Post on 12-Oct-2015
description
Capa: referencial
Nova formatao:
Luis Antonio Vergara Rojas - LAVRo
O LEOPARDO
Tomasi di Lampedusa
Crculo de Leitores
Ttulo do original: Il gattopardo
Traduo de Rui Cabeadas
Crculo de Leitores, Lda.
Composto em Garamond 11
Impresso e encadernado
por Printer Portuguesa, Lda.
Setembro de 1974
Edio integral
Licena editorial para
o Crculo de Leitores
por cortesia de Livraria Bertrand
proibida a venda a quem no pertena ao Crculo
3
CAPTULO I
ROSRIO E APRESENTAO DO PRNCIPE - O JARDIM E O
SOLDADO MORTO - AS AUDINCIAS REAIS - O JANTAR - DE
CARRUAGEM PARA PALERMO - IDA A MARIANNINA - REGRESSO
A S. LOURENO - CONVERSA COM TANCREDO - NOS
ESCRITRIOS DA ADMINISTRAO: AS PROPRIEDADES E OS
RACIOCNIOS POLTICOS - NO OBSERVATRIO COM O PADRE
PIRRONE - REPOUSO DURANTE O ALMOO - D. FABRCIO E SEU
FILHO PAULO - A NOTCIA DO DESEMBARQUE E, DE NOVO, O
ROSRIO
Maio, 1860
Nunc et in hora mortis nostrae. Amen. A recitao
quotidiana do rosrio terminara. Durante meia hora, a voz
calma do Prncipe havia recordado os mistrios Gloriosos e
Dolorosos; durante meia hora, outras vozes entremeadas
haviam tecido um sussurro ondulante em que sobressaam as
flores de oiro de certas palavras inslitas: amor, virgindade,
morte. Durante aquele sussurro o salo rococ parecia ter
mudado de aspecto; at os papagaios que abriam as asas
irisadas na seda das tapearias haviam-se mostrado
intimidados; e, entre as duas janelas, Madalena, na qual todos
habitualmente viam uma bela e opulenta loira, perdida no se
sabe em que sonhos, tinha tomado uns ares de penitente.
Calada, agora, a voz, tudo regressava ordem na
desordem do costume. Pela porta por onde os criados haviam
sado, Bendic, o grande co de fila, a quem a forada
excluso havia magoado, entrou e abanou o rabo.
Lentamente, as senhoras principiaram a erguer-se e, aos
poucos, o refluxo oscilante das suas saias ia deixando a
4
descoberto os nus mitolgicos desenhados no fundo leitoso
dos azulejos. Apenas permanecia escondida uma Andrmeda,
a quem a batina do Padre Pirrone, atrasado nas oraes
suplementares, impediu, por um bom momento, de rever o
seu prateado Perseu, que, sobrevoando as vagas, corria a
libert-la e a beij-la.
No fresco do tecto as divindades acordaram. Filas de
trites e drades precipitavam-se dos montes e mares, entre
nuvens cor de framboesa e lils, em direco a uma
transfigurada Concha de Oiro, a fim de exaltar a glria da Casa
de Salina; to transbordantes de satisfao se mostravam que
as mais elementares regras de perspectiva foram violadas. E
os Deuses maiores, os prncipes entre os Deuses, Jpiter o
Fulgurante, Marte o Carrancudo, Vnus a Langorosa, que
haviam precedido a multido dos Deuses menores, pareciam
agora sustentar de boa vontade o escudo azul com o Leopardo
danando.
Sabiam perfeitamente que durante vinte e trs horas e
meia voltariam a ser os senhores da villa. Nas tapearias das
paredes, os macacos voltavam a fazer momices s catatuas.
Tambm os mortais da casa de Salina, sob aquele Olimpo
palermitano, desciam apressadamente das altas esferas
msticas. As raparigas compunham as pregas dos vestidos
enquanto trocavam entre si rpidos olhares azulneos e
palavras na gria do pensionato. H mais de um ms, desde os
motins do quatro de Abril, que as haviam mandado voltar do
convento; agora, era com saudade que recordavam os
dormitrios de baldaquins e a intimidade colectiva do
Convento de Salvador. Os rapazes mais novos brigavam j
pela posse de uma imagem de S. Francisco de Paula; o
primognito e herdeiro, o Duque Paulo, comeava j a sentir
vontade de fumar, mas, com receio de o fazer na presena dos
pais, contentava-se em apalpar, atravs da algibeira, a palha
entranada da cigarreira. Desenhava-se-lhe no rosto emaciado
uma melancolia metafsica: o dia havia-lhe corrido mal, pois
Guiscardo, o alazo irlands, tinha-lhe parecido em m forma
5
e Fanny no conseguira encontrar o meio (ou o desejo?) de
fazer-lhe chegar mo o habitual bilhetinho cor-de-rosa. Para
que se havia ento sacrificado o Redentor?
Com insegura autoridade a Princesa deixou cair,
secamente, o tero na bolsa bordada de azeviche, enquanto os
seus belos olhos manacos observavam os filhos escravos e o
marido tirano. O seu corpo minsculo projectava-se para este
num vo desejo de domnio amoroso.
Entretanto, o Prncipe levantou-se e, ao choque do seu
peso de gigante, o soalho estremecia. Durante uns instantes,
os seus olhos claros reflectiam o orgulho daquela efmera
confirmao do seu domnio sobre homens e coisas.
Depois, poisou o enorme missal vermelho que estivera na
sua frente durante a recitao do rosrio e guardou o leno em
que apoiara o joelho; um pouco de mau humor turvou-lhe o
olhar, quando viu a pequenina ndoa de caf que, desde a
manh, havia ousado quebrar a vasta brancura do colete.
No era gordo; era apenas imenso e forte. A sua cabea
tocava (nas casas habitadas pelos mortais comuns) o floro
inferior dos lustres, e os seus dedos sabiam dobrar como
papel as moedas de ducado. Havia sempre, entre a villa Salina
e a loja de um ourives, um contnuo vaivm a fim de se
consertarem os garfos e as facas que a sua ira contida, mesa,
fazia frequentemente dobrar em arco. Aqueles dedos sabiam
alis usar de extrema delicadeza, quando acariciavam ou se
entregavam a certas brincadeiras; e disto, para sua desgraa,
se poderia lembrar Maria Stella, sua mulher; e, ainda, sob o
seu toque delicado, os parafusos, os aros e botes
esmerilados dos telescpios, culos e pesquisadores de
cometas, que enchiam, l no alto da villa, o seu observatrio
particular, no sofriam qualquer dano.
Os raios do sol poente daquela tarde de Maio incendiavam
a tez rosada e os cabelos cor de mel do Prncipe. Eram estes
que denunciavam a origem alem de sua me, aquela Princesa
Carolina cuja soberba, trinta anos atrs, havia enregelado a
Corte um tanto negligente das Duas Siclias. Mas no sangue
6
fermentavam-lhe outras essncias germnicas, e estas mais
incmodas para um aristocrata siciliano, naquele ano de 1860,
de que podiam ser atraentes uma pele clara e uns cabelos
loiros no meio daquela gente de pele olivcea e cabelos
negros. O seu temperamento autoritrio, uma certa rigidez
moral, a sua propenso s ideias abstractas, no ambiente
moral um tanto mole da sociedade palermitana, haviam-se
mudado, respectivamente, em tirania caprichosa, perptuos
escrpulos morais e desprezo pelos seus parentes e amigos,
os quais lhe pareciam andar deriva nos meandros do
vagaroso rio do pragmatismo siciliano.
Ele era, numa famlia que, durante sculos, no havia
nunca sequer sabido fazer a soma das despesas e a subtraco
das dvidas, o primeiro e ltimo a possuir uma forte e mais
que notria inclinao para as cincias matemticas.
O Prncipe havia-as aplicado astronomia e, desta forma,
obtido com elas razoveis sucessos pblicos e belssimos
prazeres privados. Com efeito, a tal ponto, nele, o orgulho e a
anlise matemtica se tinham associado, que alimentava a
iluso de que os astros obedeciam aos seus clculos (como
alis pareciam fazer) e que os dois planetas que havia
descoberto (chamara-lhes Salina e Esbelto em homenagem
sua propriedade e a um inesquecvel perdigueiro) propagavam
a fama da sua casa nas estreis plagas do cu entre Marte e
Jpiter. E, assim, os frescos da villa representariam mais uma
profecia que a adulao de um pintor.
Solicitado, por um lado, pelo orgulho e intelectualismo
materno, por outro, pela sensualidade e condescendncia do
pai, o nobre Prncipe Fabrcio vivia, sob a carranca de Zeus,
em perptuo descontentamento, entregando-se
contemplao da runa da sua raa e do seu patrimnio sem
dar mostras de qualquer actividade e, o que mais, sem tentar
pr-lhe um termo.
Aquela meia hora entre o rosrio e o jantar era um dos
momentos menos irritantes do dia e, horas antes, j de
antegozava-lhes a calma equvoca.
7
Precedido de um Bendic excitadssimo, desceu a pequena
escada que conduzia ao jardim. Encerrado entre trs muros e
um dos lados da villa, esta clausura conferia-lhe um ar de
cemitrio, acentuado ainda mais pelos montculos paralelos
que ladeavam os pequenos canais de irrigao e que
lembravam tmulos de gigantes magrssimos. Na argila
avermelhada as plantas cresciam em espessa desordem; as
flores surgiam ao deus-dar e as sebes de murta pareciam ali
dispostas mais para impedir que para dirigir os passos.
Ao fundo, uma Flora, manchada por lquenes amarelo-
negros, exibia, com resignao, os seus mimos mais que
seculares; de cada um dos lados um banco sustentava uma
almofada bordada, comprida e enrolada, talhada, tambm ela,
em mrmore cinzento.
A um canto, o oiro de uma accia introduzia uma nota de
alegria intempestiva. De todos aqueles torres emanava uma
sensao de beleza depressa amortecida pela indolncia.
Mas o jardim, refreado e macerado entre aquelas
barreiras, exalava perfumes untuosos, carnais, levemente
ptridos, como os lquidos destilados das relquias de certos
santos; o perfume apimentado das violetas sobrepunha-se ao
aroma convencional das rosas e ao oleoso das magnlias que
se concentravam nos cantos. Muito ao de leve, percebia-se
ainda o perfume da hortel-pimenta misturado ao aroma
infantil da accia e ao cheiro a confeitaria da murta. O
perfume de alcova das primeiras flores das laranjeiras do
pomar transbordava por cima do outro muro.
Era um jardim para cegos. A vista constantemente se
ofendia, mas o olfacto, esse, podia extrair dele um prazer
violento, embora grosseiro. As rosas Paul Neyron, cujas
estacas ele prprio adquirira em Paris, haviam degenerado.
