Post on 18-May-2020
INTRODUÇÃO
«Instruí-vos, porque precisaremos da vossa inteli-
gência. Agitai-vos, porque necessitaremos de todo
o vosso entusiasmo. Organizai-vos, porque te-
remos necessidade de todas as vossas forças»
Gramsci em L’Ordine Nuovo
Uma figura universal
Comemoram-se este ano os oitenta anos da morte de Gramsci. Um teó-
rico já universalmente considerado como um autor clássico e cuja atua-
lidade continua a impor-se. Gramsci é, após Machiavelli, o pensador
italiano mais estudado e traduzido em todo o mundo. Nos últimos qua-
renta anos, a sua obra conhece uma crescente difusão internacional, na
Itália e principalmente no Oriente e nos países da América Latina.
As categorias gramscianas, como a Hegemonia, a Filosofia da Pra-
xe, a Revolução Passiva, os Subalternos permanecem fulcrais para
interpretarmos a nossa modernidade política.
Gramsci foi um homem e um pensador livre. Livre e lúcido, con-
duzido por uma racionalidade fria e implacável, por um rigor e uma
disciplina intelectual verdadeiramente extraordinários. Toda a histó-
ria da sua vida, a sua prisão nos cárceres fascistas, onde ficou por
mais de dez anos, as terríveis provações físicas e morais que supor-
tou até à morte, os confrontos duríssimos com os companheiros de
partido, na Itália e na Rússia, o cruel afastamento da mulher e dos
filhos, tudo isso é um testemunho da sua extraordinária personalida-
de e, ao mesmo tempo, da agitada e dramática página da história
italiana, que vai do primeiro pós-guerra até à consolidação do fas-
cismo de Mussolini. Gramsci foi libertado em 1937, após um calvá-
rio de prisões e graves doenças, que o levaram a morrer em Roma,
no dia seguinte ao da sua libertação. Só anos mais tarde, no fim da
segunda guerra e com o regresso da Itália à democracia, a sua obra
8 ANTONIO GRAMSCI
começou a ser trabalhada e publicada. Foi um sucesso editorial ime-
diato. Dos Cadernos do Cárcere, editados entre 1948 e 1951, em
1957 já tinham sido vendidas 400.000 cópias, um número enorme
para o mercado livreiro da altura, mas a este sucesso seguiu-se, na
Itália, um período de relativo esquecimento.
O «regresso» de Gramsci acontece, na Itália, durante os anos 70,
quando a editora Einaudi publica uma preciosa edição crítica dos seus
Cadernos. São os anos da viragem histórica do Partido Comunista
Italiano, que se emancipa da ideologia soviética, para procurar adqui-
rir uma hegemonia política na sociedade italiana. A partir dos anos 80,
o interesse pelo discurso marxista começa a declinar, mas em 1987,
cinquentenário da morte de Gramsci, o seu nome volta a protagonizar,
na Itália, congressos e publicações.
Entretanto a sua voz espalhara-se pelo mundo: sobretudo no mundo
anglo-saxónico, Inglaterra e Estados Unidos, e na América Latina,
onde, há muitos anos, Gramsci é aclamado como um dos teóricos po-
líticos mais importantes do século XX, designadamente por causa do
surgimento dos novos Estudos Culturais e Pós-coloniais.
Mas porquê esta antologia? Foucault dizia que «Gramsci era um
autor mais citado de que verdadeiramente lido» e pensamos que isso é
verdade sobretudo em Portugal, onde o nome de Gramsci é ainda re-
lativamente pouco divulgado. Algumas antologias dos seus textos
foram publicadas nos anos 70, mais exatamente entre 1974 e 1978,
por várias editoras, mas atualmente a sua obra desapareceu das livra-
rias, existindo apenas nos acervos de algumas bibliotecas.
Foi esta a nossa primeira intenção, que se volte novamente ou se
comece verdadeiramente a falar de Gramsci e se descubra ou redescu-
bra a sua atualidade e o seu valor teórico.
Uma vida difícil
António Gramsci nasceu na Sardenha em 1891, um ilha hoje conhe-
cida internacionalmente pela sua grande beleza natural, mas que na-
quela altura vivia num isolamento dramático próprio de todo o sul da
Itália, a zona que Gramsci chama, na sua obra, o Mezzogiorno.
O Mezzogiorno, diz Gramsci, é como uma colónia. A Itália não tem,
rigorosamente, «colónias», mas tem o Mezzogiorno. Uma parte da
Itália que, longamente «colonizada» ao longo dos séculos, sofre o
peso da exploração, do subdesenvolvimento, do generalizado analfa-
betismo e da injustiça social.
A CULTURA, OS SUBALTERNOS, A EDUCAÇÃO 9
E é esta a sua primeira experiência de vida: Gramsci vinha duma
família da pequena burguesia sarda (a mãe, facto extraordinário na-
quela altura, sabia ler e escrever), o pai tinha iniciado os estudos de
direito, mas, acusado de roubo, talvez por represálias políticas, é pre-
so, deixando a família numa situação de extrema indigência. Gramsci
escreve que, naqueles dias, «odiava os continentais» e queria que
«caíssem todos ao mar», via com rancor o filho do merceeiro ou do
proprietário de terras irem à escola enquanto ele, com notas muito
superiores, não o podia fazer porque tinha que trabalhar. Mas, apesar
de tudo e até da débil saúde, continua a estudar, frequenta a escola
secundária em Cagliari, a preço de enormes dificuldades económicas
e parte a seguir, com a ajuda duma bolsa, para Turim, cidade operária
e industrializada, onde, no ambiente universitário, começa a sua ver-
dadeira educação teórica e a sua fulgurante carreira política, que o
leva a ser um dos fundadores do Partido Comunista Italiano, em
1921. Até ser preso, em 1927 pela polícia fascista de Mussolini.
Doente e extremamente pobre, Gramsci chega a Turim em 1911 e
assim descreve o seu primeiro contacto com a cidade:
Parti para Turim como se estivesse em estado de sonambulismo.
Tinha 55 liras no bolso; das 100 liras que me deram em casa, já ti-
nha gasto 45 liras para a viagem em terceira classe. Na cidade ha-
via a Exposição e devia pagar três liras por dia só para o quarto
(...). Não sei como consegui fazer o exame, porque desmaiei duas
ou três vezes (...) e passei o inverno sem um sobretudo, com um fa-
tinho de meia estação bom para o calor de Cagliari. Em março de
1912 estava tão exausto que deixei de falar durante uns meses:
quando falava, enganava-me nas palavras1.
Mas, apesar de tudo, o jovem sardo que vinha duma província tão
isolada e atrasada e tanto desejara a fuga para o continente, fica des-
lumbrado com a cidade. Em março, por ocasião dos cinquenta anos da
Unidade da Itália, abre em Turim a Grande Exposição Universal, sím-
bolo duma cidade que tinha perdido a honra de ser capital do Reino,
mas que já estava na vanguarda do desenvolvimento industrial. A FIAT
tinha aberto as suas fábricas e liderava toda a produção metalúrgica,
permitindo a gradual formação duma classe e duma consciência operá-
1 A. Gramsci, «Lettere dal Carcere», carta de 12 de setembro de 1927, Einaudi, Tori-
no, 1972, p. 125.
10 ANTONIO GRAMSCI
ria. Mas não só, Turim era também a cidade da moda, do cinema, do
teatro, da literatura.
Gramsci participa ativamente na vida universitária, onde segue cur-
sos de glotologia, literatura e filosofia, mas em 1915 faz o último exame
e desiste definitivamente dos estudos. Começa o seu percurso político,
que coincidirá precisamente com as greves operárias de Turim.
A fragmentariedade e multiplicidade da obra
A primeira característica da sua obra é a fragmentariedade. Encontra-
mo-nos diante de uma grande quantidade de textos de variadíssima na-
tureza: cartas, pensamentos, pequenos ensaios, artigos jornalísticos,
esboços, ideias. Muitos críticos compararam este corpus ao Zibaldone
do poeta Leopardi, pela sua estrutura e pela sua genialidade, e nós pen-
samos também na estrutura fragmentária do Livro de Desassosego de
Fernando Pessoa. É como se estivéssemos diante uma teia rizomática,
sem um verdadeiro centro, mas aberta a múltiplos focos de centralidade,
onde transparece e se ouve o «ritmo do pensamento a trabalhar».
O próprio Gramsci avisava disso os futuros leitores, dizendo que a
sua obra era inteiramente «provisória» e que como tal devia ser consi-
derada. Um provisório que infelizmente nunca se tornou definitivo
como era sua intenção de, uma vez libertado, retomar tudo em mão e
reformular, arrumar, teorizar de forma mais sistemática. Como sabe-
mos, a morte não lho permitiu e tal sistematização só foi feita, mais
tarde, pelos seus companheiros de partido e pelas gerações de estudio-
sos que seguiram.
Gramsci começa a redigir os Cadernos, no cárcere de Turi, no sul da
Itália, em 1929, dois anos após a sua prisão. Escrever, como ele confes-
sa, para tentar «sobreviver» e para não se afundar no desespero e na
loucura do isolamento da prisão. Mais uma vez, a palavra, a escrita, a
cultura servem como barragem e defesa contra a brutalidade da vida2.
Numa carta, de 1927, à cunhada Tatiana, escreve Gramsci:
Estou obcecado (e penso ser este um fenómeno próprio dos prisio-
neiros) por esta ideia: que é preciso fazer alguma coisa ‘fur ewig’,
2 Lição retomada, mais tarde, por grandes figuras da literatura italiana, como Cesare
Pavese e Italo Calvino: também para eles, é através da cultura que o ser humano se
salva do abismo da violência e da irracionalidade.
