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TÉCNICAS CORPORAIS DO GAÚCHO:
DA “LIDE” AO TREINAMENTO DO ATOR/DANÇARINO
INÊS ALCARAZ MAROCCO
CARINA NINOW
FELIPE VIEIRA
LESLEY BERNARDI
MAICO SILVEIRA
MARIANA MANTOVANI
Introdução
INÊS ALCARAZ MAROCCO
A partir de 2001 iniciamos com um grupo de alunos/atores1 a pesquisa intitulada
“As técnicas corporais do gaúcho e sua relação com a performance do ator/dançarino” a
qual tinha como objetivo criar um Sistema de Treinamento para desenvolver a presença
física do ator /dançarino tendo como fundamento as atividades da lide campeira. É
interessante voltar no tempo para entender o porquê do interesse em trabalhar com as
técnicas corporais do gaúcho campeiro. Em 1989, realizei juntamente com uma equipe
de professores e alunos do Dep. De Artes Cênicas da UFSM2 que constituíam o grupo
TEU (Teatro Experimental Universitário), uma montagem tendo em vista o convite para
participar do II Festival Internacional de Teatro Universitário de Marrocos. Nós
queríamos mostrar um espetáculo sobre nossa cultura e apresentar assim aos
marroquinos a diversidade cultural do Brasil. O trabalho de criação do espetáculo
intitulado Manantiais durou um ano e nos fez descobrir que dispomos de um material
muito rico para a reflexão teórica sobre as práticas espetaculares da cultura gauchesca.
Percebi que esta cultura apresentava, além dos aspectos folclóricos de grande valor,
técnicas corporais específicas ligadas à prática de criação do gado. Meu interesse pelo
desenvolvimento de um trabalho teórico sobre a dimensão corporal da cultura do
gaúcho nasceu precisamente durante o processo de criação artística, no qual nós
havíamos solicitado a um gaúcho especialista do laço que fizesse uma demonstração
técnica de sua arte. Eu fiquei então atraída pela precisão dos movimentos que ele dava à
corda, além de sua presença física impressionante. Percebi que seus movimentos tinham
a mesma qualidade da dos atores/dançarinos que treinam segundo os princípios da
Antropologia Teatral de Eugênio Braba, para obter uma forte presença física sobre a
1 O primeiro grupo foi composto pelos alunos do curso de Artes Cênicas do Departamento de Arte
Dramática da UFRGS: Andressa Cantergiani de Oliveira, Carla Tosta, Cristina Kessler, Daniel Colin,
Elisa Lucas e o profissional formado pelo curso de Artes Cênicas da UFSM, Luiz Antônio Texeira dos
Santos. 2 Universidade Federal de Santa Maria que se situa na cidade de Santa Maria, no Rio Grande do Sul.
cena. Estas reflexões e conclusões teóricas sobre a questão do espetacular na cultura
gaúcha geraram uma tese de doutorado3 assim como a realização desta pesquisa prática
na criação de um Sistema de Treinamento para o ator/dançarino a partir de técnicas
corporais de sua própria cultura.
Depois da realização do trabalho de tese e trabalhando em Porto Alegre no Dep.
