Post on 17-Jun-2018
Literatura &
Resistência
Revista Acadêmica
Academia de Letras dos Estudantes da Universidade Mackenzie
Edição IV – Ano II – Outubro de 2016
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3
re·sis·tir - verbo intransitivo
1. Opor resistência, não ceder.
2. Defender-se. 3. Suportar.
4. Durar, subsistir, conservar-se1.
1 in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa
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Índice
A Academia dos Estudantes e a Revista Acadêmica...................06
Membros da Academia dos Estudantes........................................07
Conselho de Veteranos e Membros Honorários...........................08
Edital para novos membros..........................................................09
Abertura........................................................................................10
Textos...........................................................................................13
Poesia ...........................................................................................14
Artigos e Retalhos.........................................................................31
Fim...............................................................................................44
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A Academia dos Estudantes e a Revista Acadêmica
Academia de Letras dos Estudantes da Universidade Mackenzie nasceu em
02 de outubro 1956 por iniciativa dos estudantes da Faculdade de Direito
que, unidos pela alma exploradora dos primeiros anos da Universidade,
resolveram fundar uma entidade capaz de desenvolver o espírito literário
dentro dos diversos cursos da instituição. Após as primeiras décadas, a
Academia perdeu adeptos e acabou se tornando uma instituição sem
membros ativos. Nesses anos, diversas ações foram executadas com o
objetivo de reerguê-la, mas, apenas em 2012, por iniciativa do Centro
Acadêmico João Mendes Jr., órgão de representação estudantil da Faculdade
de Direito do Mackenzie, finalmente, a Academia de Letras dos Estudantes
foi refundada. Atualmente, a Academia conta com 40 cadeiras, ocupadas
exclusivamente por estudantes dos cursos de graduação e pós-graduação da
Universidade. Após a formação, os membros compõem o Conselho de
Veteranos, em número infinito. A finalidade da Academia de Letras dos
Estudantes da Universidade Mackenzie é fomentar a produção e o debate
literário dentro da Universidade, contribuindo para o desenvolvimento pleno
dos estudantes e da literatura nacional. A Academia de Letras dos Estudantes
tem como irmã a Academia Mackenzista de Letras, entidade fundada em
2015 por ilustres escritores vinculados à Universidade Presbiteriana
Mackenzie.
Desde 2015 a Academia de Letras dos Estudantes publica a “Revista
Acadêmica”, um instrumento de divulgação, promoção literária e fomento
intelectual.
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Membros da Academia dos Estudantes
Estudantes Membros - 2º Sem/2016
Cadeira Patrono Estudante
1 Dante Alighieri Thomas Pagano Brundo Gasparetto
2 Gregório de Matos Danilo Souza Costa (Direito)
3 Luis Gama Leonardo Ribeiro (Direito - Mestrado)
4 Álvares de Azevedo Cadeira Vaga
5 Augusto dos Anjos Cadeira Vaga
6 Lygia Fagundes Telles Ana Paula Ricco Terra (Direito)
7 Monteiro Lobato Sarah Machado Acuña
8 Fernando Pessoa Márcio José Silva
9 Carlos Drummond de Andrade Danielli Morelli (Doutorado - Letras)
10 Mario Quintana Marco Antônio Ferreira Lima Filho (Jornalismo)
11 Evandro Lins e Silva Bruna Bianca Brandalise Piva (Direito)
12 Jorge Amado Cadeira Vaga
13 Nelson Rodrigues Leonardo Mariuzzo Plens (Direito)
14 Clarice Lispector Aidil Prado (Direito)
15 Antonio Carlos Jobim Cadeira Vaga
16 Vinicius de Moraes Jonathan Estevam da Silva Martins (Direito)
17 Machado de Assis Otávio Coelho (Direito)
18 Mia Couto Mariana Santos Brito (Biologia)
19 Manuel Bandeira Beatriz Campos (Direito)
20 José Saramago Verimar Guimarães (Direito)
21 Ariano Suassuna Noemi Macedo (Direito)
22 Luís Vaz de Camões Luiz Roberto Rodrigues Junior (Direito)
23 Ferreira Gullar Carlos Mota (Direito)
24 João Guimarães Rosa Breno Silva Oliveira (Direito)
25 João Cabral de Melo Neto Joao Carlos Lopes da Silva (Direito)
26 Cecília Meireles Luiza Paz da Cunha (Direito)
27 Miguel de Cervantes Saavedra Felipe Pereira Gallian (Direito)
28 Umberto Eco Guilherme Ferreira Leite Belmudes (Direito)
29 Alexandre Dumas Mariana Seminati Pacheco (Publicidade e Propaganda)
30 Gonçalves Dias Ayran Oliveira Michelin (Direito)
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Conselho de Veteranos e Membros Honorários
Antiga Conselho de Veteranos - Formados
8 Fernando Pessoa Felipe Righetti Ganança (Direito - Formado - 2013)
7 Monteiro Lobato Karina Azevedo Simões de Abreu (Direito - Formada - 2014)
12 Jorge Amado Larissa Martinez Arten (Letras - Formada - 2015)
15 Antonio Carlos Jobim Wilson Victorio Rodrigues (Direito - Formado - 2016)
4 Álvares de Azevedo Arthur Fernandes G. Rodriguez (Direito - Formado - 2016)
5 Augusto dos Anjos Gabriel Possamai Boneto (Direito - Formado - 2015)
1 Dante Alighieri Aurélio Tadeu Luiz Barbato (Direito - Formado - 2015)
Membros Honorários Guilherme Ramalho Neto Ex-Presidente da ABAMACK (2011/2013) – Direito - Mackenzie
Armando Iazzetta Antigo membro da Academia (1956) - Direito - Mackenzie
Nelson Câmara Presidente da AML - Direito - Mackenzie
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Edital para novos membros
A Academia de Letras dos Estudantes da Universidade Mackenzie comunica
a todo o corpo discente da Universidade que foi publicado o Edital para
composição de 14 (quatorze) vagas abertas na Academia.
Art. 1º O processo para seleção dos 14 (quatorze) membros da Academia de
Letras dos Estudantes da Universidade Mackenzie será conduzido por
Comissão Especial indicada pelos atuais membros.
Art. 2º. Estão aptos para participar do processo seletivo os estudantes dos
cursos de graduação e pós-graduação da Universidade Presbiteriana
Mackenzie.
Art. 3º. Os candidatos deverão enviar, entre os dias 25/10/2016 a
15/11/2016, pelo e-mail academiadeletrasdosestudantes@gmail.com, : I –
Folha com nome completo, idade, curso, semestre, turma, número de
matrícula, e-mail, telefone e nome do Facebook. II – Carta de motivação. III
– 3 (três) textos de sua autoria, de qualquer natureza, com limite de 10 (dez)
páginas cada. IV – 1 (uma) crítica sobre qualquer livro de literatura, com
limite máximo de 5 (cinco) páginas.
Parágrafo único. Todos os textos devem ser enviados em formado .PDF.
Art. 4º. A Comissão confirmará o recebimento de todos os e-mails enviados
nesse período, a fim de confirmar a inscrição.
Art. 5º. A Comissão divulgará o resultado até o dia 30/11/2016, na página
do Facebook da Academia e por e-mail aos selecionados.
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ABERTURA
A literatura como um instrumento de resistência ao preconceito
O recente anúncio de que o ganhador do prêmio Nobel de Literatura deste ano
seria Bob Dylan causou alvoroço nas redes sociais e nas comunidades acadêmicas e
artísticas. Para além da análise do acerto ou do desacerto da Academia Sueca na escolha
do premiado, a decisão tornou ainda mais candente o debate sobre as distinções entre
literatura e música. Até que ponto a letra de uma canção pode ser concebida como poesia?
