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XII Conferncia Anual da
Associao Internacional para o Realismo Crtico
Capital, tcnica e morte:
dilogo entre Marx, Ellul e Saramago
Javier Blank
julho de 2009
Capital, tcnica e morte: dilogo entre Marx, Ellul e Saramago
Javier Blank
Introduo
Karl Marx publica o Livro I do Das Kapital (O Capital), em 1867.
Jacques Ellul publica La technique ou l'enjeu du sicle (A tcnica e o desafio do sculo), em
1954.
Jos Saramago publica As intermitncias da morte, em 2005.
Um na segunda metade do SXIX, em alemo; outro na metade do SXX, em francs; o ltimo, j
iniciado o SXXI, em portugus.
Trs sculos e trs pensadores que escolhem diferentes objetos como centro de sua reflexo: em
Marx o capital; em Ellul, a tcnica; em Saramago, a morte.
Este trabalho prope uma interlocuo entre esses trs objetos tal como construdos por esses
autores. Capital, tcnica e morte aparecem como estruturas com caractersticas semelhantes.
A partir da, percebe-se que a construo que cada autor faz de uma dessas estruturas ilumina a
compreenso das outras duas.
Isso revela-se ainda ao atentar para a maneira como se processa socialmente a autonomizao
dessas estruturas e a sua crise.
Os processos de mundializao do capital e da tcnica, explicveis por sua autonomizao, so
um trao fundamental para compreender o mundo contemporneo e os desafios postos para re-
atualizar um horizonte emancipatrio.
Parte-se do pressuposto de que a imaginao condio necessria para a elaborao de uma
teoria revolucionria. , portanto, extremamente instigante trazer para a elaborao terica a
imaginao romanesca de Saramago, que comea assim: No dia seguinte ningum morreu.
Palavras-chave: Marx Ellul Saramago Capital Tcnica
A morte, segundo Saramago
Um dia a morte, num determinado pas, deixa de funcionar. No que no exista mais.
Simplesmente, ningum morre. A morte no acontece, mas a existncia da morte continua. A morte
tem um carter dual no romance: , por um lado, o ato de morrer; por outro, um personagem que
produz esse ato, um sujeito.1
A morte um sujeito que se expande, ocupa todos os lugares, espalha-se em todos os
sentidos. De fato, tremendo o esforo que tem de fazer sobre si mesma quando no quer ver tudo,
quando precisa reprimir a tendncia expansiva que inerente sua natureza2. E as vezes tem que
reprimi-la porque faz parte de sua ilimitada virtude expansiva3 uma precria e instvel unidade
que a sua, com tanto custo agregada. Assim, corre o risco de se relaxar e dispersar4. uma
unidade expansiva carente de medida fora dela mesma5.
Talvez por isso que o trabalho da morte seja o mais montono, uma atividade repetitiva,
sem pausa, sem interrupes, sem solues de continuidade, no fundo sempre igual a si mesma6. A
morte no dorme, s descansa7. E leva adiante esse trabalho de maneira irreflexiva.
fcil, do ponto de vista dos homens, avaliar a atividade da morte como sendo cruel. por
isso que os jornais tm-se excedido em furiosos ataques contra ela, acusando-a de impiedosa,
cruel, tirana, malvada, sanguinria, vampira, imperatriz do mal, drcula de saias, inimiga do
gnero humano, desleal, assassina, traidora, serial killer8. A morte parece cruel, verdade, mas
no o . Aqueles que fazem essa denncia esto mal informados sobre a natureza profunda da
morte, cujo outro nome fatalidade. No compreendem que a morte no tem qualquer necessidade
de ser cruel, o que . Por isso, no adianta reclamar diante dela, nem pedir, nem chorar: a morte
nunca responde. E no porque no queira, s porque no sabe o que h-de dizer diante da
maior dor humana9. , portanto, um trabalho de uma impessoalidade assptica. Alis, ela faz
abstrao de diferenas por demais evidentes para os seres humanos. Aos olhos da morte todos
somos da mesma maneira feios10.
1 Uma analogia percorre de maneira silenciosa, sutil, o nosso texto: dualidade da morte-sujeito e morte-ato corresponde dualidade do capital enquanto sujeito e enquanto ato, imposio da lei do valor.
2 Saramago, 2005: 147-8.3 Idem: 166.4 Idem: 148-9. 5 La circulacin del dinero como capital es, por el contrario, un fin en s, pues la valorizacin del valor existe
nicamente en el marco de este movimiento renovado sin cesar. El movimiento del capital, por ende, es carente de medida (Marx: 2002, 186).
6 Saramago, 2005: 138.7 Idem: 139.8 Idem: 114.9 Idem: 126. Pergunta-se da mesma maneira ao capital sobre a dor humana... infrutuosamente: o capital no sabe o
que dizer.10 Idem: 169.
1
Expansiva, ilimitada, ininterrupta, repetitiva, impessoal, abstrata. A morte um verdadeiro
sujeito automtico11.
Suponhamos que no aceitamos essa desculpa de impessoalidade, de irreflexividade desse
sujeito. com a morte mesmo. Com ela queremos falar. Para ela vamos a exigir. Ou pelo menos
negociar. Mas, onde a encontraramos? Ela permanece invisvel. Era preciso comear por
encontr-la e ningum sabia como nem onde. A morte, em privado um esqueleto embrulhado
num lenol. Mas discreta: em pblico torna-se invisvel12.
Existem certas coisas que tm a peculiar caracterstica de serem menos percebidas, de
chamarem menos a ateno, de serem ainda mais invisveis, quando elas melhor funcionam.
Assim por exemplo com o juiz de futebol. Assim com a engrenagem interna de um motor. E
assim acontece com a morte. claro que quem num dia qualquer tivesse perto algum familiar,
amigo ou conhecido que por fatalidade fosse morrer, se depararia com o ato da morte. Mas eis que a
morte decide um dia, num determinado pas, deixar de matar. A morte faz com que o ato da morte
no acontea13. Em primeiro lugar, o fato de, de repente, ningum morrer, por absolutamente
contrrio s normas da vida, causou nos espritos uma perturbao enorme14. Esse choque inicial
se d muito antes de se pensar nos possveis desdobramentos dos acontecimentos; se deve to-
somente ao carter de excecionalidade do fenmeno.
A morte se torna mais visvel na sua falha. Nesse momento no h quem no perguntasse,
Que diabos acontece com a morte? Aqueles que tivessem por qualquer motivo a intuio ou
percepo ou compreenso da morte enquanto sujeito, poderiam perguntar ento com mais
rigor, Que que faz a morte no matar?
Alm da perturbao, comea a se desenvolver uma primeira polmica em relao
permanncia no tempo desse fenmeno excepcional.
11 Essa caracterizao da morte, que construmos em base ao prprio texto de Saramago, idntica a construo que Marx faz do capital. Unidade instvel, expansiva, ilimitada. O movimento incessante de valorizao do valor tambm faz do capital um sujeito automtico (Marx: 2002, 188). So tambm esses atributos que, como veremos na segunda parte deste trabalho, definem a tcnica na anlise que Jacques Ellul faz da civilizao tcnica (Cfr. Ellul, 1968). Assim, capital, tcnica e morte so estruturas anlogas na construo desses autores.
12 Saramago, 2005: 145.13 Um primeiro passo a demonstrao das analogias mais ou menos evidentes entre as estruturas. Podemos ir alm
disso ao extrair da caracterizao de uma delas elementos que nos ajudem a compreender o funcionamento das outras. O romance de Saramago descreve o processo social desencadeado diante da ausncia da morte. Podemos aprender muito aqui da maneira como se processam socialmente as crises de diferentes estruturas. No caso, esse desenvolvimento se revela muito fecundo para pensar a crise do capital.
14 Idem: 11.
2
Alguns advertem que no deveria excluir-se a hiptese de se tratar de uma casualidade
fortuita. Apela-se tambm a vaguidades pseudocientficas, destinadas a tranqilizar, pelo
incompreensvel, o alvoroo que reinava no pas; outros j se declaram preparados para enfrentar
os complexos problemas sociais, econmicos, polticos e morais que a extino definitiva da morte
inevitavelmente suscitaria15
Faz-se aluso situao em outros lugares como demonstrao de que o normal ainda no se
retirou de todo do mundo16. Procuram-se formular teses otimistas que tentam tranqilizar a
populao, prometendo a volta normalidade, para daqui a pouco. No caso, planeja-se pr em
circulao uma nova tese, a da morte adiada, Sem mais explicaes17.
Podemos supor que vaguidades pseudocientficas ou teses sem fundamento no seriam
levadas em considerao pela populao em um momento crtico em que a normalidade posta em
questo e se precisa de respostas radicais e consistentes para compreender a situao e agir nela. No
entanto, algumas pessoas que, por temperamento natural ou educao adquirida, preferiam acima
de tudo a firmeza de um optimismo mais ou menos pragmtico, mesmo se tivessem motivos para
suspeitar de que se trataria de uma mera e talvez fugaz aparncia uniram-se mar alta de alegria
colectiva. Percebe-se que elas no precisam ser convencidas com esses argumentos. Simplesmente
essas teses ou formulaes vagas e pouco convincentes vo ao encontro de uma disposio para o
otimismo, de uma necessidade de acreditar, mesmo contra toda evidncia. Por outro lado, eram
pouqussimas as pessoas que tinham a coragem de pr assim, publicamente, o dedo na ferida18.
Faz parte daquele otimismo a idia segundo a qual, de repente, depende da vontade de cada
um se deixar levar pela morte ou continuar vivendo. Mesmo diante do fato incontornvel de que
ningum morria, nem mesmo aqueles que desejavam a morte, essa uma reao comum. o
prprio narrador quem desestima essa ingnua iluso, quem bota o dedo na ferida, advertindo que
as palavras que o feliz neto havia efetivamente pronunciado, Como se se tivesse arrependido de
morrer, eram radicalmente diferentes de um peremptrio Arrependeu-se. Portanto, umas quantas
luzes de sintaxe elementar e uma maior familiaridade com as elsticas subtilezas dos tempos
verbais teriam evitado o qiproqu. Esse equvoco, que parece ser meramente gramatical, pode ter
desdobramentos inusitados, como por exemplo a criao de um movimento de cidados firmemente
15 Idem: 17.16 Idem: 74.17 Idem: 20. 18 Idem: 23-5. Ou... capital adiado: assim pode ser lida a ambigidade de parte da intelectualidade de esquerda, no
Brasil e no mundo, at finais de 2008, para falar da crise do capital. Era preciso uma mistura de lucidez e coragem para tocar no assunto. At que explodiu a crise e no foi mais possvel continuar evitando-o. Antes disso, era difcil botar o dedo na ferida, ir contra a mar do otimismo... e depois disso tambm, pois, dizem, fiquem tranqilos, depois desta recesso, voltaremos a uma fase expansiva.
