João e Maria - Luiz Fernando Veríssimo

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JOÃO e MARIA

Luiz Fernando Veríssimo

Sejamos melodramáticos.

Sejamos primários e sejamos piegas.

Imaginemos duas crianças.

João e Maria.

O João brasileiro, a Maria iugoslava.

Os dois ainda não nasceram.

O João ainda não foi nem concebido.

É uma hipótese, não é nem um feto.

A Maria está para nascer.

Não importa muito de onde o João vai ser, se do Nordeste ou

ali da esquina.

Ele vai nascer no grande estado brasileiro da Miséria, o maior estado da federação.

Não importa muito de que classe ou de que etnia seja

Maria.

Ela vai nascer numa periferia dos erros da Otan.

Os dois não sabem, mas estão envolvidos numa luta pela sorte e contra o tempo.

A luta pela sorte, o João já vai nascer perdendo.

Na Miséria só nasce gente sem sorte, com poucas

possibilidades de tê-la.

A Maria tem mais chances de ter sorte, ou mais sorte de ter

chances, do que o João.

Se escapar da bomba perdida, vai receber ajuda de todo o

mundo.

Mas o inimigo dos dois é o tempo.

Os dois ainda não estão nem respirando e já estão correndo

contra o tempo.

Se o João for esperto ou se, por sorte, tiver sorte, não nasce

agora.

Espera para nascer quando tivermos, como é que eles

dizem?

Um desenvolvimento sustentado com produtividade e estabilidade,

depois das reformas, depois do bolo crescido para ser dividido, depois do mercado dar certo.

Enfim, depois.

Aquele estranho dia que nunca chega, pois quando chega vira

agora, e depois fica para depois.

Se nascer antes de depois e sobreviver à maternidade

superlotada, ao SUS, às doenças endêmicas da Miséria, ao extermínio, às guerras de

gangues

-enfim, ao interminável pré-depois brasileiro - o João vai

ser um desempregado crônico, pai de outros joões.

Se pudesse decidir, o João deixaria para nascer no fim teórico, não logo no meio da

discussão dos meios.

Mas o João não pode decidir. Se nascer agora, azar.

Quem mandou?

A Maria só precisa esperar que as negociações dêem certo e os

bombardeios acabem para nascer sem o risco de ser, quem sabe, a última vítima da última

bomba errada.

Um dia a mais, um dia a menos de bombardeios:

a vida de Maria pode depender dessa tênue diferença de uma

noite.

Mas a decisão também não é dela.

FORMATAÇÃO: Mima (Wilma) Badan

mimabadan@yahoo.com.br

MÚSICA: What child is this

(Repasse com os devidos créditos)

BLOG: www.mimabadan.blogspot.com

OUTROS PPSs em: www.slideshare.net/mimabadan