas naquilo que se faz, essa inversão é inevitável. A observação
não mais é passível de confiança. O conhecimento não mais é atingido pela contemplação, mas
pela ação. O modo contemplativo de vida, portanto, torna-se inútil e sem sentido.
Fica claro que o importante para o progresso da era moderna foi apenas conceber a
verdade científica, ou seja, a preocupação com as hipóteses, com os resultados, e não com a
compreensão42. Temos, portanto, o homo faber no topo das considerações humanas, pois é ele
quem prima por maior produtividade, necessária para a obtenção de conhecimento técnico. No
entanto, o próprio conceito de homo faber perde um pouco de sua natureza primordial. Com o
advento da ciência, percebe-se que não mais a obra final é fundamental, e sim seu processo
técnico de construção, a experiência.
41 Ibidem, p. 356. 42 Em A dignidade da política, mais precisamente no texto “Compreensão e Política’, publicado em Partisan
Review em 1953, Arendt já predizia quais seriam as suas inquietações que mais tarde dariam origem a obra A
Condição Humana. Assim, diz Arendt: “distinguindo-se da informação correta e do conhecimento científico, a
compreensão é um processo complexo, que jamais produz resultados inequívocos. Trata-se de uma atividade
interminável, por meio da qual, em constante mudança e variação, aprendemos a lidar com nossa realidade,
reconciliamo-nos com ela, isto é, tentamos nos sentir em casa no mundo”. ARENDT. Hannah. A dignidade da
política: ensaios e conferências. p. 39.
25
Como mostra Arendt:
A mudança do “por que” e do “o que” para o “como” implica que os verdadeiros
objetos do conhecimento já não podem ser coisas ou movimentos eternos, mas
processos. [...] A natureza, pelo fato de só poder ser conhecida em processos que o
engenho humano, a engenhosidade do homo faber, podia repetir e reproduzir no
experimento, tornou-se processo, e o significado e a importância de todas as coisas
naturais particulares decorriam unicamente das funções que elas exerciam no processo
global. No lugar do conceito do Ser, encontramos agora o conceito de Processo43.
Ou seja, com a aniquilação da vita contemplativa do campo das atividades humanas, o
homo faber viu ruir os principais elementos que faziam da fabricação uma das atividades
constituintes da condição humana. Além disso, a própria alienação do mundo e a guinada
introspectiva para dentro de si mesmo são prerrogativas que não beneficiam a fabricação, já
que ela é voltada para a construção de coisas mundanas.
Hannah Arendt também observa que o próprio princípio de utilidade, inerente ao
conceito de obra, ou de homo faber, foi substituído pelo princípio de maior felicidade. Pois, a
utilidade em si mesma foi substituída pelo processo de produção, já que o importante não é o
produto final, que possui fins utilitários, mas a exaustiva produção de ferramentas para fazer
novas ferramentas, que só incidentalmente produz coisas úteis. O princípio de mais felicidade
só é possível através da produção de ferramentas que facilitem o processo de produção em si,
que aliviem o esforço e dor nele contida. Pois, se trata da “quantidade de dor e de prazer
experimentada na produção ou no consumo das coisas”44.
Arendt, ao analisar que o desejo de sanar as dores não objetivava a felicidade, mas sim
a sobrevivência, percebe que é o princípio de vida o maior bem supremo da humanidade. Ou
seja, todas as outras atividades giram em torno de preservar a vida e a espécie, e não o mundo
ou as relações mundanas. É nesse sentido que a autora atribui a vitória ao animal laborans.
A inversão entre o agir e o contemplar, como afirmou Arendt, proporcionou todo o
desenvolvimento da ciência e da filosofia moderna. Sem essa inversão, a vita activa jamais
poderia ter ascendido como modo de vida digno, com fim em si mesmo, independente da
contemplação. A grande problemática que a autora nos mostra ao final de sua obra, A condição
humana, é: mais uma vez se tem a hierarquização dos dois modos de vida. Neste caso ainda
pior: a contemplação foi completamente abolida das atividades humanas essenciais. A atividade
que um dia foi a mais mal vista, o trabalho do corpo, passou a ser a única fundamental para os
indivíduos.
43 Idem. A Condição Humana. p. 367 44 Ibidem, p. 383.
26
A implicação da ascensão do trabalho foi a falta de interesse em outros aspectos que
compõem a própria condição humana. O único objetivo passa a ser o trabalhar para garantir a
vida individual e a vida da família. O que não se encaixa nesse regime é fútil e obsoleto. Nesse
sentido, temos no mundo uma vida meramente técnica em um círculo vicioso de trabalho. Os
homens são incapazes de analisar de forma crítica os processos de sua vida individual. Perde-
se a capacidade, também, de empatia pelo próximo. O mundo passa a ser técnico e padronizado,
e todas as relações entre os indivíduos e o mundo em comum são perdidas45.
Posto isto, podemos perceber que a vitória do animal laborans foi decorrente de vários
fatores que culminaram na era moderna: a introspecção; a preocupação exclusiva com o eu; o
obscurecimento do âmbito público; e, principalmente, o divórcio entre pensamento e o
conhecimento.
Com todos esses movimentos que a Arendt faz no decorrer de A Condição humana, e
tendo em vista o “divórcio do conhecimento com pensamento”, o trecho a seguir, da obra
Homens em tempos sombrios, em cujo primeiro capítulo Arendt reflete e discursa sobre
Lessing, faz-se significativo:
Para Lessing, o pensamento não brota do indivíduo e não é a manifestação de um eu.
Antes, o indivíduo – que Lessing diria criado para ação, não para o raciocínio –
escolhe tal pensamento porque descobre no pensar, um outro modo de se mover em
liberdade no mundo46.
Arendt afirma que a “liberdade é condição indispensável para a ação e é na ação que os
homens primeiramente experimentam a liberdade de mundo”47. Quando, de alguma forma, essa
relação é quebrada – como no caso da separação entre o conhecimento e o pensamento –
adentramos nos “tempos sombrios”48. Este excerto, também, manifesta significativamente a
relação necessária entre pensamento e ação. Após a publicação de Eichmann em Jerusalém,
Arendt passa a investigar questões relacionadas a atividade do pensamento pelo viés da filosofia
moral, entendendo o pensar, na esteira de Sócrates e Kant, como a relação silenciosa que o
45 Neste sentido, podemos perceber a crítica da autora sobre o assunto já em Origens do totalitarismo. Nesta obra,
anterior A Condição Humana, Arendt afirma que os sistemas totalitários tendem a resumir a noção fundamental
de pluralidade, caracterizando os indivíduos como um indivíduo apenas. Assim, diz ela: o domínio total, que
procura sistematizar a infinita pluralidade e diferenciação dos seres humanos como se toda a sociedade fosse
apenas um indivíduo, só é possível quando toda e qualquer pessoa seja reduzida à mesma identidade de reações.
O problema é fabricar algo que não existe, isto é, um tipo de espécie humana que se assemelhe a outras espécies
animais, e cuja a “única liberdade” consista em “preservar a espécie”. Idem. Origens do totalitarismo. p. 582. 46 Idem. Homens em tempos sombrios. p.16. 47 Ibidem, p. 16. 48 Este termo remete ao poema de Brecht, À posteridade, que Arendt toma emprestado para nomear a sua obra
Homens em tempos sombrios, publicada em 1968 e que reúne vários ensaios sobre grandes nomes que
presenciaram tempos sombrios. Não menos importante, em sua filosofia, a expressão tempos sombrios faz alusão
ao obscurecimento do âmbito público.
27
indivíduo estabelece com ele mesmo. Contudo, tanto em Sócrates como em Kant, este processo
de pensamento crítico só é exímio no momento que se torna público por meio do discurso e,
como vimos neste capítulo, o discurso está intimamente vinculado com o conceito de ação.
Nessa mesma obra, no ensaio sobre Lessing, percebemos que as colocações e críticas
da autora são voltadas, não exclusivamente ao movimento nazista, ou ao surgimento de grupos
totalitários; antes disso, sua real indignação e espanto é que nesses tempos sombrios os homens
esqueceram o fato de serem humanos, e de que isso bastaria para os tornarem iguais, embora
únicos. Para Arendt, houve uma perda dessa consciência, principalmente dos judeus e dos
nazistas, de que antes de fazerem parte de qualquer grupo que seja, eles eram humanos. A esse
ato de isolamento e talvez de perda de consciência, Arendt dá o nome de emigração interna, e
caracteriza sua forma como ambígua:
Foi um fenômeno curiosamente ambíguo. De um lado, significava que havia pessoas
dentro da Alemanha que se comportavam como se não mais pertencessem ao país,
que se sentiam como emigrantes; por outro lado, indicava que não haviam realmente
emigrado, mas se retirado para um âmbito interior, na invisibilidade do pensar e do
sentir49.
A emigração interna desviara o homem do mundo e do espaço público50. Contudo, a
autora não nega que “a fuga do mundo para a ocultação, da vida pública para o anonimato [...]
não era uma atitude justificada e, em muitos casos, a única possível”51, porém afirma que essa
fuga para o interior deve ser evitada52, já que a emigração interna, por mais justificada que seja,
contribui para a perda do humano53.
Tendo em vista a noção de emigração interna, em Ideologia e terror54, podemos
entender que o terror característico do totalitarismo – sistema de governo que “criou instituições
políticas inteiramente novas e destruiu todas as tradições sociais, legais e políticas”55 –, ou
melhor, característico de uma sociedade totalitária56, só se sustenta enquanto é capaz de
inviabilizar a ação. Quando os indivíduos estão impossibilitados de agir – e por agir entendemos
a ação política, carregada de discurso, aquela noção de pluralidade que Arendt apresenta em A
49 Ibidem, p. 27. 50 Ibidem, p. 27. 51 Ibidem, p. 31. 52 Ibidem, p. 31. 53 Ibidem, p. 31. 54 Ideologia e terror é um texto que foi incluído em Origens do totalitarismo (1953) apenas no ano de 1958. 55 ARENDT. Hannah. Origens do totalitarismo. p. 611. 56 Em seus textos sobre a questão, Arendt afirma que o totalitarismo não é apenas uma forma de governo. A autora
utiliza a palavra totalitarismo para designar também uma sociedade que se tornara totalitária, isto é, todas as
instituições que tratam da educação, da cultura e do esporte, por exemplo, se tornaram totalitárias. Todas as esferas
públicas estão implicadas no regime.
28
condição humana –, a saber, quando já não existe mais indivíduos, mas Um-só-homem57, eles
podem incorrer no isolamento.
O isolamento é o estágio da vida em que o indivíduo se encontra sem a companhia de
um outro, podendo entrar em uma relação completa com ele próprio (o dois-em-um socrático,
como veremos no último capítulo) ou acabar por desprezar a si mesmo e incorrer na solidão. A
solidão, portanto, é o estágio da vida em que o indivíduo além de não conseguir se relacionar
com outros indivíduos, não consegue se relacionar consigo próprio.
À vista dessas questões que perpassam a teoria política e a filosofia moral, Arendt
ministrou um curso na New School for Research em 1966 intitulado Algumas questões sobre
filosofia moral58, onde retoma essa discussão. Neste texto, que foi publicado após o julgamento
de Eichmann, podemos identificar uma guinada no pensamento da autora, que transita entre a
teoria política e a filosofia moral, de modo que ambas podem ser encaradas como análogas,
porém fundamentalmente complementares para a compreensão dos eventos que antecedem os
sistemas totalitários e a ascensão desses entre os anos de 1939 a 1945.
Desta forma, Adriano Correia sugere que até a publicação de Eichmann em Jerusalém,
Hannah Arendt se deteve a explicação do fenômeno totalitário utilizando-se da teoria política,
embora sempre contando com a tradição do pensamento filosófico,59 e, após a repercussão sobre
a sua cobertura do julgamento, a autora passa a pensar estas questões do ponto de vista da
filosofia moral.
Assim:
[...]De modo análogo a como antes o evento representado pela ascensão do nazismo
dirigiu seu olhar para as questões estritamente políticas trazidas à tona pela
impossibilidade mesma da política –, o diapasão de sua análise foi então estabelecido
tanto pelo estatuto da relação entre ética e política quanto pela dupla relação, no
âmbito da ética, entre ausência de pensamento e banalidade do mal, de uma parte, e
entre pensamento e cuidado do si- -mesmo (self), de outra60.
Por conseguinte, com o apoio dos textos reunidos em Responsabilidade e Julgamento e
a obra Eichmann em Jerusalém, veremos mais detidamente nos capítulos subsequentes, de que
forma Arendt se moverá na direção de uma reconciliação do seu pensamento político com as
questões que são por ela tidas como filosóficas por excelência61, mais especificamente os
57 Ibidem, p.621. 58 Este texto se encontra no livro Responsabilidade e Julgamento – um livro que reúne diversos ensaios e aulas da
autora entre os anos 1963 e 1975. 59 DUARTE. André. A dimensão política da filosofia kantiana segundo Hannah Arendt. p. 111. 60 Ibidem. p. 64 61 Em Só permanece a língua materna – entrevista que Arendt concede a Günter Gaus em 1964 – Arendt declara
categoricamente que o seu ofício é a teoria política e não a filosofia. Logo em sequência, afirma que se despediu
29
motivos que levaram os indivíduos submetidos a algum sistema totalitário a se retirarem da
vida pública; e o porquê desta atitude ser, talvez, em uma sociedade que se tornou totalitária,
ou seja, em casos excepcionais, a única que consiga conciliar o pensamento crítico com a
faculdade de julgar, tão importantes em tempos sombrios.