Em qual medida é concebível a sobrevivência da obra de grandes letristas sem a moldura
melódica e harmônica sob a qual foi desenvolvida?
Muito embora pensemos que deva existir algum rigor distintivo na análise de tais
categorias, acreditamos que alguns letristas, ao atingirem um ponto alto ou, na poética
dicção de Manuel Bandeira, “a solidão dos píncaros” (espinhosa, única, intratável,
inacessível), terminam por adentrar um território em que as distinções clássicas são
insuficientes e em que não é mais possível discernimos o alcance preciso de suas
expressões artísticas.
Em homenagem ao reconhecimento, pela Academia Sueca, deste terreno arenoso
e incompreendido trilhado por gênios como Dylan, é que, inicialmente, nos voltaremos,
para abordar a resistência, à obra de outro gênio, Chico Buarque, valendo-nos da ideia de
que este genial letrista, como Dylan, ultrapassou as barreiras da categorização simplista,
podendo ser reconhecido como autêntico poeta ou, nas palavras de Dorival Caymmi,
como um “ourives da palavra”.
A arte sempre foi um instrumento potente de resistência e denúncia contra o
preconceito, censuras e autoritarismos. Não é por acaso que as músicas “Bárbara” e “Mar
e Lua”, verdadeiras pérolas do cancioneiro popular pátrio que carregam uma temática
comum, qual seja, o amor entre duas pessoas do mesmo sexo, foram censuradas em
períodos em que o ideário excludente dos autoritários imperava.
Tanto a canção “Bárbara”, presente em Calabar, álbum lançado em 1973 e fruto
da parceria entre Chico Buarque de Hollanda e Ruy Guerra, quanto a canção “Mar e Lua”,
uma das faixas do disco Vida, também de Chico Buarque, lançado em 1980, tratam de
amores homoafetivos.
Bárbara, de 1973, verdadeiro manifesto poético, teve a palavra “duas” (que
formava oração com “nós”) censurada, tanto no disco de estúdio em que foi lançada
(Calabar), quanto no disco Caetano e Chico, gravado ao vivo. Neste segundo, chamam a
atenção as manifestações intempestivas da plateia (um estranho som difuso, misto de
palmas e urros). Em verdade, não eram manifestações reais e espontâneas, mas sim a
forma utilizada, na ocasião, para abafar as palavras censuradas da canção.
No farto rol de exemplos de condenação pública da homossexualidade, “Bárbara”
ocupa lugar privilegiado, pois o que não pôde ser cantado denuncia a moral então vigente,
incapaz de aceitar que um grande amor como o narrado pudesse se dar entre pessoas do
mesmo sexo.
Em “Mar e Lua”, de 1980, Chico, a partir da construção da imagem de uma cidade
sem luar e sem mar, retrata um amor lésbico em que as envolvidas, que tinham “a boca
salgada pela maresia”, “se enluaravam de felicidade”.
O “amor proibido” trazia, às mulheres da canção, uma profunda libertação, um
gozar existencial, e, sobretudo, uma aproximação com os elementos poéticos inexistentes
na cidade em que florescera: o mar, o luar. Por isso, uma delas andava “grávida de lua”,
e a outra, “ávida de mar”.
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Chico Buarque, nesta canção, canta o amor lésbico de forma magistral, situando-
o não no plano do pecaminoso, mas no das relações afetivas mais intensas. Um amor que,
como qualquer grande amor, é capaz de promover verdadeira ressignificação poética da
realidade. Um amor que foi, para as amantes cantadas, um sopro inesperado de ar puro,
um acalento, um destino. E, por detrás da narrativa, paira o questionamento: qual moral
será capaz de deslegitimar esse amor?
“Mar e Lua”, contrariamente à “Bárbara”, é paradigmática não pelo que não se
pôde dizer, mas pelo efetivamente dito.
Hoje, sabemos, a União Estável homoafetiva encontra-se definitivamente protegida
juridicamente.
Mas foi árduo o caminho trilhado pelos homossexuais até o reconhecimento de
sua união como entidade familiar (e certamente a arte foi fundamental na construção dos
caminhos que a possibilitaram). É desse amplo rol de artistas que queremos tratar, ainda
que perfunctoriamente, a partir de agora, até como uma forma de homanagem.
O longo curso da humanidade foi atravessado, desde sempre, pelo fenômeno do
amor entre iguais. Inclusive, por um curto período da humanidade, a homossexualidade
não foi somente tolerada, como efetivamente fomentada. Alexandre, o Grande, por
exemplo, tinha em Hefestiao um grande amigo, companheiro de batalhas e, ao que tudo
indica, um amante a que devotou um profundo sentimento.
Mas foi curto o período em que a homossexualidade desfrutou de algum prestígio.
Com o advento do monoteísmo, foi relegada ao campo do pecado, da doença e da
devassidão.
Aqui, não podemos deixar de lembrar de gente da estatura de um Rimbaud, de um
Verlaine, de um Capote, de uma Gertrude Stein, de um Foucault ( gênios que, na obra e
na vida, resistiram às categorias hegemônicas e reducionistas de gênero e sexualidade).
Em alguns casos, as consequências foram nefastas. Refiro-me ao genial dramaturgo,
poeta e escritor irlandês Oscar Wilde. O aludido artista, que viveu na segunda metade do
século XIX, travou conturbada relação amorosa com Lord Alfred Douglas, cujo apelido
era Bosie. Descoberto o envolvimento dos dois pelo pai de Bosie, Wilde foi levado ao
Tribunal, tendo sido condenado a dois anos de prisão, bem como à pena de trabalhos
forçados, pelo cometimento de “atos imorais com diversos rapazes”.
Wilde cumpriu a pena imposta, tendo, no período, escrito uma carta à Bosie,
denominada “De Profundis”. Também na prisão, o artista concebeu a festejada “Balada
do Cárcere de Reading” e “A Alma do Homem sob o Socialismo”.
As três obras são fabulosas, mas “De Profundis” revela um Wilde despedaçado.
O cárcere, sem sombra de dúvidas, abateu esse gigante da literatura. Como no poema de
Baudelaire, “O Albatroz”, Wilde, outrora gigante dos ares, foi aniquilado pelos homens
da lei (que podem bem ser comparados, no caso, com os homens da equipagem, que, no
poema aludido, aprisionam um albatroz e o matam).
Como o albatroz do poema, Wilde, antes tão belo, ficou feio na desgraça. Foi
vítima da (in)justiça dos homens. No mundo das leis, eram suas asas de gigante que
impediam-no de andar.
Um outro caso célebre, que vale menção pelo seu caráter poético, envolveu um
combatente do Vietnã. Condecorado pela sua bravura na batalha, foi expulso do exército
após ter se declarado homossexual. Em consequência, proferiu a paradigmática frase:
“Deram-me uma medalha por matar dois homens. Expulsaram-me do exército por amar
outro homem”.
A homossexualidade, fenômeno que se fez presente desde sempre, continua sendo
compreendida, por grande parte da sociedade, como comportamento indecoroso, doentio,
inadequado ou/e pecaminoso. Muitos a taxam de “antinatural”, como se um termo de
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ordem científico-biológica pudesse dar conta, de maneira adequada, de comportamentos
humanos como o sob análise.
Em que pese, pois, o reconhecimento jurídico desta forma legítima de amor, ainda
há muitos caminhos a trilhar no combate aos que, por motivos incompreensíveis à razão,
condenam seres humanos por serem o que são. E a arte, certamente, ainda terá um enorme
papel a desempenhar na resistência a uma visão tacanha, reducionista e excludente de
vida e de sociedade que violou e ainda viola direitos fundamentais daqueles que não se
adequam aos padrões sociais hegemônicos de gênero e orientação sexual.