Primeiro estimuladas, depois extenuadas pelos sucos
vigorosos e indolentes das terras sicilianas, queimadas por
Julhos apocalpticos, haviam-se transformado numa espcie
de couves cor de carne, obscenas, que destilavam, porm, um
aroma denso, quase desonesto, que nenhum criador francs
8
teria ousado esperar. O Prncipe levou uma delas ao nariz e foi
como se aspirasse a coxa de uma bailarina da pera. Bendic,
a quem em seguida a ofereceu, retraiu-se nauseado e
apressou-se a ir procurar sensaes mais saudveis no meio
do estrume e das lagartixas mortas.
Para o Prncipe, porm, aquele jardim perfumado foi
causa de obscuras associaes de ideias. Agora, sim, cheira
bem, mas h um ms...
Recordava a repugnncia que as baforadas adocicadas
haviam espalhado por toda a villa antes que tivesse sido
removida a sua causa: o cadver de um jovem soldado do
Batalho de Caadores 5 que, ferido na escaramua de S.
Loureno, contra as tropas rebeldes, tinha vindo morrer,
sozinho, debaixo de um limoeiro. Haviam-no encontrado de
bruos, no meio do trevo espesso, o rosto mergulhado no
sangue e nos vmitos, as unhas cravadas na terra, coberto de
formigas; sob as bandoleiras os intestinos violceos haviam
formado uma poa de lama. Tinha sido Russo, o guarda, a
encontrar aquela coisa desfeita, a volt-la, a cobrir-lhe o rosto
com o seu leno vermelho e, com um pau, a meter as
entranhas para dentro do rasgo do ventre e cobrir depois a
ferida com as abas azuis do capote, cuspindo continuamente
de nojo, no precisamente em cima mas bastante perto do
cadver. Tudo isto com uma habilidade cuidadosa. O fedor
destes malandros no pra nem quando esto mortos, dizia.
E fora tudo o que comemorara aquela morte solitria.
Quando os camaradas sonolentos o vieram tirar (sim,
haviam-no arrastado pelos ombros at carreta, o que fez
com que a estopa do boneco sasse outra vez para fora), foi
acrescentado ao rosrio da tarde um De Profundis pela alma
do desconhecido.
E, como a conscincia das senhoras ficou satisfeita com
isto, no mais se voltou a falar no assunto.
O Prncipe foi raspar um pouco de lquen dos ps da Flora
e ps-se a passear de um lado para o outro. O sol poente
projectava-lhe a imensa sombra sobre os canteiros fnebres.
9
De facto, no se havia falado mais no morto e, no fim de
contas, os soldados so soldados precisamente para morrer
em defesa do Rei. A imagem daquele corpo estripado voltava-
lhe, porm, muitas vezes memria, como para pedir que lhe
desse paz pelo nico meio possvel para o Prncipe: superando
e justificando o seu derradeiro sofrimento com uma
necessidade geral. sua volta pairavam outros espectros
ainda menos atraentes que aquele; porque morrer por algum
ou por qualquer coisa est certo, da prpria natureza das
coisas; mas era preciso saber ou, pelo menos, ter a certeza
que as pessoas sabem por que ou por quem se morre.
Era isto o que perguntava aquela face desfigurada e era
exactamente neste ponto que as coisas comeavam a
confundir-se na nvoa.
Mas evidente que ele morreu pelo Rei, caro Fabrcio,
ter-lhe-ia respondido, se o Prncipe o tivesse interrogado, o
seu cunhado Mlvica, aquele Mlvica escolhido sempre como
porta-voz da multido de amigos. Pelo Rei, que representa a
ordem, a continuidade, a decncia, o direito e a honra. Pelo rei
que, sozinho, defende a Igreja e impede o desmembramento da
propriedade, objectivos finais da seita.
Magnficas palavras estas que se referiam a tudo quanto
era caro ao Prncipe no mais ntimo do seu corao. Qualquer
coisa porm soava falso ainda. Sim, o Rei; at aqui tudo estava
bem; conhecia-o, pelo menos o que tinha morrido h pouco; o
actual era apenas um seminarista vestido de general e, para
dizer a verdade, no valia grande coisa. Mas isso no
raciocinar, rebatia Mlvica; um determinado rei pode no
estar altura da funo mas a ideia monrquica permanece
vlida na mesma. Tambm aquilo estava certo; mas os reis
que encarnavam uma ideia no podiam ou, pelo menos, no
deviam descer, atravs dos tempos, abaixo de um certo nvel;
seno, meu caro cunhado, tambm a ideia sofre com isso.
Sentado num banco, ali estava ele contemplando, inerte, a
devastao que Bendic ia operando nos canteiros. De vez em
quando, o co levantava para ele os olhos inocentes, como a
10
pedir-lhe um louvor pelo trabalho realizado: catorze cravos
despedaados, meia sebe arrancada, um rego obstrudo.
Parecia mesmo um ser humano!
Chega, Bendic, anda c.
E o animal acorria, poisava-lhe na mo o focinho sujo de
terra, ansioso de mostrar-lhe que a tola interrupo do belo
trabalho cumprido lhe havia sido perdoada.
Oh! Aquelas audincias, aquelas muitas audincias que o
Rei Fernando lhe havia concedido, em Caserta, em
Capodimonte, em Portici, em Npoles... no inferno!
Ao lado do camarista de servio, que o guiava
tagarelando, com o bicorne debaixo do brao e os mais frescos
ditos napolitanos nos lbios, percorria-se interminveis salas
de arquitectura magnfica e de um mobilirio desagradvel
(exactamente como a monarquia bourbnica), enfiava-se em
corredores sujos e pequenas escadas vacilantes e chegava-se a
uma antecmara onde muita gente esperava: caras fechadas de
esbirros, caras vidas de suplicantes recomendados. O
camarista desculpava-se, fazia-o transpor o obstculo daquela
gente vulgar e conduzia-o a uma outra antecmara, a que era
reservada s pessoas da Corte: um pequeno compartimento
todo azul e prata dos tempos de Carlos III; aps uma breve
espera, um criado batia levemente porta e chegava-se
Presena Augusta.
O gabinete privado era pequeno e pretensiosamente
simples; nas paredes caiadas um retrato do Rei Francisco I e
outro, de aspecto azedo e colrico, da actual Rainha; por cima
do fogo, uma Madona de Andrea dei Sarto parecia espantada
de ver-se rodeada por litografias coloridas representando
santos da terceira ordem e santurios napolitanos.
Em cima de uma mesa, com a lamparina acesa em frente,
um Menino Jesus de cera; sobre a secretria modesta, papis
brancos, papis azuis, papis amarelos; toda a administrao
do Reino chegada sua fase final, a da assinatura de Sua
Majestade (D. G.).
11
Por detrs desta barreira de papelada, o Rei, j em p para
no ser obrigado a levantar-se; o Rei com o seu caro gordo e
mortio entre umas suas loiras e que vestia uma casaca
militar de tecido grosseiro donde brotavam, em cascata roxa,
umas calas tufadas. Dava um passo em frente com a mo
direita j virada para o beijo que depois recusaria.
Viva Salina, felizes olhos que te vem!
O sotaque napolitano ultrapassava de longe, em sabor, o
do camarista.
Rogo a Vossa Majestade que me perdoe por no trazer a
farda da Corte; mas estou em Npoles apenas de passagem e
no queria deixar de apresentar os meus cumprimentos a
Vossa Majestade.
Tu ests doido, Salina; sabes que aqui em Caserta ests
como em tua casa. Em tua casa, com certeza. Em tua casa, com
certeza repetia, sentando-se por detrs da secretria e
demorando um instante a mandar sentar o visitante.
E como vo as pequenas?
O Prncipe sabia que era altura de cometer um equvoco
ao mesmo tempo licencioso e beato.
As pequenas, Majestade? Na minha idade, e sob o
sagrado vnculo do matrimnio?
A boca do Rei ria, enquanto as mos, severamente,
arrumavam os papis.
Nunca me atrevia a tanto, Salina. Perguntava pelas tuas
pequenas, as princesinhas? Concetta, a nossa querida
afilhada, j deve estar crescida, uma autntica senhora.
Da famlia passou-se cincia.
Tu, Salina, no s te honras a ti mesmo, como a todo o
Reino! Grande coisa a cincia, quando no se pe a atacar a
religio.
Depois, a mscara do Amigo era posta de lado, e assumia
a do Soberano Severo.
12
E, diz-me c, Salina, o que que se diz de Castel-cicala
na Siclia?
Salina no tinha inteno de dizer uma palavra sobre o
partido real nem to-pouco sobre o partido liberal, mas no
queria trair o amigo; defendia-se e mantinha-se nas
generalidades.
Um cavalheiro, um glorioso ferimento, mas talvez
demasiadamente idoso para as muitas fadigas de lugar-
tenente.
O Rei anuviava-se; Salina no queria prestar-se ao papel
de espio, logo, Salina no valia nada para ele. Com as mos
apoiadas na secretria preparava-se para o despedir.
Tenho muito trabalho, todo o Reino assenta nos meus
ombros.
Era altura de dourar a plula; a mscara amigvel voltou a
sair para fora da caixa.
Quando voltares a Npoles, vem mostrar Concetta
Rainha. Eu bem sei que ela demasiado nova para ser
apresentada Corte, mas nada impede um simples almoo
ntimo. Macarro e raparigas bonitas, como se costuma dizer.
At vista, Salina. Passa bem.
Certa vez, porm, a despedida fora desagradvel.
O Prncipe, recuando diante do Rei, havia j feito a
segunda reverncia quando este o chamou.
Escuta, Salina! Disseram-me que ele tem ms
companhias em Palermo; aquele teu sobrinho Falconri...
porque no o metes na ordem?
Mas, Majestade, Tancredo s se preocupa com mulheres
e com as cartas.
O Rei perdeu a pacincia.
Salina, Salina, tu ests doido. Tu, o tutor, que s
responsvel. Diz-lhe que tenha juzo. Adeus!
Voltando a percorrer o itinerrio faustosamente medocre
13
para ir assinar o livro de cumprimentos da Rainha, o desnimo
invadia-o: a cordialidade plebeia havia-o deprimido tanto
como a manha policial. Felizes os seus amigos que
interpretavam aquela familiaridade como prova de amizade e
a ameaa como manifestao de poder real; ele no podia. E,
enquanto se entregava m lngua com o impecvel
camareiro, ia perguntando a si mesmo quem seria destinado a
suceder naquela monarquia que ostentava j os sinais da
morte no rosto. O Piemonts, a quem chamavam o
Cavalheiro e que fazia tanto estardalhao na sua pequena
capital fora de mo? No seria a mesma coisa? Dialecto
piemonts em vez de napolitano?
Pronto, j bastava de perguntas.
Haviam chegado ao livro. Assinava: Fabrcio Cor-bera,
Prncipe de Salina.
Ou talvez a Repblica de don Peppino Mazzini? Seja,
transformar-me-ei no senhor Corbera!
A grande volta de regresso no o acalmou. Nem mesmo o
encontro j marcado com Cora Danolo o pde consolar.
Mas que havia ele de fazer, se as coisas eram assim
mesmo? Agarrar-se s realidades presentes sem dar saltos no
desconhecido?