A CULTURA, OS SUBALTERNOS, A EDUCAÇÃO 11
segundo uma complexa conceção de Goethe, que, recordo-me,
atormentou muito também o nosso Pascoli3. Em suma, gostaria, se-
gundo um plano estabelecido, de me ocupar intensa e sistematica-
mente de algumas temáticas que me absorvessem e centralizassem
a minha vida interior
E assim, apesar da falta de material e de fontes, baseando-se muitas
vezes unicamente na sua extraordinária memória e profunda formação
cultural, a sua escrita começa a fluir como uma torrente imparável. As
condições materiais eram muito difíceis e o seu estado de saúde dra-
mático, mas Gramsci continua a produzir a um ritmo intenso e conse-
gue desenvolver, embora, como foi dito, de forma «provisória», as
suas temáticas. Preenche assim 33 Cadernos. No primeiro Caderno, de
1929, Gramsci elabora esta lista de «assuntos principais»:
1. Teoria da história e da historiografia
2. Desenvolvimento da burguesia italiana até 1870
3. Formação dos grupos de intelectuais italianos
4. A literatura popular dos «romances de cordel» e as razões do
seu persistente sucesso
5. Cavalcante Cavalcanti: a sua posição na estrutura e na arte da
Divina Comédia
6. Origens e desenvolvimento da Ação Católica na Itália e na
Europa
7. O conceito de folclore
8. Experiências da vida em cárcere
9. A «questão meridional» e a questão das ilhas
10. Observações sobre a população italiana: sua composição e pa-
pel da emigração
11. Americanismo e Fordismo
12. A questão da língua na Itália
13. O «senso comum»
3 Giovanni Pascoli (1855-1912), poeta italiano. Para Pascoli, a poesia não é uma
invenção, mas uma descoberta de algo que já se encontra na realidade à nossa vol-
ta. O poeta deve libertar-se de todos os condicionamentos culturais, para tornar-se
un fanciullino, ou seja encontrar a pureza e o misticismo próprios da infância.
A sua obra, profundamente antipositivista, influenciou poetas como Montale, Un-
garetti e Pasolini.
12 ANTONIO GRAMSCI
14. Revistas-tipo: teórica, critico-histórica, de cultura geral (divul-
gação)
15. Neo-gramáticos e neo-linguistas («esta mesa redonda é qua-
drada»)
16. Os netinhos do Padre Bresciani
Na nossa antologia, resolvemos considerar unicamente os escritos de
juventude, ou seja os artigos jornalísticos e textos que escreveu antes da
prisão, de 1918 a 1927, e os Cadernos do Cárcere, que constituem a
suma teórica e o seu testemunho mais importantes. Demos, contudo,
bastante espaço aos textos de juventude, por considerá-los, sob certos
aspetos, os mais fascinantes. De facto, só nestes textos Gramsci expres-
sa livremente o seu pensamento, por não existir nenhuma restrição ou
censura fascista a avaliar e a cortar, neles se respirando o vento da li-
berdade e da juventude, a paixão das ideias e dos ideais. A prosa dos
cadernos é evidentemente mais hermética e ambígua, muitas vezes es-
crita numa espécie de código. Falta-lhe, precisamente, a liberdade.
Não seleccionámos, por razões editoriais, nenhum texto das Lettere
dal Carcere, apesar de constituírem um documento impressionante e co-
movente pela sua beleza literária e pela paixão e dor que nos transmitem.
Para demonstrarmos a modernidade e a atualidade de Gramsci,
sintetizaremos, nesta breve introdução, os pontos principais do seu
pensamento, pontos que, aliás, correspondem aos critérios de escolha
da presente antologia: as ideias políticas e o seu relacionamento com
a conceção da cultura, o conceito de hegemonia, o papel determi-
nante dos intelectuais, o discurso gramsciano sobre os subalternos e
a relação norte/sul (temática desenvolvida, a partir dos anos 80, pe-
los Estudos Pós-Coloniais e Subalternos) e o discurso sobre o Ame-
ricanismo e o Fordismo.
Conceitos diversificados, mas que nos levam todos à posição ful-
cral do pensamento gramsciano: a forte critica do positivismo e do
economicismo redutor, neste caso também fortemente influenciada
pela filosofia de Benedetto Croce4. Gramsci teoriza que o ser humano
4 Benedetto Croce (1866-1952), filósofo, crítico e historiador italiano. Croce foi
Ministro da Educação durante o governo Giolitti, em 1925 redigiu o Manifesto dos
Anti-Fascistas , tomando uma firma posição contra o regime de Mussolini. Conti-
nuou, contudo, a dirigir, com o filósofo Gentile, a importante revista Crítica. Em
1943, chefiou o Partido Liberal e participou no Comité de Libertação.
A CULTURA, OS SUBALTERNOS, A EDUCAÇÃO 13
é plural e contraditório, feito de racionalidade, mas também de senti-
mentos, de necessidades materiais, mas também, e igualmente impor-
tantes, de necessidades espirituais. Ou seja, tem a convicção profunda
da importância determinante da cultura e de todos os processos supe-
restruturais, sem o que nenhuma classe dirigente poderá, a longo pra-
zo, exercer o seu domínio.
É esta intuição, de grande modernidade, que distingue Gramsci da
ortodoxia comunista da sua época e que o faz ser considerado herético
pelos seus contemporâneos, na Itália e na Rússia, onde, muito cedo,
entrará em desacordo com as posições de Estaline5. Aliás, como será
evidenciado na biografia, estas posições só complicarão a sua existên-
cia: encarcerado pelos fascistas de Mussolini, será considerado um
elemento perigoso e suspeito também pelos aparelhos dos partidos
comunistas, italiano e russo.
A «Questão Meridional»
Para traçar o percurso e os pontos principais do pensamento de
Gramsci, julgamos importante partir do seu texto «Algumas temáticas
da questão meridional», escrito em 1926, pouco antes da sua prisão e
publicado só em 1930, no jornal Stato Operaio, em Paris.
Páginas iluminantes sobre o subdesenvolvimento do sul italiano,
embora hoje a situação sócio-política destas regiões tenha, em parte,
mudado: a Itália camponesa da época de Gramsci está mais débil, in-
felizmente ainda não substituída por uma Itália industrializada, o que
deixa o caminho aberto para as organizações criminosas como a Mafia
e a Camorra.
Seguindo os princípios hegelianos, Croce reduz a realidade à «vida do espírito».
Distingue quatro categorias: duas da esfera cognitiva (estética e lógica) e duas da
esfera política (economia e moral). A intuição artística é, segundo o filósofo, ante-
rior à cognitiva e a qualquer tipo de ação, por isso é «pura». Distingue também en-
tre «poesia» (onde a intuição está no estado puro) e «não poesia» (onde a intuição é
«contaminada» pelo raciocínio intelectual e moral). A influência do seu pensamen-
to estético e filosófico foi enorme, bem como dos seus polémicos juízos críticos,
que, por exemplo, não lhe permitiram entender o valor artístico das vanguardas his-
tóricas do início do século, nomeadamente dos Futuristas. 5 A salientar que, antes de Gramsci, quem refletiu amplamente sobre a superestrutura
foi G. Lukàcs, que se confrontou dramaticamente com a ortodoxia marxista, nome-
adamente em História e Consciência de Classe.
14 ANTONIO GRAMSCI
Em primeiro lugar, Gramsci percebe que o problema do sul da Itá-
lia não é só um problema meridional, mas indubitavelmente nacional.
Já em 1916, em Il Grido del Popolo, ele escrevia:
O Mezzogiorno não precisa de leis e de tratamentos especiais: pre-
cisa de uma política geral, externa e interna, que corresponda às
necessidades gerais do País e não a tendências políticas ou regio-
nais particulares.
E mais tarde, em 1920, em L’Ordine Nuovo:
A burguesia setentrional subjugou a Itália meridional e as ilhas, re-
duzindo-as a colónias de exploração.
Este contraste norte/sul, que dá origem na Itália à ideologia do
«meridionalismo», onde o norte do país é considerado «superior» ao
sul6, tem a sua origem, como lembra Marcus E. Green7, nas guerras do
Risorgimento que levaram a Itália, em 1861, à unificação nacional.
Green lembra que, segundo Gramsci, o Risorgimento não foi um mo-
vimento nacional popular, pois não conseguiu conciliar todo os italia-
nos à volta do processo de unificação, ao contrário do que aconteceu
com a Revolução Francesa. O Risorgimento ficou sempre nas mãos da
monarquia piemontesa e da burguesia urbana setentrional, juntamente
com a aliança dos grandes latifundiários do sul. Por isso Gramsci con-
sidera o Risorgimento como uma «revolução passiva», que em nada
mudou as difíceis condições de vida da população. O que, insiste
Gramsci, demonstra como na Itália não exista e nunca tenha existido
um verdadeiro «espírito nacional-popular»8.
A questão meridional é, assim, um dos problemas essenciais da
«política nacional do proletariado revolucionário». O que se deve pro-
curar é uma aliança entre a classe operária do norte e os camponeses do
sul, não bastando a divisão mecânica do latifúndio, que será insuficiente
6 Problemática que, na Itália, nunca deixou de ser atual, basta pensar na posição da
«Lega Nord» de Umberto Bossi, partido que defende a separação da «Padania»
(região norte/leste) do resto do país, por se julgarem superiores aos meridionais. 7 Marcus E. Green, «Subalternità, questione meridionale e funzione degli
intellettuali», em Gramsci, le culture e il mondo, Viella, Roma, 2009, p. 56. 8 Lembramos que, até aos anos 30, esta era também a interpretação católica do «Ri-
sorgimento»: um acontecimento histórico que dizia respeito a uma elite, produzido
por maçons, contra a vontade e o sentimento popular.
A CULTURA, OS SUBALTERNOS, A EDUCAÇÃO 15
se não enquadrada num processo revolucionário mais geral, liderado
pelo proletariado industrial do norte. Deste modo, a aliança entre norte e
sul e entre operários e camponeses é vista por Gramsci como um dos
pontos fundamentais para o processo revolucionário. Todo o sul e as
ilhas italianas, escreve Gramsci, funcionam como «um grande campo»,
quase um território colonial, contraposto à «grande cidade», representa-
da pelo norte industrializado.