3
convencidos de que pela simples ao da vontade ser possvel vencer a morte19.
Assim, ao debate sobre a permanncia do fenmeno no tempo, acrescenta-se a polmica
sobre a sua natureza. Estamos na porta do inferno, ou do paraso? No se sabe. Fora das fronteiras
do nosso pas se continua a morrer com toda a normalidade, e isso um bom sinal, Questo de
ponto de vista, eminncia, talvez l de fora nos estejam a olhar como um osis, um jardim, um novo
paraso, Ou um inferno, se forem inteligentes20. Isso leva ainda a pensar que talvez a palavra crise
no seja certamente a mais apropriada para caracterizar os singularssimos sucessos que temos
vindo a narrar, porquanto seria absurdo, incongruente e atentatrio da lgica mais ordinria
falar-se de crise numa situao existencial justamente privilegiada pela ausncia da morte21. H
uma indefinio. Trata-se de uma crise disfarada de situao privilegiada ou de uma situao
privilegiada disfarada de crise? Ou uma situao privilegiada ao se tratar de uma crise?
Essa dificuldade na caracterizao da situao provoca uma indeciso entre uma atitude de
alarme ou de esperana. No caso que estamos tratando, uma segunda natureza, para no dizer
automatismo22, movimento mecnico, levou o responsvel pela pasta de sade a rematar a conversa
dizendo que no existe qualquer motivo para alarme. Foi questionado: agora que no se encontra
quem esteja disposto a morrer, quando o senhor ministro nos vem pedir que no nos alarmemos,
convir comigo que, pelo menos, bastante paradoxal. E ele responde: Foi a fora do hbito,
reconheo que o termo alarme no deveria ter sido chamado a este caso; se corrigindo, finaliza
pedindo que no alimentemos falsas esperanas23.
O paradoxo da atitude de alarme em face de uma situao aparentemente promissora, no caso
da ausncia do ato da morte24, se d pelo simples fato de sair da normalidade que, no interessa se
boa ou ruim, pelo menos normalidade25.
Contudo, e a despeito das diferentes percepes sobre o fenmeno em curso, h uma atitude
19 Idem: 15.20 Idem: 20.21 Idem: 15. No clebre texto A situao revolucionria, Lenin destacava como um dos trs pressupostos principais
de uma situao revolucionria a impossibilidade das classes dominantes de manter seu domnio sob forma imutvel. Do ponto de vista da necessidade da revoluo, ento, podemos pensar numa situao privilegiada pela crise do capital, ou pela perda da aparncia de equilbrio dessa ordem social; situao diante da qual, de novo desde um ponto de vista revolucionrio, seria atentatrio da lgica mais ordinria falar-se de crise. crise da morte. crise do capital. Mas no crise para-ns.
22 Segunda natureza e automatismo so expresses muito caras a Marx e a certa tradio marxista!.23 Idem: 16-7.24 No caso do capital, o paradoxo objetivo. O fato de assumirmos a crise do capital como uma situao de crise para-
ns, que se exprime em amplos setores numa atitude de alarme desesperada e conservadora, deve-se, em grande parte, ausncia de um impulso que leve a superar essa forma social; a crise do capital torna-se, por conta da no-atualidade de um impulso revolucionrio, uma crise social gravssima.
25 Em espanhol existe um ditado popular que expressa exatamente essa atitude conservadora: mejor malo conocido que bueno por conocer; parece no existir ditado com sentido idntico em portugus.
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comum: as intermitncias da morte aparecem como um autntico mistrio; isso explica o debate
entre trs especialistas em fenmenos paranormais, a saber, dois bruxos conceituados e uma
famosa vidente, convocados a toda a pressa para analisarem e darem sua opinio sobre o que j
comeava a ser chamado por alguns graciosos, desses que nada respeitam, a greve da morte26.
Mais do que sobre-natural, o fenmeno na verdade aparece como absolutamente natural. No
no sentido de corriqueiro, mas no de nossa incapacidade de interveno. Temos tanto a fazer em
face dele quanto em face das tormentas, das secas. Planejam-se procisses a pedir a morte, da
mesma maneira que j as fazamos ad petendem pluviam, para pedir chuva27. As leis que regem
esses acontecimentos to diversos parecem da mesma ordem. Se no voltarmos a morrer no temos
futuro. preciso que alguma cousa acontea28. Estamos librados graa de deus ou ao acaso. Seja
como for, no controlamos a situao29.
At agora s falamos das reaes intelectuais. Mas a vida, ainda mais com a morte em greve,
continua seu passo. Ela no espera por conceitos e pede resolues prticas. uma necessidade se
desfazer dos moribundos. Levar eles para a morte, mesmo que a morte no queira. E, nova
manifestao da inesgotvel capacidade inventiva da espcie humana, mesmo no sendo filsofos,
ao menos no sentido mais comum do termo, alguns conseguiram enganar a morte de outros,
ajudando-a30. E o fizeram por meio do expediente de ir despejar o pai ou o av em territrio
estrangeiro, onde a morte ainda estava em vigor; isso resultou uma maneira limpa e eficaz, radical
seria um termo mais exato, de se verem livres dos autnticos pesos mortos que os seus moribundos
eram l em casa31.
Procura-se uma soluo tcnica: aproveitar os nichos de normalidade ainda existentes.
De qualquer maneira, isso no acontece sem tenses nem contradies. que com a
visibilidade que a morte ganha com a sua ausncia, tambm faz-se evidente a funcionalidade que
26 Idem: 13-4.27 Idem: 38.28 Idem: 86.29 impressionante perceber como se fala da crise do capital da mesma maneira que se fala do clima: veio frente fria,
at quando vai chover... a crise chegou, ningum sabe at quando vai ficar, nem quo fundo ela vai. O ministro da Fazenda, Guido Mantega, admitiu nesta quinta, pela primeira vez, que a economia brasileira pode ter crescimento zero em 2009. O governo vinha mantendo o discurso de progresso mesmo com os efeitos da crise internacional. Depois de ponderar que 'j samos do fundo do poo', Mantega afirmou que o primeiro trimestre foi pssimo e o segundo ser de retomada, com o Produto Interno Bruto acelerando (http://www.mpbfm.com.br/noticias.asp?s=30948; 15/05/09). No mesmo dia, a previso do tempo para o Rio de Janeiro era de sol com muitas nuvens a nublado com chuva no fim da manh. Tarde e noite chuvosas (http://www.climatempo.com.br; 15/05/09).Marx j tinha analisado a naturalizao das relaes sociais que fogem do controle dos homens: Por un lado se advierte aqu cmo el intercambio de mercancas arrasa las barreras individuales y locales del intercambio directo de productos y hace que se desarrolle el metabolismo del trabajo humano. Por otra parte, se desenvuelve toda una serie de vinculaciones sociales de ndole natural, no sujetas al control de las personas actuantes (Marx 2002: 137).
30 Saramago, 2005: 38.31 Idem: 48.
5
tinha, para muitos setores, instituies, grupos, a situao de normalidade perdida.
um encadeamento lgico: sem morte no h ressurreio, e sem ressurreio no h
igreja32. Assim, se por um lado estavam os filsofos, divididos, como sempre, em pessimistas e
optimistas, por outro lado, os delegados das religies apresentaram-se formando uma frente unida
comum com a qual aspiravam a estabelecer o debate no nico terreno dialctico que lhes
interessava, isto , a aceitao explcita de que a morte era absolutamente fundamental para a
realizao do reino de deus33.
O normal estado de coisas beneficia a alguns que, no momento de exploso da crise, tm que
se expor, mais ou menos sutilmente, mais ou menos abertamente. Foi tambm o caso de
importantes sectores profissionais, seriamente preocupados com a situao, notadamente as
empresas do negcio funerrio, que ficaram, de repente, brutalmente desprovidos da sua matria-
prima34.
Reclama-se ao Estado a resoluo dos problemas econmicos que a crise traz para esses
setores. Entre outras boas idias, e para evitar na medida do possvel, o despedimento de centenas
seno milhares de abnegados e valorosos trabalhadores os empresrios propem a concesso de
emprstimos a fundo perdido que ajudem a viabilizar a rpida revitalizao de um sector cuja
sobrevivncia se encontra ameaada35.
Mas, o que alguns percebem que a maneira de administrar a crise social no s financeira.
Os responsveis hospitalares do-se conta que a deciso, no caso de vir a ser tomada, no poder
ser nem mdica nem administrativa, mas poltica36. Essa administrao poltica exatamente a
difcil deciso de que fazer com os que sobram. Que vir a ser um futuro sem morte. Como atuar
diante dessa imparvel sobreocupao de internados. Que acontecer com os lares da terceira e
quarta idades37.
No processo, torna-se difcil acreditar que os que sofrem diretamente essa ausncia do ato da
morte, esse no-funcionamento, essa crise, continuem vivos; aqueles que de acordo com a lgica
matemtica das colises, deveriam estar mortos e bem mortos; aquela que nem melhorou nem
piorou, ficou ali como suspensa, baloiando o frgil corpo borda da vida, ameaando a cada
instante cair para o outro lado, mas atada a este por um tnue fio que a morte, s podia ser ela,
no se sabe por que estranho capricho, continuava a segurar. E, ao mesmo tempo, nem valia a
pena perder tempo a oper-lo38. Ficam ali, mortos-vivos, ocasionando um problema para a
32 Idem: 18.33 Idem: 35.34 Idem: 25.35 Idem: 7.36 Idem: 28.37 Idem: 28-30.38 Idem: 11-2.
6
sociedade que no sabe o que fazer com eles.39
Claro que essa administrao poltica tambm inclui uma fundamental dimenso econmica
que mostra a falta de autonomia da poltica para resolver os problemas sociais. Por isso, o problema
bicudo, e para ele nos sentimos no dever de chamar a ateno de quem de direito, que, com o
passar do tempo, no s haver cada vez mais idosos internados nos lares do feliz ocaso, como
tambm ser necessria cada vez mais gente para tomar conta deles, dando em resultado que o
rombide das idades virar rapidamente os ps pela cabea40. O estado pode vir a derrubar-se,
simplesmente, como um castelo de cartas. Tentar sobreviver, ainda que eu muito duvide de que
venha a conseguir41, pois a tendncia a prpria bancarrota do estado, o salve-se quem puder, e
ningum se salvar. Impe-se essa demonstrao por cima das polmicas acirradas, e perante este
quadro aterrador no tiveram outro remdio os metafsicos que meter a viola no saco42. O que a
nos vem em cima o pior dos pesadelos que alguma vez um ser humano pde haver sonhado, nem
mesmo nas escuras cavernas, quando tudo era terror e tremor, se ter visto semelhante cousa [...]
para alguma cousa a imaginao nos haveria de servir, [...] antes a morte, senhor primeiro-
ministro, antes a morte que tal sorte43. No adianta ficar esperando, achando que so tendncias de
longo prazo, pois o futuro j hoje44!.