Ouviam-se agora as detonaes secas das descargas, como
as que haviam soado, no h muito tempo, numa praa
miservel de Palermo; mas para que serviam tambm aqueles
tiros?
Nada se consegue com os pum! pum! No verdade,
Bendic?
Ding, ding, ding tocou a sineta que anunciava o jantar.
Bendic corria j, com a gua a correr-lhe na boca, em busca
de comida.
Um autntico piemonts, pensava Salina, subindo as
escadas.
O jantar na villa Salina, como era uso no Reino das Duas
14
Siclias, servia-se com um fausto verdadeiramente ruinoso. O
nmero de comensais (eram catorze, entre patres, filhos,
governantes e preceptores) bastava, por si s, para conferir
imponncia mesa. Esta, coberta de uma finssima toalha j
remendada, resplandecia sob a luz de um grande lustre
precariamente suspenso da ninfa, sob o lampadrio de
Murano. Pelas janelas entrava ainda muita luz, mas as figuras
brancas sobre fundo escuro que, nas portas, simulavam
baixos-relevos, perdiam-se j na sombra. Macias eram as
pratas, esplndidos os copos de cristal facetado da Bomia,
que ostentavam, sobre um medalho liso, as iniciais F. D. (Fer-
dinandus dedid), em recordao de uma munificncia real; os
pratos, porm, cada um assinado por uma sigla ilustre, eram
apenas os sobreviventes dos estragos cometidos pelo pessoal
da cozinha e provinham de servios dspares. Os maiores,
grandes Capodimonti, de larga cercadura verde-amndoa,
salpicada de pequeninas ncoras douradas, eram reservados
para o Prncipe, que gostava que as coisas sua volta fossem
sua escala, excepto a mulher.
Quando ele entrou na sala de jantar, j l estavam todos
reunidos; s a Princesa sentada, os outros de p, atrs das
cadeiras. Em frente ao seu lugar, sobressaam, ladeados por
uma pilha de pratos, os flancos prateados da enorme terrina
de tampa coroada pelo Leopardo danando. Era o prprio
Prncipe a tirar a sopa para os pratos, tarefa que lhe era grata,
smbolo das atribuies alimentares do pater famlias.
Naquela noite, porm, como h j um certo tempo no
acontecia, ouviu-se, ameaador, o tinir da concha contra as
paredes da terrina: sinal de grande clera contida, um dos
rudos mais pavorosos que havia, como, quarenta anos depois,
contava um filho sobrevivente. O Prncipe havia reparado que
Francisco Paulo, o filho de dezasseis anos, no estava ainda
no seu lugar. O rapaz entrou logo a seguir (desculpa, pap) e
sentou-se. No sofreu censura, mas o Padre Pirrone, que mais
ou menos tinha as funes de co de guarda, inclinou a cabea
e agradeceu ao Senhor: a bomba no havia explodido, mas o
15
vento da sua passagem tinha gelado as pessoas mesa e, de
qualquer forma, o jantar estava estragado.
Enquanto comiam em silncio, os olhos azuis do Prncipe,
escondidos entre as plpebras semicerradas, fixavam, um por
um, os filhos que ficavam mudos de terror.
E, no entanto, pensava: Que bela famlia! As raparigas
gorduchas, florescentes de sade, com covinhas maliciosas
nas faces e, entre a testa e o nariz, aquela famosa ruga, a
marca atvica dos Salinas.
Os rapazes, magros mas fortes, exibindo no rosto a
melancolia da moda, manejavam os talheres com comedida
violncia. Um deles, Joo, o filho segundo, o mais querido e o
de feitio mais difcil, h j dois anos que estava ausente. Um
belo dia desaparecera de casa e durante dois meses no
haviam tido notcias dele. At que chegou de Londres uma
carta, fria e respeitosa, em que se pedia desculpa pelos
cuidados que havia causado, os tranquilizava quanto sua
sade e, coisa estranha, afirmava preferir a modesta vida de
empregado num depsito de carvo existncia demasiado
mimada (leia-se: presa) dos palermitanos. A saudade, os
cuidados pelo moo perdido naquele famoso nevoeiro da
cidade hertica atenazaram raivosamente o corao do
Prncipe, fazendo-o sofrer imenso. Tornou-se ainda mais
sombrio. To sombrio que a Princesa, sentada ao seu lado,
estendeu a mo infantil e acariciou-lhe a manpula poderosa
que repousava sobre a toalha. Gesto inesperado que lhe
desencadeou uma srie de sensaes: irritao por se ver
lamentado, sensualidade que, embora despertada pela mulher,
para ela no se dirigia. Num relmpago apareceu ao Prncipe a
imagem de Mariannina com a cabea afundada na almofada;
secamente, levantou a voz.
Domingues disse a um dos criados , vai dizer a don
Antnio para atrelar os baios ao coup; vou a Palermo, logo a
seguir ao jantar.
Depois, reparando nos olhos da mulher que se haviam
tornado vtreos, arrependeu-se da ordem; mas era impossvel
16
pensar em retirar uma ordem j dada e, assim, insistiu,
unindo a ironia crueldade.
Padre Pirrone, venha comigo; estaremos de volta s
onze; poder passar duas horas no Convento com os seus
amigos.
Ir a Palermo de noite, e naqueles tempos de desordem,
no podia, manifestamente, ter outro objectivo seno o de
uma aventura galante de baixa categoria, mas levar como
companhia o padre da casa era de um despotismo
verdadeiramente ofensivo. Pelo menos, assim o pensou o
Padre Pirrone, que se ofendeu; como era natural, porm,
cedeu.
Apenas engolida a ltima nspera, ouvia-se j o rodar da
carruagem no ptio; enquanto um criado estendia a cartola ao
Prncipe e o tricrnio ao jesuta, a Princesa, j com lgrimas
nos olhos, fez uma ltima, embora v, tentativa.
Mas Fabrcio, nestes tempos, com a estrada cheia de
soldados e de malandrins... pode acontecer-te algum mal.
Ele riu-se.
Palermices, Stella, palermices; que queres tu que me
acontea? Todos me conhecem; homens com dois metros de
altura no h muitos, em Palermo. Adeus!
E beijou apressadamente a testa ainda lisa que apenas lhe
chegava altura do queixo. Mas, ou porque o perfume da pele
da Princesa lhe despertasse ternas recordaes, ou porque,
atrs dele, o passo contrafeito do Padre Pirrone lhe tivesse
invocado sermes pios, quando se viu diante do coup esteve
quase a desistir do passeio. No momento em que ia abrir a
boca para ordenar que recolhessem a carruagem, um grito
violento Fabrcio, meu Fabrcio veio da janela, seguido logo
de gritos agudssimos. A Princesa iniciava uma das suas crises
histricas.
Vamos disse para o cocheiro, que na boleia, de
chicote atravessado na barriga, esperava , vamos, vamos a
Palermo levar o Reverendo Padre ao convento.
17
E bateu com a portinhola, sem dar ao criado tempo a
fech-la.
Ainda no era noite. A estrada, muito branca, corria entre
altos muros e, mesmo sada da propriedade dos Salinas,
avistava-se, esquerda, a villa semiarruinada dos Falconri, e
que pertencia a Tancredo, seu sobrinho e pupilo. Um pai
esbanjador, marido da irm do Prncipe, havia dissipado todo
o patrimnio para morrer em seguida. Fora uma daquelas
runas totais em que se acaba por mandar fundir a prata dos
gales das librs. Depois da morte da me, o Rei havia
confiado a Salina a tutela do sobrinho, ao tempo com catorze
anos, e o rapaz, ao princpio quase ignorado, tornara-se
extremamente querido ao irritvel Prncipe, que encontrava
nele uma alegria turbulenta, um temperamento frvolo,
assaltado, por vezes, por imprevistas crises de seriedade. Sem
que ousasse confess-lo, teria preferido t-lo como
primognito, em vez daquele pateta do Paulo.
Naquele momento, Tancredo, com vinte e um anos, levava
uma boa vida com o dinheiro que o tutor no regateava e que,
por vezes, acrescentava do seu prprio bolso. Que estar
aquele rapaz a tramar, pensava o Prncipe quando passavam
em frente da villa Falconri, qual uma enorme buganvlia,
transbordando em cascatas de seda episcopal para fora do
porto, conferia, na obscuridade, um aspecto de fausto
verdadeiramente abusivo. Quem sabe o que estar ele a
tramar? Porque, quando o Rei Fernando havia falado das ms
companhias do rapazola, havia cometido uma falta ao diz-lo,
mas, a verdade que, quanto aos factos, tivera razo. Preso
numa rede de amigos jogadores e de um certo tipo de amigas
que o seu encanto atraa, Tancredo havia chegado ao ponto de
manifestar simpatias pela seita e ter relaes com o Comit
Nacional Clandestino; quem sabe se recebia tambm dinheiro
deles, como recebia do Tesouro Real. Tivera de se mexer bem
e, inclusivamente, foram necessrias algumas visitas pessoais
a um Castelcicala cptico e a um Maniscalo, demasiado corts,
para evitar que o rapaz, depois do quatro de Abril, sofresse
18
graves aborrecimentos. Tudo isto era desagradvel, mas
Tancredo, segundo pensava o tio, no tinha culpa alguma; a
culpa era daqueles tempos disparatados em que um rapazote
de boas famlias no se podia entregar a umas pndegazinhas
sem se ver envolvido em amizades comprometedoras. Que
poca!
Maus tempos, estes que correm, Excelncia! A voz do
Padre Pirrone soou como um eco dos seus prprios
pensamentos. Refugiado no canto do coup, esmagado pela
mole macia do Prncipe e amachucado por aquela
manifestao de tirania, o jesuta sofria na carne e no esprito,
mas, no sendo um homem medocre, transferira
imediatamente as suas penas efmeras para o mundo
perdurvel da histria.
Olhai, Excelncia!
E apontava os montes abruptos da Concha d'Oiro, ainda
iluminada pelas ltimas claridades do crepsculo. Pelas
encostas e no alto dos montes ardiam dezenas de fogueiras;
eram os fogos que as tropas rebeldes acendiam todas as
noites, ameaa silenciosa cidade rgia e conventual.
Pareciam aquelas lamparinas que se vem arder nos quartos
dos doentes graves, nas noites derradeiras.
Vejo, sim, Padre, vejo.
E pensava que talvez Tancredo estivesse junto de uma
daquelas fogueiras, atiando, com as suas mos aristocrticas,
o fogo que expressamente ardia para liquidar todas aquelas
mos. Na verdade, que belo tutor eu sou para este pupilo que
pratica todas as loucuras que lhe vm cabea!