Em outras palavras, como o pensamento de Arendt consegue conciliar o entendimento
de que a retirada do indivíduo da vida pública e a preocupação exclusiva do indivíduo com o si
mesmo são condutas que podem trazer grandes prejuízos para a pluralidade como condição
humana da ação, e, ao mesmo tempo, consentir em que, numa sociedade que se tornou
totalitária, o retirar-se desta mesma vida pública talvez seja a única possibilidade de ação
mesma, ou seja, a única possibilidade de um cuidado com o outro e com o mundo.
por definitivo da filosofia. Ainda na mesma entrevista, mas sobretudo durante a maioria de suas obras, a autora
afirma a “tensão que existe entre a filosofia e a política, ou seja, entre o homem que filosofa e o homem que é um
ser que age”. ARENDT. Hannah. A dignidade da política: ensaios e conferências. p. 117-118. Em A condição
humana, como já foi visto neste trabalho, a autora se detém na investigação das atividades que percorrem a vita
activa, deixando subentendido que futuramente teria que se deter nas atividades ligadas à vida do espírito. Sendo
assim, em 1978 é publicado a obra A vida do espírito, que não pôde ser concluído devido a morte de Hannah
Arendt em 1975. É após a publicação de Eichmann em Jerusalém, mas fundamentalmente em A vida do espírito,
que é decorrente da guinada da autora de uma teoria política para uma filosofia moral, que encontramos a
reconciliação de Arendt com a filosofia. Nas páginas iniciais desta obra nos deparamos com a justificativa do que
a levou a investigação do Pensar. Assim, diz ela: “O que me perturba é que seja eu a tentar, pois não pretendo nem
ambiciono ser um “filósofo” [...]. E, assim sendo, a resposta deverá mostrar o que me levou a abandonar o âmbito
relativamente seguro da ciência e da teoria política para aventurar-me nesses temas espantosos, em vez de deixá-
los em paz.” Idem. A vida do espírito: o pensar, o querer, o julgar. p. 17. Todavia, nesse trabalho focaremos com
maior afinco aos textos e aulas que foram produzidos concomitantemente A vida do espírito, mas que fornecem
essa mesma assertiva da conciliação de Arendt com a filosofia.
30
2. EICHMANN, UM INDIVÍDUO DE MASSA
Nenhuma das capacidades superiores do homem era agora necessária para conectar a vida
individual à vida da espécie; a vida individual tornara-se parte do processo vital, e o necessário
era apenas trabalhar, isto é, garantir a continuidade da vida de cada um e de sua família.62
Hannah Arendt
Consoante às questões trabalhadas anteriormente, podemos asseverar que a vitória do
animal laborans, como sendo um dos maiores marcos da modernidade, é uma das causas da
disposição em se considerar indivíduos como seres humanos supérfluos, conforme indicado por
Arendt em sua obra Origens do totalitarismo63. Quando o metabolismo biológico do corpo, a
manutenção da vida, da família e da espécie passam a ser o maior bem supremo, a relação que
os indivíduos deveriam manter uns com os outros e com o mundo é perdida. Em outras palavras,
quando a ação – como condição humana da pluralidade, isto é, como a condição de toda a vida
política – não se faz mais presente ou é rebaixada, a vida, este bem supremo que os indivíduos
se esforçam para preservar, passa a constituir-se como um bem supérfluo e insignificante.
Em linhas gerais, esta configuração presente na era moderna se apresentou como
consequência de uma confusão entre os espaços público e privado, contribuindo, assim, para a
noção de um arquétipo de esfera social. O trabalho e a obra, que antes eram compreendidos
como atividades referentes ao domínio privado, na era moderna deslocam-se para um domínio
público. A incorporação destas duas atividades, em um espaço que desde a antiguidade era de
predomínio da ação, acarretou, dentre outras coisas, a perda da capacidade de agir e o
surgimento da esfera social.
Arendt diz:
A distinção entre as esferas privada e pública da vida corresponde aos domínios da
família e da política, que existiram como entidades diferentes e separadas, pelo menos
desde o surgimento da antiga cidade-Estado; mas a eclosão da esfera social, que
estritamente não era nem privada e nem pública, é um fenômeno relativamente novo,
cuja origem coincidiu com a eclosão da era moderna e que encontrou sua forma
política no Estado-nação.64
62 ARENDT, Hannah. A Condição Humana. p. 399. 63 Em Ideologia e Terror – texto incluído na segunda edição de Origens do totalitarismo em 1958 – Arendt faz
uma relação entre a vitória do animal laborans – isto é, a afirmação da vida humana apenas como forma para
manter a sobrevivência do corpo através do círculo trabalho e consumo – com a superfluidade encontrada nos
campos de extermínio nazistas. 64 Ibidem, p. 34.
31
Por conseguinte, por meio da eclosão da esfera social é possível perceber o advento de
uma sociedade de massa. Os sistemas de classes sociais foram cedendo espaço para a ideia de
uma única sociedade baseada na concepção da esfera privada da família. Desta forma, a noção
de esfera pública se esvazia e, “com o desaparecimento do mundo comum, os homens são
lançados uns contra os outros e constituem-se como massas”65.
Em Origens do totalitarismo, Arendt afirma categoricamente a importância do
assentimento das massas para a constituição dos regimes totalitários66. Uma das grandes
características da sociedade de massa na Alemanha é ser constituída por “pessoas neutras e
politicamente indiferentes, que nunca se filiam a um partido e raramente exercem o poder de
voto”67. Para a autora, o movimento totalitário nazista possuía grande parte de seus apoiadores
provenientes deste arranjo, ou seja, “a maioria dos seus membros, portanto, consistia de
elementos que nunca antes haviam participado da política”68.
Esta aversão à política e a partidos políticos possibilitou uma nova forma de perpetuação
do sistema totalitário por meio das propagandas ideológicas e do terror. A maior idiossincrasia
dos movimentos totalitários originários de uma sociedade de massa é não se identificar com
determinada classe, aliás, rejeitar a própria noção de uma sociedade dividida em grupos
distintos. O discurso se volta para a recusa em se reconhecer como um partido político, mas se
firmar como um movimento capaz de representar o todo social; afirmando, assim, um “desprezo
ao sistema”.
Com efeito, diz Arendt:
Quando os movimentos totalitários invadiram o Parlamento com o seu desprezo pelo
governo parlamentar, pareceram simplesmente contraditórios; mas, na verdade,
conseguiram convencer o povo em geral de que as maiorias parlamentares eram
espúrias e não correspondiam necessariamente à realidade do país, solapando com
isso a dignidade e a confiança dos governos na soberania da maioria.69
É nesse ambiente que surgem os indivíduos de massa. Para a autora, a principal
característica predominante neste indivíduo é “o seu isolamento e a sua falta de relações sociais
normais”70. Tendo em vista esta característica primordial, “os movimentos totalitários são
organizações maciças de indivíduos atomizados e isolados”71. Neste cenário, a ação política
65CORREIA, Adriano. Hannah Arendt e a modernidade: política, economia e a disputa por uma fronteira. p. 12. 66 ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. p. 435. 67 Ibidem, p. 439. 68 Ibidem, p. 439. 69 Ibidem, p. 440. 70 Ibidem, p. 446. 71 Ibidem, p. 453.
32
passa a ser inviável. Uma vez que esse indivíduo permanece isolado dos outros, ele é incapaz
de agir e de se comunicar através do discurso e da convivência em uma esfera pública, que já
não se faz mais presente.
Em Ideologia e terror, Arendt relaciona o totalitarismo com o isolamento dos indivíduos
da vida pública. Para a autora, “esse isolamento é, por assim dizer, pré-totalitário; sua
característica é a impotência, na medida em que a força sempre surge quando os homens
trabalham em conjunto”72. A tendência do isolamento, em uma sociedade totalitária constituída
por uma maioria de indivíduos de massa, é se transformar em solidão – podendo ocorrer “num
mundo cujos principais valores são ditados pelo trabalho, isto é, onde todas as atividades
humanas se resumem em trabalhar”73. A Alemanha nazista contribuiu para a metamorfose de
indivíduos capazes de pensar e agir em indivíduos unicamente preocupados em trabalhar para
poder consumir e garantir, portanto, a sobrevivência.
Essa problemática investigada por Arendt desde as obras Origens do totalitarismo e A
condição humana é melhor desenvolvida se levarmos em conta o seu relato sobre o julgamento
do criminoso nazista Adolf Eichmann e os seus estudos posteriores ao julgamento, onde a
autora tece uma análise minuciosa sobre as peculiaridades de um indivíduo de massa. Desta
forma, o capítulo presente tem como finalidade elucidar com a figura do Eichmann o indivíduo
de massa, caracterizado, também, como um simples animal laborans.
A falta de reflexão generalizada que a autora percebe naqueles indivíduos que
participaram dos movimentos totalitários é assustadora, não apenas pelos atos que cometeram
contra o povo judeu, mas pelo fato de que o pensamento não mais fazia-se presente nas relações
humanas. Para Arendt, a ação é condição humana quando é pensada, carregada de discurso. O
mero agir não constitui condição de nada, a não ser do conhecimento técnico de fazer algo.
Com a era moderna, vê-se a extinção do indivíduo de ação e a predominância do indivíduo de
massa, incapaz de pensar e agir.
É neste contexto que Arendt emprega o termo banalidade do mal em sua obra Eichmann
em Jerusalém – para caracterizar Eichmann como um homem banal, desprovido de pensamento
crítico, ou melhor, desprovido da própria capacidade de pensar. A autora caracterizou
Eichmann tal e qual um burocrata, um reprodutor de frases feitas, uma mera peça do sistema,
fruto de uma sociedade de massa; apenas um animal laborans – aquele que não pensa, apenas
trabalha e consome.
72 ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. P. 632. 73 Ibidem, p. 633.
33
2.1. O julgamento de Eichmann e a banalidade do mal
Otto Adolf Eichmann foi um tenente coronel da SS do partido nazista durante o Terceiro
Reich e um dos organizadores da solução final74 da questão judaica. A função de Eichmann era
arquitetar toda a coordenação da deportação dos judeus para as zonas de comando nazista:
guetos, campos de concentração e campos de extermínio. Casado e pai de quatro filhos,
Eichmann era um típico homem de família de classe média da tradicional sociedade alemã.
Aderiu ao Partido Nacional Socialista em 1932, mesmo ano que pretendeu ingressar em uma
organização totalmente distinta a do partido: a maçonaria75.
O acusado especializou-se na questão judaica e foi um dos membros com maior
conhecimento dos problemas e demandas vinculadas ao povo judeu na Alemanha e na Europa76.
Arendt, por meio das ocorrências relatadas durante o julgamento, interpreta Eichmann como
um homem empenhado nas suas atribuições, e não como um trabalhador mediano. Por ser um
homem dedicado a suas funções, teve um bom progresso na sua carreira dentro do Partido,
passando a desenvolver funções mais específicas e importantes.
Durante o julgamento em Nuremberg que ocorreu entre 1945 e 1946, Eichmann foi
citado por um dos réus e considerado foragido pela justiça. Após o ocorrido, o tenente coronel
da SS se instalou em vários locais da Europa, até que em 1950 conseguiu um visto para a
Argentina, onde morou com sua família até ser capturado dez nos depois.
Em maio de 1960, Eichmann foi apreendido em Buenos Aires pelo serviço secreto de
Israel. Quando ficou sabendo de sua captura, Hannah Arendt escreveu para a revista The New
Yorker se oferecendo para cobrir, como repórter, o julgamento do nazista em Jerusalém. Nessa
época, Arendt já era uma professora acadêmica e pensadora política de renome nos EUA, tendo
já publicado algumas das suas obras mais famosas.
O julgamento teve início no dia 11 de abril de 1961 em Jerusalém, quase um ano após
a sua captura, e se estendeu até o dia de sua condenação em 15 de dezembro do mesmo ano.
74 Em linhas gerais, a solução final refere-se aos últimos estágios da questão judaica que seria a extração do povo
judeu de toda a Alemanha e dos locais ocupados pelo governo de Hitler para os campos de concentração e
extermínio. 75 A autora chama atenção durante toda a obra para o fato de Eichmann ter entrado para o Partido apenas para fazer
parte de um grupo. Não houve um caráter identitário com o programa, corroborando para a tese de que Eichmann
se comporta como um indivíduo de massa, pronto para agir, mas sem mesmo se atentar para a ação que está
cometendo. Sua as atitudes se configuram de forma automatizada. ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém.
p. 44) 76 Em Eichmann em Jerusalém, Arendt informa que o acusado estudou por muitos anos a questão judaica tendo
como instrutor alguns judeus com quem teve contato durante a sua carreira como oficial da SS.
34
Eichmann foi sentenciado à morte por enforcamento, que ocorreu em uma prisão em Ramla nas
primeiras horas do dia 1 de junho de 1962.
O julgamento teve ampla cobertura dos meios midiáticos em diversos países e foi um
dos maiores acontecimentos do pós-guerra. Sua repercussão foi superior ao julgamento em
Nuremberg, já que pela primeira vez o povo judeu pôde ter a oportunidade de contar a sua
história, enfrentar e julgar o seu algoz77.