O texto articula-se em torno da figura do intelectual e nomeada-
mente do intelectual meridional, um dos pontos centrais da reflexão
gramsciana, mais tarde amplamente desenvolvido nos Cadernos. Os
intelectuais, diz Gramsci, têm o papel de relacionar as massas com a
estrutura económica e o Estado. No sul existe um forte bloco agrário,
que torna subalternas as massas camponesas e que, por sua vez, é su-
balterno do bloco da burguesia industrial do norte. A aliança entre
estes dois blocos permite a dominação económica e política do país.
Esta aspiração de «unidade nacional», de bloco nacional, esteve
sempre presente em Gramsci e não se pode esquecer que, em 1923, deu
o título L’Unità ao jornal oficial do partido por ele fundado. Aspiração a
uma unificação nacional que se encontra também a nível cultural, como
lembra Asor Rosa: «Gramsci escreve após a subida ao poder do fascis-
mo e a derrota do movimento operário e socialista: o seu problema es-
tratégico consiste na elaboração daquela cultura que impeça ao mo-
vimento operário do futuro de repetir os erros do passado»9.
No Mezzogiono existe, segundo a análise gramsciana, um bloco in-
telectual, que apoia unicamente o bloco agrário. Gramsci preconiza o
surgir de um outro bloco intelectual, que venha da classe proletária e
que consiga quebrar esta aliança negativa, mas reconhece que o pro-
cesso será lento e difícil e que só será possível após a conquista do
poder. Julga também positivo que haja uma fratura no interior do blo-
co intelectual existente, uma fratura de caráter orgânico que acom-
panhe o processo revolucionário. É preciso, diz Gramsci, desagregar o
bloco intelectual existente, que é «a armadura flexível, mas muito
resistente do bloco agrário».
Daqui surge, como consequência, a teoria da hegemonia, um prin-
cipio teórico e de atuação prática da máxima importância.
9 Alberto Asor Rosa, «Letteratura Italiana» em Storia e Geografia, vol.III, Einaudi,
Torino, 1989, p. 38.
16 ANTONIO GRAMSCI
Este conceito, já implícito e embrionário nos escritos de juventude,
será a seguir desenvolvido exaustivamente nos Cadernos. Gramsci
chega às suas teorias refletindo sobre a «grande derrota» do proleta-
riado europeu nos anos que sucederem à primeira guerra e sobre as
diferenças específicas entre revolução russa e a possível revolução nos
países ocidentais.
Seguindo as teorias de Lenine, Gramsci, que foi chamado precisa-
mente o «Lenine do Ocidente», estuda e reelabora o conceito de hege-
monia, aplicando-o, como sempre, à específica situação italiana. A sua
teoria da aliança entre norte e sul, entre classe operária do norte e cam-
ponesa do sul, entra em choque com as teorias do grupo de Turim liga-
do ao jornal Ordine Nuovo: segundo estes teóricos, é a partir dos «Con-
selhos de Fábrica» que se deve desenvolver o processo revolucionário.
São os operários que devem, em suma, hegemonizar as outras classes.
Defendendo outra posição, Gramsci considera, ao contrário, que sem a
contribuição das massas camponesas esta hegemonia não seria viável,
ou seja que a hegemonia política requer a aliança entre forças sociais
diversas. O proletariado, para governar como classe, deve libertar-se de
qualquer elemento e preconceito corporativo, liderando a hegemonia de
um «bloco histórico» composto por várias classes sociais.
O conceito de «bloco histórico» plural é com certeza o aspeto mais
moderno e fecundo de Gramsci, reconsiderado e reformulado mais tarde
através da utopia do compromesso storico de Berlinguer, tragicamente
falido, nos anos 70, após o assassinato pelas Brigadas Vermelhas do
então líder da Democracia Cristã Aldo Moro. É preciso também lem-
brar, e voltamos aqui à originalidade do pensamento gramsciano, que,
considerada a importância da superestrutura, a hegemonia não será só
imposta pela força, mas também pelo «consenso»10.
10
A fórmula gramsciana da «hegemonia com consenso» é, evidentemente criticável,
se considerarmos, seguindo o pensamento da Escola de Frankfurt, que todo o con-
senso é fruto de uma violência oculta. Aliás, a atual figura de Berlusconi mostra
precisamente este ponto: governa a Itália aparentemente sem violência, mas esta,
embora subterrânea, existe (basta pensar no monopólio, quase total, dos meios de
comunicação).
A CULTURA, OS SUBALTERNOS, A EDUCAÇÃO 17
A Hegemonia
A hegemonia é, assim, a capacidade de criar consenso e alianças du-
rante o processo revolucionário e durante a governação dum Estado.
E o território em que se desenvolve a luta pela hegemonia é o terreno
da «sociedade civil», elemento fundamental onde vivem e se produ-
zem as superestruturas ideológicas, morais, religiosas e dos costumes.
É neste território que se deve trabalhar, já que o Estado é composto
pela união entre a sociedade política e a civil, formando uma «hege-
monia couraçada de coerção».
O conceito de bloco histórico e de consenso é importante para per-
ceber como Gramsci reelabora criticamente a teoria da «ditadura do
proletariado», que ele não preconiza, augurando, antes, um bloco de
alianças entre várias classes. Posição evidentemente contrária à orto-
doxia dos partidos comunistas da altura. Ou seja, o Estado não deve só
dominar, mas tem o importante papel de formar e educar, sendo a di-
mensão cultural fundamental e inseparável da económica.
A sociedade civil deve, pois, colocar-se entre a estrutura económi-
ca e o Estado, mas quem «dirige» esta operação é o partido político,
que Gramsci designa de «intelectual coletivo». Para definir o «partido
– líder», o autor analisa O Príncipe de Maquiavel, chegando à conclu-
são que, na modernidade, o Príncipe é constituído não por uma pessoa,
mas por um «organismo», precisamente pelo partido, definido agora
como o «Moderno Príncipe». Gramsci escreve:
O Príncipe ocupa, nas consciências, o lugar da divindade ou do
imperativo categórico, torna-se a base de um laicismo moderno e
de uma completa laicização de toda a vida e de todas as relações e
costumes (Caderno 13, p. 1561).
Elemento fundamental para a vida do partido político é a unidade da
teoria e da prática. São os princípios da «filosofia da praxe» teorizados
por Marx no «Prefácio» de Para a Crítica da Economia Política. A «fi-
losofia da praxe», afirma Gramsci, deve constituir a perspetiva filosófi-
ca do partido, através da qual ele conseguirá analisar historicamente os
diversos aspetos da realidade, com o objetivo de a transformar.
Ponto que leva imediatamente a outra questão essencial: o discurso
sobre a figura dos intelectuais. A reflexão iniciada na «Questão Meri-
dional» acerca do papel do intelectual meridional, continua a ser apro-
fundada, de maneira sistemática, nos Cadernos. Para o autor, a questão
18 ANTONIO GRAMSCI
dos intelectuais é uma questão política e da maior importância, preci-
samente por eles serem os grandes responsáveis pela difusão do aspeto
cultural e ideológico.
Os Intelectuais
Gramsci dedica todo o Caderno XII, escrito em 1932 com o título
«Apontamentos e anotações dispersas para um conjunto de ensaios
sobre a história dos intelectuais», a esta temática. Analisando a «fun-
ção» do intelectual, o autor começa por reconhecer que qualquer pes-
soa é, dum certo modo, intelectual, dado que precisa, para qualquer
atividade sua, por mais humilde que seja, duma certa atividade inte-
lectual. Mas quanto à «função» exercida na sociedade, há, evidente-
mente, diferenças importantes: Gramsci considera intelectuais todos
os que têm uma função técnica ou diretiva, como os empresários, os
administradores, os políticos e também todos os «organizadores cultu-
rais», como os artistas e os estudiosos. Mas dentro deste grupo de inte-
lectuais, alguns devem assumir um papel específico. São os que
Gramsci define como «orgânicos» e que são os «funcionários» da
classe dominante. Este tipo de intelectual tem a responsabilidade de
«criar consenso», ou seja de levar as massas e também os outros inte-
lectuais a apoiar quem governa e detém o poder, fazendo aparecer o
consenso como «natural e espontâneo»11. O intelectual deve, em suma,
criar um processo retórico de persuasão e de consenso em ordem à
consolidação da classe que está a governar e da qual serve os interes-
ses específicos. Mas, avisa Gramsci, que estes intelectuais não tenham
a ilusão de serem independentes do poder. Eles são, ao contrário, ser-
vidores do poder, embora muitos de entre eles acreditem na sua inde-
pendência e liberdade.
Ao lado deste tipo de intelectual, existe outro tipo, que Gramsci de-
fine como «tradicional». São os intelectuais «herdados do passado» e
que expressam a cultura da velha formação social, ultrapassada agora
pela nova gestão do poder. Gramsci dá o exemplo do clero, categoria
intelectual ligada aos interesses da aristocracia da terra. Interessante
também a observação sobre a natureza do intelectual moderno, que já
11
Esta última observação gramsciana parece-nos de grande subtileza e modernidade,
já que antecipa todo o posterior discurso sobre «o mito como processo natural»,
elaborado, entre outros, nos anos 70, por Roland Barthes.
A CULTURA, OS SUBALTERNOS, A EDUCAÇÃO 19
não teria unicamente uma formação humanista e artística, mas tam-
bém tecnológica e prática, desligando-se cada vez mais da mera «elo-
quência», «criadora exterior e momentânea dos afetos e das paixões».
Mesmo assim, Gramsci reconhece o peso da conceção humanista clás-
sica, sem a qual o intelectual permaneceria unicamente um «especia-
lista» e não um «dirigente».