A estrada agora comeava a descer um pouco e, per-
tssimo, avistava-se Palermo, completamente s escuras. As
suas casas baixas e amontoadas eram esmagadas pelas moles
imensas dos conventos; eram s dezenas, todos enormes,
muitas vezes agrupados aos dois e trs; conventos de homens
e de mulheres, ricos e pobres, nobres e plebeus, conventos de
jesutas, beneditinos, franciscanos, capuchinhos, carmelitas,
19
liguoristas, agostinhos... Mais alto, erguiam-se cpulas
esguias, de curvas incertas, como seios esvaziados de leite;
eram, porm, os conventos que davam cidade a sua
verdadeira dimenso e carcter, aquele ar solene, aquela
presena da morte que nem mesmo a frentica luz siciliana
conseguia afugentar. Era quase noite cerrada e quela hora os
conventos dominavam, como dspotas incontestados, a
paisagem. Era verdadeiramente contra eles que aquelas
fogueiras da montanha ardiam, atiadas, de resto, por homens
que muito se assemelhavam aos que viviam nos conventos:
como eles, frenticos, orgulhosos, vidos de poder, em suma,
como habitualmente, de ociosidade.
Era o que o Prncipe pensava, enquanto os baios desciam
a passo a descida; pensamentos, alis, que contrariavam a sua
natureza mais profunda, mas que nasciam dos cuidados sobre
a sorte de Tancredo e de um impulso sensual que o levava a
revoltar-se contra a represso dos sentidos que os conventos
encarnavam.
A estrada atravessava os laranjais em flor e como o luar
anula uma paisagem, assim o perfume nupcial das flores
anulava todas as coisas: o cheiro dos cavalos suados, o cheiro
do coiro dos estofos da carruagem, o cheiro do Prncipe e do
jesuta, tudo era eliminado por aquele perfume islmico que
evocava o almscar e carnais de alm-tmulo.
O prprio Padre Pirrone deixou-se comover.
Que bela terra, Excelncia, se...
Se no fossem tantos jesutas, pensou o Prncipe, a
quem a voz do padre havia interrompido dulcssimas
antevises.
Mas imediatamente se arrependeu da m educao no
consumada e, com a mo enorme, bateu no tricrnio do velho
amigo.
Ao chegarem aos arredores da cidade, perto da villa
Airoldi, uma patrulha mandou parar a carruagem. Vozes com o
acento da Aplia e de Npoles mandaram parar. Baionetas
20
esguias bailaram sob a luz oscilante de uma lanterna, mas um
oficial subalterno reconheceu imediatamente o Prncipe, que
levava o chapu alto sobre o joelho.
Queira desculpar, Excelncia, podeis passar.
E, para que no voltassem a ser incomodados por outros
postos da guarda, mandou mesmo subir para a boleia um
soldado. O coup, um pouco mais lento por causa do novo
passageiro, continuou a avanar; contornou a villa Ranchibile,
ultrapassou Torrerose e as hortas de Villafranca e entrou na
cidade pela Porta Macqueda. No Caf Romeres e nos Quatri
Canti di Campagna os oficiais das patrulhas da guarda riam-se
enquanto sorviam enormes copos de refresco. Era, porm, este
o nico sinal de vida da cidade: as ruas estavam desertas, e
nelas apenas se ouvia o passo cadenciado das rondas que
passavam, de bandoleiras brancas cruzadas no peito.
E, de um e doutro lado, em fila contnua os conventos: a
Abadia dei Monte, os Stimmati, os Crociferi, os Tea-tini; todos
paquidrmicos, negros como alcatro, imersos num sono
vizinho da morte.
Padre, daqui a duas horas voltarei para o buscar. Boas
oraes!
E o pobre Pirrone, de alma confundida, bateu porta do
convento, enquanto o coup continuava pelas travessas e
ruelas.
Deixando a carruagem no palcio, o Prncipe dirigiu-se a
p para o seu destino. A rua era pequena, mas o bairro tinha
m fama; soldados completamente equipados, o que revelava
imediatamente que se haviam escapado furtivamente dos seus
aquartelamentos nas praas, saam, de olhar pasmado, das
casitas baixas onde uma planta de baslico nas graciosas
janelas explicava a facilidade com que haviam entrado;
rapazolas de aspecto sinistro, usando umas calas largas,
discutiam naquele tom de voz baixo dos sicilianos
enraivecidos; de longe chegava o eco de descargas disparadas
por qualquer sentinela nervosa. Ultrapassado o bairro, a rua
21
prosseguia ao longo do cais; no velho porto de pesca
baloiavam, meio podres, barcos com o aspecto desolado de
ces sarnentos.
Sou um pecador, eu sei-o, e duas vezes pecador: perante
a lei divina e perante o amor humano de Stella. E disso no
pode haver dvidas. Amanh terei de me confessar ao Padre
Pirrone. Sorriu, pensando no ntimo que talvez aquilo fosse
suprfluo, pois, decerto, o jesuta no havia de ter dvidas
sobre os pecados que iria cometer. Mas, imediatamente, o seu
esprito de sofista retomou o comando da situao. verdade
que peco, mas peco para pr termo ao pecado, para no
continuar a excitar-me, para arrancar este espinho que me
atormenta a carne, para no ser levado a cometer maiores
pecados. O Senhor sabe-o bem. Sentiu-se inundado por uma
sbita ternura por ele mesmo. Pobre de mim! Sou um homem
fraco, pensava, enquanto, com o passo poderoso, martelava a
calada imunda. Sou um fraco e ningum me ajuda. Stella!
Diga-se a verdade! O Senhor sabe como a amei: casmos aos
vinte anos. Mas ela agora to tirnica e to velha! A
sensao de fraqueza passara-lhe. Ainda sou um homem
vigoroso; como posso, pois, contentar-me com uma mulher
que na cama, antes de a apertar nos meus braos, faz sempre
o sinal da cruz e que, depois, nos momentos de maior emoo,
no sabe dizer mais do que: Jesus-Maria! Na altura em que nos
casmos, quando ela tinha dezasseis anos, tudo isto me
exaltava, mas agora... Tive sete filhos dela, sete, e nunca lhe
vi o umbigo. Ser isto justo? Quase gritava, excitado por
aquela angstia egocntrica. Estar certo? Pergunto a vs
todos! E dirigindo-se ao arco da Catena: Ela que a
pecadora!
Esta tranquilizadora descoberta reconfortou-o, e foi assim
que bateu porta de Mariannina.
Duas horas depois j ia de volta, no coup, com o Padre
Pirrone. Este estava perturbado: os seus irmos de convento
haviam-no posto ao corrente da situao poltica, muito mais
tensa do que parecia no isolamento calmo da villa Salina;
22
receava-se um desembarque dos piemonteses no Sul da ilha,
pelos lados de Sueca; as autoridades haviam notado no povo
uma efervescncia silenciosa: a escumalha das cidades
esperava o primeiro sinal de enfraquecimento do Poder para
se entregar pilhagem e ao estupro; os padres estavam
alarmados e trs deles, os mais velhos, haviam sido enviados
para Npoles, no barco correio da tarde, com os papis do
convento.
O Senhor nos proteja e poupe este santssimo Reino.
O Prncipe quase no o ouvia, imerso como estava numa
serenidade saciada, mesclado de certa repugnncia.
Mariannina havia-o olhado com aqueles grandes olhos opacos
de camponesa e a nada se tinha negado; havia-se mostrado
humilde e servial: uma espcie de Bendic de saiote de seda.
Num momento de particular deliquescncia, exclamava: Meu
Prncipe grandalho! Satisfeito, sorria agora com aquilo; era
sem dvida melhor que mon chat ou mon singe blond1
que
denunciavam os momentos homlogos de Sarah, aquela
prostitutazita parisiense que ele havia frequentado quando h
anos, pelo Congresso de Astronomia, lhe haviam dado a
medalha de ouro. Melhor que mon chat sem dvida; muito
melhor que Jesus-Maria; pelo menos no era sacrilgio. Era
boa rapariga a Mariannina; havia de trazer-lhe seis metros de
seda vermelha, da prxima vez que fosse ter com ela.
Mas, tambm, que tristeza: aquela carne jovem to
manipulada, aquele impudor resignado; e ele prprio, o que
era? Um porco e nada mais. Veio-lhe cabea um verso que
lera por acaso numa livraria de Paris, ao folhear um volume de
cujo autor j no se lembrava, certamente um daqueles poetas
que a Frana produz e esquece todas as semanas.
Revia a pilha amarelo-limo dos exemplares por vender, a
pgina, uma estranha pgina, e de novo ouvia aqueles versos
com que uma poesia extravagante terminava:
1 Em francs no original, como, alis, muitas outras palavras e frases no se traduzem.
(Nota do tradutor.)
23
... donnez-moi la force et le courage
de contempler mon coeur et mon corps sans dgout.
E, enquanto o Padre Pirrone continuava a ocupar-se de um
tal La Farina e de um tal Crispi, o Grandalho adormeceu,
numa espcie de euforia desesperada, embalado pelo trote dos
baios, aos quais a luz oscilante dos lampies iluminava as
ndias garupas. Acordou na curva da estrada, mesmo defronte
da villa Falconri. Tambm aquele um bom rapaz que vai
atiando o fogo que o h-de queimar.
Ao entrar no quarto matrimonial, quando viu a pobre
Stella, a dormir, com os cabelos bem arrumados na touca,
toda suspirosa, no enorme e altssimo leito de cobre,
comoveu-se e enterneceu-se. Deu-me sete filhos, e foi
minha, apenas minha.
Um cheiro a valeriana flutuava no quarto, ltimo vestgio
da crise histrica.
Pobrezinha da minha Stella, afligia-se ele ao subir para
a cama. As horas passaram e no conseguia dormir: Deus, com
mo poderosa, misturara no seu pensamento trs fogos: o das
carcias da Mariannina, o dos versos franceses e, ameaador, o
das fogueiras das montanhas.
Pela manh, contudo, a Princesa teve ocasio de fazer o
sinal da cruz.
Na manh seguinte, o sol iluminou um Prncipe
revigorado. Havia j tomado o caf e, de roupo vermelho com
flores negras, barbeava-se diante do espelho; Bendic apoiava
a enorme cabea na pantufa. Barbeava a face direita, quando
viu aparecer no espelho atrs de si, o rosto de um rapaz, um
rosto magro, fino, com uma expresso de ironia um pouco
receosa. No se voltou e continuou a barbear-se.
Tancredo, que andaste tu a fazer a noite passada?
Bons dias, tio. Que andei eu a fazer? Absolutamente
nada: estive com uns amigos. Uma santa noite; ao contrrio de
24
certas pessoas minhas conhecidas que foram divertir-se a
Palermo.
O Prncipe aplicou-se a barbear bem aquele bocado de
pele um tanto difcil entre o lbio e o queixo. A voz
ligeiramente roufenha do sobrinho tinha uma vivacidade to
juvenil que era impossvel zangar-se; mas talvez fosse lcito
surpreender-se. Voltou-se, e, com a toalha sob o queixo, olhou
o sobrinho. Este estava de fato de caa, casaco elegante,
polainas altas.
E posso saber quem so essas pessoas conhecidas?
Tu, Tiozo, tu. Vi-te com estes meus olhos no posto da
guarda da villa Airoldi, quando falavas com o sargento. Bonita
coisa, na tua idade! E em companhia de um reverendssimo
padre! Velhos libertinos!
