Post on 26-Jul-2015
Fundação Carlos Chagas
TEXTOS FCC
Departamento de Pesquisas Educacionais
DEPARTAMENTO DE PESQUISAS EDUCACIONAIS
FUNDAÇÃO CARGOS CHAGAS
5/90
DE OLHO NO PRECONCEITO: UM GUIA PARA PROFESSORES SOBRE RACISMO EM
LIVROS PARA CRIANÇAS
Esmeralda Vaiiati Negráo Regina Pahiai pinto
üutubro/1990 SÃO PAULO
FUNDAÇÃO CARLOS CHAGAS
DIRETORIA
Rubens Murillo Marques Diretor-Presidente
Gerhard Malnic Diretor Vice-presidente
Nelson Fontana Margarido Diretor Secretário Geral
Catharina Maria Wilma Brandi Diretora Secretária
Reinholt Ellert Diretor Tesoureiro Geral
Eugênio Aquarone Diretor Tesoureiro
DEPARTAMENTO DE PESQUISAS EDUCACIONAIS
Coordenação
Bernardete Angelina Gatti
DE OLHO NO PRECONCEITO:
I)M GUIA PARA PROFESSORES SOBRE RACISMO EM LIVROS PARA C R I A N w
Esmeralda Vailati Negrão
Regina Pahim Pinto
Ficha Catalográf ica elaborada pela Biblioteca Ana Maria Poppovlc
N E d O , Esmeralda Vailati 6 PINTO, Regina Pahim N296d De olho no preconceito: um guia para professores sobre racismo em
livros para crianças/Esmeralda Vailati Negrão e Regina Pahim Pinto. - São Paulo: DPE/FCC, 1990
62p. - (Textos FCC; 5) Bibliografia: p.58-62 1. RACISMO 2. PRECONCEITO 3. LITERATüRA INFANTO-JUVENIL 4. LIQRO
Titulo DIDATICO 5. GUIA PARA PROFESSORES. I. Pinto, Regina Pahim 11. III. Série
CDU 316.647.8 CDU 82:087.5
SUPZÃRIO
INTRODUÇÃO .............................................................................................. ...................... "....
os DIFERENTES CAMINHOS QUE LEVAM A DIFERENTES INTERPRETAÇ~ES ...... O enfoque do papel da escola .... .. .................................................................. O enfoque da relagão adulto/criança .. ................................................ ...... Análise de conteúdo I .............................................................................................
CATEGORIAS INDICADORAS DA REPRESENTAÇAO DAS ETNIAS ............................ ALGUMAS TENDBNCIAS NA LITERATURA INFANTO-JUVENIL RECENTE .............. A INFLUÊNCIA DAS REPRESENTAÇÕES SOBRE O LEITOR ...................................... O QUJ3 DIZEM AS LIDERANÇAS NEGRAS SOBRE A QUESTÃO .................................. UNA QUESTÃO DIFÍCIL : AVALIAÇAO OU CENSURA? ................................................
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REFE~NCIAS BIBLIOGRAFICAS .................................................................................. 58
INTRODUÇÃO
A opção por escrever este guia para professores tem dois
objetivos: divulgar resultados de pesquisas acadêmicas sobre os prg
conceitos veiculados nos materiais destinados 2s crianças e, prin-
cipalmente, apresentar os instrumentos de análise que permitem re-
velar a presença desses preconceitos, ou seja, oferecer aos mes-
tres um meio para que possam, eles mesmos,efetuar tal análise nos
materiais com que lidam no cotidiano’.
Dirigimo-nos aos professores por reconhecer o papel fun-
damental que esses profissionais desempenham e podem vir a desempg
nhar na luta por uma escola, e por uma sociedade, onde as diferen-
ças raciais possam ser (re)conhecidas e respeitadas.
Um professor, sensibilizado para as questões raciais e
instrumentado para com elas lidar no sentido de denunciá-las, dis-
cuti-las, combatê-las e superá-ias, transforma a escola num espaco
de reflexão e atuação sobre tais desigualdades.
As conclusões de algumas pesquisas, ponto de chegada da
reflexão de alguns estudiosos da questão racial, servirão aqui de
ponto de partida para a reflexão sobre a representação donegronos
materiais didáticos, pois apresentam idéias que nos servirão de pa
no-de-fundo, ou seja, darão as dimensões nas quais se inserem nos
Das colocações.
Como este guia visa organizar informações sobre a questão da discriminação para que o leitor possa operar com as mesmas, optamos muitas vezes por citar de maneira agrupada os textos ou autores que desenvolvem idéias semelhantes, indicando a autoria somente em momentos em que a idéia exige tal destaque.
2
O primeiro dado que gostaríamos de discutir advém do tra -
balho de Fúlvia Rosemberg sobre a educação formal da mulher. Diz a
autora: 'I... a discriminação sexual no plano educacional mudou de
rumo: ela não se efetua mais através do impedimento 2s mulheres de
ascenderem ao sistema educativo, mas se transferiu para seu inte-
rior. Isto 6 , apesar do avanço notável de acesso 2 escolaridade,
ainda persistem diferenças fundamentais nas trajetórias educacio-
nais de homens e mulheres, caracterizando verdadeiros guetos se-
xuais, a despeito do princípio de co-educação entre os sexos. Per-
siste também um aproveitamento diferenciado do nível de instrução
de homens e mulheres no mercado de trabalho, seja quanto 2 sua ade -
quação ãs oportunidades ocupacionais, ou ao rendimento recebido pg
10 trabalho remunerado. E, finalmente, a escola brasileira conti-
nua a reforçar os estereótipos sexuais, não tendo assumido, no seu
interior, uma proposta anti-sexista" (Rosemberg, 1987, p.1-2).
A constatação da autora de que a discriminação de mulhe-
res no sistema escolar não se dã mais em termos de impossibilidade
de acesso 2 educação, uma vez que tal acesso está facilitado pela
expansão de matrículas, mas se dá no interior do próprio sistema,
na medida em que a escola reforça concepções estereotipadas e ati-
tudes discriminatórias, pode também ser extrapolada para a situa-
ção da criança negra nesse sistema, explicando algumas das caracte
rísticas de seu perfil escolar.
Outro ponto a destacar é-nos dado por Carlos Hasenbalg:
"Com relação ao racismo, além dos efeitos das práticas discrimina-
tórias, uma organização social racista também limita a motivação
e o nível de aspiração do negro. Quando são considerados os meca-
nismos sociais que obstruem a mobilidade social ascendente do ne-
gro, 2s práticas discriminatórias dos brancos devem ser acrescen-
tados os efeitos derivados da internalização, pela maioria da pops
3
lação negra, de uma auto-imagem desfavorável. Esta visão negativa
do negro começa a ser transmitida nos textos escolares e está pre-
sente numa estética racista veiculada permanentemente pelos meios
de comunicação de massa, além de estar incorporada num conjunto de
estereótipos e representações populares. Desta forma, as práticas
discriminatórias, a tendência a evitar situações discriminatórias
e a violência simbólica exercida contra o negro reforçam-se mutua-
mente, de maneira a regular as aspirações do negro de acordo com o
que o grupo racial dominante impõe e define como os 'lugares apro-
priados' para as pessoas de cor" (Hasenbalg, 1982, p.91).