Beatriz de Campos
Presidente da Academia de Letras dos Estudantes da Universidade Mackenzie
13
TEXTOS
A Academia de Letras dos Estudantes da Universidade Mackenzie ressalta que as obras
publicadas nesta Revista são de responsabilidade exclusiva de seu autor ou autora, de forma que
eventuais posicionamentos políticos e/ou ideológicos não refletem a opinião de seus membros ou
da própria entidade acadêmica, que visa apenas estimular o senso crítico e o processo criativo dos
estudantes da Universidade.
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POESIA
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Algumas linhas
Fez-se o texto
Algumas páginas
Fez-se o livro
De muitas páginas
De muitas folhas
De muitas linhas
Fez-se o conto
E do conto
Fez-se estória
E da literatura
Fez-se o mundo
Karina Azevedo Simões de Abreu
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É da insistência
De escolher outras rotas
De escolher outros meios
De escolher outros personagens
De escolher outras histórias
De escolher outros finais
É da necessidade
De escrever sobre outras pessoas
De escrever sobre outras épocas
De escrever sobre outros cenários
De escrever sobre outros temas
De escrever sobre outras histórias
É da resistência
Que surgem novos livros
Que surgem novas músicas
Que surgem novos contos
Que surgem novas estórias
Que surgem novos mundos
Karina Azevedo Simões de Abreu
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Resistência em cores
Cinema.
Extraio vida do cinema.
Das cores,
As palavras.
Da arte,
A resistência.
O que é resistir, senão pintar de colorido o mundo?
Mascarar sem mascarar?
Em uma sucessão de filtros,
Denunciar a realidade na estética do sonho.
Com os olhos espertos,
As Maries* subvertem o mundo com travessuras de criança.
Amarelo
Vermelho
Azul
Verde
A tela pisca colorido,
As cores nos despertam do sonho,
E nos chamam a ver por trás do que está posto.
Cass**, com um alfinete, perfura a pele,
derrama uma gota de vermelho,
se tranca dos abusos dos homens.
Individualmente, com a arte,
Travam-se batalhas
Silenciosas e igualmente belas.
As cores sussurram...
Denunciam, sedutoras.
Apelam para que sejam notadas.
Para que nós, na realidade de cores apagadas,
Percebamos
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Que do individualismo do artista,
Nasça a união.
Que a arte seja o despertar.
Que as cores não signifiquem mais que
Resistir e ser artista.
Resistir e ser artista.
Resistir e ser artista.
Ser artista
Resistir
Eis o colorido manifesto.
Ana Paula Ricco Terra
*Personagens de “As pequenas margaridas”, de Věra Chytilová.
**Personagem de “Crônica de um amor louco”, de Marco Ferreri.
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Denunciar
dê um adeus ao que nunca se pode citar
preciso falar assim como preciso de ar
deixe inundar na minha boca
a acidez que vem do lutar
Mariana Santos Brito
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Por que falar do feio quando se há o belo?
Por que falar do feio quando se há o belo?
Por que falar do longe se há o perto?
Ou o que está preso quando se há o livre?
O condenado quando há o inocente?
E o visível quando se há o inconsciente?
Resiliência, resistência
Coragem
Falar do bom é ser poeta
Falar do mal é ser humano
Mariana Santos Brito
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No front
Ouvia os gritos e o rufo dos tambores,
A infantaria avançava aos passos largos,
O tintilar dos metais marcavam o compasso,
O vento cortante criava a melodia.
Por um momento me vi segurando uma lança,
Senti a grama ensopada encharcando meus pés,
O cheiro de ferro e de sangue
E a textura das páginas de um livro em minhas mãos.
Me cortei ao virar aquelas folhas,
Foi este o maior ferimento que carreguei,
Por um momento eu quase pensei.
Felipe Pereira Gallian
22
Pela humanidade em esperança
A humanidade adormecida.
Por uma sicuta dos novos tempos,
o reflexo no espelho intimida.
Àquele que abre os olhos frente ao desespero.
No entanto, enxergar uma senda.
Quarto de luz nas salas de escuridão,
em que a Sabedoria o recebe em Seus braços.
Pela humanidade em compaixão...
Aos poucos, o sofrimento, o desespero,
transforma a dor em perseverança,
a perseverança constrói em templo o caráter.
Pela humanidade em esperança.
Luiz Roberto Rodrigues Junior
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Respiro à Ordem (Trecho extraído do conto “O Cair das Asas”)
Sempre soube que estamos todos cumprindo pena.
Vivenciamos a sangria do ventre, mas vemos luz no fim da ida.
Buscamos corrigir a inversão entre o profano e o Justo.
Tentamos a todo custo sair ilesos com maestria deste castigo humano.
Cumprimos pena de vida.
A morte nos convida para a valsa e descalça nossos sapatos sob olhares estupefatos
adiantados do último ato e, sem pausa, da honra à causa perfídia.
Para nós só resta a recusa para tal insídia.
Fortalecemos nossos termos e tomamos a rédea.
Desde quando desgraça é tragédia?
Somos poetas sem amor num mundo de virtudes, escrevendo a história com a tinta do
sacrilégio.
Desafiamos nossos deuses para provar-lhes errados em seu julgamento, somos o alento
dos Justos e o divino sortilégio.
A fé é o tormento e o sofrimento é privilégio dos egoístas que consideram as nossas
conquistas seus próprios méritos.
Mas quem se importa, não é mesmo?
Ditamos nossos imáculos termos e incumbimos aos expectadores o artifício do
espetáculo.
Continuaremos para sempre anônimos, não realizamos o sacrifício no altar.
Revelamo-nos apenas para aqueles de percepção atenta.
Somos poetas sem amor num mundo de virtudes, onde a poesia é violenta e o delírio
oracular.
Guilherme Ferreira Leite Belmudes
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Xenofobia
Quando notarem as tuas roupas
que estão no teu jeito de falar.
Haverá rejeição da tua língua
Como fossem sujos os teus t’s
Ditos entre o final da ponta da língua e os dentes
Dirão: como são horrorosos os teus gestos labiais! Fale como nós!
Assim com as e tios educados.
E tu desembestado que é: não reagirá.
Não reagirá, mas tu por certo não retroagirás porque isso não vem do teu povo.
Se rirão da tua pele morenada, beijada dalgum modo pelo sol de lá.
Entojarão os olhos, quando tu passar no corredor do transporte público com essa tua
roupa de falar.
Dirão: por que não ficas despido?
Rir-se-ão!
Não conhecem a tua ancestralidade, das tuas cabeças que levaram baldes para equilíbrio
da existência.
Não ouviram falar, por certo, da dor da tua terra que sofre e não pode chorar, porque é
seca.
E depois de se rirem, e odiarem os teus lábios, a tua roupa que os vestem.
Tentarão te matar.
Tentarão te usurpar de tu mesmo.
Dirão: Vês, porque não te vestes como nós?
E eu te digo que não vistas.
Está-se nu, pegues o teu lençol de volta
e te lembres das cercas tortas pelo machado.
Da flor do mandacaru, que te espera voltar.
Da tua terra, que já dezembro chorará a tua volta num baião de pôr do sol.
Noemi Macedo
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Respingos
Olho sobre as árvores.
Surgem novos mares,
De água pura e doce,
Que ninguém jamais viu.
Olho sob as árvores.
Somem as margens,
De povos bravos e fortes,
Que nada destruiu.
Tambores ressoaram,
Em eternos encantos.
Fogueiras apagaram.
Sabedoria se perdeu,
Na preservação do todo.
A história se desfez.
Aurelio Tadeu Luiz Barbato
26
Resistência
Resistir aos que preferem animais à pessoas.
