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Jovens na enunciação midiática: dissimetrias,
violência simbólica e leituras a contrapelo1
Rosaly de Seixas Brito (UFPA)2
Desde meados do século passado, o jovem se destaca como um dos outros da mídia e mobiliza
uma imensa gama de significações. Principal arena de visibilidade pública contemporânea,
responsável por articular e colocar em cena de modo hegemônico os significados que
circulam na sociedade, a mídia produz e reproduz as diferenças sociais, raciais, étnicas, de
gênero e geracionais, instituindo padrões de normalidade e, em contraponto, os desvios a
esses padrões, que afetam profundamente os modos de subjetivação e os processos
identitários dos atores de diferentes segmentos sociais. O artigo discute, baseado em pesquisa
realizada nos dois jornais paraenses de maior circulação – O Liberal e Diário do Pará -, em
que foram analisadas 408 matérias publicadas entre abril e maio de 2013 que fazem referência
a jovens, quais as imagens projetadas em torno dos sujeitos desse segmento etário. A análise
da amostra revela que, espelhando uma forma de abordagem recorrente desde o início do
século passado na imprensa brasileira, as representações midiáticas em torno dos jovens e da
juventude oscilam entre extremos, reproduzindo visões estereotipadas fortemente
atravessadas pelos marcadores sociais da diferença. Por outro lado, traz à tona leituras críticas
desses significados feitas por jovens da Região Metropolitana de Belém, com base em dados
de pesquisa etnográfica.
Palavras chave: Juventude(s). Representações midiáticas. Leituras dissonantes.
Principal esfera de visibilidade pública contemporânea, a grande mídia - em seus
diferentes meios, do cinema ao jornal, do rádio à televisão, a que se soma hoje a internet
– sempre produziu seus outros, os estranhos, os diferentes, tornando-se uma instância
simbólica que constrói estereótipos, amplifica e reforça estigmas presentes no espaço
social.
Responsável por articular e colocar em cena de modo hegemônico os sentidos que
circulam na sociedade, a mídia produz e reproduz as diferenças sociais, raciais, étnicas,
de gênero, geracionais, instituindo padrões de normalidade e, em contraponto, os desvios
a esses padrões3, que afetam profundamente os modos de subjetivação e os processos
1 Artigo aceito pelo GT 05 - Imagens sobre infâncias, juventudes, cultura e sexualidade do I Encontro de Antropologia
Visual da América Amazônica. 2 Doutora em Ciências Sociais, área de concentração em Antropologia. Professora da Faculdade de Comunicação da
Universidade Federal do Pará. Email: rosalysbrito@gmail.com. 3 É pertinente lembrar aqui, para o propósito deste artigo, a concepção de desvio formulada por Howard Becker.
Segundo o autor, o fato central a ser considerado sobre o desvio é que ele é criado pela sociedade, não no sentido do
senso comum de que as raízes ou causas deles sejam de ordem social. Becker chama atenção para o fato de que são os
grupos sociais, ao estabelecerem as regras cuja transgressão constitui desvio, que estabelecem uma linha divisória entre
o que é a regra e o que é desvio, passando a rotular as praticantes deste último como outsiders. Diz ele: “O desvio não
é uma qualidade do ato que a pessoa comete, mas uma consequência da aplicação por outros de regras e sanções a um
“infrator”. O desviante é alguém a quem este rótulo foi aplicado com sucesso; o comportamento desviante é aquele que
as pessoas rotulam como tal (2008: 21-22).
identitários dos atores de diferentes segmentos sociais. O jovem se destaca, desde meados
do século passado, como um dos outros da mídia e evoca uma imensa gama de
significações. Algumas dessas matrizes de significados são analisadas neste artigo.
Há visíveis descompassos entre as juventudes em sua vivência cotidiana, diversa e
plural e as imagens da juventude produzidas pelas indústrias globalizadas de mídia, moda
e beleza, endereçadas indistintamente a jovens do mundo todo. A partir do momento em
que se tornaram uma faixa etária reconhecida socialmente e emergiram na cena pública
das cidades, os jovens suscitaram formas de representação diversas em torno de si, em
diferentes searas discursivas – do discurso científico (direito, medicina, psicologia, entre
outros), ao das instâncias governamentais e dos meios de comunicação de massa.
Desde o século passado as cidades constituíram-se, como acreditava Robert Park,
em verdadeiros laboratórios para se entender a vida social. A presença dos jovens nesse
cenário fez com que ele se tornasse ainda mais complexo e diversificado em suas tramas
simbólicas. A vida nas metrópoles, conforme a visão de Simmel [1900, (2005)], situa-se
na intersecção de vários mundos. Muitas cidades coexistem em uma só, em tensões e
embates permanentes, nos quais o indivíduo busca proteger-se e alcançar algum
reconhecimento social em um ambiente marcado pela impessoalidade e por múltiplas
formas de coação. No mais das vezes, seu único recurso é refugiar-se em sua forma mais
particular e individual de existência. Nessa vida metropolitana de circulação ampliada,
para usar a expressão simmeliana, cada um tem uma localização física, social e simbólica.
As cidades pressupõem, então, múltiplos pertencimentos que se sobrepõem e,
também, a interpenetração entre as comunidades mais imediatas de significação, como a
família, a vizinhança, a escola e o grupo de pares dos jovens, e as comunidades simbólicas
e imaginárias mais amplas, em que os meios de comunicação e a internet ocupam hoje
um papel central, em um cenário de concentração demográfica, expansão territorial e
fragmentação urbana.
Os usos da cidade vêm passando por rápidas e intensas reconfigurações e nesse
processo, segundo Néstor Canclini (2002), a conexão entre as partes que a compõem
debilitou-se e a recomposição de sua unidade só se torna possível por meio da narrativa
dos meios de comunicação sobre o que acontece nos mais diferentes lugares, dentro e fora
do espaço urbano, onde não é possível estar fisicamente presente.