J estava a ser insolente de mais; julgava que podia
permitir-se tudo. Entre as plpebras semicerradas aqueles
olhos azuis-escuros, os olhos da me e os seus prprios,
fixavam-no, sorridentes. O Prncipe sentiu-se ofendido: o
rapaz no sabia at onde podia ir; faltava-lhe, porm, a
coragem de ralhar-lhe; de resto, ele tinha razo.
Mas porque ests tu assim vestido? O que ? Um baile
de mscaras logo de manh?
O rapaz tornou-se srio; o seu rosto triangular tomou uma
inesperada expresso de virilidade.
Vou-me embora, tio, parto daqui a uma hora. Vim dizer-
te adeus.
O pobre Salina sentiu apertar-se-lhe o corao.
Um duelo?
Sim. Um grande duelo com o rei Francisquinho-Deus-te-
Guarde. Vou para as montanhas, para Ficuzza; no o digas a
ningum, sobretudo a Paulo. Vo acontecer grandes coisas,
tio, e no quero ficar em casa. De resto se c ficasse
apanhavam-me logo.
25
O Prncipe teve uma das suas costumadas e inesperadas
vises: uma cena cruel de guerrilhas, descargas no meio dos
bosques, e o seu Tancredo por terra, de tripas mostra, tal
como acontecera quele desgraado soldado.
Ests doido, meu filho! Ires meter-te com aquela gente;
so todos uma scia de bandidos e aldrabes; um Falconeri
deve estar connosco, do lado do Rei.
Os olhos voltaram a sorrir.
Do lado do Rei, com certeza, mas de que Rei?
O rapaz teve um daqueles seus acessos de seriedade que
o tornavam impenetrvel e querido.
Se ns no estivermos l, eles fazem uma repblica. Se
queremos que tudo fique como est preciso que tudo mude.
Expliquei-me bem? Um pouco comovido abraou o tio.
At vista, at breve. Voltarei com a bandeira tricolor.
A retrica dos amigos havia tambm marcado um pouco o
sobrinho; mas no, naquela voz roufenha havia um acento que
desmentia a nfase. Que rapaz! Dizendo ou fazendo
palermices; ao mesmo tempo, contradizendo-as. E o seu Paulo
que naquele momento devia estar certamente a vigiar a
digesto de Guiscardo! Este, sim, era o seu verdadeiro filho. O
Prncipe levantou-se pressa, arrancou a toalha do pescoo,
remexeu numa caixa.
Tancredo, Tancredo, espera!
Correu atrs do sobrinho, ps-lhe na algibeira um rolo de
moedas de oiro e apertou-lhe o ombro. Este ria.
Subsidias agora a revoluo! Obrigado, Tiozo, at
breve, d um grande abrao meu tia.
E precipitou-se pela escada.
Chamou Bendic, que seguia o amigo enchendo a villa de
ladridos alegres. Depois, terminou a barba e lavou a cara. O
criado veio calar e vestir o Prncipe. O tricolor! Bravo, o
tricolor! Enchem a boca com estas palavras, os patifes. E que
26
significa aquele sinal geomtrico, macaqueado dos franceses,
e to feio em comparao com a nossa bandeira branca com o
lrio de oiro no centro? E que se pode esperar de um
amontoado de cores berrantes?
Era o momento de pr volta do pescoo a monumental
gravata de cetim negro. Operao difcil durante a qual era
bom que se suspendessem todas as meditaes polticas: uma
volta, duas voltas, trs voltas. Os enormes e delicados dedos
compunham as pregas, alisavam as rugas, pregavam na seda a
pequena cabea de Medusa de olhos de rubi.
Um colete lavado. No vs que este est sujo?
O criado ergueu-se nas pontas dos ps para lhe enfiar a
sobrecasaca castanha; perfumou-lhe um leno com trs gotas
de bergamota e deu-lho; as chaves, o relgio de corrente, o
dinheiro foi ele que os meteu na algibeira. Olhou-se ao
espelho: impecvel. Era ainda um belo homem! Velho
libertino! Uma brincadeira pesada de Tancredo! Queria v-lo
na minha idade, um carga de ossos como ele .
As suas passadas vigorosas faziam tinir os vidros dos
sales que atravessava. A casa estava serena, luminosa e em
ordem, e, sobretudo, era sua. Descendo as escadas,
compreendeu. Se quisermos que tudo fique como est...
Tancredo era um grande homem: sempre o tinha pensado.
Os escritrios da administrao estavam ainda desertos,
silenciosamente iluminados pelo sol que atravessava as
persianas corridas. Mesmo sendo o lugar da villa destinado
prtica das maiores frivolidades, o seu aspecto era de calma
austeridade. Nas paredes caiadas, reflectindo-se no soalho
encerado, pendiam enormes quadros representando as
propriedades da casa de Salina; em molduras negras e
douradas viam-se pintadas a cores vivas: Salina, a ilha das
montanhas gmeas, rodeada pela renda espumante de um mar
onde caracolavam galeras embandeiradas: Querceta, com as
suas casas baixas volta da Igreja Matriz, para onde
convergiam grupos de peregrinos azulados; Ragattisi,
apertada entre vales; Argivocale, minscula na enorme seara
27
salpicada de camponeses no trabalho; Donnafugata, com o seu
palcio barroco, para onde se dirigiam carruagens escarlates,
verdes, douradas, carregadas, ao que parece, de garrafas e
violinos; e muitas outras ainda, todas protegidas por um cu
limpo e tranquilizador e pelo Leopardo sorrindo entre os
compridos bigodes. Todos com um ar de resta, todos
desejosos de exprimir o iluminado imprio, directo ou
indirecto, da Casa de Salina: ingnuas obras-primas de arte
rstica do sculo anterior, que no podiam, porm, delimitar
extremas, precisar as reas ou os rendimentos, coisas que de
facto permaneciam desconhecidas. As riquezas com muitos
sculos de existncia haviam-se transformado em arrebiques,
em luxo, em prazeres, e nada mais; a abolio dos direitos
feudais havia decapitado ao mesmo tempo as obrigaes e os
privilgios; a riqueza, como um vinho velho, havia deixado
cair no fundo da pipa as borras da cobia, dos cuidados, e
mesmo as da prudncia, para conservar apenas o calor e a cor.
E, assim, acabava por se destruir a ela prpria: esta riqueza,
que havia atingido o seu objectivo, compunha-se agora apenas
de leos essenciais e, como os leos essenciais, evaporava-se
rapidamente. E j algumas daquelas propriedades de ar festivo
haviam levantado voo e delas restavam apenas aquelas telas
pintalgadas e os seus nomes. Outras pareciam aquelas
andorinhas de Setembro que, embora ainda presentes, j esto
reunidas em grande gritaria nas rvores, prestes a partir. Mas
eram tantas...; parecia que jamais poderiam acabar.
Apesar de tudo, e como habitualmente, a sensao do
Prncipe ao entrar no escritrio foi desagradvel. No meio do
compartimento erguia-se, como uma torre, uma secretria com
dezenas de gavetas, nichos, concavidades, esconderijos,
tampos; aquela massa de madeira amarela com embutidos
negros tinha tantos alapes e outros mecanismos como um
palco teatral; havia tampos, planos corredios e dispositivos
secretos, que ningum, excepto os ladres, sabia fazer
funcionar. Estava coberta de papis e, se bem que a
previdncia do Prncipe tivesse tido o cuidado de uma boa
parte deles se referir aos saborosos domnios da astronomia, o
28
resto era suficiente para encher de desagrado o corao do
Prncipe. Veio-lhe subitamente idea a secretria do Rei
Fernando em Caserta, tambm ela cheia de decises a tomar, e
como ela capaz de dar a iluso de que interferia na torrente
do destino que, muito ao contrrio, corria livremente noutro
vale.
Salina pensou numa droga h pouco descoberta nos
Estados Unidos da Amrica, que permitia que as pessoas no
sofressem durante as operaes mais graves e que fossem
felizes no meio das suas desventuras. Haviam-na baptizado
com o nome de morfina, este grosseiro substituto qumico do
estoicismo antigo, da resignao crist. Para o pobre Rei
aquela administrao fantasmagrica substitua a morfina; ele,
Salina, tinha tambm a sua e de espcie mais requintada: a
astronomia. Expulsando as imagens de Ragattisi perdida e de
Argivocale oscilante, mergulhou, pois, na leitura do mais
recente nmero do Journal ds Savants. Ls dernires
observa-tions de l'Observatoir de Greenwich prsentent un inte-
rt ou t particulier...
Em breve, porm, foi obrigado a exilar-se daquelas
geladas regies estelares. Don Ciccio Ferrara, o guarda-
livros, entrou.
Era um homenzinho seco que escondia a sua alma de
liberal ambicioso e rapace por detrs de uns culos
tranquilizadores e de gravatas imaculadas. Naquela manh
apresentou-se mais animado que o costume: percebia-se
perfeitamente que as mesmas notcias que haviam deprimido
o Padre Pirrone tinham agido sobre ele como um excitante.
Tristes tempos, Excelncia disse depois dos
cumprimentos rituais. Vo acontecer grandes desgraas,
mas depois de uma certa confuso e de alguns tiros tudo
comear a correr melhor; vai haver uma nova poca de glria
para a nossa Siclia; se no fosse o facto de tantos rapazes
terem de perder a pele, s haveria razo para estarmos
contentes.
29
O Prncipe resmungava, sem, contudo, exprimir uma
opinio.
Don Ciccio disse em seguida , preciso pr um
pouco de ordem na cobrana das rendas de Querceta; h j
dois anos que no se recebe um tosto.
A escrita est em dia, Excelncia - era a frase mgica. -
Falta apenas escrever a don Angelo Mazza, para ele pr a
aco; hoje mesmo levo a carta a Vossa Senhoria para assinar.
E afastou-se para ir remexer nos enormes livros da
escrita.
Estes, numa caligrafia minuciosa e com dois anos de
atraso, registavam todas as contas da Casa de Salina, excepto
as que eram verdadeiramente importantes.
Ficando de novo s, o Prncipe demorou a mergulhar nas
nebulosas. Estava irritado, no j contra os acontecimentos
em si, mas contra a estupidez de don Ciccio, em quem havia
identificado a futura classe dirigente.
Exactamente o que o homenzinho disse que no
verdade. Lamenta os rapazes que vo rebentar, mas, se bem
conheo a qualidade dos dois adversrios, sero bem poucos;
precisamente e apenas os que forem necessrios para se
redigir um comunicado vitorioso em Npoles ou em Turim, o
que alis d na mesma. Ele, por sua vez, acredita numa poca
gloriosa para a nossa Siclia como diz, coisa que nos tem
sido prometida na altura dos muitos desembarques que j
sofremos desde Nicias. poca que no chegou. E, de resto,
porque havia ela de chegar? E que ir ento acontecer? Ora!
Negociaes ao ritmo de descargas inofensivas. Depois tudo
ficar na mesma, embora tudo tenha mudado.
Voltaram-lhe cabea as palavras de Tancredo, mas agora
compreendia-lhes todo o alcance. Ficou tranquilo e deixou de
folhear a revista. Olhava as encostas do monte Pellegrino,
queimadas, escalavradas, eternas como a misria.