Resistir aos que maltratam os animais.
Resistir aos demagogos democráticos,
Da direita, da esquerda, desorientados.
Resistir aos só falam em crise e quedam inertes.
Resistir aos docentes e discentes indecentes,
Bacharéis, universidade de imbecís,
Reprodutores do bicho de Bandeira.
Resistir aos comerciantes do amor,
Rufiões travestidos de analistas.
Resistir aos governos e à iniciativa privada.
Resistir aos libertinos e paladinos da ordem.
Resistir aos acadêmicos e intelectuais corporativos,
Que escrevem e falam em louvor aos seus egos.
Resistir aos que desperdiçam alimentos,
Resistir à anoréxicos e obesos.
Resistir aos extremistas, fundamentalistas,
Religiosos, sexistas, corporativistas.
Resistir aos que à nada resistem.
Resistir aos que a tudo resistem.
Resistir a mim mesmo.
O mundo carece de bom senso.
Breno Silva Oliveira
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Les Fémmes Résistantes
Para as ciganas obliquas
E dissimuladas
Com seus olhos de ressaca
E suas atitudes duvidosas.
Para as moças toleráveis
Que desafiam sua época
Com palavras ousadas
Moldadas pelos livros.
Para as senhoras
Que foram negadas
Mas amam e lutam
E se descobrem na valsa.
Para as apaixonadas e rebeldes,
De corações quentes no inverno
Que traem sua corte
Para atender o amor.
Para as moças presas
Que não sabem seu valor
Que buscam sua liberdade
E a verdadeira felicidade.
Paras as perdidas e
Com corações bagunçados
Que começam com virgulas
E terminam com três pontos
Para personagens que são símbolo da resistência na literatura, o agradecimento das leitoras de
todas as épocas.
Mariana Seminati Pacheco
*1ª estrofe: Capitu (Dom Casmurro) ; 2ª estrofe: Elizabeth Bennet (Orgulho e Preconceito); 3ª
estrofe: Aurélia Camargo (Senhora); 4ª estrofe: Anna Karenina (Anna Karenina); 5ª estrofe:
Madame Bovary (Madame Bovary); 6ª estrofe: Lóri (Aprendizagem ou livro dos Prazeres)
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Meios de resistência.
Resisto a resistência
De resistir a você.
Seu corpo reage ao meu
Mesmo se opondo ao potencial
A resistir a resistência
Quando seu corpo se opõe
Ao calor do meu.
A natureza resiste
Em não nos deixar longe
Diante de tanto caos urbano.
Se resistir no ato
A resistência será julgada.
Resista. Resistamos.
Resistamos a resistir.
Marco Antônio Ferreira Lima Filho
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Pequena Crítica
Quem tem direito
Não tem voz.
Salve a todos
Que resistem aos seus direitos!
Marco Antônio Ferreira Lima Filho
30
RESISTIR
É
REEXISTIR
A CADA
QUEDA
Felipe Righetti Ganança
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ARTIGOS E RETALHOS
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A Arte da Resistência ou A Resistência da Arte?
Do prefixo RE (“para trás, contra”) em conjunto com SISTERE (“manter a
posição”), nasceram as palavras latinas resistentia ou resistere, as quais deram origem no
vocabulário da língua portuguesa aos termos “resistência” e “resistir”, que, por
conseguinte, significam “ficar firme, aguentar”.
Em contrapartida, a palavra “arte” origina-se do vocábulo em latim ARS, o qual
significa “técnica”, “habilidade natural ou adquirida” ou, ainda, “capacidade de fazer
alguma coisa”.
Ora, pelas definições acima, poderia concluir-se que “resistência” e “arte” seriam
palavras cujos significados apresentam-se de forma antagônica, posto que, enquanto a
primeira passa a impressão negativa de estagnação, a segunda tende a proporcionar a
sensação de movimento. No entanto, unidas em um mesmo contexto, nota-se que elas
criam novo significado: o de manter-se firme frente a uma determinada situação. Porém,
não de forma inerte, mas, sim, por meio da capacidade de criar algo que manifeste tal
firmeza de posição.
Constância e Expressão.
Temos assim, respectivamente, “novas” definições para as palavras “resistência”
e “arte”, dessa vez de forma convergente. Contudo, não é novidade que estas caminharam
(e caminham) juntas ao longo de nossa história.
Como Javier Cencig definiu, a arte é uma das formas de interiorização da
opressão e também de resistência a ela2. Assim, se tomarmos a arte como forma de
resistência à opressão, exemplos clássicos nos vêm à mente, como a recusa de Sócrates a
permanecer livre e exilado, caso fosse proibido de propagar suas ideias filosóficas e
revolucionárias, o qual foi condenado pelos atenienses na primavera de 399 a.C à morte
por envenenamento. Ou Bruno de Nola (Giordano Bruno) morto na fogueira em 1600
como herege, condenado pela Inquisição por apontar erros teológicos. Assim como as
músicas de Victor Jara na época da ditadura chilena, cujas mãos foram publicamente
quebradas, de forma a impossibilitá-lo de tocar seu violão no Estádio Nacional em 16 de
setembro de 1973, sendo após brutalmente assassinado.
Da mesma maneira que visualizamos exemplos em épocas e países distintos, ao
olhar para o Brasil, inevitável não lembrarmos dos tempos da Ditadura Militar, em que a
arte de músicos, pintores, jornalistas e poetas, era censurada. Como não lembrar dos
espaços em branco preenchidos nos jornais e revistas pelas receitas de bolo ou os versos
de Lusíadas? Como não lembrar das canções Pra Não Dizer Que Não Falei das Flores
de Geraldo Vandré, Cálice e Apesar de Você de Chico Buarque de Hollanda e Refazenda
de Gilberto Gil? Como não lembrar da lista infindável de exilados e assassinados, que
mesmo resistindo, foram de alguma forma silenciados nessa ditadura de sangue?
Até aqui, não há novidade alguma. Afinal, os exemplos acima vivem em nossas
memórias, assim como através da arte, sejam retratados em um quadro, impressos nos
livros de história ou relembrados e repassados de forma oral de geração em geração.
Como demonstrado, a arte é e sempre foi utilizada como meio de comunicação
e/ou expressão, seja de resistência ou de apoio a uma determinada causa.
A questão é: e nos tempos atuais? Como a arte da resistência, ou seja, de resistir
à opressão, se concretiza no século XXI? Como as marcas do passado influenciam na era
contemporânea (na era da internet, das redes sociais, da tecnologia), onde tudo é efêmero
e rápido?
2 CENCIG, Javier. Qual a Relação Entre a Obra de Arte e a Comunicação? Página 03.
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Parafraseando o que o cientista Lavoisier disse há 222 anos, nada se cria, tudo se
transforma, atualmente a resistência tem se difundido por meio da arte de forma
diferenciada. Isso porque, há uma maior abertura para o diálogo e para novos pontos de
vista, pois a diversidade é a nova precursora da atualidade.
Daí a utilização de meios artísticos mais ousados, como, por exemplo, o body art,
que apesar de ter se iniciado na década de 60, é utilizado nos dias atuais muitas vezes
como forma de resistência, como foi o caso do artista plástico Madison Araujo em 2013,
ao utilizar o corpo da funkeira Mc Bandida como tela, em forma de protesto à política
brasileira. Ou, em casos mais drásticos, da utilização do corpo humano como resistência
à violência, como o ocorrido em maio deste ano na XX Parada do Orgulho LGBT, onde
o jovem Douglas Alcântara fez o uso da suspensão corporal como oposição ao discurso
de ódio voltado aos não heterossexuais e dos transgêneros.