Em 1962, Arendt começa a escrever o livro Eichmann em Jerusalém – um relato sobre
a banalidade do mal, onde narra com precisão todos os acontecimentos do julgamento. Em
formato de texto jornalístico, entretanto com passagens que ultrapassam o horizonte de um texto
meramente informativo, a autora apresenta várias considerações políticas-filosóficas acerca do
totalitarismo, a questão do mal e tantas outras que marcaram as suas obras. O livro foi publicado
no ano seguinte e gerou, como veremos no último capítulo, várias controvérsias em virtude do
termo banalidade do mal.
Em Origens do totalitarismo, Hannah Arendt dispões do conceito kantiano de mal
radical para descrever o indivíduo supérfluo fabricado nos campos de concentração. Este
indivíduo, fruto do domínio total, é fabricado no sentido de ter destruída a sua individualidade
e espontaneidade. Para a autora, “morta a individualidade, nada resta senão horríveis marionetes
com rostos de homens”78. Mesmo dando enfoque a este homem criado nos guetos e campos de
concentração e extermínio, Arendt reforça que a finalidade dos governos totalitários é afirmar
que “o aparelho parece supérfluo unicamente porque serve para tornar os homens supérfluos”79.
Acerca do conceito kantiano de mal radical, Arendt diz:
[...] Esse mal radical surgiu em relação a um sistema no qual todos os homens se
tornaram igualmente supérfluos. Os que manipulam esse sistema acreditam na própria
superfluidade tanto quanto na de todos os outros, e os assassinos totalitários são os
mais perigosos porque não se importam se eles próprios estão vivos ou mortos, se
jamais viveram ou se nunca nasceram.80
A passagem de mal radical para banalidade do mal refere-se ao enfoque que a autora
passará a assumir ao tratar das questões que já investigava desde Origens do totalitarismo: “a
77 Em Responsabilidade pessoal sob a ditadura, Arendt afirma a importância da experiência de reconciliação que
o povo alemão e o povo judeu tiverem durante a após os julgamentos. Referindo-se aos julgamentos, ela diz: “Para
a minha geração e as pessoas da minha origem, a lição começou em 1933 e terminou quando não só os judeus
alemães, mas o mundo inteiro, tiveram notícia das monstruosidades que ninguém julgava possíveis no início. [...]
Muitos de nós precisamos dos últimos vinte anos para nos reconciliarmos com o que aconteceu, não em 1933, mas
em 1941, 1942 e 1943, até o amargo fim.” ARENDT, Hannah. Responsabilidade e julgamento. grifo meu. p. 85. 78 Idem. Origens do totalitarismo. p. 603. 79 Ibidem, p. 606. 80 Ibidem, p. 609.
35
banalidade do mal passou a sustentar uma série de investigações sobre as implicações da
moralidade e da capacidade de distinguir o certo e o errado em ralação a outras atividades da
vida do espírito”81. De acordo com Bethania Assy, após Eichmann em Jerusalém, Arendt encara
a “possibilidade de relacionar as atividades mentais, suas considerações ético-morais, ao campo
da política, ao espaço da ação e da pluralidade”82.
A criação do termo banalidade do mal não contradiz as suas primeiras considerações
acerca do homem de massa supérfluo, mas foi resultado de sua concepção de que o maior mal,
trabalhado pela primeira vez em Origens do totalitarismo com o conceito kantiano de mal
radical, “não é radical, não possui raízes e, por não ter raízes, não tem limitações, pode chegar
a extremos impensáveis e dominar o mundo todo”83.
Para Arendt, a capacidade de pensar está relacionada estreitamente com a capacidade
de lembrança do indivíduo. Aquele que não é capaz de pensar e, consequentemente, de lembrar
não é capaz, também, de desenvolver raízes. Sobre a relação entre mal radical e banalidade
do mal, Adriano Correia, na esteira de Bernstein, afirma:
Embora haja uma mudança nos termos, o que salta à vista é o fato de que o “mal
radical”, tal como empregado por Arendt em Origens do totalitarismo, não contradiz
a noção arendtiana de “banalidade do mal”, mas representa de fato uma mudança de
ênfase: da superfluidade e da destruição da humanidade no homem para a ausência de
pensamento, para o caráter sem precedentes do totalitarismo e o desafio que ele
representa para a compreensão.84
Para entendermos melhor a noção de banalidade do mal é necessário percorrer a
narrativa que a autora constrói em torno do julgamento. Começando pela descrição do tribunal,
Arendt narra as particularidades de cada indivíduo que está implicado no processo, como, por
exemplo, os juízes, o promotor, o advogado de defesa e, é claro, o acusado. Indo além, a autora
narra alguns acontecimentos importantes para compreender o contexto do julgamento. Todavia,
o importante para este trabalho é aquilo que concerne às características de Eichmann, que
através da narração da autora aparenta ser um homem de massa que não consegue ultrapassar
as características de um mero animal laborans, no sentido de ser “apenas uma das espécies
animais que povoam a Terra – na melhor das hipóteses, a mais desenvolvida”85.
81 ASSY, Bethania. Ética, responsabilidade e juízo em Hannah Arendt. p.4. 82 Ibidem, p. 4. 83 Idem. Responsabilidade e julgamento. p. 160. 84 BERNSTEIN, Richard J. apud CORREIA, Adriano. Arendt e Kant: banalidade do mal e mal radical. p. 76. 85 ARENDT, Hannah. A condição humana. p. 104.
36
Arendt inicia suas considerações relatando que na cabine de vidro do tribunal em
Jerusalém encontrava-se Eichmann, acusado, dentre outras coisas, de perpetrar crimes contra a
humanidade e contra o povo judeu. No decorrer de todo o processo, a imagem que o réu
transmitia, para Arendt, não era a de um psicopata, um monstro, ou um antissemita que
arquitetou um diabólico esquema para aniquilar o povo judeu. O seu julgamento, ao contrário,
mostrou que ele não passava de um – nem esperto, nem estúpido – burocrata comum, que pode
ser facilmente encontrado em qualquer comunidade. Isto não significava, porém, que a autora
afirmara que todo homem tem um Eichmann dentro de si. Na verdade, o que fica claro é que
diferentemente do que se esperaria diante a prática do mal, homens comuns podem, também,
cometê-lo86.
Esse traço “normal” de sua personalidade foi percebido por Arendt durante todo o
julgamento. Muitas vezes, marcado pelas típicas frases clichês que Eichmann proclamou, outras
vezes por não apresentar nenhum sinal de perversidade ou ódio contra o povo judeu. Ele alegava
constantemente que seu papel em toda as articulações do sistema era o de um funcionário que
cumprira as exigências que lhe eram impostas. De acordo com ele, suas ações, em nenhum
momento, foram motivadas por ódio, mas por um senso de obediência.
Como observa Arendt:
Por trás da comédia dos peritos da alma estava o duro fato de que não se tratava,
evidentemente, de um caso de sanidade moral e muito menos de sanidade legal. [...]
Pior ainda, seu caso evidentemente não era de um ódio insano aos judeus, de um
fanático anti-semitismo ou de doutrinação de um outro tipo. “Pessoalmente”, ele não
tinha nada contra os judeus; ao contrário ele tinha “razões pessoais” para não ir contra
os judeus.87
Para os profissionais que atestaram a sanidade do acusado, suas ações e ideias eram
perfeitamente normais88, ou seja, se suas atividades não estivessem relacionadas e implicadas
ao regime nazista, seus atributos seriam desejáveis para a sociedade – e como foi para muitos
cidadãos que seguiam o regime na época –, já que Eichmann exercia muito bem as funções que
lhe eram atribuídas89. No decorrer de todo o julgamento, Arendt se convencera da normalidade
86 ARENDT, Hannah. Responsabilidade e julgamento. p. 80. 87 Idem. Eichmann em Jerusalém. p.37. 88 Ibidem, p. 37. 89 Arendt afirma, em Eichmann em Jerusalém e no decorrer de suas obras onde discorre sobre algumas questões
morais, que o comportamento do acusado quando Hitler estava no poder era bem visto pela sociedade. Era um
homem de família que estava defendendo o seu país, um homem trabalhador, honesto e importante para a
sociedade. Com a derrota da Alemanha na guerra, a morte de Hitler e a queda do regime nazista, Eichmann passa
a ser visto como um monstro, um homem sem escrúpulos. É o que Arendt afirma como o colapso da moralidade,
trataremos sobre o assunto no próximo capítulo.
37
do acusado, algo que era surpreendente, já que contradizia todas as teorias sobre a questão do
mal.
Para Arendt, ficou claro que ele só entrou para o partido pois viu ali uma oportunidade
de carreira, de ser útil e bem sucedido. Não tinha, num primeiro momento, um caráter de
identificação com as ideias antissemitas90. Sua aspiração era, de alguma forma, poder ser parte
de algo grandioso e ser reconhecido como um membro pertencente de algum grupo91. Para
tanto, cumpriu todas as exigências de seus superiores e teve grande importância em vários
processos – na solução judaica e, principalmente, da solução final – como um típico burocrata,
no sentido de que suas funções eram meramente as de encontrar formas para fazer com que o
processo caminhasse da melhor maneira possível.
Como vimos, a consolidação do regime totalitário de Hitler só foi possível por conta das
práticas que possibilitaram o isolamento dos indivíduos. Assim, afirma a autora, “o homem
isolado que perdeu seu lugar no terreno político da ação é também abandonado pelo mundo das
coisas, quando já não é reconhecido como homo faber, mas tratado como animal laborans, cujo
necessário “metabolismo com a natureza” não é do interesse de ninguém”92.
Tendo Eichmann como exemplo para esta questão, podemos entender que o indivíduo
supérfluo não é capaz de agir por si mesmo, necessita de terceiros que o digam o que fazer.
Eichmann não se sentia responsável pelos seus atos, pois em momento algum foi soberano de
suas próprias escolhas. Deixou de ser um homem de ação e discurso, no momento que abriu
mão da sua capacidade de pensamento independente, para se tornar um burocrata com frases
feitas. Bethania Assy chama atenção para a dificuldade de comunicabilidade de Eichmann tão
necessária para a vida compartilhada em sociedade.
Assim, diz ela:
Tal linguagem burocrática de Eichmann se distinguia por sua falta de
comunicabilidade, crucial para a pluralidade da vida social, refletindo sua
incapacidade de revertê-la à fala comum. De forma semelhante, a memória de
Eichmann parecia reter apenas assuntos relacionados à sua carreira, revelando sua
alienação em relação a qualquer aspecto que não estivesse diretamente,
burocraticamente e tecnicamente conectado à sua profissão.93
Para a autora, a grande problemática consistia, impreterivelmente, no fato de que
Eichmann e muitos dos que participaram direta ou indiretamente dos eventos totalitários de sua
90 Ibidem, p.44. 91 Ibidem, p.43. 92 ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. p. 634. 93 ASSY, Bethania. Ética, responsabilidade e juízo em Hannah Arendt. p. 8.
38
época não eram necessariamente maus, apenas não conseguiam pensar de forma crítica os
acontecimentos nos quais estavam inseridos. Talvez o que mais tenha pesado neste ajuizamento
da autora tenha sido o fato de que Eichmann perpetuava um senso de obediência cega às ordens
de seus superiores e à própria lei vigente. Atribuía esta atitude, segundo ele, aos ensinamentos
de Kant acerca do dever.
Como mostra Arendt:
A primeira indicação de que Eichamann tinha uma vaga noção de que havia mais
coisas envolvidas nessa história toda do que a questão do soldado que cumpre ordens
claramente criminosas em natureza e intenção apareceu no interrogatório da polícia,
quando ele declarou, de repente, com grande ênfase, que tinha vivido toda a sua vida
de acordo com os princípios morais de Kant, e particularmente segundo a definição
kantiana de dever. Isso era aparentemente ultrajante, e também incompreensível, uma
vez que a filosofia moral de Kant está intimamente ligada à faculdade de juízo do
homem, o que elimina a obediência cega.94
É perceptível que Eichmann não compreendeu a noção kantiana de dever e, tampouco,
o imperativo categórico fundamentado pelo autor, uma vez que “ele distorcera seu teor para:
aja como se o princípio de suas ações fosse o mesmo do legislador ou da legislação local”95.
Assim, por mais que o acusado tenha pronunciado corretamente o imperativo categórico, não
foi capaz de compreendê-lo em conformidade com Kant; e isso é decorrente da sua
incapacidade de pensar.
Eichmann como um homem de massa fora absorvido pelo regime totalitário. Não
desempenhou mais do que as funções de um animal laborans, pois a sua preocupação essencial
era com o trabalho e com o cumprimento do dever, que era necessário para permanecer como
um membro do Partido. As outras condições básicas, que podem ser encontradas em qualquer
indivíduo, se perderam no momento em que sua única preocupação passara a ser com o bom
desenvolvimento de suas atribuições.
2.2. A banalidade do mal e a noção de dever
É, primeiramente, na obra Fundamentação da metafísica dos costumes que Kant
apresenta, através da noção de boa vontade e dever, o que seria o princípio supremo da
moralidade96. Para o filósofo, pensar a moralidade não é possível sem levar em conta a boa
94 ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém. p. 153. 95 Ibidem, p. 153. 96 KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. p. 85.
39
vontade – na medida em que é a única irrestritamente boa97. A noção de boa vontade é tomada,
por Kant, a partir dela mesma, e não pelo que consegue atingir.