Infelizmente, a partir da percepo da gravidade da situao a atitude da populao saudvel
para com os padecentes terminais comeou a modificar-se para pior45. Acontece que quando se
avana s cegas pelos pantanosos terrenos da realpolitik, quando o pragmatismo toma conta da
batuta e dirige o concerto sem atender ao que est escrito na pauta, o mais certo que a lgica
imperativa do aviltamento venha a demonstrar, afinal, que ainda havia uns quantos degraus para
descer46.
Mas mesmo com essa qudrupla crise, demogrfica, social, poltica e econmica47,
impressiona a maneira como a sociedade continua tentando funcionar como se nada acontecesse. H
uma inercia, um automatismo que faz impor ao novo contedo a mesma forma social em crise.
As companhias de seguros, por exemplo, diante da alarmante situao da ausncia da morte,
39 Vejam os que sobram na ordem do capital. Quando no so empurrados para o ltimo passo, ficam na beira da morte. No podemos acreditar que nessas circunstncias continuem vivos. Ns ficaramos? E que podemos fazer por eles? Esto mais mortos que vivos.
40 Idem: 31. 41 Idem: 85. Mostra a insustentabilidade da tendncia do processo em curso. O estado j no da conta
(civilizadamente) da sobreproduo de massas sobrantes quando o capital entra em crise.42 Idem: 78. 43 Idem: 32.44 Idem: 37.45 Idem: 78. Para os que sobram... pena de morte, em lugar dos anteriores bons desejos de emprego, integrao,
educao.46 Idem: 59.47 Idem: 63.
7
resolveram de maneira brilhante fixar a idade de oitenta anos para morte obrigatria, obviamente
em sentido figurado. Desta maneira, chegado o momento, cada um, convertido em algum
virtualmente morto, mandaria proceder cobrana do montante integral do seguro, o qual lhe
seria pontualmente satisfeito. Resultado: ningum perdia e todos ganhavam. Em especial as
companhias de seguros, salvas da catstrofe por um cabelo48.
A expresso morte obrigatria em sentido figurado, que devemos aos especializadssimos
assessores jurdicos das companhias, e pluma de Saramago que soube dar-lhes o destaque que
mereciam, condensa exatamente essa im-posio de uma forma, uma abstrao, que j no responde
realidade, posto que a morte est ausente, mas que se reproduz com inmeros desdobramentos,
tornando-se real, no processo de crise49.
Mas, ao lado da re-produo inovadora das antigas instituies, surgem outras novas, tpicas
dos momentos de crise. No processo, antigas e novas entram em contato e fazem acordos, com
ganhos para ambas partes. Essa tal organizao os leva l, Exactamente, Trata-se de uma
organizao benemrita, Ajuda-nos a retardar um pouco a acumulao de padecentes terminais,
mas, como eu disse antes, uma gota de gua no oceano, E que organizao essa. O primeiro-
ministro respirou fundo e disse, A mphia, senhor50.
Faz parte da procura dos nichos de normalidade, quando se d num nivel mais sofisticado, a
busca das brechas do sistema jurdico. A maphia se aproveita de que a justia do pas em que no
se morre se encontra desprovida de fundamentos para atuar judicialmente contra os enterradores.
No os pode acusar de homicdio porque, tecnicamente falando, homicdio no h em realidade, e
porque o censurvel ato, classifique-o melhor quem disso for capaz, se comete em pases
estrangeiros51.
Contudo, apesar desses rearranjos todos, a experincia da crise no deixa de ser incmoda,
lamentvel, at catastrfica, dependendo para quem dirijamos o nosso olhar. Por isso, a volta
normalidade, anunciada pela prpria morte, festejada pelo primeiro-ministro, devido quantidade
de problemas que isso vem a resolver52.
48 Idem: 33-4.49 isso mesmo, a abstrao torna-se real. O filme Vida, Morte! de Robert Gudiguian, do ano 1995,
desenvolve sua trama em cenas de desemprego; uma famlia sem perspectiva nenhuma e com a impossibilidade de construir um futuro. A mulher fica grvida e o marido se mata. Com o que vo a obter do seguro de vida, pensa ele, o restante da famlia poder sobreviver uns anos e fazer o filho crescer. a tcnica da morte, o seguro de vida, uma forma abstrata, que faz com que o marido se mate para garantir famlia um pouco de dinheiro.
50 Idem: 85.51 Idem: 68. Os capitais vo e vm, driblando a justia local e cometendo atos censurveis em pases estrangeiros.
Aparentemente conseguindo o impossvel: esconder o fato de que todo pas estrangeiro tambm um pas local.52 Idem: 97.
8
A morte s tinha dado um respiro para, segundo a sua prpria justificativa pblica, oferecer a
esses seres humanos que tanto me detestam uma pequena amostra do que para eles seria viver
sempre53.
A vivncia do carter problemtico da ausncia da morte, faz no s comemorar a sua volta,
mas naturalizar a normalidade e a bondade da sua presena. Isso acompanhado de uma
sensao de alvio, de legtimo desafogo54.
Na verdade, a aparente volta normalidade no seno a continuidade de um processo de
dissoluo que tenta se disfarar de estabilidade. Nele, confundem-se as instituies e mecanismos
do periodo de calma com os de crise. A maphia, por exemplo, adquirindo funes novas, visa o
monoplio absoluto das mortes e dos enterramentos dos seres humanos, assumindo no mesmo
passo a responsabilidade de manter a demografia nos nveis em cada momento mais convenientes
para o pas55.
um processo fora do controle total dos antigos detentores do poder. Tanto assim que a
morte volta matando tambm a quem se beneficia dela, e o presidente da associao das funerrias
o primeiro a morrer, com a ltima badalada da meia-noite56. Veremos depois como foge do
controle no s dos homens, mas da prpria morte.
A morte faz a morte voltar, mas agora por outros mtodos. J dissemos que no h crueldade
nesse trabalho impessoal que leva adiante a morte. No entanto, mesmo na sua impessoalidade e
automaticidade irreflexiva, a morte parece ter uma memria nostlgica de um tempo em que ela
mesma, a morte, era vida. A morte conhece tudo a nosso respeito, e talvez por isso seja triste. O
que ela traz vista um esgar de sofrimento, porque a recordao do tempo em que tinha boca, e
a boca lngua, e a lngua saliva, a persegue continuamente57. Talvez seja por isso que ela decide
renovar seus mtodos, torn-los mais humanizados. Ela reconhece que o injusto e cruel
procedimento que vinha seguindo, que era tirar a vida s pessoas falsa-f, sem aviso prvio, sem
53 Idem: 100.54 Idem: 115. A crise do capital oferece uma amostra aos seres humanos que o detestam do que significa viver sem ele.
A experincia de sua ausncia lamentvel. Quando no pode ser superada nesse momento por outra forma, a crise do capital gera, paradoxalmente, uma adeso mais forte a essa ordem social.
55 Idem: 117.56 Idem: 105. A acumulao do capital tambm mata os prprios capitalistas, pelo menos enquanto capital
personificado (Marx, 2002: 187); o bem do capital geral as vezes o mau para um capital em particular. A crise um momento de falncia para muitos capitais particulares, um momento fundamental de concentrao de capital.
57 Idem: 139. O dinheiro j fez parte, enquanto meio de circulao, da circulao mercantil simples; esta tinha como objetivo a satisfao de determinadas necessidades (Marx: 2002, 185). A tcnica j esteve ao nvel do homem; assim sendo, seu peso material no era sobre-humano (Ellul, 1968: 80). S destacamos aqui a analogia do que chamamos metaforicamente de nostalgia de um momento passado de essas estruturas. mais complexa a determinao de se esse momento existiu historicamente no caso do dinheiro. E tambm se seria possvel manter a funo do dinheiro enquanto meio de circulao. De fato, Marx encarrega-se de demostrar a metamorfose necessria do dinheiro em capital (Cfr. Marx, 2002: captulo 4).
9
dizer gua-vai, se tratava de uma indecente brutalidade. Avisa, ento, que a partir de agora toda a
gente passar a ser prevenida por igual e ter um prazo de uma semana58.
Ao lado da nostalgia, podemos encontrar outras razes, at mais importantes, dessa mudana
de mtodos. A morte explica para a gadanha, sua eterna companheira: com esse teu gosto pelos
mtodos expeditivos, a questo j estaria resolvida, mas os tempos mudaram muito ultimamente,
h que actualizar os meios e os sistemas, pr-se a par das novas tecnologias, por exemplo, utilizar
o correio electrnico, tenho ouvido dizer que o que h de mais higinico59. uma certa eficincia
tcnica, que est por trs disso. que, pensando bem, matar de maneira mais higinica no deixa de
ser matar. Essa atualizao s poderia trazer benefcios reais para a reputao da prpria morte entre
os homens. Pelo menos aqueles que se deixassem levar por essa propaganda enganosa.
A morte se decide pelo envo de cartas personalizadas. No o correio eletrnico, mas as cartas
tradicionais. Na verdade, no exatamente tradicionais, posto que de cor violeta e que levam como
texto: Caro senhor, lamento comunicar-lhe que a sua vida terminar no prazo irrevogvel e
improrrogvel de uma semana, aproveite o melhor que puder o tempo que lhe resta, sua atenta
servidora, morte60. A morte enva cada uma dessas cartas, incessantemente, sem respiro e sem
problemas.
At que, um dia, se registra uma falha operacional61, na qual algum que tinha que morrer,
no morre. Mesmo contra a vontade do sujeito-morte, vontade que na verdade no mais que a
execuo exitosa de uma fatalidade j predefinida, sem margem de deciso por parte dela62, o ato-
morte no acontece. Na verdade, nunca se viu que no morresse quem tivesse de morrer. E agora,
insolitamente, um aviso assinado pela morte, de seu prprio punho e letra, um aviso em que se
anunciava o irrevogvel e improrrogvel fim de uma pessoa, tinha sido devolvido origem63. Isso
pe em questo a inexpugnabilidade da morte soberana, em que, por simples definio do conceito,
seria inadmissvel que se pudesse apresentar qualquer absurda excepo64.
58 Idem: 100.59 Idem: 137. O capital apaga a memria da violncia extra-econmica que implicou a imposio inicial dessa forma
social. No processo de sua consolidao foi higienizando seus mtodos, ainda que sempre restasse a violncia como recurso sempre disponvel. No momento de crise, os mtodos expeditivos voltam a ter mais centralidade. Tambm a tcnica foi se humanizando. Foi se adaptando ao homem. Mas na civilizao tcnica o homem nunca passou de objeto para a tcnica (Cfr. Ellul, 1968). Em ambos os casos, um processo de aparente humanizao que, na verdade, acaba integrando mais o homem a um sistema que o submete.