Há ainda os que utilizam a arte como forma de resistência ao jeito de ser das
metrópoles (como São Paulo, por exemplo), de maneira a combater a sensação de
aprisionamento e sufoco, por meio da grafitagem, como mostra o documentário “Cidade
Cinza”, lançado em 2013 pelos documentaristas Guilherme Valiengo e Marcelo
Mesquista. Temos como modelos de resistência nessa linha, o artista plástico Enivo, os
irmãos artistas “Os Gêmeos” (Otávio e Gustavo Pandolfo), os grafiteiros do Beco do
Batman (Rua Gonçalo Afonso) localizado no Bairro Vila Madalena da Capital ou o
Projeto Telas Urbanas em Belo Horizonte, dentre tantos que tentam colorir as cidades do
nosso Brasil.
Em contrapartida, outros se utilizam da arte nas ruas como meio de protesto contra
as injustiças sociais, a pobreza e a desigualdade nas periferias, como é o caso da pichação.
Esta é a arte que dá voz aos oprimidos, pois, apesar de não ser tão agradável aos olhos,
como é o caso da grafitagem, ela se utiliza de palavras e frases estilizadas (as vezes até
mesmo em código), para demonstrar o sentimento de revolta da minoria, sendo, muitas
vezes, descrita como ato de vandalismo.
Com a tecnologia, surgiu também a possibilidade de resistência à opressão através
de artes realizadas nos meios digitais: em forma de memes (os quais apresentam conteúdo
mais irônico), vlogs, blogs, websites e redes sociais (como o Facebook ou o Twitter, por
exemplo), os quais possibilitam rápida divulgação e amplo debate, alcançando todos os
tipos de camadas sociais.
Assim, nota-se que a “arte da resistência” não ficou no passado: transformou-se.
O que mostra a “resistência da arte” ao longo da história, visto esta estar sempre se
moldando e se reinventando, adaptando-se aos dias atuais de forma a suprir e a expressar
as necessidades da sociedade.
Tomando como referência as formas artísticas ousadas de resistir nos dias atuais,
ouso então dizer que talvez a definição mais autêntica para a “arte da resistência” ou a
“resistência da arte” seja ARSSISTERE (da junção das palavras latinas ARS e SISTERE),
cujo significado seria “a arte de resistir através do tempo por meio da adaptação ou a
capacidade de criação e mutação frente a determinado acontecimento, de forma a
expressar sua atual posição”. Assim, conclui-se que tal conceito, apesar de trazer “novo”
significado ao nosso vocábulo, é resiliente, mas, ao mesmo tempo, mutante, pois se
encontra em constante transformação e renovação. Logo, no final das contas, todo o
contexto que vivemos e ainda temos por viver, como diria Raul Seixas, é uma completa
metamorfose ambulante.
Sarah Machado Acuña
34
Resistência à tradição:
Shakespeare e a questão das legitimidades
I – Renascentismo inglês: o período elisabetano
A época em que viveu Shakespeare situou-se no chamado Renascentismo inglês, período
de questionamento das tradições medievais e de suas instituições, período de reações e reformas.
Em meio à retomada do racionalismo crítico e secular – em oposição aos dogmas religiosos –
característico do espírito renascentista, a teologia política não haveria de se furtar aos mais
variados questionamentos.
Assim, é fato inconteste que o Renascentismo inaugurou o movimento de inquirição e
desconstrução das teorias teológicas medievais de legitimação do poder, não obstante Carl
Schmitt ter demonstrado, em “Teologia Política”, que a teoria moderna da legitimação do poder
consiste na versão secular do legado teórico medieval.
Nesse cenário de ebulição política e cultural, o bardo inglês, obstinado descortinador da
natureza humana, debruçou-se sobre as questões que circundam o poder em diversas de suas
peças.
A tragédia de Ricardo II presta-se a refletir, indiretamente, sobre o modelo de
legitimidade política que persistia, após copiosas gerações, na Inglaterra elisabetana do século
XVI. Sem dúvida, uma obra bastante ilustrativa dessa época contestadora.
II – Ricardo II: um choque de legitimidades
A tragédia shakespeariana conta a história de Ricardo II, rei que governou de 1377 a 1399,
e é a primeira de uma tetralogia, seguida pelas peças Henrique IV – parte I, Henrique IV – parte
II e Henrique V.
O enredo é cosido ao redor da legitimidade do poder, assunto caro ao período elisabetano,
cuja majestade viu-se vítima de severas críticas e farta oposição. O autor questiona durante toda
a peça o modelo medieval do “poder pelo poder”, um poder com causas (divina e sanguínea), mas
sem finalidade justificável. Modelo este ainda vigente na época de Shakespeare.
O poder, argumentaria Shakespeare, para ser legítimo deve ser justificado por algo mais
que a mera gratia (graça) divina. Deve haver alguma justificativa teleológica, um raison d’être,
para que o exercício do poder se torne válido. Essa justificativa há de ser o bem comum que o
exercício desse poder proporciona para os cidadãos sob seu domínio.
Nessa linha de argumentação, Ricardo II – após ser exposto em relação ao assassinato
que encomendara e a todos os demais escândalos morais nos quais se envolveu – é retratado como
um lunático, um alucinado vitimista, sujeito de narrativa única: a alegação de que o trono lhe era
devido por ser um direito divino.
Ricardo não compreende, no enredo, que os tempos haviam mudado e que somente a
herança sanguínea não justificaria mais sua permanência no poder. É como se houvesse duas
legitimidades: aquela que origina o poder (o sangue, a linha sucessória) e aquela que justifica a
manutenção desse poder (o exercício do mesmo em benefício da nação que aos poucos se
delineava). A primeira não se sustenta sem a segunda, uma vez que se torna legitimidade sem
justificativa, perdendo o esteio que a sustenta.
É inconteste que na narrativa histórica os tempos não haviam mudado; mantinham-se as
velhas tradições. No entanto, na narrativa fictícia o Renascentismo fazia suas vezes de
transgressor da tradição, resistindo aos seus desmandos e combatendo-a.
III – Aquilo que vai, volta: a transgressão transgressora do transgressor
O rei, com o caminhar da peça, é destronado por seu primo, líder de uma coalisão com
essa finalidade traumática. É interessante observar que apesar do ato de agressão, Shakespeare
faz o destronamento dar-se mediante subterfúgio legal: uma vez transgredida pelo rei, a lei deixara
de o amparar.
35
Se, ao início da peça, Ricardo II tinha legitimidade para governar, tal legitimidade se dava
por meio da lei de sucessão, a qual se consolidara no direito consuetudinário como parâmetro de
legitimidade do poder. Ocorre que a lei de sucessão não estava acima das demais, mas formava
sistema com elas.
Transgredindo as demais leis no decorrer de toda a narrativa, Ricardo demonstrou total
desprezo pelo sistema legal, não se dando conta de que esse mesmo sistema jurídico era o
responsável pela sua permanência no poder. Uma vez que leis são transgredidas pelo rei, todo o
sistema é transgredido, o que inclui a lei de sucessão. É deste modo que indiretamente Ricardo se
deslegitima. Ao governar para si e não para a Inglaterra, o rei se mostra indigno da coroa. Ao
agredir as leis, o rei se agride e se destrona.
O consenso quanto à sua indignidade em face do trono é um crescente na peça. No
entanto, faltava aos dissidentes do reinado um fundamento que justificasse a derrubada do rei
ilegítimo. Tal fundamento é dado pelo próprio Ricardo II ao confiscar as terras de seu primo
Henrique Bolinbroke, o qual sob a reivindicação justa de fazer valer a lei, subverte-a e assume o
poder, restabelecendo-a e a fazendo enfim valer em plenitude.