ü ponto a ressaltar é que materiais instrucionais veicu-
ladores de discriminações podem ter efeitos negativos na constru-
ção da identidade das crianças negras.
A terceira conclusão que gostariamos de trazer para esta
discussão vem da pesquisa de Franco et al. (1985), que observou os
critérios utilizados por professores de 19 grau da rede pública de
São Paulo para a escolha do livro didático.
Segundo essa pesquisa, 78% dos(as) professores(as) entre
vistados(as) adotam livros didáticos em sua prática cotidiana, sen -
do que, dos 93 professores da disciplina de Português entrevista-
dos, menos de 5% declararam não adotar livro didático.
A constatação de seu intengo USO vem-se somar um outro
dado. Apenas 2,11% dos professores pesquisados que adotam livros
didáticos criticaram tais livros por veicularem discriminações ra-
ciais.
A não consciência dos professores com relação a este as-
pecto dos livros didáticos evidencia a distância existente entre o
cotidiano do professor e o trabalho acadêmico, uma vez que pesqui-
sas e discussões acadêmicas sobre o livro didático têm denunciado
O fato de tais materiais veicularem discriminações e preconceitos
4
contra certas categorias sociais: mulheres, negros, índios, crian-
ças, velhos.
Se o reforço aos estereótipos raciais exercido pela esc2
la - e os livros didáticos desempenham papel de destaque nesta ta - refa - constitui uma das faces assumidas hoje, pela discriminação contra o negro no âmbito educacional; se o(a) professor(a) , agente fundamental do processo educativo, em grande maioria, tem o livro
didático como o principal material instrucional de apoio a suas
atividades pedagógicas e, de uma maneira geral, não está alerta pg
ra os vieses ideológicos do conteúdo de tais materiais, evidencian -
do a inabsorção das denúncias proclamadas pelos trabalhos acadêmi-
cos: então, a discussão sobre o livro didático, os valores por ele
transmitidos e o uso que dele faz o(a) professor(a) passa a ser im
prescindível para a luta por uma escola efetivamente democrática.
Vemos, portanto, o presente trabalho como uma possibili-
dade de estabelecer esta ponte entre o conhecimento adquirido,
através dos estudos acadêmicos sobre as discriminações e os precofi
ceitos veiculados pelos livros didáticos e paradidáticos, e o coti -
diano dos professores.
Portanto, nosso objetivo não 6 só sensibilizar os leito-
res para o papel que vem desempenhando o livro didático na veicula
ção de preconceitos e discriminações raciais, mas também fornecer
subsídios para que os usuários de tais livros possam efetuar uma
avaliação do livro didático que leve em consideração a imagem do
negro por ele transmitida. Por isso, enfatizaremos a estreita rela
ção que se estabelece entre a metodologia de análise utilizada pe-
ias pesquisas acadêmicas e o tipo de resultado alcançado. Esta ên-
fase se deve ã crença de que o arsenal metodológico, instrumento
que, no momento da pesquisa, norteia a entrada nos textos para a
busca do preconceito, pode ser utilizado, pelo público consumidor
dos livros didáticos (e neste público se encontram não só alunos,
5
mas também professores) como um guia para uma leitura crítica
livro.
do
Temos consciência da falta de rigor no emprego dos ter-
mos preconceito e discriminação neste texto. Essa inconsistência,
a nosso ver, reflete tanto a imprecisão de seus significados no
senso comum, quanto a diversidade de sentidos encontrada nos trabg
lhos acadêmicos que tratam da questão racial, uma vez que, em ge-
ral, a definição de tais conceitos advém da concepção teórica ado-
tada pelo autor.
A guisa de exemplo, resumiremos a maneira como alguns
dos autores que lidaram com essa questão concebem esses conceitos.
Para Dante Moreira Leite (1950) , preconceito racial se-
ria o juízo, certo ou errado, não justificado logicamente, que se
faz de uma raça, seja a nossa ou não. Na definição do autor, a
questão da logicidade dos juízos 6 importante para distingair pre-
conceito racial de conceito racial, que ele define comoojuizo cey
to ou errado, justificado logicamente, que se faz de uma determins
da raça, seja a nossa própria, seja outra. No contexto de seu est;
do sobre preconceito racial em livros didáticos de leitura, ele
classifica: como preconceito racial, todo juizo sobre raças emiti-
do pelo autor do livro, que contenha um argumento contraditório do
ponto-de-vista lógico, ainda que o autor procure mostrar a igual-
de das raças; como conceito, todo juízo sobre raças consistente 10
gicamente, ainda que com base em noções erradas. O autor não trata
do conceito de discriminação.
Philomena Essed, no artigo "The Dutch as an everyday
problem" define preconceito racista e discriminação racista, como
desdobramentos de sua proposta teórica, que vê o racismo como "uma
ideologia auto-reprodutiva e uma estrutura através da qual uma ra-
Ca dominante exerce controle sobre outros grupos raciais-6tnicos".
Para ela, o preconceito racista "é uma atitude e um elemento cons-
titutivo das representações sociais dominantes baseadas em falsas
generalizações de atributos valorizadas negativamente, imputadas a
outros grupos raciais-étnicos, com o intuito explícito ou implíci-
to de racionalizar a desigualdade social desse grupos".
Por discriminação racista a autora entende "atos que re-
forçam e (re)produzem as desigualdades raciais e étnicas da estru-
tura social. Em outras palavras, a discriminação racista inclui to -
dos os atos, verbais, não-verbais e paraverbais, que resultam em
conseqUências desfavoráveis para grupos raciais-étnicos dominados.
Portanto, a discriminação racista se define em termos de atos e
suas conseqüências,no contexto macro-estrutural de uma sociedade
racista" (Essed, 1986, p.10-11).
Octavio Ianni, para quem as relações raciais se definem
sobretudo em função das condições econômico-sociais, considera o
preconceito um processo constituído no âmbito de certos tipos de
relações sociais que se alteram continuamente em seus significados
secundários. O preconceito pode fixar-se ou modificar-se em este-
reótipos, atitudes, opiniões, atributos morais, isto é, numa ideo-
logia que subsiste além das condições econômico-sociais, primor-
diais, que o geram (Ianni, 1962).
No contexto deste trabalho, discriminação e preconceito
se referem a representações do negro que vão desde o ignorá-lo, is - to é, não lhe dar a devida importância, até atribuir-lhe tratamen-
to estereotipado, ou mesmo negativo, seja consciente ou inconscien -
temente.