Logo, afirma o filósofo:
A boa vontade é boa, não pelo que efetua ou consegue obter, não por sua aptidão para
alcançar qualquer fim que nos tenhamos proposto, mas tão-somente pelo querer; isto
é, em si, e, considerada por si mesma, deve ser tida numa estima incomparavelmente
mais alta do que tudo o que jamais poderia ser levado a cabo por ela em de qualquer
inclinação e até mesmo, se se quiser, da soma de todas as inclinações.98
Entretanto, é a partir da razão prática que se pode determinar os princípios reguladores
da vontade no indivíduo e conduzir suas ações em conformidade com aquilo que é
essencialmente bom. A razão prática ultrapassa o conceito de razão formulado na Crítica da
Razão Pura, ao permitir, propriamente, um uso prático da razão. A boa vontade, pensada e
concebida pela razão prática, tem um fim nela mesma, não em algo fora dela. Com essas
primeiras observações, Kant se depara com o conceito de dever, “que contém o de uma boa
vontade”99. Sendo assim, em um primeiro momento, o filósofo considera que a boa vontade é
aquela de agir por dever.
A noção de dever em Kant se distingue em duas ações: as praticadas por dever e as
praticadas conforme o dever. É na primeira, no entanto, que se encontram as ações com valor
moral, pois são determinadas por uma boa vontade. Não obstante, o filósofo afirma que as ações
conforme o dever não são contrárias às ações por dever, mas possuem, em seu íntimo, uma
intenção que se distingue, essencialmente, com a boa vontade e, portanto, com a moralidade.
Antes disso, as ações conforme o dever podem possuir um caráter egoísta, no sentido de que há
por trás de sua ação um proveito intrínseco para o sujeito.
Como exemplifica:
É certamente conforme ao dever que o dono de uma loja não cobre de um comprador
inexperiente um preço exagerado e, onde há muito comércio, o comerciante prudente
tampouco faz isso, mas observa um preço fixo universal para todos, de tal sorte que
uma criança compra em sua loja tão bem quanto qualquer outro. Todos, portanto, se
veem servidos com honestidade; todavia, isso nem de longe é suficiente para acreditar
que, só por isso, o comerciante tenha procedido por dever e princípios da
honestidade.100
97 Ibidem, p. 101. 98 Ibidem, p. 105. 99 Ibidem, p. 115. 100 Ibidem, p. 117.
40
O objetivo, nesse primeiro momento, é distinguir a moralidade da legalidade, ou seja,
entender que as ações podem estar em conformidade com as leis, mas não serem, por isso, ações
morais. Aqui, já podemos entender o primeiro erro de Eichmann ao afirmar que por toda sua
vida seguiu os preceitos morais do filósofo, pois suas ações mesmo sendo em conformidade
com a lei101, não eram ações morais do ponto de vista kantiano, ou seja, não eram ações
baseadas na reflexão que ele estabeleceu consigo próprio.
Arendt afirma que a distinção entre legalidade e moralidade em Kant consiste no fato
da “conduta moral não está relacionada à obediência a nenhuma lei determinada externamente
– seja a lei de Deus, sejam as leis dos homens”102. É certo que ele seguia as leis vigentes, agia
em conformidade com o dever, precisamente o dever para com as ordens do Führer, mas isso
não significava que suas ações eram motivadas pela a boa vontade. Indo além, Arendt afirma
que “a filosofia moral de Kant está intimamente ligada à faculdade do juízo do homem, o que
elimina a obediência cega”103. O dever a que Kant se refere é uma ação consciente estabelecida
própria razão prática.
Logo, as ações morais não são determinadas de acordo com um sentimento empírico ou
uma inclinação. São, por outro lado, determinadas pela razão prática, que dispõe sobre a boa
vontade. De acordo com a leitura kantiana de Arendt, seguir as leis por medo de uma punição,
ou praticar uma boa ação por puro prazer em fazer o bem, não se constitui em atos morais, pois
são atos contingentes, que satisfazem de alguma forma o sujeito. Isto é, essas ações não se
estabelecem pela razão, mas pela inclinação, que ora pode ser de um jeito, ora de outro. A ação
moral, dessa forma, é tomada a partir do dever que se impõe a ela mesma, e a partir dela.
Posto isto, temos uma razão prática que determina a vontade, e esta adota justamente o
que a razão, livre das inclinações, reconhece como bom. Contudo, esta razão não é suficiente
para apontar tal vontade, visto que está exposta a condições adversas e subjetivas em relação à
objetividade prática da lei moral. É, por esse motivo, que as ações podem se apresentar como
contingentes. Sendo assim, faz-se necessário o imperativo, que “são apenas fórmulas para
exprimir a relação de leis objetivas do querer em geral com a imperfeição subjetiva da vontade
deste ou daquele ser racional, por exemplo, da vontade humana”104. Tais imperativos podem
ser categóricos ou hipotéticos. Como o objetivo é analisar a fala de Eichmann sobre a
101 É importante ter em vista que a lei a que nos referimos não é necessariamente a lei da Alemanha. A lei que
Eichmann seguia era as ordens impostas pelo Führer, que tinha força de lei. 102 ARENDT, Hannah. Responsabilidade e Julgamento. p. 132. 103 ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém. p. 153. 104 KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. p. 85.
41
moralidade kantiana, vamos nos ater somente ao imperativo categórico, que foi exemplo em
seu discurso.
O imperativo categórico, nas palavras de Kant, “seria aquele que representaria uma ação
como objetivamente necessária por si mesma, sem referência a um outro fim”105. Ou seja,
refere-se ao cumprimento do dever por ele mesmo, não por quaisquer outras inclinações,
independente de seus fins – existe um aspecto de universalidade no imperativo categórico de
Kant ao qual Eichmann não se atentou. Neste ponto, Hannah Arendt concorda com o filósofo
em relação ao caráter universal das proposições morais, pois “todo ser humano possui esse tipo
de racionalidade, a lei moral dentro de mim”. Todavia, diverge do autor ao afirmar que as
proposições morais dispensam qualquer tipo de imperativo, já que sempre foram “consideradas
evidente por si mesmas”106.
Quando interrogado a respeito do que entendia por preceitos morais kantianos,
Eichmann pronunciou, quase corretamente, a definição de imperativo categórico: “o que eu
quis dizer com a minha menção a Kant foi que o princípio de minha vontade deve ser sempre
tal que possa se transformar no princípio de leis gerais”107. No entanto, para Arendt, em nenhum
momento Eichmann sequer seguiu tal imperativo. Suas ações não eram fundadas a partir de
uma razão que rege a boa vontade. Ao contrário, Eichmann estava cumprindo cegamente uma
lei imposta pelo Führer, como ele mesmo afirmara durante o julgamento. Nesse caso suas ações
manifestam apenas conformidade com o dever – já que em momento algum houve ação a partir
da sua própria razão.
Segundo Arendt:
Ele distorcera seu teor para: aja como se o princípio de suas ações fosse o mesmo do
legislador ou da legislação local – ou, na formulação de Hans Frank para o
“imperativo categórico do terceiro Reich”, que Eichmann deve ter conhecido: “aja de
tal modo que Führer, se souber de sua atitude, a aprove”. Kant, sem dúvida, jamais
pretendeu dizer nada desse tipo; ao contrário, para ele todo homem é um legislador
no memento em que começa a agir: usando essa “razão prática” o homem encontra os
princípios que poderiam e deveriam ser os princípios da lei108.
Contudo, Arendt reconhece que de certa forma Eichmann não errou totalmente, pois
evocou os preceitos kantianos “para o uso doméstico do homem comum”109. Aqui a única
condição é a obediência às leis do Führer, e que sua vontade seja moldada de acordo com elas.
105 Ibidem, p. 189. 106 ARENDT, Hannah. Responsabilidade e julgamento. p. 141. 107 Idem. Eichmann em Jerusalém. p. 153. 108 Ibidem, p. 154. 109 Ibidem, p. 154.
42
Arendt afirma que “na filosofia de Kant, essa fonte é a razão prática; no uso doméstico que
Eichmann faz dele, seria a vontade do Führer”110. É, nesse sentido que a autora admite que o
acusado possa ter apreciado os princípios morais kantianos, já que “uma lei era uma lei, não
havia exceções”111.
No entanto, a exceção ocorreu algumas vezes enquanto estava sobre as ordens do
Führer. Eichmann abriu exceções para conhecidos judeus em determinada época do regime,
como ficou comprovado no julgamento. Então, em algum momento, ele deixou que as
inclinações e os sentimentos interferissem em seu dever e se afastou, portanto, do que antes
utilizava, equivocadamente, como defesa: os preceitos morais kantianos.
Eichmann, mesmo não seguindo os preceitos morais kantianos, como afirmara, era um
burocrata que gostava de estar sob a liderança de outros, de seguir as regras – ser parte de um
grupo independente de sua ideologia. Independente das razões, é nítido que em nenhum
momento houve qualquer reflexão ou pensamento crítico nas relações que ali foram
estabelecidas, e isto, de toda forma, contraria grande parte dos ensinamentos de Kant. Arendt,
assim, concebe Eichmann como uma pessoa além de normal, banal. É tendo em vista essa
banalidade na figura do acusado que Arendt, ao relatar o enforcamento dele, concebe pela
primeira vez o termo banalidade do mal:
Começou dizendo enfaticamente que era um gottglauniger, expressando assim da
maneira comum dos nazistas que não era cristão e não acreditava na vida após a morte.
E continuou: “Dentro de pouco tempo, senhores, iremos encontrar-nos de novo. Esse
é o destino de todos os homens. Viva a Alemanha, viva a Argentina, viva a Áustria.
Não as esquecerei”. [...] Foi como se naqueles últimos minutos estivesse resumindo
a lição que este longo curso de maldade humana nos ensinou – a lição da temível
banalidade do mal, que desafia as palavras e os pensamentos.112
Em Responsabilidade e julgamento a autora retoma de forma mais cautelosa os aspectos
que a levaram a formular a expressão banalidade do mal. Em seus escritos, após a publicação
de Eichmann em Jerusalém, a banalidade do mal pode ser entendida como o mal sendo
consumado por seres humanos comuns, incapazes de pensar de forma crítica – incapazes de
pensar o que estavam fazendo. Tal consideração contradizia, como ela mesmo afirmou, todas
as teorias até então fundamentadas acerca do mal113.
Em suas considerações a respeito de Eichmann, dos movimentos totalitários e das
questões morais, Arendt afirmou que a própria essência da moral fora invertida: se antes o
110 Ibidem, p. 154. 111 Ibidem, p. 154. 112 Ibidem, p. 274. 113 Idem. Responsabilidade e Julgamento. p. 80.
43
mandamento supremo era “não matarás”, com o regime nazista tal mandamento passa a ser
“matarás”, e que esta inversão dos mandamentos morais “se deu dentro da estrutura de uma
ordem legal, e que a pedra fundamental dessa “nova lei” consistia no comando “Matarás” não
o teu inimigo, mas pessoas inocentes que nem sequer são potencialmente perigosas”114. Como
vimos, o mais espantoso consistia no fato de que “esses atos não eram cometidos por bandidos,
monstros ou sádicos loucos, mas pelos mais estimados membros da sociedade respeitável”115.
À vista disto, podemos entender, primeiramente, que Eichmann é a metáfora do homem
de massa, interpretado apenas como um animal laborans, o qual utilizou-se dos preceitos
kantianos de forma equivocada e com um fim determinado: isentar-se das suas
responsabilidades quanto a sua falta de pensamento acerca do que estava fazendo.
E, por fim, entender que essa falta de pensamento determina o que Arendt chama de
banalidade do mal. Que este mal assumiu uma forma diferente do que até então a humanidade
conhecia: um mal que pode ser executado não apenas por pessoas perversas, mas também por
aqueles que não mais possuem a capacidade de desenvolver uma relação consigo mesmo, de
pensar por conta própria.
No próximo capítulo traremos em discussão a guinada do pensamento de Arendt com a
investigação destas questões por meio de uma abordagem voltada para a relação da política com
a filosofia moral, das atividades que compõem a vita activa com as atividades que compõem a
vida do espírito.
114 Ibidem, p. 105. 115 Ibidem, p. 105.
44
3. FILOSOFIA MORAL EM ARENDT APÓS EICHMANN EM JERUSALÉM
A moralidade diz respeito ao indivíduo na sua singularidade. O critério de certo e errado, a
resposta à pergunta “o que devo fazer?”, não depende, em última análise, nem dos hábitos e
costumes que partilho com aqueles ao meu redor nem de uma ordem de origem divina ou
humana, mas do que decido com respeito a mim mesma.116
Hannah Arendt
Em 1964 Hannah Arendt redige um manuscrito intitulado Responsabilidade pessoal sob
a ditadura, onde narra o seu espanto diante da “controvérsia um tanto furiosa”117 que a sua obra
Eichmann em Jerusalém causou entre seus leitores. Para a autora, a repercussão em torno da
cobertura do julgamento de Eichmann levantava algumas questões a que até então ela não tinha
se atentado com muito vigor. Tratava-se de inquietações do âmbito da filosofia moral.