60 Saramago, 2005: 125.61 Idem: 142.62 A morte que se especializa nos seres humanos , junto s mortes dos outros reinos, uma personificao da Morte.
Eu no sou a Morte, sou simplesmente morte [...] um dia viro a saber o que a Morte com letra grande, nesse momento, se ela, improvavelmente, vos desse tempo para isso, percebereis a diferena real que h entre o relativo e o absoluto (Idem: 112).
63 Idem: 138.64 Idem: 135.
10
O carter inslito, absurdo, excepcional do acontecimento, deixa morte perplexa e furiosa:
Uma fora alheia, misteriosa, incompreensvel, parecia opor-se morte da pessoa,
desacreditando assim o destino, a fatalidade; ningum no mundo ou fora dele teve alguma vez
mais poder do que eu, eu sou a morte, o resto nada. Mas, fora essa arrogao de onipotncia
provocado pela reputao manchada, a morte tambm fica aparentemente enfraquecida: a morte
parece agora muito mais pequena, como se a ossatura se lhe tivesse encolhido, ou ento foi sempre
assim e so os nossos olhos, arregalados de medo, que fazem dela uma giganta. Coitada da
morte65.
Como que uma carta enviada pela morte pode voltar dessa maneira? Ora, as cartas s
podem ir aonde as levam, no tm pernas nem asas, e, tanto quanto se sabe, no foram dotadas de
iniciativa prpria, tivessem-na elas e apostamos que se recusariam a levar as notcias terrveis de
que tantas vezes tm de ser portadoras66. Ento, a morte vai enfrente para resolver a falha. E o faz
com meios absolutamente excepcionais, jamais usados em toda a histria67. Para entregar a carta
cor violeta nas prprias mos do homem que tem que morrer, a morte se faz mulher, transforma-se
num exemplar da espcie de quem inimiga68.
Mimetiza-se com o inimigo, com o intuito de combat-lo. Torna-se corpo humano, com suas
caractersticas, at com suas fragilidades; tira da bolsa uns culos escuros e com eles defende os
seus olhos agora humanos dos perigos de uma oftalmia69. Mas os acontecimentos no se do como
a morte previu. No processo, que foge do seu controle, a morte acaba se contrapondo sua natureza
assassina, acaba se humanizando.
H, no final, um momento de aparente escolha. A morte desiste da tarefa que a tinha levado
at a casa daquele homem que se resistia a morrer e se entrega definitivamente ao processo de
humanizao. Ela pensa que j no preciso esse lugar que ela ocupa, que a partir de agora haver
de suceder com a vida, que por si mesma vai preparando o seu fim, sem precisar de ns70, dela e
das outras mortes, aquelas que no se dedicam aos humanos. E percebe que at ela mesma pode
acabar um dia, e pela primeira vez pensar nisso lhe causou este sentimento de profundo alvio,
como algum que, havendo terminado o seu trabalho, lentamente se recosta para descansar71.
65 Idem: 140-3.66 Idem: 136. Impossvel no ouvir aqui ecoando as palavras de Marx: Las mercancas no pueden ir por s solas al
mercado ni intercambiarse ellas mismas. Tenemos, pues, que volver la mirada hacia sus custodios, los poseedores de mercancas. (Marx, 2002: 103)
67 Saramago, 2005: 165.68 Idem: 181.69 Idem: 183.70 Idem: 160.71 Idem: 168.
11
Mas foi antes disso que sentiu uma espcie de obscuro temor, como se comeasse a ter medo
de si mesma72. Foi antes disso que o co se levantou do tapete e subiu para o seu regao que
parecia de menina, e ento a morte teve um pensamento dos mais bonitos, pensou que no era
justo que a outra morte viesse um dia apagar o brasido suave daquele macio calor animal73. Foi
antes disso que, sem control-lo, deixou cair uma lgrima74. Antes disso, mos felizes faziam
murmurar, falar, cantar, rugir o violoncelo, eis o que faltou a rostropovitch, esta sala de msica,
esta hora, esta mulher75.
Esta sala, esta hora, esta mulher em que se tornou a morte. A concretude inmensurvel
desses momentos, que numa batalha permanente fogem abstrao da forma opressora, foi o que
acabou de transformar a morte em mulher. E, no seu quarto do hotel, a morte, despida, est parada
diante do espelho. No sabe quem 76.
Perplexa, ela percebe pela primeira vez o automatismo irreflexivo da sua prtica. J no
consegue recordar-se de quem foi que recebeu as instrues indispensveis ao regular desempenho
da operao de que a incumbiam. Puseram-lhe o regulamento nas mos, apontaram-lhe a palavra
matars como nico farol das suas atividades77. Percebe pela primeira vez que estava sendo uma
marionete de um poder superior tal vez inexistente, ou pelo menos existente to-somente no
momento em que se acredita nele. So estes, diz o narrador, os perigos do automatismo das
prticas, da rotina embaladora, da prxis cansada78.
O romance comea assim: No dia seguinte ningum morreu79. E acaba desta maneira: No dia
seguinte ningum morreu80.
verdade, as frases so idnticas. Mas o seu sentido totalmente diferente. Em ambos casos
ningum morre. Mas, no segundo, o lugar da morte no existe mais.
72 Idem: 188.73 Idem: 156.74 Idem: 192.75 Idem: 207.76 Idem: 200.77 Idem: 160-1.78 Idem: 162. Infelizmente, a esta altura dos acontecimentos o capital e o sistema tcnico so poderes objetivos,
existem ainda que no acreditemos neles. O processo pode at fugir do seu controle. Mas no pode acontecer ao capital e tcnica o que aconteceu morte de Saramago. No podem, pela sua prpria natureza, se entregar humanizao. So os homens que compreendendo a no-necessidade eterna desses poderes, e sobrepondo-se ao automatismo das prticas, devem acabar com o lugar do capital e do sistema tcnico, humanizando assim as relaes sociais.
79 Idem: 11.80 Idem: 207.
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A imaginao romanesca e a elaborao terica
S restam dizer algumas palavras ao respeito do dilogo construdo neste trabalho entre a
elaborao terica e a imaginao romanesca. A fecundidade desse entrecruzamento no pode ser
justificada a priori ou a posteriori. Deve ser sustentada no prprio texto, e isso que tentamos fazer.
No entanto, interessante trazer para a superfcie algumas reflexes sobre a relao da obra
de arte com a realidade que se encontram disfaradas no romance de Saramago.
Esse romance um texto que se pensa a si mesmo. Define-se como uma, embora certa,
inverdica histria sobre as intermitncias da morte81. Essa conjuno do certo e do inverdico
sintetiza toda uma reflexo sobre a natureza do realismo da criao artstica, que pelas mediaes da
fico busca dizer algo sobre o real.
Ainda mais, se diz que pela congnita irrealidade da fbula, compreendemos sem custo que
tais faltas prejudicam seriamente a sua credibilidade. O interessante aqui que o campo em que se
combate essa irrealidade o prprio romance; alude-se a fatos que esto imersos e que provam sua
existncia na prpria fico: No pode haver melhor prova dele que a imagem da prpria morte
que temos diante dos olhos, sentada numa cadeira e embrulhada no seu lenol, e tendo na
orografia da sua ssea cara um ar de total desconcerto82.
a forma83 da obra de arte que faz com que ela fale do real. E a forma que encanta
prpria morte quem, no brevssimo estudo de chopin, opus vinte e cinco, nmero nove, em sol
bemol maior teve pela primeira vez na sua longussima vida a percepo do que poder chegar a
ser uma perfeita convizinhana entre o que se diz e o modo por que se est dizendo, transposio
rtmica e meldica de toda e qualquer vida humana84.
81 Idem: 40.82 Idem: 136.83 A fidelidade realista [do romance], se que existe, no da ordem do documento [...] Prende-se intuio e
figurao de uma dinmica histrica profunda (Schwarz: 1987: 131). formalizao esttica de um ritmo geral da sociedade (idem: 132). Trata-se da imitao de uma estrutura histrica por uma estrutura literria (idem: 135). A juno de romance e sociedade se faz atravs da forma, princpio mediador que organiza em profundidade os dados da fico e do real, sendo parte dos dois planos (Idem: 141).
84 Idem: 172.
13
A Tcnica, segundo Ellul
Ellul percebe que um lugar comum dos romancistas fantsticos imaginar o que seria de ns
se fosse subitamente interrompido o uso dos instrumentos85. Se a Morte deixava de funcionar em
Saramago, se o Capital d alarmantes sinais de crise, aqui podemos respirar aliviados. Ellul no
romancista, e felizmente nos mostra um mundo no qual a Tcnica sim funciona.
Ellul consegue na trajetria do livro tornar o alvio do leitor em desespero, baseado exatamente
no fato da Tcnica funcionar, de uma maneira mais poderosa e onipresente que nunca, conformando
uma Civilizao Tcnica.
Tentamos expor aqui os fundamentos do seu desespero, que tambm nosso.
Depois analisamos analogias da estrutura da Tcnica tal como apresentada por Ellul com a
estrutura do Capital tal como desenvolvida por Marx. Finalmente propomos encaminhamentos para
pensar a relao entre ambas estruturas.
Marx comeava sua exposio d'O Capital com a anlise da mercadoria, por ser a forma
elementar da riqueza nas sociedades nas quais domina o modo de produo capitalista86. Alis, ele
atentava para o fato de que a mercadoria parecia ser uma coisa trivial, de compreenso imediata, e
a sua anlise demonstrava que era um objeto endemoninhado, cheio de sutilezas metafsicas e de
argcias teolgicas.87
Quase um sculo depois, Ellul decide comear pelo fato tcnico. Isso no casual nem
arbitrrio. Nenhum fato tem, para ele, tanta importncia no mundo moderno e nenhum fato mais
mal conhecido88. Ele pretende ir alm da compreenso trivial do tcnico. Mostrar tambm como
um fenmeno endemoninhado, metafsico, teolgico. A percepo dessa complexidade parece fugir
no s do olhar do homem comum, mas tambm dos prprios pensadores da tcnica.
por conta disso que Ellul precisa superar uma srie de reducionismos das concepes
correntes de tcnica.
Distingue tcnica de mquina. Se a existncia da mquina foi o ponto de partida para a tcnica,
atualmente a segunda tem assumido autonomia quase completa em relao primeira, e aplica-se a
domnios muito alm da vida industrial. Por isso, no se pode abordar to somente na mquina a
questo da tcnica em sua totalidade89.