7
os DIFERENTES CAMINHOS QUE LEVAM A DIFERENTES INTERPRETAÇ~ES
Uma primeira versão possível deste guia seria, a partir
de uma análise dos estudos brasileiros que focalizaram a represen-
tacão do negro2 na produçáo destinada 5 criança, sintetizar para o
leitor as principais linhas teóricas e metodológicas que serviram
de fio condutor para estes estudos e, em capítulo 5 parte, trans-
crever os principais resultados a que tais estudos chegaram. O ob-
jetivo seria não só colocar o leitor a par destes dados e do signi
ficado que estes autores atribuem a eles, mas também da metodolo-
gia utilizada em tais trabalhos.
Entretanto, nessa versão, teoria e metodologia se apre-
sentariam desligadas dos dados, cabendo ao leitor integrá-los, ta-
refa nem sempre fácil para quem não está familiarizado com este ti
po de reflexão, e até mesmo impossível, dada a maneira sintética e
simplificada que a discussão destas teorias e metodologias assumi-
ria.
Face a esta situação, resolvemos organizar o guia procu-
rando fazer o leitor "participar", no sentido literal da palavra,
do caminho teórico e metodológico percorrido para se chegar àque-
les dados. Entretanto, esta tarefa constitui um grande desafio , não só porque corremos o risco de simplificar, deixando de lado aE
pectos importantes, mas também porque nossa leitura desses traba-
lhos pode não transmitir fielmente o pensamento e os passos que o
autor percorreu para chegar aos resultados. Mas correremos o ris-
co.
No Brasil, o estudo sistemático da representação das ca-
tegorias étnicas, entre as quais o negro, nos livros didáticos e
de literatura infanto-juvenil, ou seja, a reflexão sobre a maneira
Neste trabalho considerou-se o negro como uma categoria étnica, com base na acepção de Morris (1968) segundo a qual o grupo étnico é, se sente ou 6 tido como interligado por laços de raça ou de nacionalidade ou de cultura.
pela qual esta produção retrata os grupos étnicos, iniciou-se em
1950, com um trabalho de Dante Moreira Leite sobre o preconceito
em livros didáticos de leitura.
Até meados da década de 70, o assunto não despertou a
atenção dos estudiosos, pois nesse meio tempo, apenas três autores
efetuaram estudos sobre o tema. A partir de então, recrudesce,o i=
teresse pela questão, com o surgimento de Uma série de trabalhos a
respeito, principalmente teses acadêmicas, a maioria publicada nos
anos de 1980 e 1981.
Procedendo-se a uma análise dessa produção3, observa-se
que ela difere quanto ao enfoque teórico, a metodologia e o grau
de profundidade com que aborda e interpreta estas representações.
Alguns estudos são apenas descritivos, limitando-se a mostrar como
as categorias étnicas aparecem neste livros, seja através de compa -
rações entre as diversas etnias, ou contrapondo esta representação
com a situação das etnias na nossa sociedade. Há, portanto, um em-
penho em verificar até que ponto estes livros privilegiam determi-
nadas categorias étnicas e retratam as diversas etnias de acordo
com a sua situação na sociedade, sua participação na história.
Metodologicamente, podemos dizer que tais estudos, bus-
cando principalmente descrever ocorrências explícitas de preconcei
to racial, chegaram 5 conclusão de que essa ocorrência 6 muito bai -
xa. Por exemplo, o estudo de Bazzanella (19571, que analisou dez
livros de leitura para alunos da 4s série primária, só constatou
duas ocorrências de situacões em que personagens negras são trata-
das de maneira negativa.
Portanto, cabe aqui um alerta para os mais desavisados:
se procurarmos preconceitos e discriminações explicitamente expres -
sos nos textos, chegaremos ã conclusão de que o livro didático dis -
Para uma revisão mais detalhada dos trabalhos que se dedicaram 2 análise conteúdo de livros para crianças, ver Negrão (1988b).
do
9
pensa tratamento igualitário 6 s diversas categorias raciais, che-
gando até a fazer a apologia da igualdade. Não se deixem levar. O
preconceito nos livros didáticos aparece camuflado. E 6 nesse sen-
tido que o arsenal metodológico pode nos oferecer os instrumentos
necessários para que possamos chegar até o preconceito, para que
possamos enxergá-lo, pois a captação dos estereótipos implícitos
depende do tipo de metodologia utilizada pela pesquisa.
De fato, outros estudos alcançaram um aperfeiçoamento da
metodologia de abordagem, procurando contextualizar as representa-
ções presentes no material analisado, focalizando-as 5 luz de cer-
tas teorias explicativas do sistema educacional, ou de teorias que
privilegiam a relação adulto/criança. Isso permitiu desvendar não
só as formas explícitas de preconceito mas, sobretudo, as formas
veladas. Percebeu-se, então, que a discriminação se manifesta não
só pela maneira como as diversas categorias étnicas aparecem nos
livros, mas também pelo modo como são caracterizadas enquanto per-
sonagens e no papel que estas desempenham.
Explicitando a construção dessas representações, tais es - tudos vêm contribuindo parao entendimento tanto da literatura did5
tica quanto da literatura infanto juvenil.
O Enfoque do Papel da Escola e suas Conclusões
Há um grupo de estudos que abordam estas representações
em função de uma preocupação com O papel que a escola representa
em nossa sociedade, pois sendo os livros didáticos e de recreação
utilizados no contexto escolar, conhecê-los, bem como as represen-
tações das categorias étnicas que eles transmitem ao leitor, rep-
senta uma maneira de entender melhor a escola e, conseqilenternente,
a sociedade em que ela está inserida.
10
Muitos destes estudos se apóiam na chamada teoria repro-
dutivista, abordagem esta que tende a enfatizar o papel de reprods
tora das condições económicas, políticas e sociais exercido pela
educação formal numa dada formação social. Assim, nas sociedades
de classe de formação capitalista como a nossa, onde um grupo res-
trito exerce o domínio sobre todas as instâncias da sociedade, in-
clusive sobre os demais grupos sociais, a fim de evitar que estes
se insurjam contra o processo de dominação, caberia 5 escola, como
instituição, e aos conteúdos por ela divulgados - entre os quais
o livro didático - inculcar a visão de mundo desta classe domina= te que, no entanto, é apresentada como natural e legítima. Nesse
sentido, a escola funcionaria, então, como um aparelho ideológico
contribuindo para a manutenção das relações socias que, na socieda -
de capitalista, se configuram como relações de exploração. Ao mes-
mo tempo, a escola estaria exercendo uma violência simbólica sobre
o alunado das classes subalternas, na medida em que, ao enfatizar
a cultura e os valores da classe dominante, contribui para desen-
volver uma relação de dependência quase sempre imperceptível, para
reforçar as relações de dominação/subordinação entre as classes sg
ciais.
Os estudos que se utilizam deste esquema teórico para in
terpretar as representações das categorias étnicas veiculadas pe-
los livros didáticos e de literatura, em geral, denunciam a ênfase
dos livros em representarem tanto o ponto de vista das classes do-
minantes na interpretação dos acontecimentos da nossa história, na
sociedade que 6 descrita nestes textos, como a participação de
tais grupos nos acontecimentos históricos e no cotidiano da socie-
dade.