No entanto, diferentemente do que se tenta fazer crer, em vista do caráter
testemunhal de boa parte de seus relatos, as narrativas midiáticas não são desinteressadas,
nem neutras. Ao mesmo tempo em que informam, também remodelam os imaginários
urbanos e reorientam as próprias formas de pertencimento dos indivíduos que vivem na
cidade, fazendo com que, convertidos em consumidores midiáticos, imaginem uma
sociabilidade virtualmente estabelecida com seus pretensos “pares”: jovens com outros
jovens, as mulheres entre si, os gordos com os gordos, os que gostam de salsa e bolero
com os que têm as mesmas preferências e assim por diante. “As comunidades organizadas
pela mídia substituiriam então os encontros nas praças, os estádios ou os salões de baile
pelos não-lugares das redes audiovisuais” (Canclini, 2002: 42).
O autor reconhece que opor de forma antagônica a integração espacial da
sociabilidade bairrista-urbana e a disseminação desterritorializada das mídias é um
evidente equívoco, já que estão imbricadas e se complementam, mas, ao chamar a atenção
para a desintegração da cidade e sua recomposição simbólica pelos meios de
comunicação, ajuda-nos a entender a formação de novos tipos de comunidades e de
interação social presentes no cenário urbano.
Gustavo Lins Ribeiro (1997), referindo-se às redes globais de televisão,
desenvolve raciocínio muito semelhante ao de Canclini. Assinala como as imagens por
elas produzidas têm força homogeneizadora e incorporam-se ao imaginário e à vida
cotidiana prática, despertando em muitos telespectadores o sentimento de “pertencer à
mesma cadeia de eventos, de estar sob as asas do tempo global. O que está sendo
elaborado aqui é uma matriz de sentidos, de formas de representação e de construção de
identidades [...] processos centrais para a construção de qualquer comunidade imaginada”
(1997: 10-11).
Em síntese, pode-se dizer que as narrativas midiáticas instituíram novas formas
de se imaginar as cidades e o mundo, e de cada indivíduo imaginar-se a si mesmo como
parte deles. Ou, ainda, imaginar-se como apartado de seus fluxos hegemônicos. Linhas
imaginárias separam os que fazem parte desses fluxos – os insiders, ou estabelecidos – e
os que estão deles apartados – os outsiders, nos termos de Norbert Elias (2000).
Federico Neiburg, na apresentação à edição brasileira do clássico livro de Elias –
Os estabelecidos e os outsiders –, considerado o único propriamente etnográfico escrito
pelo autor, explica de forma muito clara essa relação.
As categorias estabelecidos e outsiders se definem na relação que as
nega e que as constitui como identidades sociais. Os indivíduos que
fazem parte de ambas estão, ao mesmo tempo, separados e unidos por
um laço tenso e desigual de interdependência (...) Superioridade social
e moral, autopercepção e reconhecimento, pertencimento e exclusão
são elementos dessa dimensão da vida social que o par estabelecidos-
outsiders ilumina exemplarmente: as relações de poder (Neiburg, 2000:
8).
As colocações de Neiburg sintetizam a tese central formulada por Elias no livro,
de que a desigualdade entre grupos e indivíduos e o fato de uns se considerarem superiores
a outros são marcas universais das sociedades humanas, que podem variar em grau, mas
guardam sempre alguns traços de semelhança entre si. Nas palavras do autor:
Quase todos os grupos humanos tendem a perceber determinados outros
grupos como pessoas de menor valor do que eles mesmos. O grau de
estigmatização pode variar de um caso para o outro, e as ações que
devem tornar claro para o grupo outsider o fato de seus membros serem
um objeto de maior desprezo podem ser ruidosas e bárbaras, ou
aparecerem em uma tonalidade mais amena. Seja como for, relações
estabelecidos-outsiders sempre têm algo em comum (ELIAS, 2000:
199).
A tensão que marca essa interdependência e a desigualdade entre estabelecidos e
outsiders pode estar ligada a diversos tipos de relação – entre classes, entre grupos étnicos
e nações, entre jovens e adultos, pais e filhos, colonizados e colonizadores, homens e
mulheres, heterossexuais e homossexuais, dentre outros pares possíveis. As
representações que circulam socialmente em torno desses antagonismos ou tensões em
geral são estigmatizantes em relação ao grupo que detém a menor parcela de poder na
relação.
Leituras a contrapelo
Muito embora os aparatos midiáticos contemporaneamente cumpram um papel
fundamental no estabelecimento das linhas divisórias entre os insiders e os outsiders da
ordem urbana, os jovens com quem dialoguei na pesquisa etnográfica realizada ao longo
do ano de 2012 na Região Metropolitana de Belém4 demonstraram ter clareza disso
quando o que está em foco na mídia são eles próprios e seus modos de vida. Vinícius, por
exemplo, sente na própria pele o estigma e conhece bem o peso de ser tomado como um
outsider.
A mídia não consegue mostrar o lado bom, ela só ataca o que há de
ruim. Ela só vai em mortes, assassinatos, tráfico de drogas, tem até
programas que são só para mostrar a desgraça nos bairros. Não sabem
mostrar o que há de bom no bairro. Então, o jovem que mora no bairro
não presta, é ladrão, você não vê o jovem como alguém que queira um
4 A pesquisa resultou na tese de doutorado intitulada “Diferentes, desiguais e conectados (?): vivências juvenis,
representações midiáticas e negociação de sentidos na cena metropolitana”, defendida em abril de 2014, no Programa
de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia (PPGSA) da Universidade Federal do Pará. Foram meus interlocutores
16 jovens de treze bairros diferentes da Região Metropolitana de Belém, das camadas médias e populares, com idades
variando entre 17 e 24 anos.
futuro. Se fala de Terra Firme5, se fala de juventude, se fala de ladrão.
Não são pessoas de bem (Vinícius).