É evidente que quando Gramsci sai do discurso geral e entra no es-
pecífico, é ao intelectual «orgânico» progressista que se refere. Ou
seja, o intelectual que defende e que se põe ao serviço do bem de toda
a sociedade e que só nesta posição terá reais possibilidades de exercer
a sua hegemonia. O autor percebe claramente que se o proletariado e
os intelectuais orgânicos no poder do bloco histórico dirigente não
tiverem adquirido e assimilado todo o enorme conteúdo da cultura
burguesa pré-existente, nunca conseguirão sair da situação de subal-
ternidade. É uma luta difícil, mas é aqui que o papel dos intelectuais
se torna fundamental. A salientar também, como lembra Eugénio Ga-
rin, que «a revolta de Gramsci é contra a aceitação, de natureza positi-
vista, de uma cultura inferior, de nível mais baixo, para as classes tra-
balhadoras. A revolução prepara-se através dum resgate cultural, que
deve ser realizado ao nível mais alto»12.
Esta polémica antipositivista, continua Garin, é na realidade a de-
núncia, por parte de Gramsci, do caráter classista e burguês das ideo-
logias criadas pelo próprio positivismo, posição que reflete, com
evidência, a grande influência de Benedetto Croce na formação cul-
tural de Gramsci.
O filosofo napolitano Benedetto Croce, liberal e antifascista, in-
fluenciou fortemente a juventude intelectual de Gramsci, que mais
tarde, contudo, elabora uma crítica bastante radical e se distancia do
neoidealismo do seu mestre.
Croce é considerado por Gramsci como o primeiro grande teórico
democrático-burguês, que tem o grande mérito de ter percebido a impor-
tância da perspetiva ético-política no desenvolvimento da história. Croce
liberta o marxismo das interpretações meramente mecanicistas e positi-
vistas, voltando a colocar o ser humano como protagonista único da his-
tória. Mas, critica Gramsci, o historicismo crociano limita-se a uma fase
teológica-especulativa, focando a sua atenção sobre o «espírito humano»
12
Eugénio Garin, «La formazione di Gramsci e Croce», em Gramsci e la storia
d’Italia, Unicopli, Milano, 2008, p. 81.
20 ANTONIO GRAMSCI
mais do que sobre o homem como ser natural e social. A posição crocia-
na corresponde, dum ponto de vista político, a uma posição «reformista»,
insuficiente para uma real transformação da sociedade.
Mas, voltando à polémica sobre a alta e baixa cultura, a pretensão
de Gramsci não era que todos produzissem arte sublime como a de
Dante e Miguel Ângelo, mas que todos, do povo ao intelectual, pudes-
sem perceber e amar esta arte. Na cidade futura preconizada por
Gramsci, na cidade dos homens livres, a beleza e a bondade devem ser
iguais para todos. Gramsci escreve em L’Ordine bNuovo de 1919:
Não, o comunismo não apagará a beleza e a graça.
Gramsci critica o positivismo por considerar que ele se baseia nu-
ma premissa falsa: a de querer analisar a sociedade e o desenvol-
vimento histórico do ser humano usando a mesma metodologia das
ciências naturais, o que leva a um reducionismo falsamente científico.
A interpretação da sociedade deve ser mais profunda e complexa.
Gramsci afirma que é próprio de uma «infantilidade primitiva» consi-
derar todas as modificações da política e da ideologia como uma con-
sequência automática das modificações da estrutura económica. Re-
flexão que nos leva a aprofundar uma outra importante dicotomia
gramsciana: a da estrutura e da superestrutura.
A Estrutura e a Superestrutura
Como lembra John M. Cammett13, para Gramsci as forças materiais
constituem o conteúdo e as ideologias a forma, mas estes dois ele-
mentos são inseparáveis e inconcebíveis quando separados14. A sua
relação forma uma outra entidade, o «bloco histórico» que deve ter a
capacidade de governar. Mas, acrescenta Gramsci, uma sociedade
pode ser transformada só quando nela existam já as condições objeti-
vas e subjetivas para a sua superação, o que quer dizer que não há
nenhum determinismo passivo, mas, ao contrário, deve ser a esfera da
superestrutura a atuar concretamente para provocar esta transforma-
13
John M. Cammett, Antonio Gramsci e le origini del comunismo italiano, Mursia,
Milano, 1974, p. 256. 14
Assim como, para Saussure, o Signo era uma entidade composta por dois elemen-
tos inseparáveis: o Significante (Forma) e o Significado (Conteúdo).
A CULTURA, OS SUBALTERNOS, A EDUCAÇÃO 21
ção. É como se a superestrutura, neste caso, se transformasse em es-
trutura e agisse sobre a esfera profunda da sociedade. Um lugar espe-
cial tem a ciência, que é também, segundo Gramsci, uma superestrutu-
ra, mas específica, por ter um maior e mais durável efeito sobre a es-
trutura, principalmente a partir do século XVIII, quando foi dado à
ciência um lugar predominante sobre as outras atividades humanas.
Gramsci afirma igualmente que as superestruturas são uma realidade
objetiva e eficaz, embora não sejam o motor da história.15
Em relação ao difícil equilíbrio entre os dois planos, como esclarece
Kate Crehan16, Gramsci sintetiza o seu pensamento no texto «Análises
das situações: relações de força» (Caderno XIII), distinguindo entre
vários níveis, o primeiro que é o nível das «forças materiais de produ-
ção» e o segundo que é das forças políticas, que lutam por uma homo-
geneidade, autoconsciência e organização dos vários grupos sociais:
(Estes níveis) correspondem aos diversos momentos da consciência
política coletiva, tais como se manifestaram até agora na história.
O primeiro e mais elementar é o económico-corporativo (...); o se-
gundo é quando se chega à consciência da solidariedade de interes-
ses entre todos os membros do grupo social, mas ainda no campo
meramente económico (...); o terceiro é quando se chega à cons-
ciência de que os próprios interesses corporativos, no seu desen-
volvimento atual e futuro, superam o âmbito corporativo, mera-
mente económico, e podem e devem representar os interesses de
outros grupos subordinados. Esta é a fase mais abertamente políti-
ca, que marca a clara passagem da estrutura para a esfera das supe-
restruturas complexas. (Caderno XIII, pp. 583-4)
Os Subalternos
Na nossa seleção de textos, abordámos também uma temática grams-
ciana relativamente pouco desenvolvida, mais exatamente só a partir
dos anos 80: a temática dos Subalternos.
Gramsci dedica algumas páginas dos seus «cadernos especiais»
(Caderno XXV) ao conceito de subalterno, sob o título «Nas margens
da História: história dos grupos sociais subalternos». É um texto su-
15
Caderno IV, p. 436. 16
Kate Crehan, Gramsci, cultura e antropologia, Argo, Lecce, 2010, pp. 102-3.
22 ANTONIO GRAMSCI
mário e não sistemático, mas que se tornou, na década de 80, uma
referência fundamental para os teóricos da escola dos «Estudos Subal-
ternos», fundada por Ranajit Guha, juntamente com um grupo de so-
ciólogos e historiadores indianos que pretendiam reabrir o debate
acerca do colonialismo e do pós-colonialismo na Índia moderna.
O primeiro volume dos Subaltern Studies: Writings on South Asian
History, publicado por Guha em 1982, causou escândalo no mundo
académico indiano, constituído na altura por académicos defensores
do nacionalismo, quer abertamente de direita, quer pertencentes à es-
querda oficial. Mas, apesar, da hostilidade, a nova corrente afirmou-
-se, também devido ao interesse pelos Estudos Pós-coloniais que, ao
mesmo tempo, floresciam em muitas universidades americanas. Actual-
mente, os Estudos Subalternos já saíram dos “limites orientais”, para
abrangerem todos os grupos marginalizados pela história: as mulheres,
os exilados, os refugiados, as minorias étnicas, religiosas, linguísticas...
Posição que os aproxima novamente da matriz-mãe dos Estudos Pós-
-coloniais e da matriz ainda mais abrangente dos Estudos Culturais.
O interesse de Gramsci por esta temática é anterior à redação dos
Cadernos. Encontramos já importantes referências no seu texto sobre a
questão meridional, escrito antes da prisão. De facto, quando o autor
diz que o elemento distintivo dos subalternos é a sua «desagregação»,
reconhecemos esta ideia na definição que dá do Mezzogiorno italiano
como «uma grande desagregação social» e «uma grande massa cam-
ponesa amorfa e desagregada». Aqui Gramsci não utiliza a palavra
subalternos17, mas já apresenta o mesmo conceito de um sujeito derro-
tado e esquecido pela história.
Mais tarde, no Caderno XXV, analisa um curioso caso de crónica,
que interpreta como emblemático da situação subalterna do povo. É o
caso de David Lazzaretti, um anónimo cidadão italiano nascido numa
zona recôndita da Toscânia, que em 1868 se transformou num visioná-
rio religioso, fundando algumas congregações e colónias populares de
cariz comunista. Declarava ser o messias duma nova ordem moral e
17
Em relação à palavra «subalternos», alguns críticos, como, entre outros, Spivak,
sugerem que Gramsci com esta palavra entendia «proletariado», utilizando a ex-
pressão «subalternos» para escapar à censura fascista, que visionava os seus Ca-
dernos. Outros autores, como Buttigieg, dizem, ao contrário, que Gramsci com es-
ta expressão entendia um «grupo-classe» mais abrangente, que compreendia vários
elementos da sociedade, não só o proletariado e a classe operária.
A CULTURA, OS SUBALTERNOS, A EDUCAÇÃO 23
civil, com o objetivo de distribuir equitativamente as terras às popula-
ções. Em 1878, quando chefiava uma pacífica procissão popular, foi
morto brutalmente pela polícia, com uma bala na cabeça. Gramsci
estuda este acontecimento, analisando e contestando a reação dos in-
telectuais da altura, que ou descrevem o Lazzaretti como um louco,
ignorando totalmente o peso social e político do facto, ou então consi-
deram o episódio como um caso isolado, embora condenável. Nin-
guém analisou este caso como um exemplo dramático da ignorância
histórica em relação aos subalternos e da falta duma verídica narrativa
acerca deles. Escreve Gramsci:
Era este o costume cultural de então: em vez de estudar as origens
de um acontecimento coletivo, isolava-se o protagonista e limitava-
-se a traçar dele a biografia patológica, demasiadas vezes partindo
de motivações não seguras e diversamente interpretáveis: para uma
elite social, os elementos dos grupos subalternos têm sempre algo
de bárbaro e de patológico. (Caderno XXV, p. 2279)
Reflexão que, como escreve Joseph A. Buttigieg, constitui uma
importante intuição de Gramsci, o facto de que «uma das maiores
dificuldades dos grupos sociais subalternos no desafio contra a hege-
monia dominante é ultrapassar as barreiras que não lhes permitem
ser ouvidos»18.