85 Ellul, 1968: 310.86 Marx, 2002: 43. 87 Idem: 87.88 Ellul, 1968: 1.89 Idem: 2.
14
Julga limitada a atribuio do carter exclusivo da produtividade tcnica. Ele observava que
grandes progressos na poca, por exemplo, em certos mtodos referentes ao homem como a
cirurgia, a psico-sociologia, que nada tinham a ver com a produtividade. E ainda atentava para o
monstruoso desenvolvimento das tcnicas de destruio90.
Observa tambm que a maior parte das operaes tcnicas no eram mais operaes manuais.
Seja porque a mquina se substitui ao homem, seja porque a tcnica se torna intelectual91.
Vincula a tcnica magia, analisadas comumente em oposio. Por um lado, aceita a
demonstrao de Mauss de que a magia rigorosamente uma tcnica: exprime a vontade do
homem em obter certos resultados de ordem espiritual suficientemente precisos, e o faz atravs do
formalismo e do ritualismo92. A magia corresponde tambm, para Ellul, aos caracteres da tcnica
primitiva trabalhados por Leroy-Gourhan: um envelope do homem, uma espcie de vesturio
csmico, rgo intermedirio entre ele e o meio, que serve como meio de defesa e de assimilao e
permite-lhe tirar proveito dos poderes que lhe so estranhos ou hostis. Alis, provavelmente na
magia que a tecnicidade inicialmente se exprime93. E o inverso tambm verdadeiro, pois a magia
tambm se exprime na tcnica atual: com as tcnicas do homem, ns nos ligamos imensa corrente
das tcnicas mgicas94. Portanto, a tcnica no se ope na origem magia e atualmente a continua.
Ellul no pretende, atravs dessas problematizaes, formular na teoria uma concepo mais
elaborada ou complexa de tcnica. O conceito do qual ele parte muito simples: nada mais do
que meio ou conjunto de meios95. Junto superao dos reducionismos esse conceito permite
apreender na realidade o fenmeno em toda a sua abrangncia e extenso.
Assim, possvel apreender tambm como tcnicas toda uma srie de prticas no manuais, no
mecnicas, no exclusivamente produtivistas. Fundamentalmente aquelas em rpido e profundo
desenvolvimento que tem como foco o homem. No caso da propaganda em que a operao de
carater moral, psquico e espiritual, por exemplo, no deixa, no entanto, de ser tcnica96.
A in-comum concepo de tcnica que Ellul mobiliza tem importantes desdobramentos na
caracterizao que ele faz do mundo contemporneo. O leva a polemizar com contemporneos
sobre as tendncias sociais em andamento. Toynbee, por exemplo, a partir de uma concepo
restrita de tcnica, faz uma distino entre a idade da tcnica e a idade da organizao e prope que
90 Idem: 15.91 Idem: 13.92 Idem: 24.93 Idem: 25.94 Idem: 26. 95 Idem: 19.96 Idem: 14.
15
as sociedades tm superado a fase da tcnica. Para Ellul, diferentemente, a organizao a tcnica
aplicada vida social, econmica ou administrativa. exatamente o mesmo fenmeno que assume
um aspecto novo, ou ainda, seu verdadeiro aspecto, e se desenvolve em escala mundial, na escala
universal da atividade. A noo de organizao, que sucede da tcnica, de certo modo seu
contrapeso, seu remdio, uma viso consoladora da histria97.
Desta maneira, a civilizao atual aparece como sendo no menos seno mais tcnica que
qualquer uma das precedentes. Qual a importncia disso? Contrria ao consolo, permite perceber
que os mesmos problemas suscitados pela tcnica mecnica sero levados potncia x98.
E ainda que haver novos problemas derivados do prprio fenmeno tcnico. A distino entre
tcnica e mquina, por exemplo, permite perceber que a situao da tcnica radicalmente
diferente da situao da mquina. O homem pode tomar posio em relao mquina. Ao
contrrio, a tcnica deixa de ser ela mesma objeto para o homem, torna-se sua prpria substncia:
no mais colocada em face do homem, mas nele se integra e o absorve progressivamente99.
A chave de leitura que Ellul desenvolve permite que os desafios ou dilemas do mundo atual
venham mais tona. Que a tcnica seja concebida to somente como conjunto de meios no
diminui a importncia do problema, pois nossa civilizao antes de mais nada uma civilizao de
meios e tudo leva a crer que, na realidade da vida moderna, os meios sejam mais importantes do
que os fins.100
Para compreender essa reviravolta na qual os meios ganham premncia, Ellul precisa fazer um
pouco de histria. Ele reconhece a importncia das obras de Leroy-Gourhan, Lafvre de Nottes,
Bloch. Mas so ainda focadas na tcnica mecnica. A histria da tcnica, em sua forma plena aqui
indicada, ainda desconhecida101
No entanto, ainda que h histria no livro de Ellul, ele no pretende realmente fazer um livro
histrico. Ellul se prope fazer uma biologia da tcnica102, concebida nesses termos amplos. Como
entender essa idia de biologia? possvel pens-la como uma fenomenologia, no sentido
hegeliano103. Ou como um desenvolvimento dialtico e lgico-histrico de um conceito, tal como
feito por Marx com o capital.
97 Idem: 10-11. 98 Idem: 11. 99 Idem: 5.100Idem: 19.101Idem: 23.102Idem: 22. 103Para John Wilkinson, tradutor para a edio em ingls do livro de Ellul, essa obra pode ser considerada uma
fenomenologia do estado de animo tcnico [a phenomenology of the technical state of mind] (Cfr. Ellul, 1964: xiii).
16
A tcnica, segundo os antigos
Ellul faz um percurso por algumas experincias histricas procurando observar a relao que
elas estabeleceram com a tcnica. Mais rigorosamente, o lugar real da tcnica nas diversas
civilizaes que nos precederam104.
A virtude grega do autodomnio, da moderao fez com que a atividade tcnica seja mantida
sob suspeita porque apresenta sempre um aspecto de dominao bruta ou de desmesura. A
preocupao com o equilbrio, a harmonia, a medida, choca com o poder da desmesura incluso na
tcnica e recusa-se todo o conjunto por causa de suas virtualidades. Isso resulta num esforo
consciente de economia dos meios e de reduo do domnio tcnico105.
No caso do direito romano enquanto tcnica, ele no o fruto de um pensamento abstrato, mas
de uma viso exata da situao concreta, que se procura utilizar com o mnimo possvel de meios.
Procura-se um equilbrio entre o fator puramente tcnico e o fator humano. E tem uma finalidade
precisa: a coerncia interna da sociedade. uma tcnica que no se justifica por si mesma, que
no tem sua razo de ser no prprio desenvolvimento106.
Nos sculos X a IV, Ellul encontra que a procura da justia diante de Deus, essa medida da
tcnica com critrios diferentes dos da prpria tcnica, o grande obstculo oposto pelo
Cristianismo a esse progresso107. Relativizando as conseqncias econmicas atribudas Reforma,
afirma que ser em um mundo j subtrado influencia preponderante do Cristianismo que se vai
desenvolver o momento tcnico108.
No humanismo do SXVII, oriundo do humanismo do Renascimento, Ellul destaca no apenas o
conhecimento e respeito mas autntica supremacia dos homens, que se afirma em relao aos
meios. Esse humanismo, ligado a um universalismo do homem, no permite a ecloso das tcnicas.
Observa-se aqui uma recusa permanente em submeter-se a uma lei uniforme, mesmo em seu
benefcio109.
Ellul ento resgata de pocas passadas o fato da tcnica se orientar por critrios externos a ela
prpria; de se encontrar um equilbrio entre o fator tcnico e o humano; da tcnica no se justificar
por ela mesma. Moderao, economia de meios, finalidade externa tcnica. Recusa a se submeter
a uma lei uniforme. Supremacia dos homens que se afirmam em relao aos meios.104Ellul, 1968: 67.105Idem: 29-30.106Idem: 31-2.107Idem: 39.108Idem: 36.109Idem: 43.
17
Por conta disso, naquelas civilizaes a tcnica aplicava-se apenas a domnios bastante
limitados, tanto no plano social quanto no individual110.
Ellul lembra quemesmo muito tarde na histria, o trabalho uma condenao. Assim,o tempo
em que se utilizam as tcnicas reduzido em relao ao tempo vazio consagrado ao sono,
conversa, aos jogos111.
Por outro lado, na idade mdia, por exemplo, o conforto no estava ligado ordem tcnica; era
um sentimento de ordem esttica e moral, cujo primeiro elemento era o espao112. No sculo XV, a
tcnica est subordinada a uma viso plstica do mundo que lhe impe ao mesmo tempo limites e
exigncias. Trata-se do funcionamento de um complexo 'arte-tcnica'113. Por uma preocupao
esttica, no se podia admitir que um instrumento no fosse belo. Isto comporta a introduo da
gratuidade e da inutilidade no aparelho eminentemente til e eficaz114.
A limitao do domnio da tcnica se manifesta tambm na tendncia a utilizar at o fim os
meios que se possui, enquanto possam servir. A civilizao no est orientada no sentido da
criao de novos instrumentos, que correspondessem s novas necessidades, mas em uma
aplicao cada vez mais extensa, mais perfeita, e mais requintada dos meios. A nfase est posta
no homem que utiliza e no na coisa utilizada; desta maneira, procura-se a perfeio do homem e
no a do instrumento115.
Outra caracterstica fundamental do mundo tcnico anterior ao sculo XVIII, que tem a ver
ainda com seu domnio limitado, a da tcnica ser sempre local. Isto , como uma civilizao no
permutvel com outra, a tcnica permanecia fechada nesse quadro e no podia tornar-se universal
assim como a civilizao na qual estava inserida. Geograficamente no podia haver transmisso
tcnica porque a tcnica no era mercadoria annima, mas trazia a marca de toda uma
civilizao116. A tcnica era subjetiva em relao civilizao. Evolua, ento, na dependncia de
todo um conjunto de fatores que com ela deviam variar117.
Isso tudo gera uma extrema diversidade de tcnicas de acordo com os lugares, para atingir um
mesmo resultado, diversificao at irracional dos modelos e uma evoluo muito lenta118.
110Idem: 67.111Idem: 67-8.112Idem: 68.113Idem: 72.114Idem: 75.115Idem: 69-70.116Idem: 70-1. Retenhamos a idia de que a tcnica no era mercadoria annima, pois ser importante em um
momento posterior do nosso raciocnio.117Idem: 72.118Idem: 72-4.
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Domnio limitado e evoluo lenta da tcnica. Ellul afirma que se trata de civilizaes pobres.