Certa vez, ele estava em uma entrevista de emprego e quando perguntaram em que
bairro morava e respondeu “da Terra Firme”, a psicóloga e o dono da empresa, que
estavam de vista baixa, levantaram os olhos e o examinaram dos pés à cabeça. Em muitas
ocasiões, Vinícius contou que não conseguiu emprego pelo simples fato de ser morador
do bairro. Jovens de outros bairros periféricos vivem a mesma discriminação, segundo
ele. “Esse círculo de fogo aqui, Guamá, Terra Firme, Cremação, Condor, em se tratando
deles, é complicado”, ressaltou, referindo-se a outros bairros igualmente estigmatizados
como violentos em Belém.
Morador do Benguí, outro bairro periférico da capital, Diogo tem a mesma
percepção que Vinícius sobre a imagem negativa do jovem, que circula amplamente.
Acredita que a mídia investe no que ele chama de um “projeto de desconstrução social da
juventude”.
A mídia vem no sentido de fortalecer a imagem negativa, problemática,
sem nenhum compromisso de construir uma nova imagem [...] O que
vende hoje é a criminalidade; ela é o produto, e a ferramenta da
criminalidade é o jovem, que vem também de um processo de exclusão,
de desigualdade, de negação dos direitos (Diogo).
Diferentemente deles, João mora em um bairro na região mais central de Belém e
é filho de uma família de classe média. Mas, como sempre gostou de observar
criticamente o que se passa ao redor e teve oportunidade de participar de um curso sobre
comunicação popular em uma ONG, faz muitas ressalvas à maneira como a mídia
enquadra os mais diferentes assuntos e se incomoda com o fato de eles se tornarem
verdades, consumidas pela sociedade como tal.
A mídia brasileira é controlada por poucas famílias, então tanto na
comunicação como na política, elas vão mostrar o que convém a elas.
E não convém para ninguém que está no poder dizer que o povo está
certo. Por isso, eles mostram as coisas de uma maneira deturpada [...]
Eu acho que a massa da população é meio guiada pela mídia e as
pessoas que estão no controle da mídia sabem disso. Então, elas pegam
as verdades delas e jogam ali, e a massa do povo acredita” (João).
As percepções de João, Diogo e Vinícius sobre as representações midiáticas da
juventude e dos jovens oferecem algumas chaves importantes de compreensão para nossa
abordagem neste artigo. Especialmente para Diogo e Vinícius está claro, por exemplo, o
5 O bairro da Terra Firme é muito populoso e situa-se na área considerada periférica de Belém. Há muito vem sendo
estigmatizado pela imprensa local pelos altos índices de violência urbana que apresenta.
peso subjetivo e social do estigma em torno dos jovens que moram em bairros pobres e
periféricos, pois isso faz parte de sua experiência cotidiana. Também percebem com
clareza o quanto são negligenciadas ou obscurecidas, na cobertura midiática, as
experiências positivas dos jovens que vivem nesses espaços. Os aspectos ressaltados
quase sempre são os negativos, frutos da associação direta que é feita entre jovem que
mora na periferia e criminalidade. Essa percepção se torna tanto mais aguda quando mais
perto o jovem vive da realidade retratada, o eu o faz recusar a identidade deteriorada que
se lhe quer atribuir.
Transparece ainda nos três depoimentos a compreensão que esses jovens têm do
poder do discurso midiático de instituir verdades, que se tornam tácitas e se naturalizam,
não só no que diz respeito aos jovens, mas a outros segmentos e aspectos da vida social.
A fala de Nara, outra jovem participante da pesquisa, sintetiza essa compreensão: “[o
jovem na mídia] ou é branco, portador de aparelhos eletrônicos, celular, carro, bem
vestido. Ou então é o extremo, mais marginalizado, que tende ao crime”.
As falas citadas evidenciam como, embora hegemônicos, os sentidos propostos
pela enunciação midiática6 são sempre negociados, e não tomados tal e qual são ofertados,
sem filtros e ressignificações. Quando se trata de produções discursivas, a rigor, essa
transparência entre o discurso ofertado e aquele que é apreendido pelo receptor
simplesmente não existe. Há sempre rasuras, tensões e reelaborações por parte do
receptor, ou destinatário do discurso.
A esse respeito, vale a pena destacar o que postula Stuart Hall, em um já clássico
texto7 sobre a relação produção/circulação/recepção na comunicação de massa. Segundo
o autor, “o “conhecimento” discursivo não é o produto da transparente representação do
“real” na linguagem, mas da articulação da linguagem em condições e relações reais”
(2003: 392-393).
6 Para a discussão proposta neste artigo é fundamental estabelecer a diferença entre enunciado e enunciação, nos termos
de Eliseo Verón (2004). Não se trata de concebê-los de forma separada, já que integram um par enunciado/enunciação,
e sim de entender que são de ordens distintas. Nas palavras de Verón: “A ordem do enunciado é a ordem do que é dito
(aproximadamente, poder-se-ia dizer que o enunciado é da ordem do “conteúdo”); a enunciação diz respeito não ao
que é dito, mas ao dizer e suas modalidades, os modos de dizer” (2004: 216). Grifos do autor. Os elementos que
compõem a enunciação, como destaca o autor, estão intimamente ligados à “situação de enunciação”. As modalidades
do dizer compõem o que ele chama de dispositivo de enunciação, que abrange a imagem de quem fala (enunciador); a
imagem daquele a quem o discurso é endereçado (o destinatário) e a relação entre eles, “que é proposta no e pelo
discurso” (idem: 217-218). Enunciador e destinatário são tomados como entidades discursivas. 7 Encoding/Decoding. Culture, Media, Language: 1980, publicado em português na coletânea de textos do autor Da
Diáspora: identidades e mediações culturais: 2003.