De Arte Dramática da UFRGS, iniciei a pesquisa prática sobre as técnicas corporais do
gaúcho campeiro. Para este trabalho, fizemos uma pesquisa de campo em uma fazenda4
em Caçapava do Sul, região da Campanha do Rio Grande do Sul. A escolha dessa
fazenda se deu ao fato de que nela são mantidas as atividades rústicas da lide. Nesta
fazenda, os alunos assistiram algumas atividades de lide campeira realizadas pelos
peões, tais como o laçar e o pealar,5 a tosquia
6 e, depois desta observação, reproduziram
as mesmas. Outras atividades que chamaram a atenção dos alunos formam as dos peões
colocando o gado no tronco7 para a vacina e banho assim como a das mulheres ao
preparar a carne para fazer a linguiça e tirar o leite da vaca. Assistiram também a uma
festa campeira onde puderam apreciar o gaúcho campeiro realizando quase todas as
atividades de lide numa situação competitiva diante de um público. Uma das atividades
que mais atraiu o olhar do grupo foi a atividade de ginetear8. Retornando à Porto
Alegre, desenvolveram a criação do Sistema, que constituiu em reproduzir as ações das
atividades escolhidas pelas suas densidades dramáticas com seus obstáculos e
3 A tese de doutorado intitulada Le geste spetaculaire dans la culture gaúcha du Rio Grande do Sul-Brésil
sob a orientação do Prof. Dr. Jean-Marie Pradier, foi realizada na Université de Paris 8 − Saint-Denis, no
período de 1992 a 1996. 4 A fazenda Çoita Cavalo onde fomos fazer a nossa pesquisa é de propriedade das senhoras Adélia
Machado e Laís Cardoso. 5 O pealar consiste na atividade de laçar o animal pelas patas. Esta atividade está em extinção.
6 A atividade da tosquia, no sentido mais rústico, corresponde a tirar a lã da ovelha com uma tesoura que
não machuca o animal. Esta maneira de tirar a lã da ovelha também está em extinção, pois atualmente se
faz a mesma coisa com máquina elétrica. 7 Tronco, segundo o Dicionário de Regionalismos do Rio Grande do Sul de Zeno e Rui Cardoso Nunes,
“é um corredor estreito, junto à mangueira no qual se faz entrarem os animais vacuns e cavalares que vão
ser marcados, tosados, etc.”. Denominamos tronco à sequencia de movimentos que é composta de
fragmentos de diferentes partituras, a da ação mesma de colocar o gado no tronco, a de pealar, a de laçar e
a de tosquiar. Dicionário de Regionalismos do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Martins Livreiro-Editor,
1993. 8 A ação de ginetear constitui uma das fases da doma do cavalo chucro em que o ginete (peão especialista
na doma) tenta dominá-lo, montando-o sem utilizar dos arreios (conjunto de peças com que se arreia um
cavalo para montar). Definição retirada do Dicionário de Regionalismos do Rio Grande do Sul de Zeno e
Rui Cardoso Nunes.
resistências, separando, enumerando e codificando-as9 em novas sequencias de ações,
constituindo as partituras.
Criado este sistema de treinamento pelos estudantes, passamos para uma
segunda fase da pesquisa, que foi a de verificar a eficácia deste no desenvolvimento de
uma criação artística. Depois de oito meses de processo de criação artística, o resultado
foi o espetáculo O Nariz10
adaptação do conto homônimo de Nicolai Gógol, espetáculo
que participou de vários festivais de teatro, em São Paulo, Santa Catariana e no Rio
Grande do Sul.
Os resultados de todas as fases da pesquisa forma demonstrados em Salões de
Iniciação Científica e Congressos de Artes Cênicas11
por fazerem parte do contrato
acadêmico, uma vez que a pesquisa de realiza na universidade e recebe bolsas para isso.
A partir de 2002, começamos a fazer parte do Projeto “Fronteiras Culturais (Brasil –
Uruguai – Argentina)” doo Celpcyro12
através da participação do grupo nos encontros e
simpósios que acontecem anualmente com demonstrações dos resultados da pesquisa. O
diálogo que estamos desenvolvendo junto ao grupo de criadores e pesquisadores que se
dedicam à cultura fronteiriça do Rio Grande do Sul está sendo muito profícuo, pois
9 Para Eugênio Barba [...], “podemos considerar a codificação (estabelecer o código dos gestos, das poses,
dos movimentos) como a passagem de uma técnica cotidiana a uma técnica extracotidiana através de um
equivalente (Princípio de equivalência)”. Este texto foi retirado do capítulo “Mains qui parlent”, de
Anatomine de l’acteur. Um dictionnaire d’Anthropologie Théâtrale de Eugênio Barba & Nicola
Savarese, Cazilhac-Roma-Holstebro: Bouffonneries Contrastes-Zeami-Libri-International School of
Theatre Antropology, 1985, p.88. A expressão princípio de equivalência, segundo Barba, pode ser
definida pela seguinte situação concreta “Quando empurramos alguma coisa na realidade o peso do corpo
se reparte normalmente entre a perna de trás e os braços que empurram [...] Quando é o mimo «que
empurra» o esforço não pode acontecer da mesma maneira pois a ausência do peso concreto leva ao
desaparecimento de uma das duas bases de apoio. [...] A equivalência é o contrário da imitação, reproduz
a realidade através de um novo sistema: a tensão do gesto fica mais deslocado numa outra parte do corpo.