Lembramos, a este propósito, o apelo da teórica indiana Gayatri Spi-
vak, quando se pergunta se o subalterno, e sobretudo o subalterno femi-
nino, pode efetivamente falar e fazer ouvir a sua voz. Escreve Spivak:
Consideramos agora as margens (poder-se-ia também dizer o cen-
tro silencioso e silenciado) do circuito caracterizado por esta vio-
lência epistémica: os camponeses e as camponesas analfabetos, os
aborígenes e as camadas mais baixas do subproletariado urbano
(...) Temos que enfrentar agora a pergunta seguinte: do outro lado
da divisão do trabalho internacional em relação ao capital sociali-
zado, no interior e no exterior da violência epistémica da lei e da
ordem imperialista sobre uma situação económica precedente, os
subalternos podem falar?19
18
Joseph A. Buttigieg, “Subalterno, Subalterni” em Dizionario Gramsciano, Carocci,
Roma, 2009. 19
Gayatri Spivak, Critica della ragione postcoloniale, Meltemi, Roma, 2004 p. 281.
24 ANTONIO GRAMSCI
A salientar também, sempre em relação ao caso Lazzaretti, uma
observação que Gramsci faz sobre o brigantaggio20 que alastra no
Mezzogiorno italiano a seguir à unificação nacional, entendendo com
esta palavra as revoltas populares, de caráter anárquico e violento,
provocadas pela miséria extrema das populações do sul. Gramsci es-
creve que «se tentavam esconder as causas do mal-estar geral que
existiam na Itália após 1870, explicando os episódios de explosão
deste mal-estar de forma restritiva, individual, folclorista, patológica,
etc. O mesmo acontecia, e em medida ainda maior, com o ‘brigan-
taggio’ meridional e das ilhas» (Caderno XXV, p. 2279).
Como foi referido, para Gramsci a característica principal dos
subalternos é a sua desagregação. Existem muitos grupos de subal-
ternos e não são todos iguais entre eles, têm uma natureza própria,
dividindo-se também em subgrupos com vários graus de subalterni-
dade. A falta de coesão e organização torna os subalternos impo-
tentes dum ponto de vista social e político, embora se assista a ex-
plosões «espontâneas» de revolta, mas que se não forem canali-
zadas, não terão qualquer resultado positivo. Para isso, precisa-
mente, a ação do partido é fundamental, para canalizar e organizar
esta espontaneidade.
Gramsci, e não podia ser diversamente, interessa-se também pelas
formas culturais próprias dos subalternos. Interessante, neste âmbito, o
seu estudo do folclore. Reconhece que o folclore não tem uma natureza
precisa e coerente, mas que se trata, antes, dum aglomerado de estilos e
de perspetivas diferentes, uns «farrapos culturais» que nos são histórica-
mente transmitidos apesar do silêncio a que estão condenados os grupos
marginais. Ele fala aqui de «documentos que são mutilados e contami-
nados», mas também por causa disso muito valiosos, observação que
preconiza já o conceito de «hibridismo cultural» próprio das temáticas
pós-modernas. O autor reconhece, como lembra Kate Crehan21, que a
cultura popular acaba por ser, como tudo, englobada pela cultura domi-
20
Hoje considera-se que foi do brigantaggio que começaram a surgir as organizações
mafiosas, tendo a sua origem nestas reivindicações populares e degenerando mais
tarde em associações criminais. Lembramos, a este propósito, a obra literária e ensa-
ística do escritor siciliano Leonardo Sciascia, que aprofundou esta temática, afir-
mando que sem a resolução da questão meridional a Itália nunca se tornaria um
grande país e que definia a Sicília como «uma grande metáfora» de toda a Itália. 21
Kate Crehan, Gramsci, Cultura e Antropologia, Argo, Roma, 2010, p. 117.
A CULTURA, OS SUBALTERNOS, A EDUCAÇÃO 25
nante, mas que, mesmo assim, ainda representa uma posição antagónica
ao poder oficial, constituindo o contraste não tanto entre modernos e
tradicionais, quanto entre dominadores e dominados.
A herança fecunda do pensamento gramsciano é recuperada, com
paixão e rigor, muitos anos mais tarde, nos finais dos anos 70, quando
autores como Said, Bhabha, Guha, Spivak, ou seja teóricos que vêm
do Oriente do planeta. O Oriente tão subalternizado historicamente ao
Ocidente e que começa, com o fim do colonialismo, a levantar a cabe-
ça e a «falar».
A sensibilidade pós-colonial enquadra-se na mais ampla perspetiva
dos Estudos Culturais, cuja origem remonta aos anos 50, no âmbito
das universidades inglesas de Leeds e de Birmingham. Lembramos,
entre outros, os nomes do anglo-jamaicano Stuart Hall, grande impul-
sionador dos Estudos, assim como de Mannheim e Polanyi.
Em 1978, Said abre o debate com o seu polémico Orientalismo,
onde defende a tese do mundo dividido em duas partes, a do coloniza-
dor e a do colonizado e do próprio conceito de «oriente» que seria só
uma construção cultural dos ocidentais. O caminho aberto por Said é
seguido, nos anos sucessivos, por estudiosos de relevo, sobretudo ori-
entais e anglo-saxónicos que consideram este campo como o duma
reflexão mais ampla sobre a globalização atual do planeta e as suas
problemáticas: migração maciça e desordenada de populações, con-
trastes culturais e religiosos, intolerância racial, marginalização.
Enquadrados nos mais abrangentes Estudos Pós-Coloniais, juntam-
-se a este coro de denúncias sociais e políticas as vozes dos Estudos
Subalternos de Guha22 que querem, como lembra Sandro Mezzadra23:
Rasgar a teia conceptual que a historiografia colonialista, mas a se-
guir também a nacionalista e grande parte da ‘marxista’, estendeu à
volta da experiência colonial, para revelar a complexidade de do-
mínio e resistência, de violência e insubordinação que constituíram
materialmente, a sua trama.
22
O historiador e economista indiano era residente na Austrália, ou seja num ambi-
ente cultural ocidental, como aliás a maioria dos membros dos Estudos Pós-
-coloniais e Subalternos, como Said, Bhabha e Spivak, todos residentes nos Esta-
dos Unidos. 23
Sandro Mezzadra, apresentação de Subaltern Studies: modernità e (post) colonia-
lismo, Ombre Corte, Verona, 2002, p. 10.
26 ANTONIO GRAMSCI
A posição de Guha é, como lembra Said, muito clara:
(Guha) parte da constatação que, até agora, a história indiana foi
escrita segundo uma perspetiva colonialista e elitista, enquanto a
maior parte da história indiana foi feita pelas classes subalternas,
daí a necessidade duma nova historiografia, precisamente a preco-
nizada pelos teóricos dos Estudos Subalternos24.
Trabalho não fácil, como lembra ainda Said, porque para fazer uma
história nova é preciso apresentar fontes novas e dignas de credibili-
dade, o que, evidentemente, nem sempre é possível. Said traça, igual-
mente, um panorama geral dos Estudos, focando as suas origens cultu-
rais, radicadas na escola do marxismo ocidental e nas correntes do
estruturalismo e do pós-estruturalismo. Começa, evidentemente, por
Gramsci, para depois mencionar nomes como Derrida, Foucault, Bar-
thes, e Althusser.
Os teóricos dos Estudos Subalternos utilizam e desenvolvem al-
guns conceitos gramscianos fundamentais.
Em primeiro lugar o conceito de hegemonia. Segundo Guha e com
referência à situação indiana, existe uma significativa diferença, no
que diz respeito à hegemonia, entre a metrópole colonizadora inglesa
e o território colonizado. No país colonizador, o governo exerce o seu
poder sobretudo através do consenso, embora haja também coerção,
enquanto na colónia é só através da mais dura coerção. É então um
«domínio sem hegemonia». Neste caso, segundo Gramsci, a luta deve
passar através dum maior desenvolvimento e organização da socie-
dade civil, contraposta à mais dominadora sociedade política.
O segundo ensinamento é que a história que nos é contada não é a
«verdadeira história» e que os modernos historiadores devem saber
ler e interpretar os fragmentos que nos chegam de forma mais oculta
e ambígua.
O terceiro é que a análise social e política não se deve basear uni-
camente em parâmetros temporais, mas também espaciais. Gramsci
introduz, de facto, no seu discurso os conceitos de Norte e Sul, de Leste
e Oeste e a partir destes trabalha e desenvolve as suas pesquisas, sem
nunca chegar a um maniqueísmo demasiado redutor e identificando as
24
E. Said, Introdução de Subaltern Studies: modernità e (post)colonialismo, Ombre
Corte, Verona, 2002, p. 19.
A CULTURA, OS SUBALTERNOS, A EDUCAÇÃO 27
contradições inerentes à mistura dos dois modelos, o industrial-desen-
volvido do norte e o agrário-subdesenvolvido do sul. Chega-se, assim,
como escreve Ian Chambers25, a um conceito original que mistura a
ideia de meridionalismo e de orientalismo, num cruzar-se de situações
culturais inovadoras. Chambers sugere também que o Mediterrâneo,
com a sua coexistência de elementos meridionais/setentrionais e oci-
dentais/orientais, pode tornar-se um laboratório onde conceitos como
democracia, liberdade e sociedade civil sejam debatidos segundo uma
perspetiva não unicamente ocidental e eurocêntrica.