No entanto, no passo imediato posterior o conceito de pobreza ou riqueza tacitamente
problematizado. Ellul tem a capacidade de ver o avesso do que, desde uma perspectiva moderna,
estamos acostumados a ver to s como atraso: naquelas civilizaes, em compensao, as
atividades tcnicas nelas ocupam lugar restrito. Os homens no ligavam seu destino ao progresso
tcnico. A tcnica era um instrumento relativo e no um deus119. Isso implica que o homem achava-
se sempre altura de suas tcnicas, dominando seu uso e suas influncias120 o que lhe permite
repudi-las ou dispens-las. H uma possibilidade de escolha, no apenas quanto sua vida
interior mas quanto forma de sua vida. E essa escolha depende de uma deciso e uma tomada de
conscincia, pois o peso material das tcnicas ainda no sobre-humano121. Podemos afirmar que
essa submisso das tcnicas ao homem122 constitui uma verdadeira medida de riqueza para aquelas
civilizaes.
Eis um fator de equilbrio da civilizao ao mesmo tempo que de morosidade da evoluo
geral123. Mas morosidade no e estagnao. Nessas experincias, a evoluo uma interao da
eficcia tcnica e da deciso eficaz do homem em face dela. Ellul parece estabelecer assim um
modelo de relao entre o homem e a tcnica. Tambm prev a possibilidade de apagamento de um
dos plos de interao. Assim, quando a eficcia tcnica desaparece, a estagnao social e humana
forada. E se for o contrrio? se desaparecer a deciso eficaz do homem em face da tcnica?
Quanto outra hiptese, a que estamos vivendo124.
Em que mundo vivemos?
No sculo XVIII verificamos a ecloso brusca do progresso tcnico125.
A percepo fundamental de Ellul que a mudana no s quantitativa ou de acelerao. Para
compreender essa mudana, preciso distinguir operao tcnica, fenmeno tcnico e civilizao
tcnica.
A operao tcnica engloba todo trabalho feito com certo mtodo tendo em vista atingir um
resultado. Aqui intervm a razo, na procura da maior eficcia.
119Idem: 68.120Idem: 74.121Idem: 80.122Idem: 74.123Idem: 74.124Idem: 80. 125Idem: 43.
19
O fenmeno tcnico a 'procura do melhor meio em todos os domnios'. produzido pela dupla
interveno da razo e da tomada de conscincia de todos os homens das vantagens da tcnica.
Consiste na preocupao da imensa maioria dos homens de nosso tempo em procurar em todas as
coisas o mtodo absolutamente eficaz, no mais o meio relativamente melhor.
Isso produz uma rpida e quase universal extenso da tcnica. Finalmente, o acmulo desses
meios que produz uma civilizao tcnica126.
Desta maneira, o fenmeno tcnico atual quase nada mais tem em comum com o fenmeno
tcnico at os tempos modernos. Por que? A tcnica no encontra mais limitao alguma: estende-
se a todos os domnios. Alm da ilimitada multiplicao dos meios, essa tcnica, tornada
perfeitamente objetiva, que se transforma como uma coisa, seja qual for o meio ou o pas, conduz
unidade da civilizao127.
Entrar no mistrio dessa coisa aparentemente simples que a mercadoria, levou Marx a analisar
a ordem do capital.
Em Ellul, a biologia da tcnica leva-o anlise da civilizao tcnica. Ilimitada, expansiva,
objetiva, unitria. Esses so caracteres que a tcnica assume no quadro dessa civilizao,
diferentemente das anteriores. A importncia aqui no da tcnica em si, mas da ordem social na
qual a tcnica funciona. Em outros termos, no so os caracteres intrnsecos da tcnica que nos
podem revelar a mudana ocorrida, mas os caracteres da relao entre o fenmeno tcnico e a
sociedade128. O que Ellul em verdade est analisando para distinguir a civilizao tcnica das
civilizaes anteriores a situao da tcnica na sociedade129. E de fato essa anlise o leva a
afirmar que no h nenhuma medida comum entre a tcnica atual e a anterior; quase no se trata
do mesmo fenmeno130. Portanto, as suas concluses s servem para a sociedade atual enquanto
mantenha sua estruturao.
No levar isso a srio conduz a uma interpretao ao meu ver equivocada e infecunda das
formulaes de Ellul como sendo fatalistas, a-histricas, abstratas, tecnfobas, crticas da tcnica
em si131.
O debate anlogo s polmicas em relao ao carter histrico-concreto ou ontolgico-
126Idem: 20-1.127Idem: 82.128Idem: 65.129Idem: 66.130Idem: 148.131Por exemplo, Andrew Feenberg, reconhecido estudioso contemporneo da tecnologia, quem em seu balano dos
estudos sobre o assunto situa a Ellul, junto a Heidegger, entre os defensores da teoria substantiva; e os califica de fatalistas. Nota curiosa: Feenberg chegou a ser aluno de Marcuse na Universidade de Berkeley, nos anos '60 (Cfr. Feenberg, 2002: 3-35).
20
universal da obra do Marx. Ele, a rigor, analisa a especificidade do modo de produo capitalista.
Racionalidade e artificialidade so caracteres da tcnica que Ellul quase no trabalha por
considerar evidentes. Ele se detm nos seguintes caracteres essenciais do fenmeno tcnico atual:
automatismo, auto-crescimento, unicidade (ou insecabilidade), universalismo, autonomia132.
Veremos no final como esses caracteres fazem da tcnica na civilizao tcnica uma estrutura muito
semelhante ao capital.
Caracteres da tcnica moderna
No interior mesmo do campo tcnico, o automatismo consiste em que a orientao e as
escolhas tcnicas se efetuam por si mesmas. Entre dois mtodos, um se impe fatalmente porque
seus resultados so contados, medidos, patentes e indiscutveis. Por conta disso, o homem no
mais, de modo algum, o agente da escolha133.
Ora, quando samos do propriamente tcnico encontramos todo um conjunto de meios no
tcnicos em relao aos quais funciona uma espcie de liminao prvia134. Aqui, no se trata da
possibilidade ou no de escolha entre dois mtodos tcnicos, mas da relao entre um meio tcnico
e um meio que no o . Parece que estamos, portanto, fora do domnio do automatismo. Na verdade,
o encontramos novamente.
No h escolha possvel em presena de um resultado a obter entre o meio tcnico e o meio no
tcnico. Aqui tambm a escolha feita a priori. Isto porque a uma potncia tcnica s se pode
opor outra potncia tcnica. E ainda, o meio em que penetra uma tcnica torna-se todo ele, e s
vezes de um s golpe, um meio tcnico. Isso leva Ellul a avaliar o momento em que escreve como
sendo a fase da evoluo histrica de eliminao de tudo aquilo que no tcnico135. Esse carter
exclusivo da tcnica nos revela uma das razes de seu progresso fulminante. Ter a resposta tcnica
hoje em dia uma questo de vida e morte para todos136.
Outro carter da tcnica moderna, vinculado com o anterior, o auto-crescimento. Ellul
polemiza com as previses de amortecimento do progresso tcnico que estavam sendo feitas na
132Ellul, 1968: 82. 133Idem: 85.134Idem: 85.135Idem: 87. 136Idem: 88.
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poca e que so, segundo ele, desmentidas pelos fatos. O que estava acontecendo era uma mudana
de setor da atividade tcnica para o setor tercirio. Alis, ele previa por conta da mecanizao desse
setor a mesma crise social do no-emprego que se verifica no setor secundrio.
Ao contrrio ento do suposto amortecimento, Ellul prope duas leis para as sociedades na
civilizao tcnica: nelas, o progresso tcnico irreversvel; e ele tende a efetuar-se de acordo com
uma progresso geomtrica.
Essas leis no so arbitrrias nem resultado to somente de uma comprovao emprica. Ele
chega a elas pela anlise da conformao de um sistema tcnico e dos seus desdobramentos.
importante nessa anlise a distino do nvel individual e geral para pensar a progresso do
desenvolvimento tcnico. Ela permite enxergar o seguinte: se para cada tcnica tomada
individualmente, h barreiras, que podem ou no ser transpostas; e h ainda um desenvolvimento
desigual, entre as diversas reas de expanso, e tambm em cada rea, entre os diversos setores da
tcnica. Ao mesmo tempo, em relao ao fenmeno tcnico em conjunto h atualmente uma
ilimitada abertura para o progresso.
Um ponto fundamental na argumentao de Ellul que esse progresso no simplesmente uma
possibilidade, mas uma necessidade.
Vejamos como explica isso: a tcnica, desenvolvendo-se, apresenta problemas inicialmente
tcnicos, os quais, por isso mesmo, s podem ser resolvidos pela tcnica. O nvel atual reclama um
novo progresso e esse progresso aumenta, ao mesmo tempo, os inconvenientes e os problemas
tcnicos, exigindo em seguida, ainda outros progressos.
Ellul mobiliza exemplos que tm a ver com a relao da tcnica com os recursos naturais. Pelo
progressivo esgotamento das riquezas naturais que provoca o desenvolvimento tcnico,
indispensvel preencher esse vazio por um progresso tcnico mais rpido137. Ou ento, a poluio
que resulta do desenvolvimento tcnico, gera a necessidade da tcnica para purificar a gua.
Vemos como o autocrescimento se d pela solidariedade das tcnicas que se combinam entre
elas. Em outros termos, eis como a tcnica se engendra a si mesma.138
De fato, o desenvolvimento tcnico se torna pesquisa annima, coletiva. E assim, se transforma
e progride quase sem interveno decisiva do homem139. No s annima, mas abstrata e portanto
empobrecedora: o homem, em sua realidade mais comum, inferior, que pode agir e no no que
tem de superior e de particular, pois as qualidades que a tcnica requer para evoluir so
precisamente qualidades adquiridas, de ordem tcnica e no uma inteligncia particular140.
137Podemos desdobrar daqui mais uma problematizao do conceito de riqueza: o desenvolvimento tcnico esgota as riquezas naturais. , portanto, um fator de pobreza.
138Idem: 92-96.139Idem: 88-90.140Idem: 96.
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Nesse processo, toda uma espontaneidade, cujas leis e fins ignoramos, cria-se nesse domnio.
Nesse sentido, pode falar-se de 'realidade' da tcnica, com seu corpo, sua entidade particular, sua
vida independente de nossa deciso. A evoluo das tcnicas torna-se ento exclusivamente causal,
perde qualquer finalidade.
Causal e que perde qualquer finalidade quer dizer que no so os desejos dos produtores que
comandam, a necessidade tcnica da produo que se impe aos consumidores. Produz-se aquilo
que a tcnica pode produzir, tudo o que ela pode produzir, e isso que o consumidor recebe141.
Essa necessidade tcnica comandando o processo leva Ellul a outro carter fundamental para
compreender o moderno fenmeno tcnico, o da autonomia.
Ellul analisa o carter de autonomia da tcnica em relao a diferentes poderes.
Condiciona e provoca as mudanas sociais, polticas e econmicas. E no sentido inverso, no
so mais as necessidades externas que determinam a tcnica, so suas necessidades internas, com
suas leis particulares e suas determinaes prprias.