Em contrapartida, esses livros tenderiam não só a omitir
o ponto de vista das classes dominadas na interpretação dos aconte -
11
cimentos históricos e na maneira de conceber o mundo, como também
a retratá-la de forma estereotipada, deturpada e até preconceituo-
sal seja na sociedade representada, seja nos acontecimentos histó-
ricos relatados.
Assim, observando certos temas desenvolvidos nesses li-
vros tais como familia, trabalho, diversões, fatos históricos e po -
líticos, que nesse contexto funcionam como unidades4 norteadoras
da análise, tais estudos captaram o tratamento explícita ou impli-
citamente estereotipado atribuído 2 s personagens. Especificamente
no que diz respeito aos negros, os livros os citam no passado, co-
mo se não fizessem parte da sociedade atual, desempenhando os pa-
péis tipificados a eles reservados nesse material: escravo, domés-
tica, contador de estórias.
As relações entre índios e negros, de um lado, e coloni-
zadores, de outro, são despidas de suas contradições e conflitos,
e apresentadas como harmoniosas. E aqui chamamos a atenção para o
estudo de Cerqueira Filho e Néder (1977), que evidencia a necessi-
dade da presença do negro em tais materiais para justificar a crez
ça na não-violência da sociedade brasileira.
A mistificação de certas personalidades como responsã-
veis por processos históricos, além de desestimular atitudes inova - doras, uma vez que não deixa lugar para a participação dos indivi-
duos comuns nos movimentos sociais, apaga da história a participa-
ção de certos segmentos sociais. O modo como a Abolição 6 repres-
tada nos manuais de história exemplifica tal mistificação.
O relativismo cultural que norteia as ciências humanas
modernas, segundo o qual no estudo das diferenças culturais não ca -
Lembramos ao leitor que o conceito unidade de análise tem significado especi fico na metodologia conhecida como anãlise de conteúdo, cujas idêias cen- trais estão aqui explícitadas no irem "Análise de conteúdo", adiante.
12
bem juízos valorativos, não chegou ainda aos livros de história,
pregnados pelo etnocentrismo. A história 6 vista do ponte-de-vista
do branco, europeu, colonizador. E assim que não existe o respeito
2s diferenças culturais entre as nações indígenas - caracterizadas como primitivas - e 2 s diferenças em região e cultura de origem
dos negros africanos. As diferenças e especificidades se anulam sob
os nomes "negros", "índios".
Daí a luta dos movimentos negros pela recuperação da his-
tória e da cultura do povo africano no Brasil. Esta reivindicação
apóia-se na concepção de que tal recuperação acarretaria o fortale-
cimento da identidade da população negra, uma vez que os negros po-
deriam, assim, apropriar-se da história de suas lutas.
O enfoque da relação adulto/criança
Há estudos que, embora não descartem essa função desemps
nhada pela escola e pelos materiais didáticos, enfatizam outros ag
pectos e captam outras nuances implícitas na produção cultural di-
rigida S crianga, para interpretar a representação das categorias
étnicas.
Tais estudos abordam esta produção tendo em vista o fato
de que, através desta representação, se pode captar a imagem que a
sociedade faz da criança, uma vez que esta producão 6 a ela dirigL
da. Portanto, o autor, ao criar estes livros, o faz tendo em vista
aquilo que ele concebe como importante, interessante e necessário
ser transmitido a esta criança leitora e, conseqüentemente, do pa-
pel que a literatura deve desempenhar em relação a ela.
13
Observando as personagens5 (pessoas ou equivalentes de
pessoas como por exemplo animais, objetos que agem como tal) que
aparecem tanto no texto como nas ilustrações, em função de uma sé-
rie de atributos, tais como sua importância, seus comportamentos,
suas características e atividades sociais, duas são as constata-
SÕes fundamentais.
Primeiro, a negros 6 negado o direito 5 existência. O
primeiramente, que isso significa e como se apresenta?6 Tomemos,
as ilustrações:
1. Uma primeira evidência que dá suporte 2 conclusão de
que negros não têm direito a existir na literatura infanto-juvenil
diz respeito 2 interpretação dos dados que mastram a freqüência de
aparecimento de personagens brancas e negras nas ilustrações das
estórias analisadas. Personagens negras aparecem com menor freqüêg
cia nas ilustrações: do total de personagens ilustradas, 57,5% são
brancas e somente 6,2% são negras.
0s dados relativos 2 freqaência de aparecimento tornam-
-se mais reveladores, quando distinguimos as personagens a que chg
mamos de "humanas" das personagens "antropomorfizadas". A denomina -
ção "personagens humanas" pode causar estranheza. Mas esta catego-
ria serve para contrapor personagens que representam seres humanos
ao que chamamos de "personagens antropomorfizadas" - animais, pias tas e objetos aos quais são atribuídas caracteristicas humanas - procedimento muito comum nas estórias infantis.
Quando os dados aqui apresentados não fizerem referência fonte, tratar-se- -á do estudo de Rosemberg (1980), pesquisa da qual as autoras deste artigo participaram enquanto auxiliares de pesquisa. Compõem a amostra deste traba- l h o 168 livros de literatura infanto-juvenil brasileira editados ou reedita- dos entre 1955-1975. A metodologia utilizada foi a análise qualitativa e quantitativa do conteúdo. Três foram as unidades de análise escolhidas: a personagem na ilustração, a personagem no texto e o s comportamentos emitidos e recebidos pelas personagens. Lembramos que, junto com os dados que evidenciam o tratamento discriminatõ- rio das personagens, o leitor encontrará a explicitação das categorias de análise que possibilitam detectar tal tratamento.
14
A classificacão das personagens das estórias analisadas
em humanas ou antropomorfizadas levou 5 captação do tratamento dig
criminatório das personagens negras, quando cruzaram-se as variã-
veis natureza humana e cor-etnia. Observem a configuração do trata -
mento discriminatório através dos dados apresentados nos itens 2,
3 e 4 a seguir.
2. Animais, plantas e objetos antropomorfizados são mais
freqüentemente ilustrados como inadequadamente brancos do que como
inadequadamente pretos (6,5% deles foram inadequadamente represen-
tados como brancos, ao passo que somente 0,4% foram inadequadamen-
te representados como pretos). Inadequadamente brancos são o s ani-
mais, plantas e objetos antropomorfizados que, sobretudo em dese-
nho branco e preto, tenham cor branca sem m a t i z , cor esta incompa-
tível com sua cor real.
O fato de personagens antropomorfizadas serem mais inads
quadamente representadas como brancas evidencia uma tendência ao
branqueamento das personagens na ilustração.
3. Outro dado significativo 6 a inversão observada na
freqüência de personagens negras e brancas, dependendo de sua natu -
reza ser humana ou antropomorfizada.
Personagens humanas:
7 7 , 7 % brancas X 3 , 8 % pretas.
Personagens antropomorfizadas:
35,4 brancas X 61,9% não brancas, das quais 11,4% são
pretas.
Observamos que a grande maioria das personagens humanas
são brancas ao passo que, dentre as personagens antropomorfizadas,
somente 3 5 , 4 % são representadas como brancas.