Como abordado nos capítulos anteriores, Arendt dizia que a sua ocupação era a teoria
política e não a filosofia. Assim, após a publicação de Eichmann em Jerusalém, a autora vai dar
continuidade a sua análise sobre o totalitarismo e os assuntos correlatos pela perspectiva da
filosofia moral. Não nos ateremos com muito afinco aos pormenores desta virada no
pensamento da autora, mas é importante que possamos compreender que ela é
fundamentalmente necessária para o estudo do pensamento arendtiano, pois diz respeito ao
desenvolvimento das questões investigadas pela a autora.
Na introdução deste trabalho comentamos brevemente quem foi Hannah Arendt e qual
foi o seu objeto de estudo no decorrer de sua produção filosófica. Por ser uma autora que se
ateve à investigação de seu tempo118, seu pensamento foi sendo desenvolvido juntamente com
os acontecimentos da época e, por conta disso, podemos perceber como ele foi sendo adaptado
às indagações que iam surgindo. A questão moral é um exemplo disso. Muito embora a relação
entre moral e política seja de extrema importância nos escritos de Arendt, investigar um
determinado assunto, a saber a relação entre a banalidade do mal e a ausência de pensamento,
do ponto de vista da filosofia e não apenas da teoria política, foi algo completamente inédito
para a autora.
A intenção deste capítulo é expor os primeiros119 passos para uma reconciliação de
Arendt com a filosofia. Nesse contexto, a autora recorre à filosofia moral socrática e kantiana
116 Responsabilidade e Julgamento. p. 162. 117 Ibidem, p.79. 118 Desde Origens do totalitarismo toda a sua produção foi de alguma forma uma análise de se tempo, seja
analisando os pormenores dos sistemas totalitários, sua história e suas implicações; seja analisando a condição
humana desde como ela foi pensada na antiguidade; seja investigando os eventos modernos que possibilitaram o
advento destes regimes; ou estudando a moralidade socrática e kantiana, os seus escritos estão sempre apontando
para alguma questão de sua época. 119 Dizemos primeiros passos de reconciliação, pois trata-se de uma investigação preliminar, onde decidimos por
utilizar os textos periféricos da autora e não uma obra específica. Para aprofundar na reconciliação de Arendt com
45
para investigar a relação entre o pensar, a responsabilidade e o julgamento. Assim, este capítulo
final pretende abordar como a autora se vale desses conceitos para analisar se a nossa
capacidade de pensar tem alguma influência nas nossas habilidades de distinguir o certo do
errado, o bem do mal. Portanto, o objetivo é entender de forma preliminar os conceitos de
responsabilidade e julgamento, para, por fim, investigar algumas relações entre o problema do
mal e a faculdade de pensar como fundamentais para o desenvolvimento do termo Banalidade
do mal.
3.1. Responsabilidade pessoal e responsabilidade coletiva
No decorrer de suas reflexões, Arendt se esforça por esclarecer a importância de se
pensar uma distinção entre a responsabilidade coletiva e a responsabilidade pessoal,
principalmente em épocas nas quais se percebe o colapso moral e, por conseguinte, a
dificuldade em atribuir ao indivíduo responsabilidade moral e legal, devido justamente às
confusões conceituais existentes entre ambas. Para a autora, existe uma dificuldade em fazer
essa distinção, pois a noção de responsabilidade muitas vezes pode ser confundida com a noção
de culpa.
O indivíduo, afirma a autora, jamais poderá se sentir culpado por algo que jamais
cometeu. Essa discussão, remete ao fato de vários jovens que acompanharam os julgamentos
dos criminosos nazistas terem esboçado certo sentimento de culpa120. O que se pode verificar,
na verdade, é um senso de responsabilidade por ações de que o indivíduo não participou
ativamente. Isso ocorre, pois o indivíduo pertencente a uma determinada comunidade é,
consequentemente, pertencente ao seu corpo político. Essa responsabilidade é o que a autora
compreende por responsabilidade política.
Como podemos ver:
a filosofia, sugerimos a leitura de A vida do Espírito, que para este trabalho foi consultada apenas como obra de
apoio. Nos escritos como Responsabilidade pessoal sob a ditadura e Algumas questões sobre filosofia moral, bem
como outros textos e aulas reunidos na obra Responsabilidade e julgamento, em comparação com A vida do
espírito, possuem um caráter mais experimental e que, em razão disto, manifestam melhor essa transição do
pensamento da autora, ou melhor, essa especificidade de ser um pensamento que estava sendo construído
juntamente com o desenrolar dos acontecimentos da época. Contudo, mesmo tratando-se de textos, recortes, aulas,
discursos e proferimentos, e não de uma obra pensada com início meio e fim, não deixam de ser ricos em conceitos
e relevantes para a filosofia e para a teoria política. 120 Arendt menciona que após os julgamentos dos criminosos nazistas surgiram alguns argumentos que defendiam
que os jovens da Alemanha, “jovens demais para terem feito qualquer coisa” (Ibidem, p. 91), se sentiam culpados
pelos atos criminosos cometidos pelo regime nazista no poder.
46
Esse tipo de responsabilidade, na minha opinião, é sempre política, quer apareça na
forma mais antiga em que toda uma comunidade assume a responsabilidade por
qualquer ato de qualquer de seus membros, quer no caso de uma comunidade ser
considerada responsável pelo que foi feito em seu nome. [...] Nesse sentido, somos
sempre considerados responsáveis pelos pecados de nossos pais, assim como
colhemos as recompensas de seus méritos; mas não somos, é claro, culpados de suas
malfeitorias, nem moral nem legalmente, nem podemos atribuir seus atos a nossos
méritos121
A responsabilidade pessoal é, por outro lado, aquela referente a aspectos morais e
legais. Essa distinção, que a autora faz no decorrer de sua obra, fica clara ao analisarmos que
as questões morais estão muito mais relacionadas com o eu (self) do que com aspectos
concernentes ao mundo122. Do mesmo modo, as questões legais são sempre referentes a um
único indivíduo que praticou a ação. Na sala de um tribunal de justiça, por exemplo, não está
em julgamento uma organização criminosa, mas a contribuição específica do indivíduo. Ou
seja, “o que deve ser julgado é ainda essa mesma pessoa, o grau da sua participação, seu papel
específico e assim por diante, e não o grupo”123. Desta forma, mesmo sendo parte de alguma
organização criminosa, este fato só será considerado como parte das circunstâncias do ato ilícito
praticado.
A questão da responsabilidade em Arendt se apresenta como resposta principalmente à
tese de que Eichmann e diversos outros participantes da burocracia estatal no nazismo eram
apenas, e tão-somente, dentes de engrenagem, ou seja, pessoas que estavam cumprindo funções
burocráticas no regime em questão. De fato, qualquer pessoa poderia ter cumprido as ordens
impostas a Eichmann. No entanto, usar tal justificativa é inviabilizar a responsabilidade
específica do sujeito em julgamento, pois, desta forma, todos que participaram dos regimes
totalitários estariam isentos de responsabilidade moral e legal – já que a grande maioria dos
envolvidos não passaram de “dentes de engrenagem”. Tal premissa também incorre na alegação
de culpa coletiva, segundo a qual todos seriam culpados. Na visão da autora este argumento
seria um equívoco, “pois quando todos são culpados ninguém o é”124.
Assim como a tese do dente de engrenagem, a culpa coletiva impede o ato de julgar e
de atribuir responsabilidade. Hannah Arendt indaga o hábito em se evitar julgar “sempre que
são discutidos tópicos morais, não em geral, mas num caso particular”125. Não menos
121 Ibidem, p. 216-217. 122 Ao longo dos textos reunidos em Responsabilidade e julgamento, a autora deixa bastante claro a possibilidade
de tratar a moralidade por outros caminhos, através da política ou da religião, por exemplo. No entanto, suas
considerações a respeito das questões morais – para entender os julgamentos dos criminosos nazistas – é visando
o eu (self). 123 Ibidem, p. 215. 124 Ibidem, p. 83. 125 Ibidem, p. 123.
47
importante, a autora chama atenção para as justificativas utilizadas para não atribuir culpa
específica. Nos casos analisados126, onde se vê uma grande dificuldade em julgar, Arendt
percebe que a maioria das justificativas giravam em torno de atribuir uma culpa que é específica
do sujeito ao coletivo, uma tendência que “se transformou numa caiação altamente eficaz para
todos aqueles que realmente tinham feito alguma coisa”127. Arendt chama atenção para um fato
muito comum na Alemanha da época:
Sempre considerei a quintessência da confusão moral que, durante o período pós-
guerra na Alemanha, aqueles que em termos pessoais eram totalmente inocentes
assegurassem uns aos outros e ao mundo em geral quanto se sentiam culpados,
enquanto muitos poucos dos criminosos estavam prontos a admitir sequer o remorso
mais tênue.128.
Para a autora, é impossível pensar em culpa coletiva ou inocência coletiva – já que
ambas, culpa e inocência, só podem ser atribuídas aos homens de forma específica, ou seja,
individualmente129. Por exemplo, o dente de engrenagem, como descreve a autora, é uma
justificativa utilizada para inocentar determinada pessoa que fazia parte de algum sistema
burocrático – sistema que necessita funcionar sem depender de pessoas específicas, ou seja,
“cada dente de engrenagem, isto é, cada pessoa, deve ser descartável sem mudar o sistema, uma
pressuposição subjacente a todas as burocracias, a todo o serviço público e a todas as funções
propriamente ditas”130.
Embora seja o homem em julgamento na sala do tribunal, Arendt reconhece que o
sistema ou a circunstância em que o crime ocorre não devem ser deixados de lado131. Assim, é
importante entender que as circunstâncias às quais a autora nos chama atenção remetem ao
totalitarismo de sua época. Em poucas palavras, no totalitarismo os crimes “diziam respeito a
pessoas que eram “inocentes” mesmo do ponto de vista do partido no poder”132, ou seja, seus
126 Arendt cita, por exemplo, as discussões e críticas à Rolf Hochhuth que, em sua peça O vigário, acusou o papa
Pio XII de não se manifestar sobre os assassinatos dos judeus no Leste (Ibidem, p. 82). 127 Ibidem, p. 83. 128 Ibidem, p. 90. 129 Ibidem, p. 91. 130 Ibidem, p. 91. 131 Mesmos sendo importante para um Tribunal de Justiça entender as motivações em que o crime ocorreu, estas
não são usadas como justificativas para inocentar ou transferir a responsabilidade pessoal de um indivíduo para
um sistema burocrático, por exemplo. Não é objetivo primordial de um Tribunal de justiça entender em termos
teóricos como este sistema operou. Arendt faz essa análise comparando como um tribunal de justiça lida com a
questão e como a ciência política lida com a mesma questão: “Esse é o ponto de vista da ciência política, e se
acusamos, ou antes, avaliamos nessa estrutura de referência, falamos de bons e maus sistemas, e nosso critério são
a liberdade, a felicidade ou o grau de participação dos cidadãos, mas a questão da responsabilidade pessoal
daqueles que controlam toda a engrenagem é uma questão marginal” (Ibidem, p. 92). Da mesma forma, em um
Tribunal de justiça, estas questões que são analisadas pela ciência política, contribuem de forma marginal para o
processo. 132 Ibidem, p. 96.
48
atos não eram atos criminosos na época do regime133. Os criminosos não eram apenas pessoas
políticas, mas homens comuns que participaram de alguma forma da vida pública, pois a
“dominação total se estende a todas as esferas da vida, e não apenas à da política”134. A autora
entende por sociedade totalitária aquela onde a dominação se estende a todos os âmbitos da
esfera social, isto é, “todas as manifestações públicas, culturais, artísticas e eruditas, e todas as
organizações, os serviços sociais e de bem-estar, até os esportes e o entretenimento, são
“coordenados””135.
Assim, qualquer indivíduo que queira participar ativamente da esfera pública em uma
sociedade totalitária “está implicado de uma ou outra maneira nas ações do regime como um
todo”136. Sendo assim, Arendt percebe que somente aqueles homens que se recolheram de uma
vida pública – e isto implica na rejeição de responsabilidade política – puderam ser
desresponsabilizados legalmente e moralmente.
Sobre a questão, Bethania Assy diz:
Arendt enfatiza o fenômeno da não participação da esfera pública sob regimes
totalitários, referindo-se a esse tipo de juízo como uma forma de resistência, uma
forma de ação, como forma de afirmação da responsabilidade pessoal. Em situações
extremas, é possível que toda a recusa à participação conduza a responsabilidade
pessoal a uma forma de responsabilidade política. Sob circunstâncias específicas, a
própria não ação, no sentido de negação do envolvimento de toda sorte, pode se tornar
uma forma de ação137.
Dessa forma, o afastamento da vida pública, que antes era considerado inadequado, com
o colapso da moralidade na sociedade totalitária, faz-se pertinente. Para Arendt, continuar na
vida pública em uma sociedade totalitária poderia significar escolher um mal menor, mas antes
de tudo escolher um mal como justificativa. O próprio sistema induz ao discurso do mal menor,
já que “é um dos mecanismos embutidos na maquinaria de terror e criminalidade”. Para a
autora, esta questão é “conscientemente usada para condicionar os funcionários do governo,
bem como a população em geral, a aceitar o mal em si mesmo”138.