No aceita limitao alguma em relao moral e aos valores espirituais.
Procura dominar as leis fsicas ou biolgicas, ainda que no tenha verdadeira autonomia em
relao a elas. Cada vez que a tcnica entre em choque com o obstculo natural, tende a contorn-
lo, seja substituindo o organismo vivo pela mquina, seja modificando esse organismo de modo a
que no mais apresente reao especfica142.
Em relao ao homem, a tcnica tem por objeto eliminar toda a variabilidade, a elasticidade
humana, pois toda interveno do homem uma fonte de erro e de impreviso. A combinao
homem-tcnica s bem sucedida quando o homem no tem responsabilidade nenhuma. Ellul
atentava para o avano da ciberntica e do processo de automao143.
No autnoma em relao ao tempo medido pelo relgio. As mquinas, como as regras
tcnica abstratas, esto submetidas lei da rapidez, e a coordenao supe o ajustamento dos
tempos. Temos, ento, uma obedincia ao cronmetro144.
Os carteres at aqui desenvolvidos conduzem a outro mais. A expanso que vamos no auto-
crescimento como acumulao de meios pela solidariedade entre eles, completa-se agora com uma
expanso universalizante. Faz parte tambm do automatismo, pelo qual no s se acumula
internamente, mas invade os espaos externos, os meios no-tcnicos.
141Idem: 96-7.142Idem: 135-6.143Idem: 137-8.144Idem: 140.
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Geograficamente, o universalismo tcnico refere-se simples verificao de que a tcnica
alcana progressivamente pas aps pas, e que sua rea de ao identifica-se com o mundo. Em
todos os pases tende-se a aplicar os mesmos processos tcnicos.
Mas h um segundo aspecto, menos evidente, por trs do geogrfico. o aspecto qualitativo do
universalismo que implica que ao passo que havia caminhos de civilizaes diferentes, todos os
povos esto hoje no mesmo caminho. Ainda, situam-se em pontos diferentes da mesma trajetria.
No entanto, fundamental a advertncia de que a universalizao no gera uma homogeneidade
total. No produz as mesmas sociedades e os mesmos homens, enquanto isso no seja preciso para
que a tcnica funcione. A tcnica no precisa, para ser utilizada, de um homem 'civilizado'; seja
qual for a mo que a utilize, produz seu efeito, mais ou menos totalmente145. Alm disso, quanto
mais requintada a tcnica, mais varia seus meios de ao. Portanto, h uma universalizao da
forma, mas que im-pe contedos heterogneos. O importante resultado disso que teremos a
aparncia de civilizaes diferentes mas da mesma natureza tcnica. As diferenas sero o
acidente da tcnica essencial. Isso gera uma iluso da liberdade, mas que apenas a expresso da
unicidade tcnica146.
Ainda, a relao que se estabelece entre as potncias e os pases menos poderosos a de uma
simples subordinao tcnica. Essa predominncia dos fatores tcnicos, que fazem com que todas
as explicaes polticas e mesmo econmicas sejam superficiais e irrisrias147 faz Ellul avaliar,
entre outros exemplos histricos, que no sob o efeito ideolgico do comunismo que o Budismo
desaparece, mas por motivos tcnicos148.
As civilizaes atualmente ameaadas pela nossa, afirma Ellul se incluindo nesse ns, no
podem resistir porque no so tcnicas149. Precisamos levar a srio essa idia de ameaa. Vejamos:
Ellul ataca a idia muito freqente de pensar que 'basta proporcionar aos povos atrasados os
processos tcnicos e os bens acumulados para soergu-los, como se d uma injeo em um
doente''. O que acontece que considerando a cultura como um todo percebe-se que a
transformao de determinado elemento por efeito das tcnicas acarreta choques em todos os
setores: todos os povos do mundo vivem atualmente uma dilacerao cultural, provocada pelos
conflitos e as discusses internas resultas da tcnica. Ellul observa que, na poca, uma
organizao geralmente otimista como a UNESCO, diagnosticava o seguinte: no trazemos
145Idem: 119.146Idem: 132.147Idem: 121.148Idem: 123.149Idem: 127.
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conosco nenhum meio de civilizao, nenhum valor aceitvel, capaz de substituir o que se destri.
Pela invaso da tcnica, destroem-se os modos de vida tradicionais: a tcnica no traz em si mesma
seu equilbrio, ao contrrio150. Essa percepo significa uma verdadeira auto-crtica desde o centro
difusor dessa civilizao tcnica151, dessas foras destruidoras civilizadas, como as chama tambm
Ellul.152
No se trata aqui necessariamente de saudosismo ou apologia daquelas civilizaes que se
desmoronam em contato com a tcnica. H conscincia da passagem de um tipo de servido para
outra. Assim, no domnio poltico, a passagem brutal das formas elementares de sociedade para
a forma evoluda de ditadura moderna. Ou ento, da servido e do feudalismo estrutura mais
meticulosa do Estado ditatorial, em virtude e por exigncia das tcnicas de produo e de
administrao153.
Trata-se da elucidao dos traos desse novo tipo de servido. Ele caracteriza-se pela imposio
da complexidade e densidade de estrutura provocadas pela indispensvel aplicao das tcnicas. O
aparente bem-estar que traz a tcnica supe uma transformao da totalidade da vida. Por exemplo,
supe trabalho onde s havia preguia. A tcnica, no seu universalismo, totalitria. Isto , nada
pode deixar intacto em uma civilizao: tudo lhe diz respeito154.
Um trao importante dessa transformao da vida que faz Ellul perceber essa imposio como
uma ameaa destrutiva que provoca uma dilacerao cultural, o processo pelo qual de um lado, as
comunidades constitudas se desagregam, de outro novas comunidades no chegam a formar-se155.
Agora, que acontece com a organicidade dessas sociedades dilaceradas, desagregadas? Uma
resposta encontrada ao tratar da religio. Falando do Budismo, Ellul analisa que no se deixa esse
povo religioso sem religio, mas religio transcendente ope-se hoje em dia a religio 'social'
150Idem: 124-5.151No ano 1953, um ano antes da publicao do livro de Ellul, Chris Marker e Alain Resnais produziam Les statues
meurent aussi [As estatuas tambm morrem]: na forma de ensaio cinematogrfico, uma auto-crtica radical da invaso cultural-econmica-tcnica da Europa na Africa. Analisando a recepo da arte africana na Frana e a prpria intromisso da Frana no fazer artstico africano, mostravam como dessa maneira a tcnica separa a arte da cultura aniquilando nesse ato a humanidade da obra de arte. Mostravam como o binmio tcnica/capital se espraiava pelo mundo, se impondo com o poder da eficcia que des-humaniza. Vale perfeitamente como resumo desse filme a idia de que no levado nenhum meio de civilizao, nenhum valor aceitvel, capaz de substituir o que se destri.
152Idem: 119.153Idem: 125. Marx definia em termos semelhantes a passagem das sociedades pr-capitalistas ordem do capital, cada
uma com sua brutalidade especfica de produzir: sobre los horrores brbaros de la esclavitud, de la servidumbre de la gleba, etctera, se injerta el horror civilizado del exceso de trabajo (2002: 283). Horror civilizado. Forma evoluda de ditadura moderna.
154Ellul, 1968: 127.155Idem: 128.
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que no passa de uma expresso do progresso tcnico156.
A tcnica, ento, tem o papel de re-criar essa agregao, mas agora em outros termos, que tem a
ver com a prpria forma da tcnica. Vejamos: a tcnica um meio de apreenso da realidade, de
ao sobre o mundo, que permite precisamente desprezar toda diferena individual, toda
subjetividade. rigorosamente objetiva. Portanto, a tcnica uma ponte entre a realidade e o
homem abstrato. Os que agem todos de acordo com a mesma tcnica esto ligados uns aos outros
por uma fraternidade informulada. A tcnica, desta maneira, estabelece as rupturas e refaz as
pontes; constituindo-se no lao entre esses homens. por seu intermdio que se comunicam. E a
linguagem universal que supre todas as deficincias e separaes. Isso mostra para Ellul a razo
desse grande impulso da tcnica na direo do universal157.
Na poca em que Ellul escrevia, comunidades e associaes floresciam numa espcie de
reconstituio da sociedade. Ao contrrio daqueles encontravam nisso motivo de jbilo, Ellul
percebia que no se tratava de coletividades autnomas, de grupos com orientao e valor
especficos, mas, ao contrrio, de organismos que s existem para a tcnica. Aqui aparece a tcnica
mediando. Nessas associaes, o homem no est situado em relao aos outros, mas em relao
tcnica158.
A tcnica enquanto lao mediador entre os homens no faz seno reforar seu trao
universalizante.
Por outro lado, nessa universalizao o fator tcnico cumpre um duplo papel: os fatores de
expanso so evidentemente favorecidos por fatos tcnicos elementares, como a rapidez e a
intensidade dos meios de comunicao. Ao mesmo tempo, pela infra-estrutura que precisam os
meios de comunicao, eles tambm, supem por si mesmos essa unificao, material e tambm
uma certa unidade de formao intelectual159. A idia de que a expanso dos fatores tcnicos supe
por si mesma a unificao exprime uma identidade entre a tcnica e a prpria civilizao. O que
isso revela uma mudana no lugar da tcnica na civilizao. Como vimos ao tratar das sociedades
pr-modernas, a tcnica pertencia a uma civilizao, era um elemento dela, englobada em uma
multido de atividades no tcnicas. Atualmente, a tcnica englobou toda a civilizao160.
Da a designao de civilizao tcnica, que tem que ser compreendida em toda sua
significao: ela indica que nossa civilizao construda pela tcnica (faz parte da civilizao 156Idem: 123.157Idem: 133-4.158Idem: 310-11. Hoje isso se verifica com clareza nas comunidades criadas atravs de internet. Era to evidente
naquele momento? impressionante que isso tenha sido escrito faz mais de 50 anos.159Idem: 122-3.160Idem: 130.
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unicamente o que objeto de tcnica), que construda para a tcnica (tudo o que est nessa
civilizao deve servir a um fim tcnico), que exclusivamente tcnica (exclui tudo o que no o
ou o reduz sua forma tcnica)161.
Desta maneira, quando a tcnica se torna ela prpria civilizao, e esta no existe mais por si
mesma, dimenses como a intelectual, artstica, moral, que antes tinham uma relao de certa
exterioridade com a tcnica, fazendo junto a ela parte da civilizao, passam a no ser mais do que
uma parte da tcnica162.
De alguma maneira resultado dos carteres anteriormente desenvolvidos, encontramos a idia de
unicidade ou insecabilidade, central na construo terica de Ellul. Com esse carter, ele faz
referncia unidade profunda que constitui o fenmeno tcnico, essencial, sob a extrema
diversidade de suas aparncias.