Esta inversão na tendência a representar personagens hu-
não sendo manas como brancas e personagens antropomorfizadas como
15
brancas pode ser tomada como o reflexo, na ilustração, da tendên-
cia encontrada no texto, de associar personagens não brancas a anL
mais, como, por exemplo, através de comparações "este gorila", ao
referir-se ã personagem negra.
4 . Se, dentre as personagens humanas, distinguirmos os
religiosos, tidos como os mais dignos, veremos que são quase que
exclusivamente representados como brancos.
5. Passando, agora, a observar a representação das persg
nagens no texto, teremos, quanto ã freqüência:
5,8% pretos 72,0% brancos X
1,5% pardos
Isto significa 1 preto para 13 brancos, 1 pardo para 50
brancos.
Dante Moreira Leite, em seu estudo pioneiro, já chamava
a atencão para a não-representação de personagens negras na socie-
dade descrita nos livros.
6. Grande parte das personagens, inclusive personagens
histbricas, não têm sua origem étnica explicitada. Concluimos que
são, muito provavelmente, brancas. As personagens históricas ser-
vem como um meio para testar essa conclusão, já que são as únicas
para as quais 6 possivel buscar informações sobre sua origem étni-
ca fora do texto. As 1187 personagens históricas para as quais ob-
tivemos tal informação eram, de fato, brancas. Ao que parece, a
origem branca 6 subentendida como "normal", e a explicitação da
cor só é necessária nos casos de desvio dos padrões "normais": a
cor branca 6 tomada como padrão, em tais livros. Essa conclusão i5
reforçada pela constatacão de que a imagem do homem branco adulto
6 tomada como representante da espécie e apanágio da raça humana.
Exemplos que confirmam tal constatação são: o corpo humano ilustrz
do nos livros de ciências 6 o corpo de um homem branco, adulto; a
16
ilustração que representa somente partes do corpo, como por exemplo
uma mão, representa a mão de um homem, branco, adulto.
Esta, também, é a conclusão de outro trabalho ao mostrar
que, ao contrário do homem branco, os textos falam dos "hdios" , "negros" e tipos regionais. Essa não-menção ao homem branco 6 inter -
pretada como sendo indicador do domínio do "branco", uma vez que
sua presenga é tão Óbvia que não é necessário falar sobre ele.
A segunda constatação fundamental 6 a de que a negros 6
negado o direito ã individualidade. Os indicadores que corroboram
esta conclusão são os seguintes.
1. Estratégias como a de representar a personagem em pri-
meiro plano numa ilustração, na capa ou em outros lugares de maior
destaque no livro, funcionam como um modo de individualizar as per-
sonagens. Nos livros analisados, entre as representações de grupos
de personagens, predominam grupos masculinos brancos; quando uma
personagem 6 destacada das demais, numa ilustração, ela é mais fre-
qüentemente masculina ebranca. Além disso, praticamente inexistem
personagens pretas ou pardas na capa, Lugar de maior destaque no li -
vro. € como se negros, nessa literatura, existissem somente enquan-
to categoria social, nunca enquanto indivíduos, enquanto pessoas.
2 . Outro indicador a destacar 6 a estereotipia na ilustra
ção da personagem negra. Essa estereotipia faz com que todas as per
sonagens negras se pareçam, porque os traços individuais, que mar-
cam a fisionomia de uma pessoa, são apagados, cedendo lugar a um
traço tipificador.
3. A distinção entre as categorias que, nessa pesquisa,
chamaram-se tipo profissional e atividade profissional permitiu dez
velar, de modo mais nítido, a forma assumiâa pelo preconceito con-
tra a mulher negra.
A personagem tipo, embora ilustrada com suas caracterís-
ticas profissionais, pode ou não estar desempenhando sua atividade
17
profissional na cena ilustrada. Quando comparamos as ilustrações
de mulheres negras adultas representadas como tipos profissionais - a quase totalidade delas são empregadas domésticas - com as ilus- trações em que a personagem está efetivamente trabalhando, consta-
tamos que somente 30% das mulheres negras representadas como domés
ticas estão realmente desempenhando o trabalho. Isto 6 , a mulher
negra, enquanto pessoa, com sentimentos e projetos, inexiste no li -
vro didático; o que existe 6 a empregada doméstica negra, que não
tem família e cuida do bem-estar da família branca. Esta é, tam-
bém, a constatação do trabalho de Nosella (1978). Outra personagem
tipo, nesses textos, é o negro escravo.
4. A estereotipia do traço, na ilustração, corresponde o
modo como a narrativa nomeia as personagens: no texto, as persona-
gens negras não são designadas por seu nome próprio, mas sim por
sua cor-etnia. Assim, elas não são o José e o Pedro, por exemplo,
mas são o "negro", o "escravo".
5. Quanto 2 importância dada ao papel desempenhado pela
personagem na trama, constatou-se que as personagens negras têm
perfis menos elaborados, não desempenhando a função de herói. Apa-
recem mais na condição de mortas, o que não possibilita seu desen-
volvimento na estória.
6. Ao tentar aprofundar a caracterização e os comporta-
mentos de personagens negras, obteve-se mais um elemento, mais um
indicador que compõe a face do preconceito, submersa na trama dos
textos.
Pretos e pardos expressam suas emoções com maior freqüên - cia que brancos, sendo que, para pretos, essas emoções tendem a
ser mais negativas do que positivas. 0s pretos aparecem como mais
agressivos do que os brancos, sendo que também aparecem como emi-
tindo o comportamento agressivo matar mais freqüentemente.
18
As mulheres negras ocupam a primeira posição na emissão
de comportamentos positivos, mas recebem,unicamente, comportamentos
negativos. Porém, a conclusão, possível ã primeira vista, de que a
mulher negra estaria expressando sua afetividade é logo falseada,
uma vez que a mulher negra compõe o grupo que ocupa o 4 Q posto em
contatos fisicos positivos e nunca é representada comochorando. Sua
expressão de emoções revela-se muito mais como cuidado, zelo, mais
uma característica a compor o tipo empregada doméstica, metáfora
fundamental da mulher negra na literatura infanto-juvenil.
Mais um dado: as personagens negras ocupam os níveis mais
baixos nas escalas ocupacionais (ocupações manuais).
Mas, paradoxalmente, ao lado destas representações este-
reotipadas e preconceituosas, percebe-se muitas vezes o empenho de
autores de livros infantis em passar para seu leitor certos valores
considerados desejáveis para sua formação. Especificamente no que
diz respeito 2s diferenças étnico-raciais, há uma preocupação em e=
fatizar o respeito pelas diferenças, em desenvolver no leitor uma
consciência democrática, enfim, em tornar o livro um veículo de
abertura, sela através da fala das personagens, do narrador da estÓ -
ria (que pode ser uma personagem da trama, ou exterior 5 trama, 2s
vezes até. o próprio autor), seja através das declarações de inten-
ções muitas vezes expressas nos prefácios dos livros, ou ainda, se-
ja através da própria estrutura da estória, isto 6 , quando a estó-
ria 6 construída para passar uma mensagem que, neste caso, 6 uma
mensagem de igualdade.