O autor assinala que jamais pode haver grau zero quando se trata da linguagem,
qualquer que seja o código operado. Em outras palavras, a fidelidade da representação à
coisa ou conceito representado é irrealizável, pois que o efeito, ou o resultado do que é
dito só pode se consumar em uma certa articulação específica da linguagem com o “real”,
resultando, portanto, de uma “prática discursiva”.
Hall chama atenção para o fato de que toda sociedade ou cultura tende a impor,
com maior ou menor abertura, suas classificações do mundo social, cultural e político,
instituindo uma ordem cultural dominante, que, apesar de ser assim denominada, não é
unívoca, nem muito menos imune a contestações.
Dessa forma, cada sociedade ou cultura institui domínios discursivos que se
organizam, hierarquicamente, em sentidos dominantes ou preferenciais, por meio dos
quais todos os acontecimentos serão significados. Porém, não em via de mão única, pois
embora esses sentidos dominantes operem de maneira a se legitimarem e se tornarem
plausíveis no processo de decodificação, tentando induzir a uma leitura preferencial dos
acontecimentos, raramente ela poderá se consumar empiricamente de forma totalmente
eficaz.
Em vista disso, o autor acredita haver quase sempre uma decodificação negociada
dos acontecimentos por parte dos receptores dos meios de comunicação, envolvendo, ao
mesmo tempo, uma mistura de elementos de adaptação e de oposição. Nesse jogo, o
receptor reconhece a legitimidade das definições hegemônicas, “em um nível mais
restrito, situacional (localizado), mas faz suas próprias regras – funciona com as exceções
à regra” (2003: 401). As falas de meus interlocutores indicam essa negociação de sentidos
e as leituras a contrapelo dos sentidos que lhes são ofertados pela mídia.
Mídia e operações de sentido
Para analisar como é tecida a alteridade jovem/mídia e quais as matrizes de
significação que aparecem de forma predominante em torno desse segmento social nos
discursos midiáticos, apresento aqui um recorte da análise, feita de maneira mais
abrangente na pesquisa. Como meus interlocutores moram na Região Metropolitana de
Belém, uma parte do corpus dos materiais da mídia que elegi compõe-se de trinta edições
dos dois principais jornais diários do Estado, Diário do Pará e O Liberal, entre os meses
de abril e maio de 2013.
A intenção foi apreender, no fluxo do jornalismo diário, quais os sentidos
atribuídos aos jovens e à juventude, que imagens lhes são associadas, quais são os
enunciados mais frequentes, ou recorrentes, e até que ponto os jovens são fontes, ouvidas
ou não pelos jornalistas quando as matérias discorrem sobre temas de interesse deles, ou
sobre eles. Não se trata de uma análise do discurso estrito senso, mas feita com base em
autores de referência na análise dos discursos sociais, em especial no que tange à
construção e negociação de sentidos nos discursos midiáticos, como Eliseo Verón (2004),
Maurice Mouillaud (2012), Adriano Duarte Rodrigues (2012) e Antônio Fausto Neto
(2010, 2012).
Creio que as colocações de José Luiz Braga (2012) sobre o lugar ocupado pelo
pesquisador, quando o material escolhido como objeto de análise são os jornais – que
tomo a liberdade de ampliar, aqui, para matérias significantes midiáticas de modo geral –
ajudam a clarear meu propósito, como analista do corpus que elegi. Diz o autor:
Interpretar um jornal é tentar resolver os problemas que nos colocamos
a seu respeito (...) Se nos colocamos esses problemas, é porque o jornal
não se apresenta de si mesmo como um objeto transparente. É um
enigma a resolver, é ele que nos põe questões. A pesquisa oscilará
sempre entre esses dois polos: o enigma que está no objeto, enigma
objetivo; e as questões que eu escolho colocar. Escolha subjetiva, mas
não menos válida, porque os preconceitos que comandam essa escolha
definem a localização do olhar do pesquisador (BRAGA, 2012: 299).
Essa localização, como ressalta o autor, é historicamente determinada e é inerente
à posição do pesquisador, na qual está sempre implícita a ideia de que “do lugar que eu
me posiciono, sou posicionado pelo meu contexto...” (idem). Isso permite supor que se
trata de um lugar que é compartilhado, em que o pesquisador é “largamente conduzido
pelos movimentos dos outros, do social, lugar de uma objetividade” (ibidem).
Por outro lado, apesar de se lançar na análise com base em prejulgamentos, ou
pré-noções, que são da natureza subjetiva, da intuição e de seu insight inicial sobre o
objeto, o objetivo do pesquisador em seu trabalho interpretativo deverá ser, sempre,
desvelar o objeto que elegeu para sua análise. Embora uma pretensa “verdade do objeto”
seja inatingível, cabe a ele buscar aproximar-se o mais possível daquilo que o objeto tem
a revelar. Trata-se de um ponto possível de objetividade (no limite, sempre
intersubjetividade, como destaca o autor) que nunca é fácil de definir, mas que vai
ficando mais claro, a rigor, no decurso mesmo da pesquisa.
Convém ressaltar, antes de apresentar a análise do material empírico, o lugar de
mediação ocupado contemporaneamente pelo jornal e demais meios de comunicação,
como instâncias simbólicas centrais na vida social. Desde a época moderna, postula
Niklas Luhmann, a comunicação constituiu-se um operador central de todos os sistemas
sociais, por ser um sistema observador, aquele que dá a conhecer aos demais o que se
passa em todos os lugares. Isso se tornou possível graças ao desenvolvimento de meios
de comunicação8, por ele definidos como “todas as instituições da sociedade que servem
de meios técnicos de reprodução para a difusão da comunicação” (2005: 16).
Tal reprodução, que se dá pela intervenção da técnica para alcançar uma massa
dispersa e anônima de receptores, atingiu uma escala de fabricação industrial e
representou, desde o advento da época moderna, uma fratura radical nas formas de
interação social vigentes até o período medieval.