Neste caso a força se desloca dos braços para a perna da frente dobrada que se apoia no chão [...] É a
pressão desta perna no chão e não mais dos braços que dá conta do esforço concreto” . Do capítulo
“Principe de l’équivalence” ibidem, p.64. 10
O texto escrito em 1836, conta uma história que se passa numa pequena cidade da Rússia, onde mora
Kovalióv, um homem vaidoso que se autodenomina major e numa manhã ao acordar percebe ter perdido
o seu nariz. À medida que a trama se desenvolve, acontecimentos estranhos vão se sucedendo, como a
aparição do nariz de Kovalióv fardado como conselheiro do estado. Este estranho acontecimento serve de
cenário para traçar um panorama de uma sociedade hipócrita e burocrática, onde todos controlam a vida
de todos e o que importa não é ser, mas aparentar. 11
Os resultados da pesquisa têm sido apresentados em todos os salões de iniciação científica da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul desde 2001, além dos Congressos Brasileiros de Pesquisa e
Pós Graduação em Artes Cênicas que se realizam a cada dois anos. 12
Centro de Estudos de Literatura e Psicanálise Cyro Martins, sob a direção de Maria Helena Martins em
Porto Alegre.
além de termos acesso à diferentes abordagens por eles realizadas sobre o assunto,
podemos testar a investigação e o treinamento que estamos desenvolvendo para um
público especialista na cultura pampiana.
Atualmente, nos encontramos na terceira fase da pesquisa, que se constitui na
verificação da eficácia do sistema criado em alunos/atores cujos corpos não haviam
passado por um sistema de treinamento. Para desenvolver esta fase, precisamos formar
um novo grupo. Foram selecionados cinco alunos13
que iniciaram o processo de
instrumentalização, transmitido por membros do primeiro grupo de pesquisa.
A primeira fase do processo de pesquisa denominado instrumentalização se
constitui de diferentes momentos: o da Aprendizagem do Sistema, o do Jogo Teatral e o
da Fundamentação Teórica. Neste texto, invertemos a ordem desses momentos a fim de
facilitar a leitura, já que no processo a teoria complementa a prática. Abordaremos
inicialmente a Fundamentação Teórica da pesquisa para melhor situar o leitor, passando
em seguida para a parte da aprendizagem do Sistema e do Jogo Teatral. A seguir
apresentaremos estes diferentes momentos descritos e sistematizados pelo grupo, assim
como a conclusão desta primeira fase.
Fundamentação Teórica
A fundamentação teórica do trabalho prático que estamos desenvolvendo é
concretizada a partir de encontros semanais onde realizamos leituras de textos escritos
por estudiosos na área como E. Barba, N. Savarese, F. Ruffini, F. Taviani, J.M. Pradier,
R.Schechner, J. Lecoq entre outros. Estes textos que são previamente escolhidos pela
sua pertinência com a nossa investigação, servem para fundamentar o trabalho prático
de forma concreta além de sistematizar a aprendizagem pela qual estamos passando.