Pouco depois chegou Russo, o mais caracterstico dos
seus dependentes, segundo pensava o Prncipe. Esbelto,
30
embrulhado no sem uma certa elegncia na bunaca de veludo
canelado, olhos vidos sob uma testa sem remorsos, o homem
era, para ele, a perfeita expresso de uma classe em ascenso.
Alis, respeitoso e quase sinceramente afectuoso, pois
praticava as prprias ladroeiras convencido de exercer um
direito.
Imagino como Vossa Senhoria ter ficado aborrecido
com a partida do senhor Tancredo; mas estou certo de que a
ausncia dele no vai durar muito e tudo acabar bem.
Mais uma vez o Prncipe se encontrou perante um dos
enigmas sicilianos.
Nesta ilha de segredos onde as portas das casas so
trancadas e onde os camponeses dizem no conhecer o
caminho para a sua aldeia que se avista l no monte, a cinco
minutos da entrada, nesta ilha, apesar de um ostensivo luxo
de mistrios, a reserva um mito.
Fez sinal a Russo para se sentar, olhou-o fixamente nos
olhos.
Pedro, falemos de homem para homem. Tu tambm
ests metido na coisa?
Metido no estava, respondia ele; era pai de famlia e
estes riscos so para os mais novos como o Sr. Tancredo.
Pensa que escondo alguma coisa a Vossa Senhoria, que
como se fosse meu pai?
No entanto, trs meses antes, havia escondido, no seu
celeiro, trezentos cestos de limes do Prncipe e sabia que o
Prncipe o sabia.
Mas devo dizer que o meu corao est com eles, com
esses corajosos rapazes.
Levantou-se para dar entrada a Bendic, que fazia tremer
a porta sob os seus assaltos amigveis. Voltou a sentar-se.
Vossa Senhoria sabe-o; no se pode mais: perseguies,
interrogatrios, papelada para qualquer coisa, um secreta a
cada canto da casa; uma pessoa de bem no pode j levar a
31
sua vida como quiser. Depois, em contrapartida, teremos
liberdade, segurana, impostos mais pequenos, facilidades,
comrcio, todos ficaremos melhor; s os padres vo perder. O
Senhor protege os pobrezinhos como eu e no a eles.
O Prncipe sorria: sabia que era o prprio Russo que
atravs de interposta pessoa desejava comprar Argi-vocale.
Sero dias de muita desordem e confuso, mas a villa
Sabina vai ficar segura que nem uma rocha; Vossa Senhoria o
nosso pai e eu tenho muitos amigos aqui. Os piemonteses
viro de chapu na mo apenas para apresentar cumprimentos
a Vossa Senhoria. E afinal o tio e tutor de D. Tancredo.
O Prncipe sentia-se humilhado: neste momento via-se
descido categoria de protegido dos amigos de Russo; o seu
nico mrito, ao que parecia, era o de ser tio de Tancredo.
Dentro de uma semana acabarei por descobrir que vou salvar
a vida porque tenho Bendic c em casa.
Torcia uma orelha do co entre os dedos, com tal fora
que o pobre animal gania, honrado sem dvida, mas sofredor.
Pouco depois, algumas palavras de Russo deram certo
alvio ao Prncipe.
Tudo vai ficar melhor, creia-me, Excelncia. Os homens
honestos e habilidosos podero progredir. O resto ficar como
dantes.
Afinal, esta gente, estes liberais do campo, queriam,
apenas, poder enriquecer mais facilmente. Era tudo. As
andorinhas iriam levantar voo mais cedo. E nada mais. De
resto havia ainda muitas no ninho.
Talvez tenhas razo. Quem sabe?
Agora havia compreendido o sentido oculto de todas as
palavras enigmticas de Tancredo, as retricas de Ferrara; as
falsas, mas reveladoras, de Russo, haviam-lhe entregue o seu
tranquilizador segredo. Muita coisa iria passar-se, mas tudo
seria uma comdia; uma ruidosa e romntica comdia com
algumas gotas de sangue nas roupas burlescas. A Itlia era o
pas dos reajustamentos, no havia nela a fria francesa; mas
32
tambm que havia acontecido de novo em Frana com
excepo do movimento revolucionrio de Junho de 48? Tinha
vontade de dizer a Russo, no que foi impedido pela sua inata
cortesia:
J compreendi tudo muito bem. Vocs no nos querem
aniquilar a ns, os vossos pais. Querem apenas tomar o
nosso lugar. Com doura, com boas maneiras, metendo-nos
talvez na algibeira alguns milhares de ducados. No assim?
O teu sobrinho, caro Russo, julgar sinceramente ser baro; e
tu tornar-te-s - que sei eu! - no descendente de um gro-
duque de Moscovo, por causa do teu nome, apesar de seres o
filho de um labrego com o cabelo ruo, como exactamente o
teu nome indica. E tua filha, antes disso, ter desposado um
de ns, talvez at o prprio Tancredo, com os seus olhos
azuis, e as suas mos finas. De resto, bela, e uma vez que
comece a lavar-se... Porque tudo fica na mesma. No fundo na
mesma, apenas com uma insensvel substituio de classes. As
minhas chaves douradas de camareiro, o cordo vermelho de
S. Gennaro, tero de ficar na gaveta e iro acabar numa vitrina
do filho de Paulo; mas os Salinas ficaro e talvez tenham
qualquer compensao: o Senado de Sardenha, a fita verde de
S. Maurcio. Brincadeiras!
Levantou-se:
Pedro, fala com os teus amigos. H c bastantes
raparigas, preciso no assust-las.
Fique Vossa Excelncia sossegado, que j falei. A villa
Salina ficar to calma como um convento.
E sorriu, com ar irnico e benvolo.
D. Fabrcio saiu seguido de Bendic. Queria subir para
procurar o Padre Pirrone, mas o olhar suplicante do co
obrigou-o a dirigir-se para o jardim; Bendic, na verdade,
conservava ainda na memria exaltadas recordaes do belo
trabalho da tarde anterior e queria termin-lo segundo todas
as regras. O jardim estava ainda mais odoroso que na vspera
e sob o sol matutino o oiro da accia sobressaa menos. Mas
33
os soberanos? Os nossos soberanos? E que feito da
legitimidade? Este pensamento perturbou-o um momento;
no se podia iludir. Por instantes foi como Mlvica. Estes
Fernandos, estes Franciscos, to desprezados, apareceram-lhe
como irmos mais velhos, confiantes, afectuosos, justos,
autnticos reis. Mas j as foras de defesa da sua calma
interior, sempre to vigilantes nele, acorriam em socorro, com
a infantaria do Direito, com a artilharia da Histria. E a
Frana? No , acaso, ilegtimo Napoleo III? E no vivem
talvez felizes os Franceses sob o reinado deste Imperador
iluminado que os conduzir certamente aos mais altos
destinos? De resto, entendamo-nos bem. Acaso estaria ele,
Carlos III, perfeitamente legitimado? Tambm a batalha de
Bitonto foi, como as futuras batalhas de Bisaquino ou de
Corleone ou qualquer outra em que os piemonteses recebero
os nossos paulada, uma daquelas batalhas que se fazem para
que tudo fique na mesma. De resto nem mesmo Jpiter era o
rei legtimo do Olimpo. Como era evidente, o golpe de estado
de Jpiter contra Saturno acabaria por trazer-lhe as estrelas ao
esprito.
Deixou Bendic s voltas com o seu prprio dinamismo,
subiu a escada, atravessou os sales onde as filhas falavam
das amigas do convento (houve um ranger de sedas quando,
sua passagem, as raparigas se levantaram), subiu uma
escadinha comprida e entrou na grande claridade azul do
observatrio. O Padre Pirrone, com aquele aspecto sereno do
padre que acabou de dizer a sua missa e que j tomou um caf
forte com biscoitos de Monreale, estava sentado, absorvido
nas suas frmulas algbricas. Os dois telescpios e os trs
culos, cegos pelo sol, com a tampa negra sobre as lentes, l
estavam pacientemente agachados, como animais bem
amestrados que sabem que s lhes daro a comida noite.
A vista do Prncipe arrancou o padre aos seus clculos e
trouxe-lhe memria o que se havia passado na noite
anterior. Levantou-se, cumprimentou cerimoniosamente, mas
no pde deixar de dizer.
34
Vossa Excelncia vem confessar-se?
O Prncipe, a quem o sono e as conversas da manh
haviam feito esquecer o episdio nocturno, espantou-se.
Confessar-me? Mas hoje no sbado! Depois recordou-
se e sorriu.
Mas, na verdade, padre, no h necessidade alguma
disso. J sabe tudo.
Esta insistncia na cumplicidade imposta irritou o jesuta.
Excelncia, a eficcia da confisso no est s em
contar os factos, mas em arrepender-se de tudo quanto se
cometeu de mal. E, enquanto no vos tiverdes arrependido e
no o tenhais demonstrado a mim, ficareis em pecado mortal,
quer eu conhea ou no as vossas aces.
Soprou meticulosamente um cabelo da manga e voltou a
mergulhar nas suas abstraces.
Mas tanta era a calma que as descobertas polticas da
manh haviam trazido alma do Prncipe, que este no fez
mais do que sorrir daquilo que noutra altura lhe teria parecido
insolncia. Abriu uma das janelas da torre: a paisagem exibia
todas as suas belezas. Sob o fermento de um sol forte todas as
coisas pareciam perder o peso: o mar, ao fundo, era uma
mancha de pura cor; as montanhas que, de noite, lhe haviam
parecido esconder terrveis armadilhas, eram agora massas de
vapor prestes a dissolver-se; mesmo a torva Palermo, como
um rebanho aos ps do pastor, estendia-se, saciada, ao redor
dos conventos; no porto, os navios estrangeiros ancorados,
enviados na previso de distrbios, no bastavam para pr
uma nota de perigo naquela calma majestosa. O sol daquela
manh de treze de Maio, embora longe do mximo da sua
fora, mostrava-se o autntico soberano da Siclia: um sol
violento e impdico, um sol narcotizante que anulava as
vontades e mantinha todas as coisas numa imobilidade servil,
embalada em sonhos violentos, em violncias que
participassem da prpria arbitrariedade dos sonhos.
35
Sero necessrios muitos Vtor Manuis para mudar este
filtro mgico que nos vem l do alto.
O Padre Pirrone havia-se levantado e, compondo o cinto,
dirigiu-se para o Prncipe com a mo estendida:
Excelncia, fui muito brusco. Conservai por mim a
vossa benevolncia, mas dai-me ouvidos, confessai-vos!
O gelo fora rompido. O Prncipe pde ento informar o
Padre Pirrone das suas intuies polticas; o jesuta, porm,
estava bem longe de compartilhar do seu alvio; pelo contrrio
tornou-se mordaz.