Enquadrado na temática dos subalternos como «diversos» e margi-
nalizados, é o discurso gramsciano sobre o racismo. São breves anota-
ções que encontramos sobretudo nas Lettere dal Carcere, quando o
autor dialoga com a cunhada Tatiana que, como a sua mulher Júlia,
era de origem hebraica. Tatiana, que teve um papel importantíssimo,
pela sua coragem e dedicação, durante a prisão de Gramsci, escreve
contando a história de amor entre uma rapariga judia e um oficial aus-
tríaco. Embora apaixonados, os dois acabam por se separar, por per-
tencerem, e é esta a moral do filme, a «dois mundos» diferentes. Ta-
tiana concorda com este final e comenta-o numa carta. Gramsci res-
ponde imediatamente e com grande vigor:
Como podes acreditar que existam estes dois mundos? Esta é uma
maneira de pensar digna dos ‘Centoneri’26, do Klu-Klux-Klan
americano ou das cruzes gamadas alemãs (...) O filme é com cer-
teza de origem austríaca, é fruto do antissemitismo do pós-
-guerra27.
E poucos dias mais tarde, ainda comentando o filme com Tatiana e
sempre com referência aos judeus, escreve:
Em todo o caso, temos que perceber que muitas características que
parecem derivar da raça são, ao contrário, originárias da vida nos
25
Ian Chambers, “La sfida post-coloniale”, em Gramsci, le culture e il mondo,
Viella, Roma, 2009, p. 246. 26
Os Centoneri eram grupos de monárquicos que em 1905, na Rússia, atacavam
judeos e estudantes de esquerda 27
A.Gramsci, «Lettere dal Carcere», 13 de setembro de 1931, Einaudi, Torino, 1965,
p. 487.
28 ANTONIO GRAMSCI
guetos que foi imposta (aos judeus) nos vários países, tanto que um
judeu inglês não tem quase nada a ver com um judeu da Galiza28.
Para voltar a insistir, ainda sobre a questão da cultura e da raça:
Eu próprio não tenho nenhuma raça: o meu pai era de origem alba-
nesa recente (a família fugiu do Egipto após ou durante as guerras
de 1821 e logo se italianizou); a minha avó era uma Gonzalez e
descendia de alguma família ítalo-espanhola da Itália meridional (e
lá ficaram muitas destas famílias após o fim do domínio espanhol);
a minha mãe é sarda (...) No entanto, a minha cultura é fundamen-
talmente italiana e é este o meu mundo29.
Americanismo e Fordismo
O autor dedica à temática do Americanismo e Fordismo um caderno
especial, o Caderno XXII, onde sistematiza, como era seu hábito, pen-
samentos e anotações já presentes em cadernos precedentes. O seu
objetivo era refletir sobre uma questão que considerava da máxima
importância, a relação entre a Revolução Russa e o Ocidente capita-
lista, com o intuito de analisar uma possível «transição para o socia-
lismo» nos países ocidentais, segundo o modelo russo. Para isso,
Gramsci baseia-se no pouco material disponível na prisão: lê atenta-
mente, em tradução francesa, A minha vida e Hoje e Amanhã do in-
dustrial americano Ford; os romances Babbit de Sinclair Lewis e O
Petrólio de Upton Sinclair, juntamente com numerosos artigos de jor-
nais e revistas sobre a situação americana. Segundo a definição de
Giorgio Baratta: «O Americanismo representa, nos Cadernos, a di-
mensão ideológico-cultural ou ético-política assumida pelo modo de
produção capitalista contemporâneo a Gramsci, enquanto o Fordismo
representa a dimensão técnico-produtiva do mesmo período»30.
É uma temática nova, que fascina Gramsci, também por lhe permi-
tir alargar o seu discurso fora dos confins nacionais e assim interna-
cionalizá-lo. Trata-se duma reflexão profunda sobre a relação entre
28
Ibid., carta de 5 de outubro de 1931, p. 500. 29
Ibid., carta de 12 de outubro de 1931, p. 507. 30
Giorgio Baratta, “Americanismo”, em Dizionario Gramsciano, Carocci, Roma,
2009, p. 37.
A CULTURA, OS SUBALTERNOS, A EDUCAÇÃO 29
classe operária, intelectuais e progresso tecnológico. No texto são
analisados aspetos diversos da sociedade americana: o político, o cul-
tural, o tecnológico, o demográfico, o antropológico, para chegar a
uma opinião, aparentemente contraditória, ao mesmo tempo de admi-
ração e de crítica acerca do modelo americano.
Gramsci reconhece a novidade e a revolução realizada pelos ameri-
canos, onde o sistema capitalista aposta na estrutura económica e a
desenvolve a ritmo acelerado através duma tecnologia muito mais
avançada de que a europeia. O sistema fordista alia-se aqui ao taylo-
rismo, que promove, pela primeira vez nos anos 30, o trabalho em
cadeia de montagem, a mecanização alienante, mas altamente eficaz
da atividade humana. Gramsci aprecia a competência e a eficácia do
sistema, mas critica o pouco desenvolvimento da rede superestrutural
na sociedade americana. Na Europa, escreve, a situação é oposta: as
superestruturas culturais estão mais desenvolvidas, mas esmagador é o
peso do Estado, da burocracia e do parasitismo. O resultado é uma
sociedade europeia atrasada e estagnante, rica em «génios», mas pobre
em produção económica e em inovações tecnológicas.
Em relação ao taylorismo, é interessante observar que Gramsci utili-
za pela primeira vez esta expressão quando fala dos intelectuais: «Tam-
bém o intelectual é um ‘profissional’ que tem as suas ‘máquinas’ espe-
cializadas e o seu ‘estágio’, que tem um seu sistema Taylor» (Cader-
no I, p. 33), ou seja, não é só o operário na fábrica a suportar a alienação
da mecanização, mas também o intelectual. É evidente que aqui Grams-
ci se refere ao «intelectual orgânico», próprio do sistema capitalista, que
se comporta como um mero «funcionário» dos governantes, perdendo
aquela lucidez social e política que deveria fazê-lo agir para o bem de
toda a população e não duma única classe. O mesmo acontece com o
operário que, trabalhando na cadeia de montagem, pode transformar-se,
segundo as palavras de Taylor, num «gorila amestrado».
Continuando a sua reflexão, Gramsci põe em confronto a sociedade
americana e europeia, reconhece a supremacia europeia no campo
cultural, mas teme a «prepotência» americana no campo económico:
O problema é o seguinte: se a América, com o peso implacável da
sua produção económica (quer dizer, indiretamente) obrigará ou já
está a obrigar a Europa a uma mudança do seu eixo económico-
-social demasiado antiquado, o que teria acontecido na mesma,
mas com um ritmo mais lento, e que, ao contrário, agora se apre-
senta como um golpe da ‘prepotência’ americana. Ou seja, a ques-
30 ANTONIO GRAMSCI
tão é se estamos diante duma transformação das bases materiais da
civilização europeia, o que a longo prazo (e não muito longo, já
que atualmente é tudo mais rápido que no passado) levará a um
desmoronar da forma de civilização existente e ao nascimento for-
çado duma nova civilização. (Caderno XXII, pp. 2178-9)
A salientar também, e a relacionar com a ideia de «americanismo»,
o conceito gramsciano de «revolução passiva», já mencionada em
relação às lutas do Risorgimento.
Gramsci utiliza esta expressão em âmbitos diferentes, alargando e
desenvolvendo o conceito segundo a situação histórica considerada.
A expressão é utilizada pelo historiador Vincenzo Cuoco, quando ana-
lisa o período da Restauração e as transformações sucedidas na Itália
neste período histórico. Cuoco definiu estas mudanças político-sociais
como próprias duma «revolução passiva», precisamente para as dis-
tinguir duma revolução ativa e violenta, que Gramsci chama «revolu-
ção política de tipo radical-jacobino». Voltando ao exemplo do Risor-
gimento, neste caso houve uma «revolução» que caiu do alto das ins-
tâncias políticas, mas sem uma verdadeira participação popular. Dois
aspetos fundamentais caracterizam uma “revolução passiva”: a trans-
formação molecular das forças políticas derrotadas através duma ope-
ração hegemónica da parte do grupo dominante.
Gramsci aplica este conceito também à sociedade americana. Na
sua opinião, esta é igualmente uma situação de passividade da parte
dos trabalhadores, mas desta vez é um tipo de passividade diferente: a
coerção, em vez de chegar do alto das superestruturas, chega de baixo,
do sistema económico. O sistema de produção é tão esmagador que a
própria vida pessoal, familiar e sexual do indivíduo sofre uma modifi-
cação que ele não consegue controlar. É-lhe imposta e é suportada
passivamente.
Gramsci e a América Latina
Nos Cadernos, Gramsci começa por refletir sobre a realidade da “Amé-
rica”, entendendo com este termo os Estados Unidos. A América é vista
como uma contra-figura da Europa, não como uma nova civilização,
mas “um prolongamento e uma intensificação da civilização europeia,
que assumiu determinados aspetos no ambiente americano.” Gramsci
admira a intensidade de trabalho de que são capazes os dirigentes e os
trabalhadores americanos, considerando o fenómeno americano de
A CULTURA, OS SUBALTERNOS, A EDUCAÇÃO 31
grande interesse, por ser capaz de criar com enorme rapidez um tipo
novo de trabalhador e de ser humano. O aspeto negativo, porém, é o da
passividade social cada vez mais ampla e da ausência, por isso, de lutas
de classe. Como refere Barata, um segundo aspeto negativo reside na
falta de “intelectuais tradicionais”, embora se assista, e isso é positivo,
ao nascer duma classe de intelectuais negros que se impõem através da
assimilação da cultura e das técnicas americanas.
Em relação à América Latina, Gramsci não escreve muito, mas as
suas reflexões são, infelizmente, de uma surpreendente atualidade e
poderiam ser aplicadas facilmente à realidade contemporânea.