É através da disciplina de Etnocenologia14
que fundamentamos a nossa
investigação. Esta disciplina, que estuda a questão do espetacular de uma forma mais
13
Os alunos do grupo atual são: Carina Ninow, Lesley Bernardi, Felipe Vieira, Maico Silveira e Mariana
Mantovani. 14
A Etnocenologia é uma disciplina recente, criada em 1995, em Paris, na sede da Unesco, no Colóquio
de Formação do Centro Internacional de Etnocenologia, na Maison des Cultures Du Monde. Esta
disciplina visa ao “[...] estudo nas diferentes culturas das práticas e dos comportamentos humanos
espetaculares organizados [...]” Jean Marie Pradier. “Ethnoscénologie: la profondeur dês émergences”, in:
International de l’imaginaire, nouvelle série n° 5, Paris: Babel/Maison des Cultures Du Monde, 1996,
ampla, abrangendo não só as formas teatrais, mas também todas as manifestações
culturais e comportamentos do homem cotidiano que sejam tradicionais e organizados,
nos permitiu o estudo do espetacular nas práticas culturais do gaúcho. Para esta
disciplina, o teatro, assim como as diferentes manifestações e práticas culturais, é um
subsistema que faz parte do sistema maior que constitui a dimensão espetacular do
homem. Como as atividades do campo do gaúcho são tradicionais porque passam de pai
para filho e organizadas no sentido de que exigem de quem as pratica uma grande
precisão e eficácia, concluímos que estávamos diante de manifestações e práticas
culturais espetaculares. Elas são espetaculares também pelo sentido estético que
provocam, uma vez que atraem o olhar do homem urbano. Na realidade são técnicas
corporais vivas, organizadas e tradicionais, e são transmitidas de geração em geração.
Segundo o antropólogo francês Marcel Mauss (1872-1950), a expressão técnicas
corporais designa “[...] um ato tradicional eficaz [...] uma maneira com a qual os
homens, sociedade por sociedade e de maneira tradicional, sabem servir-se de seus
corpos”.15
Trata-se de atividades cotidianas do gaúcho que tornam o corpo desse
naturalmente dilatado e extracotidiano16
para o observador, pois exigem um estado de
alerta constante, além de precisão e eficácia, para ser capaz de lidar com a natureza
arisca e com animais que muitas vezes são perigosos, implicando risco de vida. Tendo
em vista que o objetivo do ator/ dançarino ao desenvolver sua presença física é alcançar
a extracotidianidade também encontrada nas qualidades corporais do gaúcho campeiro
quando na realização de suas atividades de lide, criou-se um sistema de treinamento
composto por nove partituras utilizando os princípios destas técnicas corporais.
Para a criação das partituras foram levados em conta os elementos que
constituem as Leis do Movimento, a partir do corpo humano em ação, segundo Jaques
Lecoq que são equilíbrio, desequilíbrio as oposições (para ficar de pé, o homem se opõe
p.16. Ler também o texto de Pradier, “Etnocenologia”, in: Christine Greiner & Armindo Bião (org.)
Etnocenologia: textos selecionados. São Paulo: Annablume, 1999, pp.23-9. 15
Para aprofundamento maior, ler capítulo “As técnicas corporais” publicado em Sociologia e
Antropologia de Marcel Mauss, vol. II. São Paulo: EPU-Edusp, 1974, pp. 209-33 16
Para melhor compreender o termo extracotidiano, segundo Eugênio Barba, citamos o seguinte texto
que parece bastante esclarecedor: “As técnicas cotidianas do corpo são em geral caracterizadas pelo
princípio do mínimo esforço, quer dizer, um rendimento máximo para a utilização do mínimo de energia.
As técnicas extracotidianas se baseiam ao contrário, sobre um desperdício de energia. Elas parecem
mesmo sugerir um princípio inverso daquele que caracteriza as técnicas cotidianas: o princípio de um
gasto máximo de energia para um resultado mínimo”.