Partindo do fato de que a mediação central na experiência humana é a linguagem,
condição sine qua non para a socialização, Anthony Giddens recorre à afirmação de Lévi-
Strauss, de que a linguagem é como uma “máquina do tempo”, por permitir, através de
gerações, a reencenação das práticas sociais, para enfatizar o quanto o desenvolvimento
dos meios de comunicação potencializou em uma escala inédita a mediação simbólica da
vida social na época moderna.
A modernidade é inseparável de sua “própria” mídia: os textos
impressos e, em seguida, o sinal eletrônico. O desenvolvimento e
expansão das instituições modernas está diretamente envolvido com o
imenso aumento da mediação da experiência que essas formas de
comunicação propiciaram (GIDDENS, 2002: 29).
De acordo com o autor, as diferentes mídias - do jornal impresso ao cinema e à
televisão –, em especial as eletrônicas, criam novas texturas para a experiência,
contribuindo decisivamente para o reordenamento do espaço e do tempo. Expressam os
efeitos globalizantes e o processo de desencaixe das relações sociais ocorridos na
modernidade, em que a interação social deixa de restringir-se às particularidades do lugar,
e são também, ao mesmo tempo, instrumentos dessas linhas de força modernas. “Em
suma, nas condições de modernidade, os meios de comunicação não espelham realidades,
mas em parte as formam” (idem: 32).
É importante reter, desta última afirmação do autor, a ideia de que os meios não
devem ser vistos como meros instrumentos, que transportam significados de um lugar a
outro, já que desde a modernidade, e particularmente na época contemporânea, dada a
dimensão que assumiram e seu grau de penetração na vida social, são também
8 O conceito refere-se, segundo o autor, a jornais produzidos de forma impressa, revistas, livros, assim como processos
de reprodução fotográfica ou eletrônica de qualquer tipo, como o rádio, por exemplo. No que tange à imprensa, ele
ressalta que não é a escrita enquanto tal que se configura como um meio de comunicação, mas a tecnologia de difusão,
o meio (do latim medium) que leva a informação a longa distância.
construtores de realidades, produtores ativos de sentido que emolduram nossa forma de
ver o mundo. Vivemos até certo ponto imersos em sua “irrealidade cotidiana”, para usar
a feliz expressão de Umberto Eco, que, ao subverter o termo realidade, evidencia como
essa “construção” passa inevitavelmente pela dimensão do imaginário, e, por que não
dizer, mítica.
Também podemos dizer, tomando de empréstimo o termo de John B. Thompson,
que desde a modernidade os dispositivos midiáticos nos inseriram a todos em uma
“mundanidade mediada”, em que um fluxo sensorial e de experiências de segunda ordem
confunde-se e imbrica-se com as nossas experiências pessoais e sociais no plano
presencial. O desencaixe entre espaço e tempo decorre do fenômeno da simultaneidade
não espacial, possibilitada pela presença dos meios de comunicação, a que se refere
Thompson (1998: 36), na mesma linha de argumentação de Giddens.
O jovem como outro da mídia
Pensando no jornal a partir dos pressupostos acima, como um meio que ativamente
contribui para a construção e conformação de uma maneira de ler o mundo, apresento a
seguir os dados empíricos do levantamento feito nos jornais O Liberal e Diário do Pará e
a análise que os tomou por base.
A amostra selecionada para o corpus da análise busca desvelar os significados
presentes nos dois jornais de maior circulação no Estado do Pará, O Liberal e Diário do
Pará, como mencionado antes, em torno da temática jovens/juventude(s). Foram
analisadas trinta edições de cada jornal, no período de 18 de abril a 18 de maio de 2013.
Ao todo, foram selecionados e sistematizados 408 textos publicados nos dois
jornais - 240 em O Liberal e 168 no Diário do Pará, conforme a tabela abaixo. É possível
afirmar que o tema aparece com razoável frequência, o que não quer dizer
necessariamente relevância no contexto da edição, em ambos os jornais. Em todas as
edições foi possível encontrar pelo menos uma matéria que fizesse referência a jovens/
juventude.
Tabela 1. Gêneros textuais nos jornais
Gênero Textual Jornal O Liberal Jornal Diário do Pará
Notas 7 3
Artigos de Opinião 3 9
Matéria/Reportagem 230 156
Total: 240 168
As matérias analisadas foram enquadradas em onze categorias, definidas em
função das temáticas que foram se apresentando no decorrer do exame do material. Na
tabela abaixo, é possível visualizar a distribuição das matérias por categorias, destacando,
porém, que eventualmente a mesma matéria pode ser enquadrada em mais de uma
categoria9, motivo pelo qual a somatória das matérias presentes na tabela não corresponde
à totalidade das matérias que compõem o corpus.
Tabela 2. Enquadramento das matérias por categorias
Categorias Diário do Pará O Liberal
Divulgação de atividades promovidas/executadas por jovens 2 8
Divulgação projeto cultural/educativo para jovens 1 6
Juventude e vida estudantil 5 12
Juventude e políticas públicas 7 19
Juventude e religião 2 3
Juventude e beleza/estética 5 2
Juventude e família 3 3
Juventude e saúde 3 2
Juventude e violência (matérias não factuais) 5 8
Jovem vítima de ato violento/crime (matérias factuais) 51 79
Jovem autor de ato violento/crime (matérias factuais) 94 123
As matérias selecionadas foram publicadas nas principais editorias dos dois
jornais, excetuando-se os cadernos esportivos e as colunas sociais ou outras do gênero,
voltadas a retratar os jovens em atividades de lazer10, que por um critério de escolha não
fizeram parte do corpus. Na tabela 3, é possível visualizar a distribuição das matérias
pelas editorias dos dois jornais.
9 É o caso de 25 matérias de O Liberal e 10 do Diário do Pará, enquadradas em mais de uma categoria.
10 Como Baladas e Badalados no Diário do Pará, que se resume a um registro fotográfico de jovens em baladas noturnas,
e TeenTroppo (O Liberal).