Como refere ainda Barata, Gramsci sublinha a diversidade que
existe entre as grande cidades da costa e o interior, extremamente po-
bre e atrasado. Observa também como esta situação de subdesenvol-
vimento é fomentada pelos Estados Unidos, que incentivam a política
de emigração e criam organismos de controle, ligados à Igreja e ao
sistema bancário. Não é melhor a situação das superestruturas, quase
inexistentes e sobretudo é muito débil o papel dos intelectuais, quase
sempre de tipo rural e demasiado ligados ao clero e aos militares. Em
definitivo, nestes países o elemento laico e burguês ainda não venceu
as forças clericais e militares, com o apoio dos quais funciona a maio-
ria dos governos.
Escreve Gramsci, no Caderno I:
É interessante observar esta contradição que existe na América do
Sul entre o mundo moderno das grandes cidades comerciais da cos-
ta e o primitivismo do interior (…). O jesuitismo é um progresso
em comparação à idolatria, mas é um obstáculo para o desen-
volvimento da civilização moderna representadas pelas cidades li-
torâneas: serve como instrumento de governo para dominar as pe-
quenas oligarquias tradicionais, que não lutam suficientemente.
O pensamento de Gramsci alcançou uma grande difusão nos países
da América Latina a partir das décadas de 60 e 70, curiosamente ao
contrário do que acontecia na Itália, onde o interesse por Gramsci co-
meçou a declinar exatamente nesse período, para depois recomeçar a
afirmar-se nos anos 90.
O teórico italiano começou a ser conhecido em muitos países do
continente, como Cuba, Brasil, Argentina, México, Chile e Uruguay. Os
textos foram traduzidos, estudados, debatidos, circulando às vezes clan-
destinamente, quando as ditaduras militares já tinham tomado o poder.
32 ANTONIO GRAMSCI
Na “tradução” latino-americana das teorias gramscianas, o maior re-
levo foi dado às categorias da hegemonia, do Estado alargado, da revo-
lução passiva e da dicotomia oriente/ocidente. Conceitos que são, com
certeza, os mais pertinentes no contexto da realidade sul-americana.
Partimos da dicotomia oriente/ocidente, que nos parece a mais cla-
ra para evidenciarmos a aplicação das teorias gramscianas ao universo
dos países latino-americanos.
Quando Gramsci utiliza os termos oriente e ocidente não é só no
sentido geográfico, mas também socio-político e histórico. O mundo
ocidental corresponde ao mundo desenvolvido, onde o capitalismo
está bem implantado e onde a riqueza existe, embora distribuída dife-
rentemente por classes sociais. Mas dentro do bloco ocidental, distin-
guem-se dois ocidentes, um de primeira e um de segunda categoria,
este último definido como “periférico”. O periférico, entre os quais
Gramsci classifica também a Itália, tem características diferentes, ou
seja o seu “Estado alargado”, que consiste numa profícua relação entre
sociedade política e sociedade civil, é pouco desenvolvido.
No bloco ocidental a hegemonia entre o governo e os governados é
mais fácil e a coerção menor, pelo contrário no bloco oriental, mais
pobre e menos desenvolvido, o distanciamento entre sociedade políti-
ca e civil é enorme, daí uma menor hegemonia e uma maior coerção.
Os teóricos latino-americanos preferem colocar os seus países não na
esfera do oriente, mas na categoria do ocidente de segunda classe. Os
argentinos Portantiero e Aricó, por exemplo, encontram grande corres-
pondências entre o ocidente mais pobre e os países sul-americanos.
Quando Portantiero cita a descrição que Gramsci faz da sociedade
italiana, é com a intenção de a comparar à situação do seu país.
Escreve Portantiero:
A obra de Gramsci consistia, na verdade, num estudo sociológico
sobre a sociedade italiana. (…) Uma sociedade complexa, mas de-
sarticulada, atravessada por uma profunda crise estatal, no seu sen-
tido integral, marcada por um desenvolvimento económico desi-
gual e sobre a qual o fascismo, a partir de uma derrota catastrófica
do movimento operário e popular, tentou reconstruir, via Estado, a
unidade das classes dominantes e desagregar a vontade política das
A CULTURA, OS SUBALTERNOS, A EDUCAÇÃO 33
classes populares, num movimento convergente com um processo
de centralização do capitalismo que se operava na economia31
E a dicotomia oriente/ocidente corresponde à outra, analisada fre-
quentemente por Gramsci, a da relação entre sul e norte.
Como explica Chambers, quando afirma que “existe hoje um pro-
fundo cruzamento entre meridionalismo e orientalismo, sobretudo
agora que a questão meridional se estendeu a nível planetário (…)
Pensar no Estado e na sociedade civil, na questão da democracia e da
liberdade, nesta modernidade múltipla e mundializada, quer dizer re-
conhecer que o Ocidente já não representa a medida do mundo”32
Segundo Aricó, a referência a Gramsci é evidente também quando
falamos dos intelectuais. Nos países da América Latina, baseados nu-
ma reprodução, mais ou menos acentuada, da relação colonizador/co-
lonizado, a figura do intelectual, que já não se limita ao clero e aos
militares como antigamente, é, contudo, ainda extremamente frágil e
ainda muitas vezes subordinada às instituições políticas.
Reflexões que nos levam a outra categoria, a de revolução passiva,
ou melhor, segundo a definição de Gramsci, a uma “revolução sem
revolução”.
Como já foi mencionado na presente introdução, Gramsci toma es-
te conceito do historiador Vincenzo Cuoco e serve-se dele para ana-
lisar o Risorgimento italiano, isto é o conjunto das lutas político-
-diplomáticas que levaram, nos finais do século XIX, à unificação da
Itália e ao surgir do moderno Estado burguês italiano.
Como lembra Coutinho, Gramsci aponta duas consequências prin-
cipais da revolução passiva:
Por um lado, o Estado fortalece-se à revelia da sociedade civil,
provocando o predomínio das formas ditatoriais de poder contra
as formas hegemónicas; por outro, cria a prática do “transfor-
mismo” como modalidade de desenvolvimento histórico, um pro-
cesso que, ao decapitar as representações políticas e culturais das
31
Juan Carlos Portantiero, Gramsci para latinoamericanos, em “Gramsci e la politi-
ca”, Cidade do México, UNAM, p. 36. 32
Iain Chambers, O desafio pós-colonial, em “Gramsci, le culture e il mondo”, Ro-
ma, Viella, 2009
34 ANTONIO GRAMSCI
massas populares, procura exclui-las de qualquer efetivo protago-
nismo histórico33
Os teóricos sul-americanos, como Aricó na Argentina e Coutinho no
Brasil, consideram, justamente, que esta revolução que vem “do alto” e
que não tem o povo como protagonista, é perfeitamente aplicável à situa-
ção da América Latina. A categoria de “revolução passiva” é, assim, con-
siderada um importante critério de interpretação do percurso socio-
-político destes países e da passagem do pre-capitalismo ao capitalismo
atual. É igualmente importante, segundo os teóricos, para compreen-
dermos o fenómeno do populismo, imperante hoje em dia a nível global.
Concluímos esta temática lembrando o nome do pensador e revolu-
cionário peruano José Carlos Mariátegui.
Mariátegui nasceu em 1894 no sul do Peru, numa zona agrícola e
indígena, terra di mineiros. De família humilde, teve que interromper
os estudos muito cedo, também por um acidente que lhe feriu grave-
mente uma perna, mais tarde amputada. Apesar das dificuldades eco-
nómicas e de saúde, o jovem Mariétgui conseguiu iniciar una carreira
de jornalista, em Lima, fundando, em 1919, o jornal “La Razón”. Per-
seguido pelas suas ideias revolucionárias, foi obrigado a exilar-se para
Itália do norte, onde viveu alguns anos.
Contemporâneo de Gramsci, embora nunca o chegasse a conhecer,
seguiu os movimentos operários de Turim, a ocupação das fábricas e a
organização dos “Conselhos de Fábrica”, idealizados pelo teórico italia-
no. Nos seu escritos, dos quais o mais importante é “Sete ensaios de
interpretação sobre a realidade peruana”, revela a grande admiração que
tinha por Gramsci e o enorme interesse com que acompanhava a vida
política italiana daqueles anos.
Regressado ao Peru, está entre os principais fundadores, em 1928, do
Partido Socialista Peruano e da Confederação Geral dos Trabalhadores
Peruanos, mas entra rapidamente em contraste com os dirigentes da
International Comunista e é cedo marginalizado. A questão nacional e a
sua posição sobre os problemas raciais no Peru provocam este afasta-
mento, agravado pelo piorar do seu estado de saúde. Em 1930, hospita-
lizado de urgência em Lima, morre, aos trinta e seis anos de idade. Um
33
Carlos Nelson Coutinho, Il pensiero politico di Gramsci, Milano, Unicopli, 2006,
pag.124
A CULTURA, OS SUBALTERNOS, A EDUCAÇÃO 35
mês após a sua morte, os dirigentes do partido que Mariátegui tinha
criado resolveram mudar o nome em Partido Comunista Peruano.
A própria biografia de Marátegui remete imediatamente para a fi-
gura de Gramsci. Ambos pobres, mas de coragem e inteligência supe-
riores, ambos marginalizados pela estrutura partidária e perseguidos
pelas instituições, ambos, ainda jovens, tragicamente desaparecidos.
Nos seus Ensaios, escreve Mariátegui:
A classe dos proprietários terreiros não conseguiu tornar-se uma
burguesia capitalista, dona da economia nacional. Minas, comér-
cio, transportes, estão nas mãos do capital estrangeiro: os latifun-
diários limitam-se a o servir como intermediários na produção do
algodão e do açúcar. Este sistema económico manteve a agricultura
numa condição semi-feudal, o que constitui o estorvo mais grave
no desenvolvimento do país.34
Segundo Aricó, os dois teóricos Gramsci e Marátegui, estão pro-
fundamente ligados, sobretudo pelas suas interpretações originais e
inovadores do marxismo, em como teorizam um marxismo que deve
ser enraizado nas diversas realidades nacionais e concretizado através
de uma prática teórico política diferenciada em cada país. Mas não só,
as suas vidas e as suas obras são emblemáticas, símbolos da procura
incessante de uma sociedade justa e humana. São uma luz que conti-
nua acesa até aos nossos dias.