à gravidade17
), alternâncias (o dia alterna a noite, como o riso com o choro18
),
compensações (carregar uma mala com o braço esquerdo obriga a compensar subindo
o braço oposto19
), ação e reação. Esses elementos são os mesmo que constituem a
extracotidianidade segundo Eugênio Barba. Para ele, as três leis básicas ou princípios
para a construção da presença física são o Equilíbrio (alternância do); as Oposições e a
Virtude da Omissão20
as quais forma levadas em conta na codificação e composição de
cada partitura. O Sistema de Treinamento foi construído a partir desses princípios e da
utilização das técnicas de montagem21
e restauração do comportamento.22
Aprendizagem do sistema
No início da fase de instrumentalização, estabeleceu-se uma rotina de trabalho
que nos preparava para a aprendizagem deste Sistema. O aquecimento inicial era
fundamental para evitar o risco de lesões nas articulações e músculos, sempre muito
exigidos, assim como proporcionava a nossos corpos uma resistência física apta para a
aprendizagem. Além disso, executávamos exercícios que mobilizavam cada parte do
corpo isoladamente, alguns com o objetivo de conscientização corporal e outros que
trabalhavam o ponto fixo.23
17
Esta frase foi retirada do texto “Technique des mouvements”, de Jaques Lecoq, in: Jaques Lecoq, em
colaboração com Jean-Gabriel Carasso & Jean-Claude Lallias. Le corps poétique. Um enseignement de la
création tréâtrale. Paris: Actes-Sud, 1997, p.100. Tradução feita por Inês Marocco. 18
Ibidem, p. 100. 19
Ibidem. 20
Para melhor entender o significado da expressão virtude da omissão, citamos Barba: “Quando nós
tratamos do princípio da equivalência, nós percebemos que para o mimo os braços eram considerados
uma anedota, literatura, quer dizer, não essenciais em relação ao resto do corpo. Decroux (assim como
numerosas tradições orientais) realiza muitas vezes um processo que concentra toda a energia no tronco.
Neste caso, nós também podemos falar de omissão, isto é, de eliminação do elemento supérfluo da ação
para colocar em evidência o elemento necessário”. In: “Vertu de l’omission”, in: Anatomine de l’acteur.
Um dictionnaire d’Anthropologie Théâtrale, p.74. Ler também o texto de Eugênio Barba “Omissão”, in:
A arte secreta do ator. Dicionário de Antropologia Teatral. São Paulo, Campinas: Hucitec-Editora da
Unicamp, 1995, pp.171-55. 21
Ler o texto de Eugênio Barba, “Montagem: a montagem do ator e a montagem do diretor”, ibidem,
p.158-64. 22
Ler o texto de Richard Schechner, “Restauração do comportamento”, ibidem, pp.205-10. 23
Lecoq nos dá o seguinte exemplo para definir o que seja ponto fixo: “No mimo de ilusão, ao colocar o
chapéu na cabeça, a presença do chapéu será reforçada se eu o mantiver fixo no espaço por um instante, e
se o colocar em minha cabeça com um movimento que engaje o corpo inteiro. Le tréâtre du geste, org. de
Jacques Lecoq. Paris, Bordas 1987, pp.100-05. Tradução de Roberto Mallet.
Sob a supervisão de um integrante do primeiro grupo nos colocávamos em
circulo e realizávamos uma sequencia de exercícios em conjunto. O objetivo dessa
forma de aquecimento era o de percebermos uns aos outros, na ideia de despertar o
espírito de grupo, estimulando a integração da equipe.
A realização de exercícios básicos de acrobacia também fazia parte dessa rotina
e foi sendo desenvolvida de forma gradual de acordo com nossa evolução. A função da
acrobacia nesse caso não é a de tornar o ator um acrobata e sim como diz Nicola
Savarese,
O exercício acrobático dá ao ator a oportunidade de testar a sua força.
A princípio, este exercício é usado para ajuda-lo a sobrepujar o medo e a
resistência, a ultrapassar seus limites; depois ele se torna o meio de controlar
energias aparentemente incontroláveis, de encontrar, por exemplo, os contra
impulsos necessários para cair sem se ferir ou de planar no ar em desafio à lei
da gravidade. Acima e além do exercício, essas conquistas encorajam o ator:
“mesmo que eu não faça isso, sou capaz de fazê-lo”. E no palco, por causa do
seu conhecimento adquirido o corpo torna-se um corpo decidido.24
Após essa sequência inicial de trabalho passávamos ao aprendizado do sistema
propriamente dito.