Tabela 3. Distribuição das matérias por editorias
Jornal Diário do Pará Jornal O Liberal
Caderno Nº de Matérias Caderno Nº de Matérias
Você 7 Magazine 5
Mundo 1 Poder 23
Brasil 5 Atualidades 36
Bom Dia 8 Troppo 3
Pará 4 Mulher 1
Belém 8 Polícia 173
Atualidades 2
D Semanal 1
Política 5
Polícia 127
Na análise do material, a primeira e mais contundente constatação, expressa em
números na tabela 2, é a altíssima incidência de matérias que associam o jovem à
violência, em vários níveis. Há uma enorme desproporção entre as matérias sobre essa
temática e as que tratam de todos os demais assuntos relativos ao jovem e à juventude, de
tal maneira que tornou-se necessário criar três categorias de classificação das matérias –
uma mais genérica, de matérias não factuais, que tratam do tema juventude e violência; a
segunda, com incidência muito expressiva, em que os jovens aparecem, em matérias
factuais, como vítimas de atos violentos ou crimes; e a última, com o maior índice de
todas, em que os jovens são apontados, também em registros factuais, como autores de
atos violentos ou crimes. A seguir, estão exemplificadas as três categorias de matérias.
Figura 1: Categoria 1
Figura 2: Categoria 2
Figura 3: Categoria 3
Se tomadas as três categorias acima citadas, que estabelecem de diferentes
maneiras o nexo entre jovem e violência, das 168 matérias analisadas no jornal Diário do
Pará, 150 tratam do tema, respondendo por 89% do total. Enquanto isso, no jornal O
Liberal, verifica-se um percentual muito próximo, de 87,5%, pois do total de 240
matérias, 210 abordam o tema violência x juventude. É importante destacar, também, que
essas matérias, em sua maioria, localizam-se na editoria de polícia dos jornais: 127
matérias no Diário do Pará (77% do total) e 173 em O Liberal (72% do total).
Obviamente, tamanha regularidade e incidência do tema violência associado aos
jovens e à juventude não é fortuita ou acidental nos dois jornais, e sim um dado que fala
por si só sobre os modos de dizer a juventude, no sentido de Eliseo Verón (2004). E não
se trata dos enunciados apenas, mas da enunciação dos dois principais veículos da
imprensa escrita local, ou seja, das modalidades do dizer.
O palco público da imprensa, como já apontara Peter Fry (1982: 80), tem uma
“importância didática notável”, como lugar privilegiado em que se dá a reprodução
contínua da sociedade disciplinar, que Michel Foucault conceituou. A complexa teia
discursiva da imprensa faz falar múltiplas vozes e silencia tantas outras, em uma clara
hierarquia, em que alguns estão autorizados a falar e outros, não, reiterando a hipótese
central que Foucault apresentou na aula “A ordem do discurso”11:
[...] Suponho que em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo
tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo
número de procedimentos, que têm por função conjurar seus poderes e
perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e
temível materialidade (FOUCAULT, 2008: 8-9).
É a partir desse entendimento que o filósofo francês vê o discurso não como um
mero instrumento do poder, mas algo intrínseco ao seu exercício. “O discurso não é
simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por
que, pelo que se luta, o poder do qual queremos nos apoderar” (idem, p.10). Eis a razão
por que o discurso opera por procedimentos de exclusão, sendo o da interdição o mais
evidente entre todos. “Sabe-se que não se tem o direito de dizer tudo, que não se pode
falar de tudo em qualquer circunstância, que qualquer um não pode, enfim, falar de
qualquer coisa” (p.9).
11Aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. São Paulo: Edições Loyola,
2008.
Há, portanto, um lugar de fala reservado aos sujeitos, em diferentes circunstâncias,
há hierarquias e sanções, cesuras, que separam os sujeitos e produzem sua subjetividade.
Esse é o modo de operar dos dispositivos de poder. As relações de poder pressupõem
sempre uma dissimetria, uma desigualdade de posições, às quais estão acoplados os
discursos. Dada essa dissimetria estrutural, também supõem resistência, luta e tensão.
Contemporaneamente, sem dúvida, a imprensa e os meios de comunicação fazem parte
dessa rede dos dispositivos do poder na sociedade disciplinar conceituada por Foucault.
Para o filósofo, as práticas discursivas constituem os acontecimentos de que elas falam e
produzem as verdades de um certo momento histórico.
Por essa razão, e considerando-se também o entendimento de Verón de que a
imprensa escrita é uma espécie de “laboratório” para se entender as transformações dos
diferentes grupos sociais, podemos dizer que o grupo social dos jovens é retratado, hoje,
pela imprensa local como um grupo essencialmente vinculado à violência urbana, seja
como seu alvo, seja como protagonista da violência que se disseminou nos últimos anos,
não só pela cidade de Belém como por todas as demais capitais e cidades médias do
Brasil12.
A ênfase exacerbada na associação entre juventude e violência é coerente com
uma persistente forma de representar a juventude como problema social, ou como
segmento social em situação de risco, em que os jovens são vistos como “indivíduos em
perigo, ou perigosos (para si mesmos, para seus familiares, para os cidadãos de bem, para
a sociedade), que necessitam da análise , do controle, da proteção e da supervisão
particularmente atenta e constante das instituições do poder”, como assinala João Freire
Filho (2006: 48, grifos do autor).