IV – Uma questão de ética: a resistência ao modelo aético medieval
Conforme apresentado, a peça aborda um choque de perspectivas: a perspectiva medieval
de legitimidade ilimitada e a perspectiva renascentista de legitimidade justificada, preservada pelo
mérito e competência do governante.
Ao que fica indicado nas entrelinhas do drama, para Shakespeare o mero nascimento não
deveria ser o parâmetro de legitimidade do governante. O nascimento não garantiria um bom
governo, muito menos um governo justo. Sendo assim, a peça sugere um novo parâmetro: a
virtude e competência para governar. Um rei sem ética não é merecedor do trono. Extrapolando
a reflexão, um rei ele próprio deve ser o parâmetro ético da sua sociedade. O rei deve ser o
exemplo de comportamento. Se o oposto, perde sua razão de ser rei.
Mais que uma lição sobre governabilidade, a peça é uma lição sobre ética. Não é possível
haver legitimidade sem ética, assim como não é possível haver ética sem virtude. Não é a toa que
o discurso de Ricardo II vai, consoante vai se vendo sem apoio para governar, gradativamente se
afeiçoando a vitimização, em clara demonstração de desvirtuosismo e inaptidão.
Shakespeare sem dúvida foi um heroi da resistência e por meio da literatura nos mostrou
que é possível – e necessário – questionar os paradigmas de maneira profunda e com propriedade.
Ao reconstruir a narrativa histórica da “tragédia” de Ricardo II, o poeta questionava os modelos
de legitimidade vigentes em sua época, os quais suscitavam sucessivas crises de governabilidade,
davam causa a conjurações e guerras civis. Não se pode mensurar até que ponto suas obras
influenciaram as teorias políticas, mas o que podemos afirmar com certeza é que muito dos
problemas por ele iluminados naqueles tempos hoje se atenuaram com o advento do
Parlamentarismo inglês.
Ayran Oliveira Michelin
36
- Tem jeito - Disse assim meio seco, daquela secura que acompanha todo tipo de
enunciado descrente, mas ainda, solidário – Deve de haver, quem é que morre assim?
Jogado feito bicho, descosturado? Tem dó – continuou, num frêmito desesperado de quem
sabe que alguma coisa muito bonita já vai acabar, coisas como, filmes, borboletas,
lâmpadas, flores e pipoca doce. E ia: a vida. Logo a dele, tão pequena, tão bonita! Pensou;
mesmo a dele, cheia de coisa ruim. Como a lembrança do dia em que o tico morreu de
choque e todo o mundo quebrou a cara, porque achavam que o fim do Tico seria na rua
D, com uma bala no olho. E ele pensava assim, que o olho do Tico era tão bonito, que
fazia dó de acabar, quinem a vida dele, mesmo a dele. Que sem prática ia rodando,
ocupando um relógio desses que deve marcar o ponto de todo mundo ir. Será que o meu
parou? – Pensava... E depois, que o Tico se foi ele ficou tão só, não tinha mais graça o pé
de laranjeira no fundo da casa da moça brava, que se alcançasse eles, ai! não se segurava:
degolava os dois, num só machado. E a laranja nem era doce, riu tossindo sangue, doce
era pular a cerca sem arranhão! Aquele tempo tava marcado pra outra terça o roubo, ai o
Tico pega e morre, sem avisar nem nada! E ele, jurou que ia ser direito! E foi. Planejou
ir pra capital, buscar a vida, e ia. Mas de que adiantou, Tico? Tu morrer e eu prometer?
Uma pipa rabiscou o céu, longe, tão longe quanto à lembrança daquela manhã mal escrita.
Vermelha. E ele lembrou que gostava tanto de caqui. Nunca mais caqui, foi bem aí que a
fé dele quase foi embora. - Adiantou de nada Tico! Bala pega qualquer um, até eu, que ia
trabalhar na paz, que já tinha ficado direito! Será o que foi hein? Qual é a graça de presidir
o morro hein Tico? Dinheiro fede, lembra? Lembra que a gente ria, do bando de besta
que trabalhava a morrer, pra ganhar fedor? Teve uma tarde, eu ainda lembro que a gente
tinha fome, tanta fome, que pulou no seu Pedro, e pegou a goiabada, lembra? Velho
sovina, tava vencida! E mesmo assim, a gente comeu, ela mesma. O sol tava indo embora,
quase derrapando num derretido de cores tenras, cores tantas! E ele suspirou, nem doía
mais, hora dessas o ônibus devia estar saindo, e ele pensou só sorrisos, na janela, no livro,
na vida, no gosto, na rua mãe e no Tico. - Tem jeito, repetiu, ninguém morre assim,
largado, morre? Eram muitos olhos e tanta piedade, e nenhuma complacência! - Tem
jeito Tico? - Já nem sabia. Ria, tem jeito...vomitou um sussurro ensanguentado, feito a
nova luz que chegava, atrapalhando a calma da recém-chegada da lua, e fechou os olhos,
pra nunca mais, nunca mais caqui.
Noemi Macedo
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Direito à Educação
A luta pelo acesso à Educação no Brasil é tão antiga quanto sua própria invasão
pelos portugueses após 1500, mais especificamente após 1530 quando as missões jesuítas
passam a chegar ao Brasil e encarregam-se desse aspecto social naquela sociedade ainda
embriã, sem uma exata noção da grandeza que teria e de quão sério se tornaria a questão
do direito à educação para si. Foi somente em 1827, quase três séculos depois, que se
elabora a primeira lei para regular o assunto educação, como lemos:
“D. Pedro I, por Graça de Deus e unânime
aclamação dos povos, Imperador Constitucional e
Defensor Perpétuo do Brasil: Fazemos saber a todos os
nossos súditos que a Assembleia Geral decretou e nós
queremos a lei seguinte: Art. 1º Em todas as cidades, vilas e lugares mais
populosos, haverão as escolas de primeiras letras que
forem necessárias.” (Carta Lei de 15 de Outubro de
1827)
Aí iniciou uma corrida longa, cheia de desafios, avanços e retrocessos, liberações
e contenções, sempre com a ação do Estado, infelizmente, não como patrocinador desse
assunto tão precioso à sociedade, mas como regulador, em alguns casos usando seu poder
soberano para restringir ou direcionar o acesso à Educação para objetivos específicos,
econômicos, que nem sempre produziram resultados favoráveis ou duradouros ao país.
A reforma Capanema, promovida na Era Vargas, por exemplo, mostrou
claramente a intenção do Estado em promover a Educação de qualidade a uns poucos,
privilegiados, que chegariam à Universidade, tornando-se mão de obra especializada, e
as massas propositalmente direcionadas ao ensino profissionalizante para preencher a
lacuna que existia na nascente indústria nacional. Como diz Freitag (2007), havia a escola
de qualidade para poucos, a antiga aristocracia cafeeira de São Paulo, e a escola dos
“outros” dos jovens que não tinham condições de se dedicar aos estudos por serem
obrigados a começar cedo no mercado de trabalho para auxiliar no custeio de despesas
familiares.
Romanelli (1978) aprofunda o debate ao relembrar que essa reforma gerou a
dualidade no sistema de ensino: os que ingressavam no ensino profissionalizante não
podiam aceder à Universidade e os que optavam pelo ensino clássico não podiam optar
pelo profissionalizante. O resultado foi a grande distorção e a obtenção do resultado
pretendido pelo Estado: obtenção de mão de obra barata em abundância. Foram
necessários anos para corrigir essa distorção, algo que só aconteceu com a aprovação da
Lei de Diretrizes e Bases em 1961.