133 Quando o regime nazista estava em ascensão, as ações dos oficiais e de todos aqueles que colaboraram com o
partido no poder eram consideradas de prestígio. A sociedade reconhecia que suas ações eram grandes feitos para
a comunidade. Arendt, ao longo dos textos reunidos em Responsabilidade e Julgamento, chama atenção para essa
inversão da moralidade e da legalidade. Com a derrota na guerra, a sociedade Alemã passa a tratar aqueles mesmos
homens de prestígio como criminosos da mais alta envergadura. Assim, nota-se que os padrões morais e legais,
são novamente invertidos: “devemos dizer que presenciamos o total colapso de uma ordem “moral” não uma vez,
mas duas vezes, e essa volta repentina à “normalidade” ao contrário do que muitas vezes se supõe
complacentemente, só pode reforçar as nossas dúvidas” (Ibidem, p.118). 134 Ibidem, p. 96. 135 Ibidem, p. 96. 136 Ibidem, p. 96. 137 Ibidem, p. 24. 138 Ibidem, p. 99.
49
Isso ocorreu no regime totalitário nazista em diversas vezes, como apontou a autora139.
Para melhor elucidar a questão, Arendt recorre aos padrões legais – já que as defesas dos
acusados sempre utilizaram a justificativa de que os atos de seus clientes eram unicamente atos
de Estado. Utilizando a teoria dos atos de Estado, afirma-se que “governos soberanos podem
ser forçados em circunstâncias extraordinárias a usar meios criminosos, porque disso depende
a sua própria existência ou a manutenção de seu poder”140. Ou seja, os atos ilícitos do Estado
não são passíveis de punição. No entanto, nos governos totalitários, os crimes não foram
cometidos por necessidade141. Além disso, houve uma inversão da legalidade: “os atos não
criminosos ocasionais – como a ordem de Himmler para interromper o programa de extermínio
– eram exceções à “lei” da Alemanha nazista” (ARENDT, 2004, p.102). Assim, Arendt repara
que os homens que estavam implicados no regime totalitário conheciam as leis e poderiam ser
responsabilizados por infringi-las. De fato, não tiveram a capacidade de pensar por si mesmos
e, consequentemente, não souberam julgar a inversão acometida pelo regime – que “todo ato
moral era ilegal e todo ato legal era criminoso” (ARENDT, 2004, p.103). Portanto, para Arendt,
esta dificuldade em julgar e localizar a responsabilidade específica pode estar relacionada com
aquela capacidade mais elementar: a capacidade de pensar por si mesmo.
Em suas considerações a respeito de Eichmann, dos movimentos totalitários e das
questões morais, Arendt afirma que a própria essência da moral fora invertida. Se antes o
mandamento supremo era “não matarás”, com o regime nazista tal mandamento passa a ser
“matarás”. Ou seja:
Esse cerne moral apenas é atingido quando percebemos que o fato se deu dentro da
estrutura de uma ordem legal, e que a pedra fundamental dessa “nova lei” consistia
no comando “Matarás” não o teu inimigo, mas pessoas inocentes que nem sequer são
potencialmente perigosas, e por nenhuma razão impostas pela necessidade, mas, ao
contrário, mesmo contra todas as considerações militares e utilitárias. [...] E esses atos
não eram cometidos por bandidos, monstros ou sádicos loucos, mas pelos mais
estimados membros da sociedade respeitável142.
A questão do julgamento é de grande importância para compreender como se deu essa
inversão moral. Para a autora, aqueles que não compactuaram com a lei imposta pelo regime,
139 Arendt diz: “a exterminação dos judeus foi precedida por uma sequência muito gradual de medidas antijudaicas,
cada uma das quais foi aceita com o argumento de que a recusa a cooperar pioraria ainda mais a situação – até que
se atingiu um estágio em que nada pior poderia possivelmente ter acontecido” (Ibidem, p.99). 140 Ibidem, p. 100. 141 No caso da Alemanha nazista os tais atos de Estado não foram feitos por necessidade. Conforme mostra a
autora: “poderíamos argumentar com força considerável que, por exemplo, o governo nazista teria sido capaz de
sobreviver, até mesmo de ganhar a guerra, se não tivesse cometido seus famosos crimes” (Ibidem, p. 101). 142 Ibidem, p. 105.
50
conseguiram de alguma maneira “julgar por si próprios”143 o sistema vigente. Tal julgamento
se deu não por serem conhecedores e seguidores dos antigos padrões morais, mas, talvez, pelo
simples fato de não conseguirem conviver consigo mesmos após decidirem cometer certos atos.
Buscando referência nos antigos, Arendt afirma que para conceber este tipo de julgamento, é
necessária a “disposição para viver explicitamente consigo mesmo”144. De conceber o
pensamento por si mesmo.
Talvez seja por conta destas pessoas que foram capazes de julgar por conta própria os
eventos em que estavam inseridas que a autora passa a tratar o argumento da obediência como
falacioso. Para Arendt, não existe obediência entre adultos. A obediência se dá entre uma
criança e um adulto, ou entre um adulto não escravo e Deus. O que existe, portanto, é um
consentimento. “Se dizemos que um adulto obedece, ele de fato apoia a organização, a
autoridade ou a lei que reivindica “obediência””145.
A obediência cega de Eichmann e de tantos outros que estavam implicados no regime
decorre, principalmente, como aponta a autora em suas obras146, da falta de capacidade de
pensar de forma crítica, ou seja, através de uma autorreflexão que o sujeito é capaz de fazer
consigo mesmo.
3.2. Silêncio e Solidão: a relação do indivíduo com ele mesmo
Conforme seus estudos acerca dos regimes totalitários de sua época147, Arendt questiona
se o conteúdo dos valores morais é de fato referente a condutas e padrões de comportamento
que auxiliam os indivíduos na compreensão do que é certo ou errado, como entendia toda a
tradição do pensamento filosófico até então; e, se estes valores morais eram “permanentes e
vitais”148. Em decorrência de suas análises, a autora indaga, portanto, se os valores morais não
143 Ibidem, p. 106. 144 Ibidem, p. 107. 145 Ibidem, p. 109. 146 Arendt disserta sobre o problema da obediência cega pela primeira vez na obra Eichmann em Jerusalém – um
relato sobre a banalidade do mal e depois volta a tratar do assunto em textos que trabalham as questões morais,
muitos deles reunidos em Responsabilidade e julgamento. Em A vida do Espírito, a autora também debate sobre
o problema, percorrendo muitas vezes a tradição do pensamento filosófico. 147 Antes de se deter ao estudo das questões morais, Arendt se concentrou na investigação dos regimes totalitários
de sua época, como o governo de Hitler na Alemanha e o governo de Stálin na Rússia. Vários textos sobre o
assunto foram publicados no decorrer da sua vida, sendo o mais importante Origens do Totalitarismo publicado
em 1951, onde a autora faz uma análise sobre o antissemitismo, imperialismo e totalitarismo. 148 AREDNT, Hannah. Responsabilidade e julgamento, p.115.
51
remeteriam ao próprio significado etimológico da palavra, ou seja, moralidade, “como um
conjunto de costumes (mores), usos e maneiras”149, que poderiam ser facilmente trocados ou
modificados de acordo com as necessidades e circunstâncias.
Arendt chama atenção para o fato de essa problemática não ter passado desapercebida
na era moderna. Afirma que “a busca de Nietzsche de “novos valores” era certamente uma clara
indicação da desvalorização do que o seu tempo chamava “valores” e o que tempos mais antigos
tinham chamado mais corretamente virtudes”150. Ela se esforça por manifestar que já na
modernidade pode-se perceber uma certa desconfiança em relação aos princípios morais, e
questiona: “essas coisas ou princípios, dos quais todas as virtudes são basicamente derivadas,
eram meros valores que podiam ser trocados por outros, sempre que as pessoas mudassem de
opinião a seu respeito?”151. Disso a autora infere que a negação da moralidade, já nos tempos
modernos, é uma forma de entender que os princípios morais tais como foram pensados até
então – como meros mandamentos morais, por exemplo – não são em tal grau inabaláveis.
A Alemanha nazista representa muito claramente esse cenário, como mostra Arendt:
O regime nazista anunciava um novo conjunto de valores e introduzia um sistema
legal projetado de acordo com esses valores. Além disso, provava que ninguém tinha
de ser nazista convicto para se adaptar e para esquecer da noite para o dia, por assim
dizer, não o seu status social, mas as convicções morais que antes acompanhavam essa
posição152.
Assim, não apenas os criminosos que faziam parte do regime aderiram à inversão dos
mandamentos e preceitos morais, mas várias camadas da sociedade alemã – que se tornara
totalitária – ajustaram-se à nova ordem moral estabelecida. Não menos estranho foi o fato de
vários criminosos, que colaboraram com o regime, serem pessoas comuns – pessoas que muitas
vezes eram consideradas cidadãos de bem, ou seja, pessoas que estavam cumprindo seus
deveres perante a sociedade153. Desta forma, Arendt afirma que “a verdadeira questão moral
não surgiu com o comportamento dos nazistas, mas daqueles que apenas se “organizaram” e
não agiram por convicção”154.
149 Ibidem, p.113. 150 Ibidem, p.114. 151 Ibidem, p.115. 152 Ibidem, p.117. 153 Tanto em Eichmann em Jerusalém quanto em Responsabilidade e julgamento, Arendt chama atenção para o
fato de os contribuintes, filiados e simpatizantes do regime nazista serem, na época em que o partido estava em
ascensão, considerados homens exímios, que estavam prestando grandes serviços para nação. Tal concepção foi
invertida da noite para o dia, assim que os alemães perderam a guerra. Os “homens exímios” foram rebaixados a
criminosos cruéis e perversos. 154 Ibidem, p. 117.
52
Deixando claro que sua preocupação primordial é referente às questões estritamente
morais, ela sustenta:
O que essas pessoas fizeram foi horrível, e o modo como organizaram primeiro a
Alemanha e depois a Europa ocupada pelos nazistas tem grande interesse para a
ciência política e o estudo das formas de governo; mas nem um, nem outro propõe
problemas morais. A moralidade desmoronou e transformou-se num mero conjunto
de costumes – maneiras, usos, convenções a serem trocados à vontade – não entre os
criminosos, mas entre as pessoas comuns que, desde que os padrões morais fossem
socialmente aceitos, jamais sonhariam em duvidar daquilo em tinham sido ensinadas
a acreditar155.
Arendt enfatiza que o colapso da moralidade ocorreu duas vezes na Alemanha. A
primeira com a colaboração de várias camadas da sociedade com o regime nazista, que
contradizia todos os preceitos morais até então conhecidos; e a segunda com a queda do regime,
quando todos os valores morais retornam a sua, nas palavras um tanto irônicas da autora,
“normalidade”156.
Por outro lado, houve um número significativo de pessoas que não se ajustaram à nova
ordem moral. Esses indivíduos que não se adaptaram ou não compactuaram com o sistema
foram capazes de “julgar por si próprios”157. Tal julgamento se deu não por serem conhecedores
e seguidores dos antigos padrões morais, mas talvez pelo simples fato de não conseguirem
conviver consigo mesmos após decidirem cometer certos atos. Buscando referência na
moralidade socrática, Arendt afirma que, para conceber este tipo de julgamento, é necessária a
“disposição para viver explicitamente consigo mesmo”158.
Por mais que as experiências de sua época atestem que a moral, ao contrário do que se
propunha o pensamento filosófico até então159, está mais relacionada com o sentido etimológico
da palavra em si, ou seja, moral como um conjunto de hábitos, Arendt não nega a importância
de entender “que a concordância do pensamento filosófico e religioso nessa questão pesa tanto
quanto a origem etimológica das palavras que usamos em nossas próprias experiências”160.
Entende, também, que a maioria das proposições morais até então formuladas, seja pela
filosofia moral ou pela religião, estão voltadas para o eu (self), como: ““Ama o teu próximo
155 Ibidem, p. 118. 156 Ibidem, p. 118. 157 Ibidem, p. 106. 158 Ibidem, p. 107. 159 Várias vezes no decorrer do texto Algumas questões de filosofia moral, Arendt afirma que por toda a tradição
do pensamento filosófico e religioso “há uma distinção entre certo e errado, e que essa é uma distinção absoluta,
ao contrário de distinções entre grande e pequeno, pesado e leve, que são relativas; e de que, segundo, todo ser
humano em sã consciência é capaz dessa distinção”. Ibidem, p. 139. 160 Ibidem, p. 140.
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como a ti mesmo”, “Não faça aos outros o que não queres que façam a ti”, e, finalmente, a
famosa fórmula de Kant: “Aja de tal maneira que a máxima da sua ação possa se tornar uma lei
geral para todos os seres inteligíveis””161.
Levando estas premissas em consideração e as experiências de sua época, Arendt analisa
como essas proposições morais, que estão voltadas para o eu, relacionam-se com o pensar.
Como dissemos antes, aquelas pessoas que não participaram ou compactuaram com o regime
nazista, e, por isso, “permaneceram intactos e livres de toda culpa”162, foram capazes de julgar
por si mesmas que não poderiam viver tendo a consciência163 de terem praticado certos delitos
– mesmo estes sendo permitidos pela lei do país. No entanto, o não agir dessas pessoas não se
configurava a partir de uma obrigação, como supunha o imperativo categórico kantiano164, pois
aquilo que era certo ou errado já possuía uma evidência em si mesma. Esta asserção, de os
preceitos morais serem evidentes por si mesmos e sem a necessidade de uma imposição
exterior, é claramente perceptível na moralidade socrática, e é a ela que Arendt vai se deter com
maior afinco para entender a conduta dos indivíduos que se retiraram da vida pública165, que se
tornara totalitária, imposta pelo regime nazista.