Em poucas palavras, vs, senhores, ponde-vos todos de
acordo com os liberais que digo eu! , exactamente com os
maes. E nossa custa, custa da Igreja. Porque claro que
os nossos bens, os bens que so patrimnio dos pobres, sero
extorquidos e divididos entre os cabecilhas mais
desvergonhados; e quem matar depois a fome multido de
infelizes que ainda hoje a Igreja sustenta e guia?
O Prncipe calava-se.
E que se far ento para apaziguar estas turbas
desesperadas? Vou dizer-vos, Excelncia. Deitar-se-lhe- para
seu repasto, primeiro, uma parte, depois uma segunda e, por
fim, todas as vossas terras. E, assim, Deus ter feito a Justia
ainda que por intermdio dos maes. O Senhor curava os
cegos de corpo; mas como acabaro os cegos de esprito?
O infeliz padre arfava. dor sincera da prevista perda do
patrimnio da Igreja unia-se agora o remorso por se ter
deixado de novo arrebatar pelas palavras e de novo ter
ofendido o Prncipe, de quem era sinceramente amigo; se bem
que houvesse suportado as suas cleras ruidosas, havia-lhe
tambm experimentado a complacente bondade. Sentado,
permanecia em expectativa olhando D. Fabrcio, que, com uma
escovinha, limpava o maquinismo de um culo e parecia
absorto nesta actividade meticulosa. Momentos depois, este
levantou-se e limpou demoradamente as mos com um trapo.
O seu rosto no tinha expresso alguma, os seus olhos claros
36
pareciam apenas ocupar-se em procurar qualquer mancha de
leo que se houvesse refugiado na raiz das unhas. Em baixo,
volta da villa, o luminoso silncio era profundo e majestoso,
mais sublinhado que perturbado pelo longnquo ladrar de
Bendic, que, no fundo do pomar, provocava o co do
jardineiro, e pelo bater rtmico e surdo do cutelo de
cozinheiro na tbua, l na cozinha, onde cortava a carne para
o almoo que se aproximava.
O sol intenso havia absorvido a turbulncia dos homens e
a aspereza da terra. O Prncipe aproximou-se da mesa do
padre, sentou-se e, com o lpis afiado que o Padre Pirrone, na
sua clera, havia abandonado, ps-se a desenhar esguios lrios
bourbnicos. Tinha um ar srio, mas to sereno que as
preocupaes do Padre Pirrone se desvaneceram.
No somos cegos, meu caro Padre, somos apenas
homens. Vivemos numa realidade mvel qual procuramos
adaptar-nos como as algas que se dobram sob o mpeto das
ondas do mar. Santa Madre Igreja foi explicitamente
prometida a imortalidade, mas a ns, como classe social, no.
Para ns, um paliativo que nos garanta mais cem anos de vida
equivale eternidade. Poderemos porventura preocuparmo-
nos com os nossos filhos, talvez com os netos; mas para alm
daquilo que esperamos poder acariciar com estas mos no
temos obrigaes. E no posso preocupar-me com o que os
meus eventuais descendentes sero no ano de 1960. A Igreja,
essa, sim, deve preocupar-se com isso, pois est destinada a
no morrer. At no seu desespero est implcito o conforto. E
acreditais que se ela pudesse agora ou no futuro salvar-se com
o nosso sacrifcio no o faria? Sem dvida que sim, e faria
bem.
O Padre Pirrone estava contente por no ter ofendido o
Prncipe e, por seu turno, no se ofendeu. Aquela expresso
desespero da Igreja era inadmissvel; mas o longo hbito da
confisso tornava-o capaz de apreciar o estado de esprito
desiludido de D. Fabrcio. Era porm necessrio no deixar
triunfar o interlocutor.
37
Tendes dois pecados para me confessar no sbado,
Excelncia: um da carne, outro do esprito. Lembrai-vos.
Acalmados os dois, puseram-se a discutir um relatrio
que era necessrio mandar rapidamente para um observatrio
estrangeiro, o de Arcetri. Sustentados e guiados, como
parecia, por nmeros, invisveis naquele momento mas
presentes, os astros riscavam o espao com as suas
trajectrias exactas. Fiis s entrevistas, os cometas haviam-se
habituado a apresentar-se pontualmente perante os que os
observavam.
No eram mensageiros de catstrofes como Stella julgava:
pelo contrrio, a sua prevista apario era o triunfo da razo
humana que se projectava e participava na sublime
regularidade dos cus. Deixemos que l em baixo os Bendics
persigam presas rsticas e que o cutelo do cozinheiro triture a
carne de animaizinhos inocentes. altura do observatrio as
fanfarronadas daquele e a crueldade deste fundem-se numa
harmonia tranquila. O verdadeiro problema viver a vida de
esprito nos seus momentos mais sublimes; os que mais se
assemelham mor te.
Assim pensava o Prncipe, esquecendo as suas eternas
fantasias e os seus caprichos carnais da vspera. E, graas
queles momentos de abstraco, ele foi talvez mais
intimamente absorvido, isto , mais unido ao universo do que
o poderia fazer a bno do Padre Pirrone. Durante uma meia
hora daquela manh os deuses do tecto e os macacos das
tapearias foram de novo remetidos ao silncio. Ningum,
porm, no salo se apercebeu do facto.
Quando a sineta os chamou para o almoo, ambos
estavam tranquilizados, quer sobre a compreenso da
conjuntura poltica quer quanto ao superamento desta prpria
compreenso; uma atmosfera de desusada distenso se
espalhou pela villa. A refeio do meio-dia era a principal do
dia e decorreu sempre, graas a Deus, sem complicaes.
Imagine-se que um dos brincos que emolduravam o rosto de
sua filha Carolina, que tinha vinte anos, no tendo ficado bem
38
seguro pela pina, soltou-se e foi cair dentro do prato. O
incidente que, noutro dia, poderia ter sido desagradvel,
apenas fez crescer desta vez a alegria. Quando o irmo que
estava ao lado da rapariga pegou no brinco e fixou-o no
pescoo como um escapulrio, at o Prncipe se permitiu
sorrir. A partida, o destino, os objectivos de Tancredo eram
agora conhecidos de todos e toda a gente falava nisso, excepto
Paulo, que continuava a comer em silncio. De resto ningum
estava preocupado, excepo do Prncipe, que escondia uma
certa angstia no fundo do seu corao, e Concetta, que era a
nica a conservar uma sombra no belo rosto. A rapariga deve
ter o seu fraco por aquele mariola. Daria um belo casal. Mas
receio que Tancredo olhe para mais alto, quer dizer para mais
baixo. Naquele dia, uma vez que a calma poltica tinha
afugentado as nvoas que habitualmente a obscureciam, a
bonomia fundamental do Prncipe vinha superfcie. Para
tranquilizar a filha ps-se a explicar a ineficcia das
espingardas do exrcito real; falou sobre a falta de estrias dos
canos daquelas enormes espingardas e sobre a pequena fora
de penetrao de que eram dotados os projcteis que delas
saam; explicaes tcnicas, alm do mais, de m f, que
poucos compreenderam, que no convenceram ningum, mas
que consolaram todos, incluindo Concetta, pois haviam
conseguido transformar o caos extremamente concreto e
srdido que a guerra na realidade num puro e simples
diagrama de linhas de fora.
No fim do almoo foi servido um pudim de gelatina com
rum. Era o doce preferido do Prncipe, e a Princesa, grata pelas
consolaes recebidas, havia tido o cuidado de mand-lo fazer
logo de manhzinha. Aparecia ameaador com aquela sua
forma de torreo apoiado em basties e rampas, de paredes
lisas e escorregadias, impossveis de escalar, encimado por
uma guarnio vermelha e verde de cerejas e pistcios; era,
porm, transparente e oscilante e a colher afundava-se nele
com extrema facilidade. Quando aquela fortaleza cor de mbar
chegou em frente do filho Francisco Paulo, de dezasseis anos, o
ltimo a ser servido, j no restavam dele seno muralhas
39
bombardeadas e blocos desagregados. Excitado pelo aroma do
licor e pelo gosto delicado daquela milcia multicor, o Prncipe
divertia-se deveras, assistindo ao rpido desmantelamento da
sombria fortaleza sob o assalto daqueles apetites. Um dos seus
copos havia ficado meio cheio de Marsala; levantou-o, lanou
um olhar para toda a famlia, fixando-se mais um instante nos
olhos azuis de Concetta:
sade do nosso Tancredo disse.
Bebeu o vinho de um s trago. As iniciais F. D., que antes
se destacavam bem ntidas sob a cor dourada do copo cheio,
deixaram de se ver.
No escritrio, para onde desceu de novo depois do
almoo, a luz entrava agora de travs. No sofreu qualquer
reprovao por parte dos quadros das propriedades, agora na
sombra.
Que Vossa Excelncia nos abenoe murmuraram
Pastorello e Lo Nigro, os dois rendeiros de Ragattisi que
haviam trazido os carnaggi, aquela parte da renda que se
pagava em gneros.
Ali estavam, muito direitos, com os olhos pasmados nas
caras bem barbeadas e curtidas pelo sol, espalhando um
cheiro a ovelhas.
O Prncipe falou-lhes com cordialidade no seu dialecto
refinado: informou-se sobre as suas famlias, sobre o estado
dos animais, sobre as perspectivas das colheitas. A seguir
perguntou-lhes:
Trouxeram alguma coisa?
E quando os dois responderam que sim, que estava ali na
casa ao lado, o Prncipe envergonhou-se um pouco, pois
percebeu que o colquio fora uma repetio da audincia do
Rei Fernando.
Esperem cinco minutos, Ferrara vai dar-lhes os recibos.
Meteu na mo de cada um dois ducados, o que
representava, talvez, mais do que o valor que haviam trazido.
40
Bebam um copo nossa sade.
E foi ver os carnaggi: no cho estavam quatro formas de
queijos frescos de doze rotoli, ou seja dez quilos cada;
observou-os com indiferena; detestava aquele queijo. Havia
ainda seis cordeiros, os ltimos do ano, com as cabeas
pateticamente pendidas acima da grande facada pela qual a
vida havia sado h poucas horas; tam-brn os seus ventres
haviam sido abertos e os intestinos irisados saam para fora.
O Senhor receba as suas almas, pensou, recordando o
esventrado de h um ms. Quatro pares de galinhas presas
pelas patas torciam-se de medo sob o focinho investigador de
Eendic. Tambm aqui um exemplo de temor intil: o co no
significa para elas nenhum perigo; nem mesmo comeria um
osso porque lhe faria mal barriga.
Desgostou-o, porm, o espectculo de sangue e terror:
Tu, Pastorello, leva as galinhas para o galinheiro; por
agora no h necessidade delas na despensa; e a seguir leva
directamente os cordeiros para a cozinha; aqui esto a sujar. E
tu, Lo Nigro, vai dizer a Salvador que venha fazer a limpeza
disto e levar os queijos. E abre a janela para fazer sair o
cheiro.
Depois entrou Ferrara, que redigiu os recibos.
Quando o Prncipe saiu, encontrou Paulo, o primognito,
Duque de Querceta, que o esperava no gabinete onde, sobre
um div vermelho, costumava fazer a sesta. O rapaz havia
reunido toda a sua coragem e pretendia falar-lhe. Baixo,
magro, de tez olivcea, parecia mais velho que o Prncipe.