Segundo o autor, as representações dominantes em relação ao jovem – seja no
discurso político, acadêmico, midiático ou corporativo – ora o constituem como questão
de Estado, ora como ideal de mercado. Cada uma dessas duas vertentes alimenta-se, a
seu ver, de duas imagens estereotipadas em torno do segmento juvenil, que são
recorrentes e se atualizam em diferentes instâncias e contextos – a juventude como
12 Pesquisa recente desenvolvida pela ONG mexicana Conselho Cidadão para a Segurança Pública e Justiça Penal
aponta Belém como a 23ª cidade mais violenta do mundo (na pesquisa anterior, de 2013, era a 26ª, portanto piorou sua
posição no ranking), com uma taxa de 48,23 homicídios por 100 mil habitantes. Belém só é superada, no país, por
Fortaleza (7º lugar) e Maceió (5º). Dados extraídos da matéria “Belém é a 23ª cidade mais violenta do mundo”,
disponível em http://www.diarioonline.com.br/noticias/para/noticia-271097-belem-e-a-23-cidade-mais-violenta-do-
mundo.html. 22/01/2014. Acesso em 30/01/2014.
problema - nos termos também de Helena Abramo (1997, 2011) - citada acima, e a
juventude como diversão. Nesta última, os jovens aparecem como:
[...] os “caçadores de emoção”, os “consumados consumistas”
associados a entretenimentos excitantes, sadios e politicamente
inócuos, prazeres descomprometidos, estilos de vida exóticos,
fulgurantes (propagados pelos publicitários, com frequência, como
signos de “modernidade”, “criatividade”, “vitalidade” disponíveis para
todas as faixas etárias) ou, no limite, a formas mercadorizadas de
rebeldia bem-comportada (FREIRE FILHO, 2006: 48-49).
Observa-se no material analisado na imprensa paraense, tomando-se essas duas
imagens citadas como referência, que elas dizem respeito a dois mundos distintos e
claramente separados, inclusive no contexto editorial do jornal: o mundo dos bem
nascidos, filhos das elites urbanas, ou da parcela mais abastada das camadas médias, de
um lado, e o mundo dos excluídos, filhos das camadas populares, de outro. Os primeiros
têm acesso franqueado ao consumo, aos direitos de cidadania, à educação, ao lazer,
enquanto os demais vivem em situação de precariedade econômica e social, nas franjas
das metrópoles, em lugares tidos como tipicamente violentos, e não gozam dos direitos
de cidadania.
Essa clivagem de classe, do mesmo modo que se traduz na segregação espacial
urbana, também reverbera no espaço dos jornais locais, seguindo tendência não só da
imprensa escrita, mas dos meios de comunicação, de modo geral, em todo o país. Nos
jornais locais, os jovens das camadas populares, por um procedimento de exclusão a que
se refere Foucault, são os “personagens” das matérias da editoria de polícia, enquanto os
filhos das camadas médias ou das elites só aparecem em espaços mais nobres dos jornais.
Há uma naturalização do vínculo estabelecido entre a pobreza e a criminalidade, a
delinquência e a violência urbana, de modo geral. A criminalidade aparece como um
caminho natural – e até certo ponto inevitável – para os jovens das camadas populares.
Ao mesmo tempo, a eventual perda de suas vidas é transformada em ato banal, que não
causa qualquer incômodo ou mal-estar social, pois eles são como que vítimas previsíveis
da violência. Como nos enunciados abaixo:
Um rapaz acusado de envolvimento com criminalidade foi morto com três tiros ontem à noite no
Distrito de Mosqueiro, em Belém. Edson Oliveira dos Santos Souza, conhecido como
'Marajazinho', de 18 anos, já havia sofrido um atentado na última quarta-feira. Ontem, no entanto,
não conseguiu fugir dos assassinos. ("Assaltante eliminado a tiros por desafetos", Caderno
Polícia: O Liberal, 25 de abril 2013, p. 3).
A liberdade durou pouco para o adolescente Walmir Rodrigo da Silva, 16 anos, que havia acabado
de sair da divisão de atendimento ao adolescente (DATA) onde respondia pela infração de
latrocínio [...]. ("Suspeito de latrocínio é morto ao sair da delegacia". Laís Azevedo, Caderno
Polícia, Diário do Pará, 15 de maio 2013, p. 3).
Os jovens retratados da maneira exposta acima nas páginas policiais são pobres,
quase sempre negros e moradores de bairros ou regiões periféricos13. O tratamento a eles
dispensado na cobertura policial, fruto de uma sociedade com senso hierarquizado de
justiça, está incorporado pelas rotinas produtivas da notícia, na escala que a autora Suzana
Varjão (2008) chama de micropoderes – uma rede representada pelos repórteres policiais
e os próprios policiais que são fontes das matérias14 –, que se coaduna com a escala mais
ampla, dos macropoderes, em uma dimensão macrossociológica. Ambas são permeadas
por ideologias que reproduzem os sistemas de dominação.
A violência, aqui, se expressa agudamente em seu aspecto simbólico, no sentido
em que Bourdieu a define. Trata-se do enfrentamento das diferentes classes e frações de
classe na luta simbólica para imporem a definição do mundo social que mais se adeque
aos seus interesses.
É enquanto instrumentos estruturados e estruturantes de comunicação e
de conhecimento que os “sistemas simbólicos” cumprem a sua função
política de instrumentos de imposição ou de legitimação da dominação
de uma classe sobre outra (violência simbólica), dando o reforço da sua
própria força às relações de força que as fundamentam e contribuindo,
assim, segundo a expressão de Weber, para a “domesticação dos
dominados” (BOURDIEU, 1989: 11).
Essa domesticação é construída discursivamente em vários âmbitos,
especialmente no e pelo discurso da mídia. Nas tramas de poder que atravessam o campo
da comunicação midiática – que envolvem agentes, conhecimentos e práticas – como
destaca Varjão, não há anjos ou demônios. “Há engrenagens automatizadas, naturalizadas
13A esse respeito vale ressaltar dados muito eloquentes revelados pelo Mapa da Violência 2012, com o sugestivo título
“A cor dos homicídios no Brasil”, que foi produzido pela Secretaria de Igualdade Racial da Presidência da República.