Movimentos educativos e Partituras
Os nomes das partituras deste Sistema fazem referência à atividade que originou
cada uma delas, como é o caso do “pealo”, do “laço”, do “leite” e da “linguiça” e das
duas versões para a “tosquia” e para o “ginete”. Já a partitura intitulada “tronco”
designa uma composição de movimentos retirados da ação mesma de colocar o animal
no corredor (tronco), mais alguns movimentos da partituras da tosquia, do pealo e do
laço.
24
“Antropologia teatral”, in: A arte secreta do ator.
(Movimentos que fazem parte da Partitura do Leite que corresponde a atividade de tirar
o leite realizada por Carina Ninow).25
Tendo em vista a complexidade destas partituras, inicialmente aprendemos
exercícios que trabalhavam de forma mais clara, simples e pontuada os princípios das
Leis do Movimento a partir do corpo humano em ação, segundo Jaques Lecoq, aos quais
chamamos educativos. Estes forma transmitidos de maneira gradual, partindo do mais
simples, respeitando o tempo de assimilação de cada componente do grupo, com a ideia
de que os princípios presentes nestes educativos fossem sendo aprimorados por nossos
coros da maneira mais orgânica e coesa possível.
Com isso, nós iniciávamos um processo de despojamento dos vícios corporais
cotidianos, a fim de que com o sistema propriamente dito, buscássemos um corpo
presente cenicamente, um corpo apto à expressão, um corpo pré-expressivo. Para tanto,
o ator deve saber, como diz Eugênio Barba no seu texto “Do aprender para o «aprender
a aprender»”, o que faz parte de sua formação corpórea e o que faz parte de sua
formação cultural:
25
Fotos Eduardo Simioni.
Nosso uso social do corpo é necessariamente um produto de uma
cultura: o corpo foi aculturado e colonizado. Ele conhece somente os usos e
as perspectivas para os quais foi educado. A fim de encontrar outros ele deve
distanciar-se de seus modelos. Deve inevitavelmente ser dirigido para uma
nova “cultura” e passar por uma nova “colonização”. É este caminho que faz
com que os atores descubram sua própria vida, sua apropria independência,
sua própria eloquência. Os exercícios de treinamento são esta segunda
colonização [...].26
Complementam este pensamento, fundamentando nosso trabalho prático, outros
textos que lemos e analisamos. Eles tratam do que acreditamos ser relevante para o ator,
que este deve seguir um sistema de treinamento que leve à compreensão total da
capacidade expressiva de seu corpo.27
Em um destes textos Savarese afirma que: “A
finalidade do treinamento é tanto a preparação física do ator quanto seu crescimento
pessoal, acima e além do nível profissional, ele lhe dá um modo de controlar seu corpo e
de dirigi-lo com confiança a fim de adquirir inteligência física”.28
No nosso caso, esta
ideia de treinamento iniciou pela etapa de Aprendizagem do sistema, quando
trabalhamos e desenvolvemos nosso senso de observação e a capacidade de imitação,
enquanto aprimoramos nossas possibilidades de agir com o corpo. Todas as partituras
foram aprendidas por meio da observação e reprodução. Um dos integrantes do primeiro
grupo nos mostrava a partitura e depois cada movimento separadamente. Nós a
repetíamos ora todos juntos, buscando uma unidade de tempo, ora cada um por si,
quando estudávamos cada movimento, segundo seus impulsos, sua forma, força
utilizada, tempo de execução e foco. Assim, mesmo mais ricas em detalhes, as novas
partituras eram aprendidas em menor tempo. Isso comprova a evolução que adquirimos
no decorrer do processo de trabalho. Tiramos daí que para o ator e para o trabalho em
grupo o envolvimento e a seriedade são fundamentais.