Ainda que no esteja construdo explicitamente dessa maneira, fecundo abordar o livro de
Ellul distinguindo entre os planos objetivo e subjetivo. Pois possvel perceber no seu
desenvolvimento, sutilmente diferenciados e ao mesmo tempo vinculados, por um lado, uma crtica
ao processo histrico-social na sua objetividade; e, por outro lado, uma crtica ao posicionamento
subjetivo dos homens em relao a essa objetividade. Particularmente a maneira como os homens
enfrentaram a questo da tcnica.
Dito isso, vemos que no carter de unicidade onde esses dois planos aparecem mais
vinculados. Pois a incompreenso da unicidade enquanto carter objetivo da tcnica moderna que
gera as crticas mais fortes de Ellul ao posicionamento subjetivo em relao ao fenmeno tcnico.
Levar a srio esse carter nos deveria conduzir ao seu corolrio: impossvel separar este ou
aquele elemento. No entanto, Ellul percebe como era uma verdade essencial particularmente
ignorada. O era naquele momento, e tambm agora. Assim, a principal tendncia de todos aqueles
que pensam nas tcnicas distinguir: distinguir entre os diversos elementos da tcnica, dos quais
uns poderiam ser mantidos, os outros afastados.
Uma distino comum entre a tcnica e o uso. Ela convida percepo freqente de que no
a tcnica que m, mas o uso que o homem dela faz. E, portanto, desde que se modifique o uso,
no haver mais inconvenientes com a tcnica.
Para Ellul, essas distines so rigorosamente falsas e provam que nada se compreendeu do
161Idem: 129.162Idem: 131.
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fenmeno tcnico. Ele mostra como na tcnica o uso inseparvel do ser163. Para comear, a
tcnica , por si mesma, um modo de agir, exatamente um uso. Dizer que se faz mau uso de
determinado meio tcnico, significa que dele no se faz um uso tcnico, que no se faz dele
produzir o que pode e deve produzir164.
Ainda, os caracteres que o fenmeno tcnico adquire na civilizao tcnica aprofundam a
impossibilidade da distino entre ser e uso. O automatismo e a autonomia fazem perceber que a
tcnica rigorosamente autnoma em relao moral. O auto-crescimento desmente que a tcnica
evolua em vista de um fim, e que esse fim seja o bem do homem. Ela evolui de modo puramente
causal: a combinao de elementos precedentes fornece novos elementos tcnicos. uma ordem de
fenmenos cega em relao ao futuro, em um domnio de causalidade integral. Assim sendo,
atribuir arbitrariamente este ou aquele fim a esta tcnica, propor uma orientao, negar a
prpria tcnica, arrancar-lhe a natureza e a fora165.
H uma outra distino que se faz freqentemente: uma orientao positiva ou uma negativa do
desenvolvimento tcnico. Ellul desmonta a idia de que simplesmente se poderia orientar a tcnica
na direo do que positivo, construtivo, enriquecedor, deixando de lado o que destruidor,
negativo, esterilizante166. Ele contra-argumenta com um exemplo histrico convincente: no tem
como desenvolver pesquisas atmicas sem gerar a disponibilidade da bomba. Lembremos que as
bombas sobre Hiroshima e Nagasaki eram um acontecimento recente na poca em que Ellul
escreve, e marcavam as reflexes daquele momento. Por que no seria utilizada uma tcnica eficaz
(at radical, no caso de acabar dessa maneira uma guerra) se ela est disponvel.
Podemos facilmente pensar em outros exemplos menos visivelmente dramticos, mas muito
profundos na conformao da sociedade atual. Por que no usar o telefone celular se ele est ai? A
disponibilidade provoca o uso. Tudo o que tcnico, sem distino de bem e de mal,
forosamente utilizado quando est ao nosso dispor. Tal a lei principal de nossa poca. Na
civilizao tcnica, se tem tendncia a utilizar todas as invenes quer se tenha ou no
necessidade167.
No caso da relao entre tcnica e guerra, no se trata s de um exemplo isolado. Ellul
argumenta que o industrialismo no pode fazer outra coisa seno desenvolver as guerras. No se
trata de um acidente, mas de uma relao orgnica. No apenas por causa da influncia direta
sobre os meios de destruio, mas pela influncias nos meios de sobrevivncia. A questo que
163Idem: 98-9.164Idem: 101.165Idem: 100.166Idem: 102.167Idem: 103.
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toda indstria, toda tcnica, por mais humana e pacfica que sejam suas intenes, tem um valor
militar168.
Mas o fundamental aqui que essa relao orgnica atravessa o sistema tcnico como um todo.
Ellul afirma que a tcnica no pode ser considerada em si mesma, separada de suas condies de
existncia169, e ela conduz a certo nmero de sofrimentos, de flagelos, que no podem de modo
algum ser separados dela170. que a prpria condio de existncia da tcnica, na civilizao
tcnica, essa relao orgnica indicada pelo carter de unicidade. No existe cada tcnica separada
das outras.
A produo torna-se um fenmeno cada vez mais complexo171, e Ellul mostra de maneira
convincente como o resultado de uma tcnica demanda o surgimento de outra, e assim por diante;
as tcnicas vo se encadeando umas s outras e o desenvolvimento desse processo vai produzindo
um sistema de necessidades tcnicas, relacionadas organicamente.
Vejamos como Ellul relata o preparo desse sistema tcnico: da combinao das mquinas no
interior de uma mesma empresa se passa organizao da produo; criao de tcnicas
comerciais, financeiras, de transportes. Isso gera o acmulo das multides em torno da mquina,
para produzir e consumir. Dali o fenmeno espantoso da grande cidade, a tcnica do urbanismo, a
tcnica das distraes, para fazer aceitar todo o sofrimento urbano ao preo de divertimentos,
cinema. um perodo de desordem que conduz a uma ardente procura da ordem. preciso um
mecanismo de distribuio e de consumo to rigoroso, to preciso quanto o mecanismo de
produo. Surge a tcnica econmica que supe a tcnica do trabalho. preciso compensar o
cansao proveniente do trabalho tcnico: de novo, necessidade de distraes de massa. O homem
no aceita espontaneamente o que necessrio mquina, e portanto preciso uma disciplina.
Aparecem, ento, as tcnicas do Estado, militares, policiais, administrativas e, em seguida, polticas.
Se percebe que essa ao sobre o exterior do homem ainda insuficiente. Pede-se ao homem um
imenso esforo; s poder fornec-lo se estiver convencido, e no apenas coagido. Dali, as diversas
tcnicas da propaganda, da pedagogia, da psicologia. medida que as tcnicas materiais se tornam
mais precisas, tornam as tcnicas intelectuais e psicolgicas mais necessrias. Assim se completa
o edifcio172.
Essas tcnicas intelectuais e psicolgicas que completam o edifcio so o que Ellul chama
168Idem: 113.169Idem: 109.170Idem: 107.171Idem: 114.172Cfr. Idem: 115-118.
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Tcnicas do Homem. So um desdobramento particularmente importante na sua compreenso da
civilizao tcnica e explicam em grande medida o desespero do autor.
Surgem, como vemos, pela necessidade de disciplina, de ordem, e de adequao do homem a
esse sistema tcnico, que no se d de maneira espontnea. que o quadro do homem
contemporneo para Ellul simplesmente abrumador: o trabalho exige dele uma ausncia ativa, que
compromete a totalidade do homem; mergulha cotidianamente nesse anormal e excepcional
parecido a uma guerra. Vive asfixiado ainda pelo anonimato das ruas173. Sofre o fenmeno
espantoso da grande cidade.
As tcnicas do homem procuram exatamente tornar vivvel pelo homem o que no o ; buscam
criar artificialmente condies psicolgicas para fazer suportar o insuportvel em face das
terrveis condies de vida em que se encontra em conseqncia da tcnica174.
As tcnicas do homem preenchem o vazio entre os homens e as tcnicas. Poderia se pensar que
isso ajuda o homem a viver melhor e alguns at avaliam esse processo como sendo uma
humanizao das tcnicas175. Ellul, ao contrrio, chama a ateno de que o homem s levado em
considerao na medida em que perturba a tcnica, e como objeto de tcnica. Portanto, no h
nisso nenhum interesse pelo homem176. A tcnica respeitar ou desprezar o homem de acordo com
seu desenvolvimento autnomo. Por isso, para Ellul impossvel falar de um humanismo tcnico177.
Ellul analisa diferentes mbitos onde essas tcnicas se apresentam com fins humanistas. Os
resultados valem como avaliao geral das tcnicas do homem. O projeto pedaggico da escola
nova, cria homem felizes em meio que normalmente deveria torn-los infelizes178. No trabalho, a
psicotcnica, orientao profissional, organizao do trabalho, fisiologia do trabalho, procuram o
equilbrio psicolgico do trabalhador, o que reage diretamente sobre a produtividade; buscam
integrar o operrio na empresa179, reproduzindo artificialmente as condies naturais para que as
relaes humanas possam estabelecer-se. Desta maneira, aliviam, sem dvida, a dureza da
condio, embora submetendo o homem mais profundamente prpria condio.
A principal palavra dessas tcnicas adaptao. Vemos que os instrumentos compensatrios
que permitem ao homem sobreviver o submetem ainda mais fortemente ao ideal tcnico180.
173Idem: 326-7.174Idem: 328.175Idem: 344.176Idem: 346.177Idem: 348. 178Idem: 356. 179Idem: 358-9.180Idem: 364.
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Portanto, Ellul convincente ao mostrar que o que parece o pice do humanismo na
realidade, o apogeu da submisso do homem181.
Mas de fato deve adaptar-se a esse novo organismo sociolgico, para no tornar-se cada vez
mais inadaptado, cada vez mais neurotizado. Mas isso requer um imenso esforo de mutao
psquica182. Esse o papel das tcnicas do homem.
Essa adaptao forada e necessria conduz a um processo fundamental na avaliao de Ellul, o
da massificao da sociedade. Essa conjuno entre o individual e o coletivo, que no se faz
espontaneamente, hoje em dia, uma das condies essenciais ao desenvolvimento das tcnicas183.
Para Ellul a questo de fundo que no h tcnica possvel com um homem livre. Isso porque o
homem enquanto servo da tcnica deve ser estritamente inconsciente de si prprio. Mas, ao mesmo
tempo, esse enquadramento se d de modo tal que a verdadeira tcnica saber preservar uma
aparncia de liberdade, de escolha e de individualismo que satisfaa as necessidades de liberdade,
de escolha e de individualismo do homem. Mas s aparncia. Estamos numa situao na qual o
homem no pode desprender-se da sociedade. Materialmente porque os meios so to numerosos
que invadem sua vida, impedindo-o de escapar ao ato coletivo. No h mais deserto, nem refgio.
Estamos obrigados a participar de todos os fenmenos co