Analisando as duas formulações socráticas – “é melhor sofrer o mal do que fazer o mal”
e “é melhor estar em desavença com o mundo inteiro do que, sendo um, estar em desavença
comigo mesmo” –, a autora percebe que aqueles que se retiraram da vida pública o fizeram por
serem incapazes de compactuar com algo que contradizia a si mesmos. Logo, saber julgar as
questões que implicam o ser individual e a sua conduta com o mundo só é possível através da
atividade silenciosa de pensamento que o indivíduo estabelece consigo mesmo. Sendo assim, a
moralidade socrática, que Hannah Arendt analisa para entender a questão do mal maior, é
161 Ibidem, p. 140. 162 Ibidem, p. 142. 163 Sobre a consciência Arendt diz: “Em todas as línguas o termo consciência significa originalmente não a
faculdade de conhecer e julgar o certo do errado, mas o que agora chamamos consciência de si (consciousness),
isto é, a faculdade pela qual conhecemos a nós mesmos, tornamo-nos cientes de nós mesmos (ARENDT, 2004,
p.140) 164 Arendt afirma que aqueles que não compactuaram com o regime, não o fizeram por alguma imposição exterior,
“mas agiam de acordo com algo que lhes era evidente por si mesmo, mesmo que já não fosse evidente por si
mesmo para aqueles ao seu redor” (ARENDT, 2004, p. 142). Ou seja, o imperativo categórico se torna obsoleto,
visto que não é necessária uma imposição exterior para tornar evidente que tal ato não condiz com o próprio
julgamento do indivíduo que escolhe não praticá-lo. 165 Em várias de suas obras – como por exemplo, em A Condição Humana no capítulo Os domínios público e
privado –, Arendt sempre se preocupou em afirmar a necessidade da participação ativa na vida pública. Em
Responsabilidade e julgamento, Arendt reconhece que a partir do momento que toda uma sociedade – educação,
cultura, instituições públicas e etc. – torna-se totalitária, a retirada da vida pública não pode ser condenada. Ela
diz: “existem situações extremas em que a responsabilidade pelo mundo, que é primariamente política, não pode
ser assumida, porque a responsabilidade política sempre pressupõe, ao menos, um mínimo de poder político”
(ARENDT, 2004, p. 108). Em uma sociedade que se tornara totalitária não há espaço para poder político por parte
dos não adeptos, pois não existem as ferramentas materiais e sociais para qualquer tipo de ação política.
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aquela que leva em consideração, primeiramente, a relação do indivíduo consigo mesmo e, em
seguida, a maneira como essa relação implica seu posicionamento com os outros e com o
mundo.
Com relação as formulações socráticas, Arendt afirma:
Mesmo que eu seja um só, tenho um eu e estou relacionado com esse eu como o meu
próprio eu. Esse eu não é de modo algum uma ilusão; faz-se ouvir falando para mim
– falo comigo mesmo, não estou apenas ciente de mim mesmo – e, nesse sentido,
embora eu seja um só, sou dois-em-um, e pode haver harmonia ou desarmonia com o
eu. Se discordo de outras pessoas, posso me afastar; mas não posso me afastar de mim
mesmo, portanto é melhor que eu primeiro tente estar de acordo comigo mesmo antes
de levar todos os outros em consideração. Essa mesma sentença também revela por
que é melhor sofrer o mal do que fazer o mal: se faço o mal, sou condenado a viver
junto com um malfeitor numa intimidade insuportável; nunca posso me ver livre
dele166.
À vista disso, a investigação da autora acerca da moralidade socrática nos mostra,
portanto, que a atividade de pensar é aquela que reconhece o si mesmo como interlocutor em
um discurso silencioso – a relação consigo mesmo que é imprescindível para o indivíduo saber
julgar aquilo que ele mesmo é capaz, ou não, de realizar. Quando esta atividade é posta em
exercício, o indivíduo reconhece que, mesmo estando só, está acompanhado de si mesmo:
“Assim como sou meu parceiro quando estou pensando, sou minha própria testemunha quando
estou agindo. Conheço o agente e estou condenado a viver junto com ele”167.
A qualidade de poder distinguir o certo e o errado, portanto, não é apreendida fora do
indivíduo mesmo, mas pode se tornar evidente a partir do discurso que o indivíduo estabelece
consigo mesmo. Quando o sujeito está pensando, suas reflexões são discutidas através de um
diálogo silencioso consigo mesmo – da mesma forma que um indivíduo pode iniciar um diálogo
através da fala com um outro indivíduo qualquer. Por conta disto, Arendt chama atenção para
obviedade do fato de “que um malfeitor não será um parceiro muito bom para esse diálogo
silencioso”168, dando a entender que o sujeito que pensa não estaria disposto a conviver e
dialogar com um malfeitor.
Em detrimento disto, podemos afirmar que o comportamento do indivíduo para com os
outros é efetivamente dependente de seu comportamento consigo mesmo, visto que a relação
do indivíduo consigo próprio deve ser anterior àquela relação desenvolvida com o outro. Pois,
antes de estabelecer uma relação com o outro, o indivíduo deve necessariamente desenvolver
uma relação consigo mesmo através do pensamento.
166 Ibidem, p. 155. 167 Ibidem, p. 155. 168 Ibidem, p. 156.
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Como mostra Arendt:
O pensamento como uma atividade pode surgir a partir de qualquer ocorrência; está
presente quando eu, depois de observar um incidente na rua ou me ver implicada em
alguma ocorrência, começo então a considerar o que aconteceu, contando o fato a mim
mesma como uma espécie de história, preparando-a, dessa maneira, para sua
subsequente comunicação aos outros, e assim por diante169.
Outra característica fundamental da atividade de pensamento é o pensar sobre os
próprios atos, que, de acordo com a autora, é parte essencial quando o propósito é estabelecer
um diálogo consigo mesmo. Assim, quando um indivíduo comete o mal, a capacidade de
pensamento, do diálogo silencioso consigo mesmo, fica comprometida – já que aquele que
cometeu a má ação não se permite lembrar de tal ato. Por conseguinte, Arendt diz que: “a
maneira mais segura para um criminoso nunca ser descoberto e escapar da punição é esquecer
o que fez e não pensar mais no assunto”170, assegurando, então, que a lembrança só é possível
a partir da atividade silenciosa de pensamento.
Posto isto, a autora afirma que a atividade de pensar está, portanto, relacionada muito
intimamente com a capacidade de memória que o indivíduo pode possuir, já que esta lembrança,
advinda da memória, só é possível através de uma atividade exaustiva de pensamento praticada
consigo mesmo, pois “ninguém consegue se lembrar do que não pensou de maneira exaustiva
ao falar a respeito do assunto consigo mesmo”171. O arrependimento, como exemplifica a
autora, só é exequível a partir do momento em que o indivíduo consegue lembrar, através do
pensamento, de seus próprios atos.
Ainda sobre a prática do mal e a relação com o pensamento e a memória, Arendt afirma:
Não vou negar que esse tipo de malfeitor exista, mas tenho certeza de que os maiores
males que conhecemos não se devem àquele que tem de confrontar-se consigo mesmo
de novo, e cuja a maldição é não poder esquecer. Os maiores malfeitores são aqueles
que não se lembram porque nunca pensaram na questão, e, sem lembrança, nada
consegue detê-los.172
Assim, tendo em vista a memória, ou seja, a faculdade de lembrar ou esquecer, a autora
afirma que os maiores criminosos são aqueles que perderam essa capacidade elementar de
pensamento que está diretamente ligada com a lembrança e o esquecimento. Deste modo, o
maior mal, nas palavras da autora, “não é radical, não possuí raízes e, por não ter raízes, não
169 Ibidem, p. 158. 170 Ibidem, p. 158. 171 Ibidem, p. 159. 172 Ibidem, p. 159.
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tem limitações, pode chegar a extremos impensáveis e dominar o mundo todo”173. Desenvolver
a capacidade de lembrar dos atos praticados é o que pode, e deveria, impedir a prática do mal,
pois nenhuma pessoa que possui a lembrança como uma faculdade inerente a si mesma gostaria
de ser lembrada de que cometeu um ato que não aprova. Logo, a moral – como sendo a relação,
o diálogo que o indivíduo estabelece consigo mesmo – está relacionada com a memória no
momento em que esta se faz necessária para impedir que os indivíduos cometam atos maléficos.
Com o prosseguimento de sua investigação, a autora aponta para uma verdadeira
distinção existente entre pessoa e humano. Depreende-se que o indivíduo só se constitui como
pessoa a partir do momento em que realiza constantemente a atividade de pensar, um pensar
que possibilita, como vimos antes, a lembrança e o arrependimento. Sem essa atividade
elementar, o indivíduo, por mais humano que possa ser, jamais se constituirá em pessoa ou
numa personalidade.
Nesse sentido, a autora explana:
Nesse processo de pensamento em que realizo a diferença especificamente humana
da fala, eu me constituo de modo explícito como uma pessoa, e vou continuar a ser
uma pessoa na medida em que seja capaz dessa constituição repetidas vezes. Se é isso
o que comumente chamamos de personalidade, o que não tem nada a ver com o talento
e inteligência, ela é o simples resultado, quase automático, do pleno exercício da
capacidade de pensar (thoughtfulness). Em outras palavras, ao conceder o perdão, o
que se perdoa é a pessoa e não o crime; no mal sem raiz, não resta nenhuma pessoa a
quem se poderia perdoar.174
Por meio desta relação do indivíduo consigo mesmo, Arendt afirma que podemos
encontrar vestígios da noção de pluralidade não apenas como a condição de uma vida política175
– de indivíduos que convivem e compartilham um mundo –, mas, também, condição do ponto
de vista de o indivíduo que compartilha primeiramente de si mesmo, já que essa convivência
pressupõe uma divisão interior. Quando o indivíduo pratica o diálogo constante consigo
mesmo, é certo que existe um interlocutor e um receptor; assim como quando ele pratica uma
ação, tendo a si próprio como testemunha.
Em vista disso, Arendt entende que a solidão (loneliness) que o indivíduo pode sentir
mesmo quando está envolto por uma multidão é consequência direta do abandono de si mesmo,
ou seja, ele já não está mais acompanhado nem de outros e nem de si mesmo; e, como já
abordado, o trato do indivíduo com outros é dependente do trato consigo mesmo, sugerindo que
173 Ibidem, p. 160. 174 Ibidem, p. 160. 175 Em A Condição humana, Arendt, ao descrever a vita activa como uma das três atividades primordiais para a
vida na terra – trabalho, obra e ação –, afirma que a ação corresponde a condição humana da pluralidade, esta que
é a condição da vida política. Idem. A condição humana, p. 09.
57
a própria noção de pluralidade como correspondente da ação – “única atividade que ocorre
diretamente entre os homens” 176– pode ser encontrada, também, nessa relação silenciosa, já
que o indivíduo é capaz de se dividir internamente em dois – o dois-em-um.
A essa relação ou diálogo, que o indivíduo estabelece consigo próprio, seja quando está
pensando ou julgando a partir da própria atividade de pensar, Arendt chama de estar só
(solitude). Este estar só é diferente, e até mesmo o oposto, da solidão (loneliness) – que como
vimos é decorrente do abandono de si mesmo – e, também, diferente das formas de isolamento
que podemos nos impor devido, por exemplo, a alguma preocupação com o mundo177, como
aponta a autora.
Assim, podemos compreender que o estar só arendtiano remete ao estar acompanhado
de si mesmo, ou seja, para se engajar na atividade de pensar, o indivíduo precisa, então,
transformar-se numa espécie de dois-em-um para manter um diálogo silencioso consigo
próprio. A solidão e o isolamento, como afirma Arendt, não permitem a ocorrência desse
diálogo que o indivíduo estabelece consigo mesmo, pois não existe um outro para tal.
Este outro pode ser o próprio indivíduo quando ele se relaciona consigo mesmo nessa
espécie de dois-em-um, mas pode ser, também, a companhia de um outro indivíduo qualquer.
No entanto, a atividade de pensar só ocorre no primeiro caso – quando se estabelece o diálogo
silencioso consigo mesmo – pois, quando o indivíduo entra em contato com um outro alguém,
ele interrompe o processo de pensamento, a saber: é quando o dois-em-um se transforma,
novamente, em um só, para poder estar em companhia de um outro diferente de si mesmo.
Assim:
O estar só e sua atividade correspondente, que é o pensar, podem ser interrompidos
pelo fato de alguma outra pessoa se dirigir a mim ou, como em toda outra atividade,
por eu fazer alguma outra coisa, ou pelo puro cansaço. […] Eu me torno uma,
possuindo, é claro, ciência de mim mesma (self-awareness), isto é, consciência de
mim mesma (consciousness), mas já não estou plena e articuladamente de posse de
mim mesma. Se uma pessoa me dirige a palavra e se, como às vezes acontece,
começamos a dialogar sobre as mesmas coisas com que uma de nós havia se
preocupado enquanto ainda estava só (in solitude), então é como se eu agora me
dirigisse a outro eu. E esse outro eu, allos authos, foi corretamente definido por
Aristóteles como o amigo.178
Desta forma, é importante lembrar que a moralidade como um aspecto referente à
singularidade179, ou seja, essa preocupação com o eu para a qual Arendt chama atenção, só pode
176 Idem. A condição humana, p. 09. 177 Idem. Responsabilidade e julgamento. p.162. 178 Ibidem. p. 163. 179 Ibidem, p. 162.