E justamente esta contradição - de um lado, uma represen - tação estereotipada de certas categorias étnico-raciais ou sua omiç
são e, de outro, uma preocupação em passar uma mensagem de igualda-
de, de respeito 5 s diferenças - que permite, segundo alguns estu-
diosos, desvendar o papel que a literatura infantil representa e a
própria concepção de criança que a subsidia.
19
Ela seria, então, uma comunicação entre iguais e desi-
guais. Entre iguais, na medida em que o autor tende a se dirigir a
um leitor com o qual ele se identifica em termos de classe social,
de condição étnico-racial, de cultura. Enfim, um leitor que parti-
lha de sua visão de mundo, omitindo deste universo ou apresentando
de modo deturpado outras visões, outros pontos de vista dos quais
ele, por razões de classe social, de categoria racial e, mesmo de
formação, se encontra afastado. E justamente neste nível que emer-
gem as discriminações em relação 5s categorias étnicas não-bran-
cas, 5 sua cultura, 5 sua história, pois o autor, em geral branco
e de classe média, tende a privilegiar, em sua produção, o univer-
so do homem branco de classe média, no qual as categorias étnicas
não-brancas participam apenas esporádica e secundariamente.
Porém o autor, devido 2 diferença etária em relação a
seu leitor, invariavelmente também se coloca como seu educador e
não como seu interlocutor, privilegiando nesta situagão o adulto
futuro que a criança representa, portanto, um ser a ser educado.
Daí o didatismo que impregna a produção literária destinada 2 in-
fância, presente desde a literatura didática, da qual ele consti-
tui a própria essência, mas também na literatura de recreação. Há,
portanto, uma preocupação em ensinar aquilo que se considera dese-
jável para o leitor. Neste sentido esta literatura seria uma comu-
nicação entre desiguais.
Ainda dentro da orientação que focaliza a dinhica das
relações adulto/criança subjacente 5 produção cultural destinada 2
infância, os estudiosos lembram que a diacronia que caracteriza es -
ta relação também explicaria, em parte, as características assumi-
das pela representagão das categorias étnico-raciais neste mate-
rial.
A diacronia, segundo esta análise, transparece no descom -
20
passo entre o tempo do adulto, nesse caso o autor, e o tempo de vi-
vência da criança leitora, na medida em que, nesta interaçáo, o au-
tor privilegia o adulto futuro que a criança representa, ou a crian
ça eterna, atemporal. Esses dois pólos da relação se manifestam na
mensagem, ora através da preocupação do autor com a formação da
criança - daí a presença dos ensinamentos, das mensagens que procg ram passar idéias de igualdade e de respeito 2s diversas etnias - ora pela ausência de dinamismo, isto é, por uma certa tendência ao
passadismo e mesmo por um certo anacronismo dos conteúdos, como se
eles fossem dirigidos a um ser a-histórico, eterno. Nesse sentido,
então, os conteúdos dos livros dirigidos 2 criança tenderiam a se
mostrar defasados em relação 5 dinâmica da sociedade, o que contri-
buiria para agravar o clima discriminatório que envolve certas cate -
gorias sociais.
No que diz respeito, por exemplo, 2 representação das ca-
tegorias étnico-raciais, estes conteúdos náo só reproduziriam as
discriminações vigentes na sociedade mas, devido a sua tendência ao
passadismo, tenderiam também a privilegiar imagens que não mais re-
fletem a realidade das relações étnicas como, por exemplo, a tendên -
tia em representar o negro como escravo, como preto velho, e a ne-
gra como a mãe preta.
A riqueza das abordagens que se centram na relação adul-
to/criança reside no fato de que elas não se limitam a apontar a
presença de discriminações ou omissões na maneira como as catego-
rias étnicas são representadas nos livros didáticos ou de recreação
mas, sobretudo, em enfatizar as contradições do texto no que diz
respeito a esta representação. Ao contrapor o posicionamento do au-
tor a respeito das diferenças étnicas 2 maneira pela qual ele as
representa nas estórias, nas ilustrações, nos exercícios, estas anij
lises mostram que há uma distância entre aquilo que 6 declarado a
21
nível das intenções, das preleções - momento em que o autor assu- me explicitamente a função de educador - e aquilo que transparece nas estórias e nas ilustrações que ele'cria.
A percepção destas características que permeiam a rela-
ção autorlleitor, enfim, a relação adultolcriança, que, em Última
análise, 6 uma relação educadorleducando, levou os estudiosos inte -
ressados na representação das categorias étnicas na produção cultE
ral destinada 2 criança a chamarem a atenção para um aspecto que
tem sido relegado ou pouco enfatizado por aqueles que se preocupam
sobretudo com o papel reprodutivo da escola: o papel desempenhado
pela escola e pelo educador não 6 linear e, muitas vezes, se reveg
te de contradições e ambigüidades que escapam 5 abordagem reprodu-
tivista.
Mais ainda, estes estudos abrem a possibilidade para a
apreensão das conseqüências da peculiaridade da relação adulto-
-criança na própria estrutura narrativa e na construção das perso-
nagens de tais textos.
Desta forma, tal análise permite desvendar como o coti-
diano e a experiência da criança negra estão alijados do ato de
criação das personagens e do enredo desta literatura, ou seja, es-
tas análises mostram como a discriminação está presente na própria
definição deste gênero de literatura. De acordo com alguns estudio -
sos , somente quando esta literatura incorporar a visão de mundo e
a perspectiva do ser negro 6 que poderá se estabelecer uma comuni-
cação de igualdade também com o leitor negro. Neste sentido, não
bastaria apenas retirar do texto os preconceitos e as discrimina-
ções, mas criar personagens negras, com sentimentos e vivências
próprias. Os defensores deste ponto de vista argumentam que os li-
vros, que têm-se mostrado sensíveis 5 questão da discriminado ou
têm-se proposto a discutir questões relativas ao negro, ainda o €a -
22
zem na perspectiva do branco, isto 6 , ainda se dirigem a um leitor
branco, levando-os a conhecer e a refletir sobre os problemas en-
frentados pelo negro.
Esta apresentação esquematizada das abordagens teóricas
que têm sido adotadas nos estudos sobre a representação das catego-
rias étnico-raciais nos livros didáticos e de literatura destinados
5 infância, como toda a esquematização, não reflete as nuances, en-
fim, toda a riqueza dessas abordagens. Assim, encontramos estudos
que adotam simultaneamente mais de um enfoque teórico, bem como es-
tudos onde se mesclam aspectos das várias orientações teóricas.
Análise de conteúdo
Procuraremos, aqui, detalhar um pouco melhor as fases en-
volvidas no processo de coleta de dados e análise desta literatura.