A Educação
Gramsci percebeu com grande clareza o nexo que liga a Pedagogia à
Política, considerando a Pedagogia e todos os aspetos ligados à Edu-
cação como parte integrante das Ciências Sociais e Humanas.
Para chegar ao “consenso”, ou seja ao acordo e colaboração entre
governantes e povo, consequentemente à realização do “bloco históri-
co”, é preciso formar, diz Gramsci, uma sólida classe intelectual e
investir fortemente na educação. A política assume, assim, uma forte
valência pedagógica e afirma-se a grande importância da cultura. Uma
cultura que será democrática, património de todos e impulsionada pela
34
Citado em José Pereira, Mariátegui e la Rivoluzione Permanente, www.marxist.
com/mariategui-e-la-rivoluzione-permanente.
36 ANTONIO GRAMSCI
figura do intelectual “orgânico”, funcionário do moderno Príncipe,
que é o partido dominante.
Só através deste percurso, ao mesmo tempo político e pedagógico,
se poderá chegar à concretização da hegemonia e do humanismo, que
são a negação e a inversão do capitalismo.
Quando Gramsci escreve, a escola italiana é regulamentada pela ve-
lha reforma Casati, que será a seguir substituída pela reforma Gentile,
dominante durante o período fascista. Gramsci nos seus Cadernos, e
sobretudo no Caderno XII, posiciona-se claramente contra a reforma
Gentile, defendendo em parte a velha reforma Casati que, embora con-
servadora, não separava tão drasticamente o aspeto instrutivo do educa-
tivo, o cultural do manual/profissional.
A pedagogia idealista de Gentile tem, segundo Gramsci, uma natu-
reza anti-democrática, pois acentua a fratura entre a escola primária e
secundária, dum lado, e o ensino superior universitário do outro. A es-
cola gentiliana configura um aluno passivo e pouco interessado pelas
disciplinas que não correspondem à vida real e que são ministradas por
professores medíocres que, no máximo, irão instruir os alunos, mas
raramente educá-los.
A escola teorizada por Gramsci é uma escola “única e ativa”, se-
gundo um modelo educativo que interliga a atividade inteletual com a
manual, através da ética do trabalho e da profissionalização. A escola
deve ser formativa, criativa e sobretudo “desinteressada”.
Esta última exigência é muito importante para Gramsci. Ele consi-
dera que, pelo menos na primeira fase da escolaridade, as disciplinas
não devem ter finalidades práticas ou ligações com o mundo do tra-
balho, mas devem ser ensinadas pelos seus conteúdos culturais e por
contribuir para a formação intelectual do aluno, como acontece, por
exemplo, com os estudos dos clássicos.
Uma outra reflexão interessante relaciona-se com o conceito de “es-
pontaneidade”: segundo Gramsci, o aluno deve ser livre, ma não “espon-
tâneo”, como, ao contrário, pretende a pedagogia liberal da reforma Gen-
tile. A “espontaneidade” parece um símbolo de liberdade, mas na realida-
de é sujeita à manipulação ideológica do docente sobre o discente.
Ou seja, na escola tem que haver algum tipo de coerção, conceito que não tem, pelo menos a nível pedagógico, uma conotação negativa. É uma “coerção de tipo novo”, entendida sobretudo como algo que provém da consciência e da autodisciplina do aluno. A coerção brutal e mecânica, que Gramsci atribui ao modelo de ensino jesuítico, é recusada clara-
A CULTURA, OS SUBALTERNOS, A EDUCAÇÃO 37
mente, mas sem esquecer que “até estudar é um trabalho e às vezes muito duro”. Um trabalho que se deve cumprir com seriedade e rigor.
A destacar também o pensamento de Gramsci sobre o conceito de cul-tura: o autor já teoriza uma distinção entre cultura alta e cultura baixa, de elite e popular, afirmando que não deve existir esta distinção e que a cul-tura popular dever ter a mesma dignidade da cultura académica.
Gramsci critica, aliás, abertamente a dita cultura alta italiana, acu-
sando-a de ser retórica, burocrática e jesuítica e sobretudo extrema-
mente afastada do povo. Só através da “pedagogia da praxe”, que quer
aliar o saber intelectual ao prático, será possível chegar a uma cultura
democrática verdadeiramente nacional e educativa.
Lembramos também que a dita cultura baixa, o folclore, é analisada
por Gramsci em sentido positivo: o folclore não tem só expressões
pitorescas e de pouco nível artístico, como se pensa habitualmente,
mas corresponde a uma determinada “visão do mundo” própria das
classes populares e como tal tem que ser interpretada e considerada.
Quanto ao ensino universitário, Gramsci é bastante crítico em rela-
ção à universidade do seu tempo, que é ainda uma instituição de elite
para uma elite. O modelo de “escola única” gramsciana está ainda
muito longe da realidade. Na universidade não se devem apreender só
noções, mas sobretudo uma “metodologia de estudo e de vida”, muitas
vezes inexistente nos cursos superiores, onde o professor mal conhece
os alunos no fim do curso. Gramsci até se pergunta: na universidade
deve-se estudar ou estudar para saber estudar?
Concluímos a análise desta temática com as observações de Gramsci sobre a difícil relação entre Estado e Igreja. Na organização escolar italiana, imposta pela reforma Gentile, a responsabilidade mo-ral do ensino primário e secundário passa maioritariamente pelos insti-tutos religiosos, enquanto para o ensino universitário há uma divisão entre intelectuais laicos e as primeiras universidades católicas. Mas, reflete Gramsci, isto acontece por se considerar que as classes mais baixas, do povo e da pequena burguesia, nunca chegarão ao nível uni-versitário, ficando marginalizadas e “monopolizadas dum ponto de vista educativo”. Ao mesmo tempo, é-lhes imposta a educação religio-sa até à idade adulta, facto contraditório, já que o espírito da reforma Gentile defende uma visão laica do ensino.
A idealizada escola gramsciana, deveria, ao contrário, substituir es-ta hegemonia religiosa, na tentativa de elevar o nível cultural das clas-ses mais baixas, com o objetivo de chegar a um “bloco cultural” onde forças populares e intelectuais possam dialogar positivamente.
38 ANTONIO GRAMSCI
A atualidade de Gramsci
Para falarmos da atualidade gramsciana, lembramos as palavras de Stuart Hall. Segundo o teórico, não é nas teorias de Gramsci que en-contraremos as respostas às tantas e dramáticas questões da nossa con-temporaneidade, mas é no seu “método” que as poderemos encontrar. Que é, diz Stuart Hall, um método hermenêutico, não dogmático, glo-bal e, sobretudo, político.
Na nossa global atualidade, “economicista”, é importante lembrar a
lição de Gramsci, que defende abertamente a centralidade da Política e
da Cultura, ou seja da superestrutura. O teórico recusa a hipótese de
que a superestrutura seja um simples reflexo determinado mecanica e
passivamente pela subjacente estrutura económica. Trata-se, ao con-
trário, de uma relação recíproca, que permite também aos elementos
superestruturais influenciar os estruturais. Esta posição anti-determi-
nística é de grande interesse e permite teorizar uma “relativa” auto-
nomia dos fenómenos culturais.
Cultura relacionada fortemente com o discurso político e, de facto,
como lembra Coutinho, entre os marxistas do seu tempo Gramsci foi
provavelmente o único a utilizar positivamente o termo “ciência polí-
tica”, relacionando esta ciência com a filosofia da praxe, isto é com o
marxismo. “Tudo é política”, como afirma muitas vezes nos Cader-
nos: a filosofia, a história, todos os fenómenos culturais que preen-
chem a vida dos seres humanos.
Assim, podemos considerar que a primeira herança gramsciana é ter percebido a centralidade da política e da cultura na construção de uma sociedade justa, posição que vai contra-corrente em relação ao que Gramsci define criticamente como “marxismo soviético”. E da qual deriva o conceito de “bloco histórico”, que acontece justamente quando se concretiza a união entre estrutura económica e produtiva e a superestrutura política, jurídica, ideológica, cultural em sentido lato.
A segunda herança é a dimensão universal do seu pensamento, que vai muito para além dos confins nacionais italianos, para, mais uma vez pro-feticamente, chegar a uma dimensão que hoje definiríamos de globaliza-da. Estamos a referir-nos à sua reflexão sobre o americanismo, ao concei-to de subalterno, à questão racial e ao conceito de “revolução passiva”.
A terceira, segundo a análise de Fusaro, é que com Gramsci redes-cobrimos o sentido da “historicidade”, que tinha sido posta em discus-são com as vagas do pós-modernismo. Para o teórico, é dentro do con-texto histórico que o ser humano se compreende como indivíduo e
A CULTURA, OS SUBALTERNOS, A EDUCAÇÃO 39
como sujeito coletivo e sobretudo é dentro da História que assistimos ao permanente esforço da inteligência humana no seu trabalho de jus-tiça e liberdade.
Temáticas, como é evidente, de grande modernidade e pertinência para a nossa contemporaneidade e que fazem sair Gramsci dos restri-tos horizontes eurocêntricos.
A presente antologia quer ser um reflexo, embora não exaustivo, de
todo este pensamento verdadeiramente universal e verdadeiramente contemporâneo.
O primeiro capítulo é dedicado à Cultura num sentido muito am-plo: reflexões sobre a linguística, a filosofia, os costumes, a sociedade, para depois entrar em campos mais específicos, como a hegemonia, a relação entre estrutura e superestrutura, o conceito de nacional-popular e terminar com algumas críticas de teatro, escritas por um jovem Gramsci jornalista brilhante, poucos anos antes da sua prisão.
O segundo capítulo é inteiramente dedicado à temática dos Inte-lectuais, partindo da especificidade dos intelectuais italianos, para chegar a um discurso mais abrangente sobre a complexa tipologia da figura do Intelectual.
O terceiro capítulo, sempre a partir da “questão meridional” italia-na, aborda a temática da relação mundial entre Norte e Sul e a figura dos Subalternos.
O quarto capítulo analisa a temática da Pedagogia e da Educação.