Savarese diz, quanto aos exercícios de treinamento, que estes
são apenas parte tangível e visível de um processo maior, unitário e
indivisível. A qualidade do treinamento depende da atmosfera do trabalho,
dos relacionamentos entre indivíduos, da intensidade das situações, das
modalidades de vida do grupo.29
Percebemos esta importância no trabalho desenvolvido, pois com o passar do
tempo fomos ficando mais unidos, com menos dificuldades de expor nossos
26
Do «aprender» ao «aprender a aprender», in: A arte secreta do ator, p.245. 27
Para maior aprofundamento ler textos: “Do «aprender » ao «aprender a aprender»” e “Restauração do
comportamento”, já citados. 28
“O treinamento e o ponto de partida” de N. Savarese, in: A arte secreta do ator, p. 250. 29
Ibidem.
questionamentos e mais facilidade para arriscar nos jogos que desenvolvemos
paralelamente.
O jogo teatral
O jogo teatral tem papel importante dentro de nossa pesquisa, principalmente no
sentido de trabalhar o imaginário do ator. Tendo em vista que, tanto a acrobacia quanto
o próprio sistema de partituras da lide tem como objetivos desenvolver a presença
cênica do ator/dançarino, e portanto são direcionados quase que exclusivamente para o
trabalho físico, o jogo surge como uma possibilidade concreta de integração entre o
desenvolvimento imaginário do ator e seu corpo. É no jogo que percebemos mais
nitidamente o quanto um corpo treinado tem maior potencial criativo. Isso se torna
claro, dentro de nossa rotina de trabalho, pelo fato de o jogo teatral ser realizado logo
após a prática de movimentos acrobáticos. Estes movimentos nos dão uma capacidade
fabulosa de enfrentarmos nossos medos, de corrermos riscos sem julgamentos
precipitados, despertando um estado de concentração, percepção e alerta constantes,
constituindo-se num estímulo significativo para a prática do jogo.
No início do nosso processo, paralelamente ao trabalho de instrumentalização do
sistema, praticávamos exercícios denominados de pré-jogo. Este trabalho visava nos
conscientizar dos elementos essenciais ao jogo teatral do ator, tais como a percepção
sensorial a partir da visão periférica, noções de ritmo, tempo, espaço e ação em relação
aos outros e a si mesmo, níveis de tensão e estado de jogo. Esses exercícios nos
auxiliavam a desenvolver uma maior consciência dos diferentes momentos pelos quais
passam nossos corpos durante o jogo sem se perder a noção do conjunto dentro de uma
improvisação, o que facilita a sua retomada numa criação artística.
Essas improvisações, ainda praticadas, trazem à tona a ideia de jogo, através do
contato direto entre os atores na cena e o que há de inusitado e efêmero dentro da
mesma. Elas se dão principalmente a partir da utilização de objetos imaginários ou não
que, passando por inúmeras transformações, nos transportam a situações que variam do
real ao absurdo, sempre na ideia de torná-las orgânicas e críveis para nós mesmos e para
quem as vê.
No correr do tempo, notamos o aprimoramento de nossas improvisações, em
virtude do exercício contínuo do jogo teatral e da maior integração de nosso grupo
advinda do trabalho diário que mantemos. Conjuntamente à prática dos movimentos de
acrobacia e das partituras da lide, acabamos assim adquirindo maior desenvoltura
corporal na cena e maior facilidade de trabalhar nossa imaginação, o lado lúdico de cada
um de nós.
Conclusão
No mês de Julho de 2004 chegamos ao final do processo de Instrumentalização.
Podemos afirmar que o primeiro objetivo deste grupo já foi alcançado, uma vez que a
eficácia do Sistema pode ser comprovada pela efetiva mudança nos nossos corpos.
Constatamos que hoje possuímos uma presença física muito mais desenvolvida em
comparação ao início do processo, o que é fruto do treinamento sistemático e contínuo
empregado na metodologia desta Pesquisa. É notável a inteligência corporal que foi
desenvolvida principalmente no que concerne à presença física, à consciência e domínio
do principal instrumento de trabalho do ator: seu corpo.