Queria perguntar-te, pap, que atitude vamos tomar
para com Tancredo, quando o voltarmos a ver.
O Prncipe percebeu imediatamente e comeou a irritar-se.
Que queres tu dizer com isso? O que que mudou?
Mas, pap, no podes certamente aprov-lo: foi juntar-
se queles patifes que fazem toda esta desordem na Siclia;
isto coisa que no se faz.
41
O cime pessoal, o ressentimento do beato contra o primo
sem preconceitos, do pateta contra o rapaz inteligente,
haviam-se transformado em argumentos polticos. O Prncipe
ficou to indignado que nem mesmo mandou o filho sentar-se.
melhor fazer palermices que estar todo o dia a olhar a
caca dos cavalos. Gosto mais de Tancredo que anteriormente;
e alm disso no se trata de palermices; se tu podes mandar
fazer cartes de visita com o nome de Duque de Querceta e se,
quando eu desaparecer, vais herdar uns tostes, deve-los a
Tancredo e a outros como ele. Vai-te embora, no te autorizo a
falar-me mais no assunto. Aqui, quem manda sou eu.
Depois, acalmou-se e substituiu a ira pela ironia.
Vai-te embora, meu filho, quero dormir. Vai falar de
poltica com Guiscardo. Compreender-vos-eis bem.
E enquanto Paulo, paralisado, fechava a porta atrs de si,
o Prncipe tirou a sobrecasaca e as botinas e, fazendo gemer o
div sob o seu peso, adormeceu tranquilamente.
Acordou quando entrou o criado, trazendo numa bandeja
um jornal e um bilhete. Vinham de Palermo, enviados pelo seu
cunhado Mlvica, e trazidos, pouco antes, por um criado a
cavalo. Ainda um pouco estremunhado pela soneca da tarde o
Prncipe abriu a carta: Caro Fabrcio. Escrevo-te num estado
de prostrao sem limites. Li as terrveis notcias que vm no
jornal. Os piemonteses desembarcaram; estamos todos perdi-
dos. Esta noite, eu e toda a minha famlia vamo-nos refugiar
nos barcos ingleses. Certamente hs-de querer fazer o mesmo;
se assim o entenderes mandarei reservar-te alguns lugares. O
Senhor salve o nosso amado Rei. Um abrao. Teu Ciccio.
Voltou a dobrar o bilhete, meteu-o na algibeira e desatou
a rir alto. Aquele Mlvica! Havia sido sempre um medricas.
No compreendera nada e agora punha-se a tremer. Deixava o
palcio guarda dos criados. Desta vez, sim, iria encontr-lo
vazio! A propsito, preciso que Paulo v ficar em Palermo;
casas abandonadas neste momento, so casas perdidas. Falar-
lhe-ei ao jantar.
42
Abriu o jornal. Um acto de flagrante pirataria foi
cometido em 11 de Maro com o desembarque de tropas na
costa de Marsala. Relatrios posteriores esclareceram que o
bando desembarcado de oitocentos homens e comandado
por Garibaldi. Assim que aqueles flibusteiros puseram o p em
terra evitaram cuidadosamente o encontro com as tropas reais
e, segundo certas notcias, dirigem-se para Castelvetrano,
ameaando os cidados pacficos e no poupando pilhagem
e s devastaes, etc., etc.
O nome de Garibaldi perturbou-o um pouco: aquele
Aventureiro, todo cabelo e barba, era um mazziniano puro. Era
capaz de ter pensado em complicaes. Mas, se o rei o
Cavalheiro o havia mandado para aqui isso queria dizer que
tinha confiana nele. Haviam de o moderar.
Tranquilizado, penteou-se, voltou a calar as botas e a
vestir a sobrecasaca; guardou o jornal numa gaveta. Era quase
a hora do rosrio, mas o salo ainda estava vazio; sentou-se
num sof e, enquanto esperava, reparou, que o Vulcano do
tecto se parecia com as litografias de Garibaldi que havia visto
em Turim. Sorriu: Um cornudo.
A famlia comeava a chegar: a seda das saias sussurrava
e os mais novos vinham ainda a brincar uns com os outros.
Atrs da porta ouviu-se a costumada questincula entre os
criados e Bendic, que a todo o custo queria tomar parte na
funo. Um raio de sol carregado de poalha iluminava os
macacos maldosos. Ajoelhou-se.
Salve Regina, Mater misericordiae.
43
CAPTULO II
A CAMINHO DE DONNAFUGATA - A LTIMA PARAGEM; O
DESENROLAR DA VIAGEM - CHEGADA A DONNAFUGATA - NA
IGREJA - DON ONFRIO ROTOLO - CONVERSA NA CASA DE
BANHO - A FONTE DE ANFITRITE - SURPRESA ANTES DO
JANTAR - O JANTAR; AS VRIAS REACES - D. FABRCIO E AS
ESTRELAS - VISITA AO CONVENTO - O QUE SE AVISTA DA
JANELA
Agosto, 1860
As rvores! L esto as rvores!
O grito partiu da primeira carruagem e percorreu toda a
fila das outras quatro que lhe vinham atrs, quase invisveis
numa nuvem de poeira branca; s janelas das carruagens os
rostos suados exibiram um ar de satisfao cansada.
A bem dizer, as rvores no passavam de trs eucaliptos,
os mais esgrouviados filhos da me natura; eram, porm, os
primeiros que se avistavam desde que a famlia Salina havia
deixado Bisacquino, s seis da manh.
Eram onze horas e, durante aquelas cinco horas, apenas
se havia avistado a ondulao preguiosa das colinas amarelas
brilhando ao sol. O trote dos cavalos nos percursos planos
havia, em breve, alternado com as longas e lentas arrancadas
nas subidas e com o passo prudente das descidas; passo e
trote que, alis, se haviam igualmente diludo no fluxo
contnuo do tinido dos guizos, nica manifestao sonora
naquele ambiente abrasador. Haviam atravessado aldeolas
pintadas de um azul-plido; haviam atravessado, sobre pontes
44
de inslita magnificncia, ribeiros inteiramente secos; haviam
ladeado ravinas to desesperadas que nem mesmo o milho
saburro e as giestas conseguiam consol-las.
Nem uma rvore, nem uma gota de gua: sol e poeira. No
interior das carruagens, fechadas por causa do sol e do p, a
temperatura havia certamente atingido os cinquenta graus.
Aquelas rvores sedentas, gesticulando sob um cu
desbotado, anunciavam uma quantidade de coisas: que
estavam a menos de duas horas do termo da viagem; que
entravam nos domnios da casa de Salina; que podiam comer e
mesmo talvez lavar a cara na gua infecta dos poos.
Dez minutos depois chegavam ao casal de Rampin-zri:
uma casa enorme habitada apenas um ms por ano pelos
trabalhadores, mulas e outros animais que l se juntavam no
tempo das colheitas. Por cima da porta, solidssima mas
arrombada, um Leopardo de pedra danava, apesar de as
pedradas lhe terem quebrado as pernas; ao lado da casa, e
com os eucaliptos de sentinela, um poo fundo oferecia em
silncio os variados servios de que era capaz: podia servir de
piscina, bebedouro, priso e cemitrio. Matava a sede,
propagava o tifo, guardava homens sequestrados, escondia
carcaas de animais e de homens at reduzi-los a esqueletos
polidos e annimos.
Toda a famlia Salina desceu das carruagens. O Prncipe,
satisfeito pela ideia de chegar em breve sua querida
Donnafugata; a Princesa, ao mesmo tempo irritada e prostrada,
mas a quem a serenidade do marido dava foras; as raparigas,
cansadas; os rapazitos, excitados pela novidade que o calor
no havia podido dominar; made-moiselle Dombreuil, a
governante francesa, completa-mente desfeita e que,
recordando os anos passados na Arglia, em casa da famlia do
marechal Bugeaud, ia gemendo: Mon Dieu, mon Dieu, c'est pire
qu'en Afri-quel, enquanto enxugava o narizinho; o Padre
Pirrone, a quem uma leitura apenas iniciada do brevirio havia
granjeado um sono que lhe fizera parecer pequeno o trajecto,
era o mais fresco de todos; uma criada de quarto e dois
45
criados, gente da cidade irritada pelos aspectos inacostumados
do campo; e Bendic que, saltando para fora da ltima
carruagem, barafustava contra as insinuaes fnebres das
gralhas que, naquela luz, esvoaavam baixo, volta.
Estavam todos brancos de p, at mesmo as
sobrancelhas, os lbios e as rabonas; pequenas nuvens
brancas formavam-se volta daqueles que, junto da casa,
sacudiam o p uns aos outros.
No meio daquela porcaria brilhava ainda mais a correco
elegante de Tancredo. Havia viajado a cavalo e, chegado ao
casal meia hora antes da caravana, tivera tempo de sacudir o
p, lavar-se e mudar a gravata branca. Ao tirar gua do tal
poo de variadas aplicaes, olhara-se um momento no
espelho do balde e ficara satisfeito consigo; com aquela banda
negra sobre o olho direito que recordava, at porque no a
tratava, a ferida recebida h trs meses nos combates de
Palermo; com o outro olho azul-escuro que parecia ter
assumido o encargo de exprimir a malcia do que se havia
temporariamente eclipsado; com o fio vermelho da gravata
que, discretamente, aludia camisa vermelha que havia
usado. Ajudou a Princesa a descer da carruagem, escovou o p
do chapu alto do Prncipe com a manga, distribuiu caramelos
s primas e piadas aos primitos, quase se ajoelhou perante o
jesuta, retribuiu os mpetos passionais de Bendic, consolou
mademoiselle Dom-breuil, encantou a todos.
Os cocheiros obrigavam os cavalos a dar umas voltas a
passo para os refrescar antes de lhes dar de beber; no
pequeno rectngulo de sombra projectada pela casa os criados
estendiam as toalhas sobre a palha que havia ficado da
debulha. Perto do prestvel poo iniciaram a refeio. volta
ondulava a campina fnebre, amarela do restolho, negra dos
restos queimados; o lamento das cigarras enchia o cu; era
como o estertor de uma Siclia alucinada que, no fim de
Agosto, em vo, esperava a chuva.
Uma hora depois, refrescados, puseram-se todos, de novo,
a caminho.
46
Apesar de os cavalos cansados andarem mais devagar, j a
ltima etapa de percurso lhes parecia pequena; a paisagem,
agora familiar, havia atenuado o seu ar sinistro. Iam
reconhecendo os lugares conhecidos, meta rida de passeios e
piqueniques dos anos anteriores; o despenhadeiro da
Dragonera, a encruzilhada de Misilbesi; da a pouco tempo
chegariam Madonna delle Grazie, limite mximo para os
passeios a p desde Donnafugata. A Princesa havia
adormecido, o Prncipe, sozinho com ela na espaosa
carruagem, sentia-se feliz. Nunca estivera to contente por ir
passar trs me