Em geral, nestes estudos, empregam-se variações da chama-
da técnica de análise de conteúdo7 que nada mais é do que uma leitu
ra que se faz dos textos e ilustrações presentes nestes livros com
determinados cuidados, isto 6 , através da categorização de partes
da mensagem contida nos textos e ilustrações, a fim de desvendar
significados, inclusive, significados pouco claros.
-
Este processo compreende várias operações. Assim, o pes-
quisador, tendo em vista determinada problemática (o papel represe=
tado pela escola em nossa sociedade; a imagem da criança que está
subjacente ã literatura didática e de recreação) define8:
Tendo em vista os objetivos deste artigo, apresentamos uma descrição esquema- tizada da metodologia de análise de conteúdo, evitando entrar em detalhes so- bre as diversas nuances que ela envolve, as suas limitações, as restrições que lhe têm sido colocadas, bem como sobre as alternativas propostas para a anãli se de textos. Para o leitor que tiver interesse em se aprofundar no tema indi camos o livro de Laurence Bardin, 1977.
Esta definição é determinada tanto pelos objetivos que o pesquisador tem em mente, suas hipõteses, pressupostos teõricos, como pelas caracterfsticas do material que está sendo analisado.
- o aspecto ou os aspectos específicos da mensagem
serão selecionados para análise, o que comumente denominamos
23
que
uni- - dade de análise. A unidade de análise pode ser o tema, isto 6 , de-
terminados assuntos presentes nas ilustrações ou no texto; a perso -
nagem, isto 6 , equivalente de pessoa, categoria aqui tomadanum sen -
tido mais geral do que lhe é atribuído pela teoria literária; ou a
própria palavra, que pode revelar características do emissor, de-
pendendo do significado que este lhe atribui:
- as dimensões ou categorias através das quais a unida- de de análise será considerada (por exemplo, pode-se considerar a
freqüência, o papel desempenhado, a profissão da personagem se
"personagem" for a unidade de análise escolhida);
- a parte da mensagem, ou seja, o contexto que servirá
de suporte para a análise. Assim, a unidade de análise pode ser
considerada no texto ou nas ilustrações, em abas simultaneamente,
ou mesmo nos exercícios, quando se trata de livros didáticos.
Para que não haja dúvidas quanto 2 identificação das uni -
dades de análise no contexto escolhido e sua classificação nas ca-
tegorias, o pesquisador que se utiliza desta técnica elabora, em
geral com base numa amostra do material que será analisado, os cha -
mados manuais de análise e coleta de dados para cada contexto em
que a unidade de análise será considerada. Nesses manuais, além
da definição exaustiva da unidade de análise, das categorias e do
contexto, constarão também as regras que definem a maneira pela
qual as unidades serão detectadas na mensagem e classificadas den-
tro das categorias.
A elaboração destes manuais invariavelmente compreende
um longo processo até a versão definitiva, durante o qual as cate-
gorias de análise são formuladas, definidas e redefinidas inbe-
ras vezes para se adequarem ao material que será analisado. A uti-
2 4
lização destes manuais 6 importante na medida em que eles garantem
ao pesquisador que a coleta dos dados seja feita de modo objetivo
e sistemático, isto é, de acordo com regras determinadas.
Depois de elaborados e testados os manuais, passa-se 2
fase da coleta e classificação dos dados contidos na mensagem. De
posse destes dados é que o pesquisador finalmente passará 2 fase
de análise propriamente dita, quando então os agrupa, compara e di - mensiona em relação ao todo.
Nesta fase, em geral, o pesquisador se utiliza de proce-
dimentos quantitativos, isto é, aplica aos dados um tratamento es-
tatístico: verifica a freqüência, extrai médias, compara os dados
com o auxílio de testes estatísticos. Quando não há uma preocupa-
ção com a quantificação, isto é, quando o dado é coletado e inter-
pretado simultaneamente, o pesquisador procede ao que se chama uma
análise qualitativa. No entanto, mesmo que os dados não sejam sub-
metidos a um tratamento estatístico sofisticado, quase sempre se
considera a freqüência, que 6 significativa não só porque eviden-
cia aspectos recorrentes mas também aspectos poucos freqüentes ou
ausentes, muito relevantes para a análise. Somente através de to-
das as operações aqui descritas é que o pesquisador terá uma visão
global dos aspectos que ele se propôs a analisar na mensagem, bem
como de seu significado relativo.
Deste modo, através da utilização desta metodologia se
consegue não só relativizar aquilo que .Z primeira vista pode pare-
cer discriminatório, mas também captar certas características dos
textos que se configuram como discriminatórias apenas quando inter
pretadas num contexto mais amplo, enfim, quando são comparadas en-
tre si.
-
Como a análise de conteúdo possibilita ao pesquisador vá -
para
aspecto
rias opções quanto ao aspecto da mensagem que será escolhido
análise, bem como quanto 2 parte da mensagem em que este
25
será considerado, encontramos grandes variacões nos trabalhos que
utilizam esta metodologia.
Através dessa esquematização procuramos mostrar todas as
fases envolvidas na utilização da técnica de análise de conteúdo.
Entretanto, na prática, nem sempre os estudos que a utilizam se-
guem todas as etapas, ou pelo menos, não explicitam para o leitor
as regras que estão subjacentes ao processo de coleta e análise
dos dados. Há casos, inclusive, em que o autor limita-se a proce-
der a uma análise impressionista da mensagem, isto é, uma análise
não sistemática, portanto sem qualquer rigor metodológico, e em
que, via de regra, os aspectos apontados têm a função mais de con-
firmarhipótesesprévias do que propriamente de proceder a uma ans
lise.
Na maioria das vezes, os conteÚdos são analisados tendo
como finalidade tecer criticas ou fazer inferências sobre os prodz
tores desta mensagem: os autores e, indiretamente, a sociedade que
eles representam, ou mesmo a escola que, ao adotar estes livros,
endossa seus conteúdos. Neste sentido, os estudos se referem 5 in-
fluência que eventualmente estes conteúdos terão sobre o leitor
apenas tangencialmente, ou sob a forma de hipótese, pois a decodi-
ficação que o leitor irá efetuar do conteúdo não está sendo objeto
de análise. Este cuidado metodológico, entretanto, nem sempre está
muito claro, e ãs vezes nos deparamos com estudos que focalizam o
conteúdo, mas discorrem sobre o impacto da mensagem no leitor, sem
se dar conta de que um estudo que se propusesse a esta tarefa deve
ria se utilizar de outra metodologia, enfim, deveria não sÓ focali -
zar as mensagens, mas também a maneira como ela 6 percebida pelo
leitor.
26
CATEGORIAS INDICADORAS DA REPRESENTAÇÃO DAS ETNIAS
A miniicia dos dados aqui arrolados teve por objetivo com -
provar que até mesmo textos que assumam explicitamente o ponto de
vista da igualdade racial muitas vezes trazem embutidos em sua tra -
ma um tratamento sistemático e consistentemente discriminatõrio pa -
ra com as personagens negras.