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ser considerada quando tratamos desse estar só – o dois-em-um. Só pode ser levada em
consideração se entendermos o indivíduo como um ser que pensa e necessita de si mesmo para
se constituir como esse ser pensante; e esta é, em grande parte, a razão para uma determinada
conduta moral ou não. Portanto, a ordem política, religiosa ou até mesmo uma ordem imposta
socialmente difere da ordem moral180, que é auto imposta pelo próprio indivíduo no processo
de pensamento. Assim, diz Arendt: “não posso fazer certas coisas porque, depois de fazê-las,
já não serei capaz de viver comigo mesma”.181
Em momentos de crise182, é justamente esta autoimposição moral do indivíduo que
fornece limites a ele próprio. No entanto, a própria autora reconhece que, em se tratando do
ponto de vista político, isso soaria como uma irresponsabilidade do indivíduo, que bem ou mal,
faz parte de uma comunidade – isto porque se trata da preocupação com o eu e não com o
mundo ou com outros indivíduos que dele compartilham. Portanto, a autora afirma que toda sua
investigação acerca da moral socrática, a qual está baseando grande parte de sua investigação,
só pode ser levada em consideração em tempos de emergência.
Assim:
[...] a moralidade socrática só é politicamente relevante em tempos de crise, e que o
eu como critério fundamental da conduta moral é, politicamente, uma espécie de
medida de emergência. E isso implica que a invocação de princípios supostamente
morais para questões da conduta cotidiana é em geral uma fraude; quase não
precisamos de experiência para saber que os moralistas estreitos, que apelam
constantemente para os elevados princípios morais e padrões estabelecidos, são em
geral os primeiros a aderir a quaisquer outros padrões que lhes sejam oferecidos, o
que os franceses chamam les bien-pensants, está mais sujeita a se tornar nada
respeitável e até criminosa do que a maioria dos boêmios e beatniks.183
Como um ser que possui a capacidade de pensar e, consequentemente, lembrar – isto é,
aquele capaz de conviver consigo mesmo – é correto afirmar que esse indivíduo estabelece a si
próprio certos limites. Independentemente de quais sejam, a autora afirma que o maior mal é
justamente essa incapacidade de estabelecer constante diálogo consigo mesmo e,
consequentemente, limites impostos a partir desta relação. A grande perda para o próprio
indivíduo e, também, para aqueles que compartilham do mesmo mundo, é “a perda do eu que
constitui a pessoa”.184
180 Ibidem, p. 162. 181 Ibidem, p. 162. 182 Quando Arendt discursa sobre os momentos de crise ou emergência, ela está fazendo referência aos regimes
totalitários de sua época. 183 Ibidem, p. 170. 184 Ibidem, p. 167.
59
Mesmo impondo limites, a atividade de pensar não incita à ação, isto é, não impõe como
devemos agir. Isto ocorre, pois “o próprio processo de pensar é incompatível com qualquer
outra atividade”185. Mesmo produzindo certas consequências no âmbito moral, o pensamento
enquanto uma atividade não tem como objetivo a produção de um fim ou uma meta, como
podemos identificar na ação.
Podemos perceber que esses limites que a atividade de pensar impõe para o indivíduo
sugerem que existe uma diferença entre uma transgressão e outra. Essa diferença, para Arendt,
“é um princípio puramente moral, distinto de um princípio legal”186 a partir do momento em
que o próprio indivíduo estabelece para si mesmo os limites de sua ação, por não se permitir
conviver consigo mesmo, caso cometa um ou outro delito.
Assim:
Se aplicarmos essas afirmações à questão da natureza do mal, o resultado seria uma
definição do agente e do modo como ele agiu, em vez do próprio ato ou do seu
resultado final. E encontraremos esse deslocamento daquilo que objetivamente se fez
para o quem subjetivo do agente como um dado marginal mesmo em nosso sistema
legal. Pois se é verdade que acusamos alguém pelo que fez, é igualmente verdade que
quando um assassino é perdoado já não se leva esse ato em consideração. Não é o
assassinato que é perdoado, mas o assassino, a sua pessoa, assim como ela aparece
nas circunstâncias e intenções.187
Voltando-se para os julgamentos dos criminosos nazistas, Arendt verifica que não
apenas Eichmann, mas diversos outros criminosos se utilizaram do argumento do dente de
engrenagem em suas defesas. O dente de engrenagem se refere a um tipo de sistema burocrático
que permite, independentemente de quem está operando essa ou aquela função, a continuidade
dos processos.
Arendt não nega que a burocracia é um meio de “transformar os homens em
funcionários, meros dentes de engrenagem na maquinaria administrativa, e assim desumanizá-
los”188. Porém, chama atenção para o fato de a própria justiça não julgar uma burocracia, ou um
sistema, mas o réu que cometeu o ato ilícito; pois é ao indivíduo que se atribui algum tipo de
responsabilidade, e não ao sistema ou à burocracia em si.
Mesmo tendo em vista que o meio no qual o indivíduo está inserido pode influenciar em
suas tomadas de decisão, do ponto de vista legal esta questão pode ser tratada “apenas na medida
em que são circunstâncias, talvez mitigadoras, do que um homem de fato fez”189. Desta maneira,
185 Ibidem, p. 170. 186 Ibidem, p. 174. 187 Ibidem, p. 177. 188 Ibidem, p. 122. 189 Ibidem, p. 122.
60
a grande maioria dos argumentos utilizados pelas defesas nos julgamentos consistia em afirmar
que o réu jamais fez algo por iniciativa própria, mas que estava, apenas, obedecendo ordens.
Tal argumento, como Arendt chama atenção, descaracteriza o indivíduo como pessoa, pois o
próprio réu admite que em nenhum momento pensou a partir de si mesmo para cometer ou não
determinado ato ilícito.
Se não houve a atividade de pensamento, e se o próprio indivíduo não fez questão de
refletir sobre os próprios atos, valendo-se de argumentos que inviabilizam a própria noção de
pessoa, logo não é possível que o mesmo sujeito consiga lembrar e, consequentemente,
arrepender-se – deixando, assim, de ser uma pessoa ou de se constituir como uma
personalidade.
Como afirma a Arendt:
Dentro da estrutura conceitual dessas considerações, poderíamos dizer que o malfeitor
que se recusa a pensar por si mesmo no que está fazendo e que, em retrospectiva,
também se recusa a pensar sobre o que faz, isto é, a voltar e lembrar o que fez (que é
teshuavah, isto é, arrependimento), realmente deixou de se constituir como alguém.
Permanecendo teimosamente um ninguém, ele se revela inadequado para o
relacionamento com os outros que, bons, maus ou indiferentes, são no mínimo
pessoas190.
Levando-se em consideração as questões abordadas, podemos concluir que a atividade
de pensamento – a relação silenciosa do indivíduo consigo mesmo – está relacionada
diretamente com a faculdade da lembrança. É através desta faculdade que o indivíduo é capaz
de lhe impor limites para ação. É, também, através da faculdade da lembrança que se torna
possível ao indivíduo refletir e se arrepender de uma ou outra infração.
Os criminosos nazistas, no entanto, ao se defenderem de seus crimes, eximiram-se de
toda a responsabilidade, atribuindo a culpa ao sistema vigente. Deste modo, a grande maioria
das estratégias de defesa era o argumento do dente de engrenagem, que atestava que seus
próprios clientes foram incapazes de pensar por si mesmos ao obedecerem cegamente
determinadas ordens. Assim, tais indivíduos “renunciaram voluntariamente a todas as
qualidades pessoais, como se não restasse ninguém a ser punido ou perdoado”191.
Portanto, o maior mal, tratado na obra Eichmann em Jerusalém e definido pela autora
como banalidade do mal, é cometido por aquele que se recusa a pensar, ou melhor, aquele que
não se reconhece mais como seu próprio interlocutor, abandonando a si mesmo e deixando de
se constituir como alguém.
190 Ibidem, grifos da autora. P. 177. 191 Ibidem, p. 177.
61
CONCLUSÃO
Muito se fala sobre uma possível reconciliação de Hannah Arendt com a filosofia em
seus textos tardios. Por meio deste estudo, foi possível perceber, mesmo que de forma
preliminar, a relação entre filosofia e política que se fez necessária para que a autora pudesse
investigar as questões sobre moralidade que lhe foram lançadas após a publicação de Eichmann
em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal.
Esta pesquisa teve como objetivo geral apresentar e discutir como a autora trabalha a
relação entre a ausência de pensamento e a banalidade do mal, por meio da articulação de
alguns dos principais conceitos políticos trabalhados ao longo de suas obras (vita activa, vita
contemplativa, pensamento, ação, responsabilidade e julgamento). A exposição contou com três
capítulos nos quais foram apresentados, em um primeiro momento, as circunstâncias que
possibilitaram o surgimento e desenvolvimento de uma sociedade de massa e,
consequentemente, um indivíduo de massa. Em seguida, a monografia pretendeu analisar
Eichmann com um emblema deste indivíduo que é incapaz de pensar e agir. Por fim, esta
pesquisa contou com o estudo dos desdobramentos destas questões do ponto de vista da filosofia
moral que a autora estabelece para pensar a relação entre ausência de pensamento e banalidade
do mal.
Tomando como apoio, principalmente, a obra A condição humana pôde-se perceber, a
partir do primeiro capítulo, que as atividades humanas – trabalho, obra e ação – influenciaram
e influenciam diretamente na concepção de mundo. Os eventos modernos, analisados pela
autora e que foram tratados neste estudo, mostraram ser de fundamental relevância para o
surgimento de uma sociedade de massa e, consequentemente, para o surgimento de regimes
totalitários. Esta primeira etapa foi fundamental para entender as circunstâncias gerais que
possibilitaram a perda da capacidade de pensar e agir do indivíduo ante os acontecimentos em
que estavam diretamente inseridos. Evidenciou-se, também, como a tradição do pensamento
filosófico ocidental, desde a antiguidade de Platão, contribuiu para o distanciamento entre a
filosofia e a política, da vida contemplativa e da vida ativa, tornando possível na idade moderna
o “divórcio do pensamento e do conhecimento”.
O segundo movimento da exposição foi a análise das questões investigadas nas obras
Eichmann em Jerusalém e Responsabilidade e julgamento de Hannah Arendt, e na obra
Fundamentação da metafísica dos costumes de Immanuel Kant, onde foi possível compreender,
primeiramente, como Eichmann pode ser considerado como um indivíduo de massas, ou como
62
apenas um animal laborans. Para este momento da pesquisa, utilizou-se a análise que Arendt
tece sobre Eichmann em seu relato sobre o julgamento realizado em Jerusalém. Por meio das
falas do acusado durante todo o processo, a autora constata que Eichmann era uma pessoa
comum que acreditava estar cumprindo seus deveres. Contudo, este fato revelava que o acusado
era incapaz de pensar criticamente sobre a significação de seu ato de obediência e, por conta
disto, foi capaz de cometer os maiores males contra a humanidade. Dessa forma, percebe-se
que Eichmann utilizou-se dos preceitos kantianos de forma equivocada e com um fim
determinado: isentar-se inconscientemente das suas responsabilidades quanto a sua falta de
pensamento acerca do que estava fazendo. Por meio desta exposição, foi possível entender que
essa falta de pensamento crítico determina o que Arendt chama de banalidade do mal. Que este
mal assumiu uma forma diferente do que até então a humanidade conhecia: um mal que pode
ser executado não apenas por pessoas perversas, mas também por aquelas que não mais
possuem a capacidade de desenvolver uma relação consigo mesmo, de pensar por conta própria.
Com o último movimento desta pesquisa, fica claro o interesse de Hannah Arendt em
relacionar a filosofia com a teoria política a partir das análises sobre as questões morais que
foram levantadas após Eichmann em Jerusalém. Percebemos, mesmo que em um segundo
plano, essa guinada da autora na direção a uma investigação das atividades do espírito. O último
capítulo foi importante, portanto, para identificar, mesmo que de forma introdutória, o
amadurecimento do pensamento da autora. Esta parte da pesquisa foi significativa para
compreender alguns conceitos primordiais para a filosofia moral, tais como a lembrança e a
memória. Assim, constatou-se que a atividade de pensamento – a relação silenciosa do
indivíduo consigo mesmo – está relacionada diretamente com a faculdade da lembrança. É
através desta faculdade que o indivíduo é capaz de impor limites para ação. É, também, através
da faculdade da lembrança que se torna possível o indivíduo refletir e se arrepender de uma ou
outra infração.
À vista do que foi apresentado neste estudo, fica claro que os eventos ocorridos na idade
moderna foram determinantes para o obscurecimento do âmbito público que motivou o
surgimento do que a autora denomina de ‘tempos sombrios’. Nesse sentido, podemos concluir
que a análise de Hannah Arendt sobre a ausência do pensamento crítico, muito presente nos
regimes totalitários do século XX, pode contribuir para o desenvolvimento de pesquisas futuras
na área de filosofia política, principalmente em épocas nas quais se vê o avanço de governos
com tendências totalitárias e repressivas, bem como o advento de programas que refletem sérias
ameaças para a emancipação política.
63
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Hannah Arendt. Dissertação de mestrado. São Paulo: departamento de filosofia, USP, 2002.