O mapa é feito desde 1998, antes ficava a cargo do Ministério da Justiça, e destina-se a analisar a evolução da violência
no país – em especial a letal, homicídios ou morte por causa violenta. O Brasil ocupa uma das primeiras posições em
homicídios em nível internacional. Os jovens são alvos preferenciais destes, tendência que tem se acentuado
flagrantemente desde que começou a ser feito o mapa. Só que essas mortes são seletivas, pois morrem
proporcionalmente muito mais jovens negros que brancos. Tanto que em novembro de 2012 foi lançado pelo governo
federal o “Plano Nacional de Prevenção à Violência contra a Juventude Negra”. No período de apenas oito anos (2002-
2010), que o último mapa recobre, morreram 128 mil pessoas negras a mais do que brancas. Em 2010 morreram três
vezes mais jovens negros do que brancos. As mortes de jovens brancos respondem por 30,6% do total (2002-2010),
enquanto que as de jovens negros equivalem a 69,1% do total no mesmo período.
14Muitas das vezes por meio da transcrição quase literal, embora não admitida, dos boletins das ocorrências policiais,
como afirma Suzana Varjão (2008: 196). A pesquisa da autora analisou o noticiário sobre violência nos três jornais
diários de Salvador (Bahia).
e incorporadas às rotinas produtivas dos jornais, que, à revelia dos que as operam, emitem
discursos estruturantes de um quadro social próximo à barbárie” (2008: 195).
Os jovens das camadas populares oscilam entre a invisibilidade, em suas áreas de
moradia precária, onde experimentam privações materiais e simbólicas de todas as
ordens, e a busca por visibilidade e reconhecimento social, o que, no entanto, muitas vezes
resulta no que Mione Sales (2007) chama de “condição de visibilidade perversa”. Uma
visibilidade que é seletiva, intensificada pelo preconceito e medo da violência, e que
reproduz o estigma da periculosidade que historicamente acompanhou os setores mais
pauperizados das classes trabalhadoras urbanas.
Parece-me evidente que o material encontrado nos dois jornais paraenses
conduzem à visibilidade perversa a que se refere à autora, dos jovens pobres, moradores
das áreas periféricas de Belém, ligados ou não à criminalidade – mas igualmente
associados à violência -, cujas mortes não causam qualquer comoção, em vista de sua
insignificância social, nos termos aqui discutidos. As matérias abaixo espelham essa
forma de tratamento.
Figura 4: Morte banalizada 1 Figura 5: Morte banalizada 2
De outro lado, na categoria juventude como diversão, apontada por João Freire
Filho (2006), oposta à juventude como problema, embora seja baixa a incidência de
matérias no corpus analisado, é possível estabelecer um claro contraponto com as
matérias comentadas até aqui. O lazer e o entretenimento parecem ser exclusividade dos
jovens das parcelas mais abastadas das camadas médias e das elites. Os dois jornais têm
colunas, já citadas, que retratam jovens em momentos de diversão – TeenTroppo (O
Liberal) e Baladas e Badalados (Diário do Pará). Em geral, essa juventude é branca e sua
imagem é naturalmente associada ao entretenimento e à variedade das oportunidades de
lazer e de consumo.
O texto da matéria abaixo, “Minha viagem de formatura”, é bastante elucidativo
a esse respeito:
O tão sonhado baile de formatura cedeu espaço para as viagens. Foi-se o tempo em que as
mulheres sonhavam com o vestido do grande dia. Diversão é a palavra de ordem para as futuras
formandas que, com um ano de antecedência, organizam o orçamento para não poupar nas
programações durante o passeio". ("Minha viagem de formatura". Ana Karenyna, Caderno
Troppo: O Liberal, 05 de maio 2013, p. 8).
As jovens citadas na matéria planejam um “roteiro de lugares paradisíacos para
se aventurar com uma turma de amigas”. Tudo isso para comemorar a formatura no ensino
médio. A viagem, a cargo de uma agência especializada, é planejada antecipadamente
“para não poupar nas programações durante o passeio”. Aqui, a palavra é franqueada para
que, por meio de uma entusiasmada narrativa, a experiência das três sirva de orientação
para outras que queiram fazer a mesma opção. Os destinos prováveis são até sugeridos na
matéria: Porto Seguro, Florianópolis, Cancún, Disneyworld, entre outros.
Em todos os materiais aqui analisados, uma constatação se impõe: os aparatos de
mídia reproduzem cotidianamente, em suas operações discursivas – muitas delas já
automatizadas nas rotinas de produção do material noticioso -, esquemas de classificação
que estabelecem linhas divisórias, claras ou mais dissimuladas e sutis, que interferem nos
modos como os sujeitos, jovens ou não, veem a si próprios no mundo social. Esse
aprendizado diário, à maneira de Foucault, os leva a introjetarem as hierarquias do poder
reinantes e chega a atingir “o grão fino da individualidade” (2001: 57).
De outro lado, evidencia-se que as vivências juvenis tecem, por elas mesmas,
contrapontos aos quadros de referência instituídos discursivamente pela mídia.
Independente da classe social a que pertençam, meus interlocutores na pesquisa percebem
essa forma de tratamento dispensado pela mídia, como já foi apontado antes nas falas de
Vinícius, Diogo e João. Essa percepção, evidentemente, se torna mais tanto mais aguda
quanto mais perto o jovem vive da realidade retratada, o que o faz renegar essa identidade
deteriorada que a mídia quer lhe atribuir.
A apreciação de Elvis, por exemplo, espelha essa recusa. “A mídia quer sempre
mostrar que a maioria dos jovens são tudo perdido, são todos pessoas que não têm
responsabilidade e eu não concordo com isso. Eu me considero um jovem responsável e
tem vários jovens assim, mas a mídia só quer mostrar as coisas ruins”. A não identificação
com as imagens projetadas, contrastando com os significados extraídos da sua vida
cotidiana, é a fonte da recusa para os registros que lhes soam exóticos e carregados de
preconceito nos discursos midiáticos.
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