Para estudiosos da Educação é algo chocante, mas nossa primeira lei específica
sobre diretrizes educacionais só aconteceu na segunda metade do século XX. Ademais,
era uma lei cheia de implicações para Educação democrática porque ela previa, entre
outras coisas, o seguinte:
38
“Art. 95. A União dispensará a sua cooperação
financeira ao ensino sob a forma de:
c) financiamento a estabelecimentos mantidos pelos
Estados, municípios ou particulares, para a compra, construção
ou reforma de prédios escolares e respectivas instalações e
equipamentos de acordo com as leis especiais em vigor.
§ 2º Os estabelecimentos particulares de ensino, que
receberem subvenção ou auxílio para sua manutenção, ficam
obrigados a conceder matrículas gratuitas a estudantes pobres,
no valor correspondente ao montante recebido.
§ 3º Não será concedida subvenção nem financiamento
ao estabelecimento de ensino que, sob falso pretexto, recusar
matrícula a alunos, por motivo de raça, cor ou condição social.”
(Lei de Diretrizes e Bases para Educação 4.024/1961)
Além de ser produzida 461 anos após a chegada dos portugueses, a nossa
primeira LDB colocava em pé de igualdade as instituições de ensino público e privada,
obrigando o Estado a prover financiamento sem demonstrar de maneira clara como seria
feita a fiscalização da efetivação das políticas públicas e sociais de inclusão social por
meio da educação. Ressalte-se que, embora o parágrafo terceiro fale com clareza sobre
a questão de recusa de matrícula por razão de raça, é dado conhecido até os nossos dias
que pouquíssimos alunos afrodescendentes conseguem obter acesse a uma escola
privada, especialmente na qualidade de bolsista, quanto mais há cinquenta anos.
Essas distorções causaram espanto em educadores como Paulo Freire que à
época desenvolveu o Plano Nacional de Alfabetização, um projeto ambicioso para
eliminar o analfabetismo no Brasil, mas que logo foi sufocado pela ditadura militar.
Essa, por sua vez, promoveu reformas nos antigos primeiro e segundo graus e iniciou
um processo de desmantelamento da Universidade pública brasileira. O cenário tornou-
se tão caótico que Darcy Ribeiro (1984) disse: “nossa escola é uma calamidade”. Em
contrapartida a Universidade era privilegio de poucos.
Em 1996, editou-se a segunda LDB (Lei 9394/96) da história da Educação no
Brasil, ambiciosa e abrangente. O ensino foi visto como uma necessidade, não apenas
como um acessório. Mas o grande avanço veio com a Emenda Constitucional 59 de
2009 na qual se estabelece com clareza:
“Art. 1º Os incisos I e VII do art. 208 da Constituição
Federal, passam a vigorar com as seguintes alterações:
Art. 208
I - educação básica obrigatória e gratuita dos 4 (quatro)
aos 17 (dezessete) anos de idade, assegurada inclusive sua
oferta gratuita para todos os que a ela não tiveram acesso na
idade própria; (NR)
VII - atendimento ao educando, em todas as etapas da
educação básica, por meio de programas suplementares de
material didático escolar, transporte, alimentação e assistência à
saúde." (NR)
Art. 2º O § 4º do art. 211 da Constituição Federal passa
a vigorar com a seguinte redação:
Art. 211
39
§ 4º Na organização de seus sistemas de ensino, a
União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios definirão
formas de colaboração, de modo a assegurar a universalização
do ensino obrigatório.”
Podemos dizer que vivemos no auge da conquista do direito à Educação. Cabe
agora, tanto à Sociedade civil, quanto aos órgãos competentes ligados direta ou
indiretamente ao assunto, a mobilização para que façamos valer esse direito fundamental,
o único meio de se construir uma sociedade igualitária e justa como o Brasil merece e
necessita3.
Márcio José Silva
3 REFERÊNCIAS: FREITAG, Bárbara. “Escola, Escola e Sociedade”. 7ª. Edição. São Paulo: Centauro,
2007 - ROMANELLI, Otaíza. “História da Educação no Brasil”. 39ª. Ed. Petrópolis: Vozes, 1978.
IMPÉRIO DO BRASIL. Lei de 15 de Outubro de 1827, disponível em:
http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei_sn/1824-1899/lei-38398-15-outubro-1827-566692-
publicacaooriginal-90222-pl.html. - ESTADOS UNIDOS DO BRASIL. Lei 4024 de 20 de Dezembro de
1961, disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L4024.htm. - REPÚBLICA
FEDERATIVA DO BRASIL. Lei 9394 de 20 de Dezembro de 1996, disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9394. - REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. Emenda
Constitucional 59 de 11 de Novembro de 2009, disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Emendas/Emc/emc59.htm
40
Ao fundo do gabinete
Finalmente a contagem das urnas havia se encerrado e o prefeito não
conseguira se reeleger, ficando apenas em segundo lugar, perdendo com uma grande
diferença para o grande nome da oposição reacionária descendente daqueles jovens casais
do Alabama, que acabaram de financiar a casa própria, às custas apenas do marido, claro,
um advogado dedicado, pois óbvio que a mulher tinha suas próprias tarefas domésticas a
realizar, como o preparo daquele suculento peru que será posto à mesa depois que seu
marido chegar em casa, homem, este, prestativo e diligente que além de trabalhar fora e
garantir o sustendo da família também tem sua importante parcela de contribuição nos
serviços da casa, como a condução da máquina de cortar a grama, que muito que bem
poderia ser substituída por uma artificial, a grama não a máquina. Nem a mulher.
Fernando, o prefeito – que de certo não é aquele que recentemente perdera as
eleições municipais em São Paulo, uma vez que estamos em um universo literário fictício
tratando de uma personagem abstrata, formada por palavras e suas induções cognitivas
na nossa imaginação – em face do resultado não encontrou outra conduta no seu vasto
arsenal de manifestações muito das articulas, e viu-se obrigado a ligar para seu adversário
vitorioso e felicita-lo com as esperadas saudações, “O prefeito continuará sendo eu!”.
Firme, Fernando encerrou a breve ligação com uma senhora exclamação que João – para
afastarmos todas as dúvidas que possam importunar como uma coceira a cabeça do leitor,
cumpre esclarecer que esta personagem também não corresponde ao prefeito que assumiu
o cargo em São Paulo no início de 2017, apesar de compartilhar de seu apurado gosto
artístico e desprezo por copos americanos, não café com leite, pois este magnífico
costume de misturar essas tão sublimes fontes de vida e energia lhe fazia lembrar sua
querida avó que tinha o hábito de se alimentar com tal bebida pela manhã, além do fato
de não só ter se informado, como fazia questão de informar aos demais, que a mistura não
era de maneira alguma prejudicial, pois apenas 30 ml de leite já são suficientes para fazer
com que a cafeína não atrapalhe a absorção de cálcio pelo organismo, como dito, o
problema estava no copo, provavelmente por seu formato ondulado que devia lhe causar
vertigem ao roçar os dedos pela superfície acrílica – João, como dizia, jurou sentir a saliva
úmida do então prefeito pelos orifícios do auscultador.
O prefeito havia se decidido, não dava margem a outras possibilidades,
permaneceria no gabinete. No dia primeiro do ano seguinte não iria cumprir as
solenidades e passar a faixa para o seu adversário, e no próximo dia iria normalmente
trabalhar, e era bom não ter ninguém sentado em sua cadeira!
- Me recuso a deixar esse gabinete no próximo ano! – disse a Petulância do
prefeito.
- Não sejas dramática, não será o fim do mundo. – respondeu a Tranquilidade.
- Do mundo não, mas dessa cidade que precisa de nós. Tantas mudanças e
projetos por fazer serão deixados de lado e darão espaço a um retrocesso inaceitável.
- Mas ainda poderemos mobilizar a sociedade para cobrar mudanças
efetivas, e aproveitar as falhas do novo prefeito para nos fortalecermos e virmos mais
fortes nas próximas eleições.