Isso reforça a evolução percebida em nosso processo criativo. Como temos uma
prática do jogo teatral tão intensa quanto a do treinamento do Sistema, nosso imaginário
está muito mais presente dentro das improvisações. Isso é perceptível no que diz
respeito à disponibilidade para o arriscar mais dentro de determinada proposta, bem
como à concentração e a contracenação exigidas durante a sua prática. Com o passar do
tempo fomos gradativamente nos tornando mais independentes em relação ao trabalho,
até que chegou o momento em que obtivemos uma autonomia que nos permitiram
treinar sem a supervisão do monitor que nos acompanhava.
As muitas horas que passamos juntos, trabalhando nossas dificuldades foram
criando uma ligação muito forte entre todos, dando-nos um grande senso de equipe.
Obtivemos maior liberdade para corrigir e cobrar uma postura de mais atenção e
interesse dos colegas, ao mesmo tempo que ficamos mais seguros e capazes mental e
fisicamente, tanto para o treinamento do Sistema quanto para a prática do jogo teatral.
Numa pesquisa como esta, essencialmente prática, torna-se necessário um modo
de organizar e registrar todo o conhecimento adquirido. Para isso recorremos a
encontros teóricos com o objetivo de complementar nosso estudo. Esses encontros se
revelaram de vital importância para a conscientização de tudo que foi trabalhado, além
de possibilitar o desenvolvimento da prática da escrita.
Concluído nosso processo de Instrumentalização, a pesquisa entra agora em
nova fase, que diz respeito à exploração das diferentes qualidades dos movimentos das
partituras, através dos princípios de Análise de Movimentos segundo R. Laban30
que são
relativos a energia, tempo e espaço. A finalidade será a utilização dos movimentos das
partituras para a construção de uma dramaturgia própria.
Referências Bibliográficas
BARBA, Eugenio. Le canoë de papier: Traité d’Anthropologie Téâtrale. Lectoure:
Bouffonneries, 1993.
BARBA, Eugenio & Nicola Savarese. A arte secreta do ator. Dicionário de
Antropologia Teatral. São Paulo-Campinas: Hucitec-Editora da Unicamp, 1995. –
Anatomie de l’acteur. Um dictionnaire d’Anthropologie Téâtrale. Cazilhac-Roma-
Holstebro: Bouffonneries Contrastes-Zeami Libri-International School of Theatre
Anthropology, 1985.
LECOQ, Jacques, em colaboração com Jean-Gabriel Crasso & Jean-Claude Lallias. Le
corps poétique. Un enseignement de La création théatrale. Paris: Actes-Sud, 1997.
LECOQ, Jacques (org). Le théâtre du geste. Paris: Bordas, 1987.
MAROCCO, Inês. Le geste spectaculaire dans La culture gaúcha Du Rio Grande do
Sul – Brésil. Doutorado. Université de Paris 8 – Saint Denis.
NUNES, Zeno & Rui Cardoso. Dicionário de Regionalismos do Rio Grande do Sul.
Porto Alegre: Martins Livreiro-Editor, 1993.
PRADIER, Jean-Marie. “Ethnoscénologie: la profundeur des émergences”, in:
International de L’Imaginaire, nouvelle série n°5, Paris: Babel/Maison dês Cultures Du
Monde, 1996. – “Etnocenologia” in: Chirstine Greiner & Armindo Bião (org).
Etnocenologia: textos selecionados. São Paulo: Annablume, 1999, PP. 23-9.
RUFFINI, Franco. “O centro-cena: pré-expressão, energia, presença. Savana e savanas”,
in Bouffonneries n° 15/16, Anthropologie Théâtrale (2), PP. 33-52. Trad. Inês Marocco.
30
Rudolf Laban (1879-1958) desenvolveu uma notação de movimentos capaz de registrar qualquer um de
seus tipo, a Kinetography Laban, conhecida nos EUA como Labonatation.
TAVIANI, Ferdinando. “A energia do ator como premissa”, in: Bouffonneries n° 15/16,
Anthropologie Théâtrale (2), PP. 23-32. Trad. Inês Marocco.