Mal havia a Tranquilidade de Fernando terminado de falar, alguém bateu à
porta e sem mais cerimônias foi entrando, sendo rapidamente reconhecida pelas duas
emoções que estavam a discutir.
- Minha cara Tranquilidade, sempre fui sua admiradora, mas nesse momento
estou com a Petulância, é preciso ficar. – interrompeu a Esperança dos Jovens – Vocês
representaram mais do que projetos, vocês se tornaram uma referência para nós, que
vimos em vocês a possibilidade de melhora no pensamento coletivo da sociedade, a partir
41
do debate de novas políticas sociais que tanto faltavam para nós. Por isso, pedimos para
que fiquem e que contem com nosso apoio.
A Esperança dos Jovens se retirou e o prefeito, que a esta altura pouco
entendia, pediu para si um café e, já na companhia deste, tirou os sapatos, acendeu um
incenso de SOL, que como sabemos traz inspiração, cruzou uma perna sobre a outra,
fechou os olhos, mas logo os abriu e descruzou as pernas para poder se levantar e fechar
a janela por conta da ameaça de chuva que vinha nos trovões, voltou e cruzou mais uma
vez as pernas, fechou os olhos, inspirou e expirou pelo nariz, quando se lembrou que
deveria expirar pela boca, então o fez por vezes seguidas, quando, já relaxado, mergulhou
nas profundezas de seu espírito e começou a arquitetar seu plano de resistência.
Neste momento devemos alertar o leitor a respeito de uma característica
peculiar do nosso querido prefeito. Desde a infância ele alimentou a ideia de que estava
sozinho no mundo. Literalmente sozinho, de maneira que seria o único ser consciente do
planeta e as demais pessoas seriam apenas projeções criadas por uma força maior, todas
designadas ao seu próprio desenvolvimento pessoal. Assim, ao conhecer uma pessoa
nova, imaginava que esta havia sido introduzida à sua vida para lhe ensinar algo, sendo
que ele buscava sempre absolver algo novo a cada experiência que vivenciava, da mesma
forma que quando alguma pessoa se mostrava como um obstáculo para suas intenções, a
razão de ser dessa pessoa se resumiria à busca por uma alternativa que o faria crescer
espiritualmente e superar esse desafio. Isto posto, podemos entender por que havia
decidido bater o pé e não abrir mão da prefeitura mesmo diante do resultado desfavorável
nas urnas, pois como único habitante da cidade, caberia a ele e apenas ele a condução de
seu futuro.
Momentos depois nosso protagonista se levantou radiante, parecia possuído
pela confiança do predador que espreita seu almoço com calma até o momento fatal de
fincar suas presas no pescoço do indefeso animal, geralmente um mamífero ainda jovem
e ingênuo que se distraía ao perceber que enxergava as cores pintadas no pôr do sol em
tons diferentes se olhasse diretamente, ou apenas de soslaio, o que lhe causava um efeito
lisérgico, intensificando as tonalidades que pareciam mais frias se olhasse com o canto
dos olhos, principalmente se posicionasse sua pequena cabeça peluda um pouco de lado,
uns vinte graus de rotação em direção ao horizonte.
Ele havia bolado um plano. Esse malandro desse prefeito sabia muito bem o
que fazer, mas guardou o segredo para si. Dizem que quanto mais você conta aos outros
suas intenções, menos chances elas têm de dar certo, portanto, ele resolveu não contar pra
ninguém, pois assim teria um alto percentual de probabilidade de sucesso. Conclusão cem
por cento científica.
O tempo passou a si e o que pudemos observar foi a gradual e amistosa
transição entre os políticos, que inclusive compartilharam uma meia dúzia de conversas
molhadas de café – servido em xícaras sem saliências. O que, ao início do relato, não
podíamos imaginar é que os dois se tornariam grandes amigos e passariam a fazer parte
de uma mesma conjuntura ideológica, mas, de qualquer forma, não há por que imaginar
tal cenário, pois não foi o que se sucedeu.
Após se retirar da prefeitura, Fernando iniciou sua militância, valendo-se de
sua condição de cidadão comum, estudando técnicas de subversão, lendo obras de
ocultismo e assistindo filmes como Clube da Luta. Seus olhos estavam vermelhos, não
em homenagem aos comunistas, muito menos aos rastafáris, quer dizer, até podia ter
alguma influência herbalística, mas em sua maioria era de sede de vingança, e todos
aqueles que eram mordidos por seus ideais progressistas passavam a apresentar os
mesmos sintomas dessa raiva.
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Com as medidas de austeridade e benefícios às classes sociais mais
avantajadas promovidas pelo então prefeito, Fernando viu oportunidade de demonstrar o
equívoco de tais políticas e previu suas desastrosas consequências. Assim, aumentou sua
proximidade com a população – leia-se suas projeções inconscientes – e ganhou força
nos movimentos sociais por sempre estar nas ruas procurando a conscientização e
politização da sociedade. Sempre genioso, criticava o papel das políticas neoliberais
aplicadas sem um estudo específico concreto de benefício social, principalmente aquelas
que também foram implementadas nos Estados Unidos e fizeram com que os filhos
daqueles casais do Alabama não tivessem mais condições de financiar a casa própria em
virtude da bolha causada pela especulação e negociação de papeis sem lastro pelos bancos
internacionais.
Questionado sobre sua ideia de se manter na prefeitura mesmo havendo
resultado desfavorável nas eleições, ele sempre respondia: “Estou aqui nas ruas, na
cidade, engajado e petulante, mas isso não significa que eu tenha deixado a prefeitura.
Lá no fundo do gabinete está minha tranquilidade, que só voltarei a encontrar quando
retornar ao cargo de prefeito e puder reconduzir a cidade ao progresso”.
Guilherme Ferreira Leite Belmudes
43
Outubro
Após tempos de espera, cheguei para ficar. Alguns dizem que passo rápido, outros
que tardo a deixá-los. Uns poucos, ainda crentes, teimam em achar que ao meu lado
andam os mortos, sou o mal encarnado. Por fim, temos os esperançosos, trajados em rosa,
tanto faz o tom; do chá ao choque, aceito todos e é a esses a quem dedico meus trinta e
um dias com muito orgulho.
Resolvi escrever para mostrar que, sendo consagrado dessa forma, é importante
lembrar de uma causa da qual já me tornei símbolo. Símbolo da resistência, da luta, da
imensidão unida que, no final das contas, ganha de uma ou outra maneira.
Se sofrem minhas soldadas durante a batalha? Ora, claro! Não há guerra fácil de
ser conquistada! Algumas perdem membros, do corpo ou da família, por vezes pensam
em desistir, afinal sou apenas mais um de doze meses a serem batalhados, mas ao verem
alguém com o rosa, tomam para si a esperança necessária para continuar vivendo.
O campo de guerra estende-se do hospital até a casa, do trabalho ao olhar
impactante dos mais desavisados, porém o que complica são os sentimentos. Um
turbilhão deles, uma mistura de esperança, ódio, rancor, felicidade... Como montanha
russa, sobe e desce, desce e sobe, bem como a vontade de levantar no dia seguinte para ir
mais uma vez às trincheiras. Entretanto, quando a luta finalmente acaba, a paz invade os
corpos delas, sensação de libertação, de que a vida continuará depois de mim.
Ainda não entendo o motivo por alguns acharem que trago azar, ao meu ver, o que
trago é a vontade de viver, por mais um dia, por mais um mês, por mais um ano até que
a contagem se acabe e a vida apenas seja vivida sem data de validade.
Prazer, sou Outubro e, caso esteja enfrentando a minha luta, espero que você
encontre sua paz até meu fim.
Larissa Martinez Arten
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