Como o obletivodo capítulo anterior foi não só mostrar
os principais resultados das pesquisas, que apontam a caracteriza-
ção das personagens negras nos livros didáticos e nos livros infan
to--~uvenis, como também evidenciar os procedimentos de análise que
permitem acesso a tais resultados, cremos ser Útil para o leitor
apresentar um roteiro contendo um conjunto de categorias de análi -
se, que podem constituir importante indicador sobre a representação
das Categorias étnicas e, conseqüentemente, dos estereótipos e dis -
criminações veiculadas pela produção cultural destinada 5 infân-
cia.
-
Muitas dessas categorias, embora desenvolvidas especifi-
camente para livros didáticos e de literatura infantil, prestam-se
para a análise de outros produtos culturais destinados 2 infância,
tais como histórias em quadrinhos, livros didáticos de história e
mesmo propaganda veiculada pelos meios de comunicação. De qualquer
modo, elas representam uma das possibilidades de análise que não
esgota de maneira alguma todas as facetas desta representação. Nos -
so objetivo, ao apresentá-las, 6 iniciar o leitor na reflexão so-
bre o tema; certamente, a partir destas informações, o leitor terá
maior possibilidade de descobrir outros aspectos desta representa-
ção.
Uma das questões que surgem para aquele que está interes
aado em investigar como estes livros representam as etnias é veri-
-
Eicar qual o destaque, a importância que o autor da estória e O
ilustrador atribuem às etnias.
27
Neste sentido, uma das opcões possíveis 6 eleger como
unidade de análise as personagens, na medida em que elas consti-
tuem o equivalente mais próximo de pessoa. Sua importância se con-
figura de várias maneiras, seja no texto, seja na ilustração.
No que diz respeito 2 ilustração, podemos observar, por
exemplo, a freqüência com que as personagens das diferentes etnias
aparecem:
- no conjunto das ilustrações do livro; - nas ilustrações que aparecem em local de destaque, cg
mo por exemplo, as capas dos livros;
- em posição de destaque na ilustração, isto 6 , em pri-
meiro plano ou em cloçe, em tamanho maior que as de-
mais, ou numa posição em que todas as atenções das de
mais personagens ilustradas se voltam para ela;
- como representantes da espécie (esta característica 6
detectada na composição étnica dos grupos extensos,
como por exemplo, as multidões que aparecem nas ruas
de uma cidade, os alunos de uma escola, os espectado-
res de um evento ou das personagens que representam a
humanidade) ;
- como inadequadamente brancas, isto 6 , personagens
(principalmente animais antropomorfizados) que, por
sua natureza, não seriam brancas, mas que são repre-
sentadas como tais.
O tratamento estético dispensado 2s diferentes etnias 6
outro aspecto importante de sua representação. Neste sentido, é in - teressante observar a freqüência relativa com que as personagens
das diferentes etnias são ilustradas de maneira grotesca ou este-
reotipada. Por exemplo, determinados ilustradores tendem a retra-
tar o negro de forma grotesca, com determinados traços físicos ex -
tremamente marcados, ou a representá-lo como tipo. I? muito comum
2 8
a mulher negra aparecer usando lenço na cabeça e aventaltsem estar
realizando trabalho doméstico.
No texto, pode-se captar a importância das etnias atra-
vés da freqiiência relativa com que brancos e negros:
- são descritos no texto: - recebem um nome próprio ou são tratados através de 02
tras denominações como a cor, a profissão, a função
familiar que desempenham, ou mesmo por um apelido.
T e r um nome próprio significa ter sua identidade e
individualidade preservadas. Personagens nomeadas por
seus atributos evidenciam sua característica de perso - sonagem tipo;
- desempenham papéis de importância, papéis secundários ou constituem apenas pano de fundo na trama da estó-
ria, isto é, são apenas citados, praticamente não de-
sempenhando qualquer atividade importante para o de-
senvolvimento da estória;
- aparecem individualizados ou em grupos. Outro indicador de importância no texto 6 a freqüência
com que as personalidades de diferentes etnias, que se destacaram
na vida pública - as personagens históricas e famosas com existên -
tia exterior ao texto - são citadas ou fazem parte da trama da es - tória.
As atividades profissional e escolar desempenhadas pelas
personagens também funcionam como indicadores importantes da repre - sentação das diferentes etnias, revelando em quais atividades elas
se concentram e como participam do sistema educacional. Observar a
freqüencia relativa com que aparecem representadas ou caracteriza-
das como profissionais e como escolares também pode ser relevante,
quando comparamos essas informações 2 realidade profissional e edg
@aciona1 das diferentes etnias em nossa sociedade.
29
Por outro lado, as personagens das diferentes etnias que
aparecem no texto e na ilustração desempenham várias atividades,
atuam em várias áreas, expressam emoções, agressividade, passividg
de, interagem com outras personagens. Todo este conjunto de compog
tamentos são indicadores importantes para sua caracterização, na
medida em que nos permitem traçar seu perfil psicolõgico, observar
sua vivência no contexto familiar, sua participação nas esferas de
poder e sua atuação na esfera profissional, doméstica e intelec-
tual.
A tendência a identificar-se a cor negra com o negativo,
com a sujeira, com a maldade, pode transparecer no texto através
da associação desses atributos com as palavras negro e preto ou
com personagens negras. A nossa literatura registra muitos desses
exemplos e 6 importante estar atento para estes detalhes, que embg
ra possam parecer irrelevantes, contribuem para sedimentar o clima
de negatividade e inferioridade que envolve o negro.
O conjunto de categorias de análise aqui resumidos cons-
titui-se num guia para captar o modo como as etnias são caracteri-
zadas nos livros infantis. Sua utilização para a análise de um li-
vro específico adquire significado quando os resultados desta aná-
lise são comparados aos dados de análise de outros livros, ou são
referidos ao conjunto de conhecimentos que j á se acumulou a respeA
to da representação das categorias étnicas nos livros infanto-juvg
nis. Pois 6 a sistematicidade no modo de representação que configu
ra o caráter discriminatõrio do conteúdo analisado.
Neste contexto, muitas destas categorias de anãlise fun-
cionam, também, como um lembrete, no sentido de nos alertar para
outras possibilidades de representação. Um exercício interessante
seria comparar a maneira como um certo autor retrata as etnias ,
com a vivência que os membros de uma determinada sociedade têm da
realidade que os cerca.
30
Além das categorias de análise citadas, vários outros a2
pectos podem funcionar como indicadores importantes para configu-
rar a representação das catego'rias étnicas nos livros. Muitos li-
vros didáticos, bem como livros de literatura infanto-juvenis, tra -
tam de acontecimentos históricos. Neste sentido, deve-se estar
atento para a maneira como as etnias participam desses acontecime;
tos e, se possível, compará-la com a maneira pela qual os livros
didáticos de história retratam esta participação.
- ALGUMAS TENDENCIA.~ NA LITERATURA INFANTO-JUVENIL RECENTE
A discussão teórica e os dados apresentados nos capítu-
los anteriores evidenciam a contradição presente nos textos infan-
tis,entre uma caracterização estereotipada e discriminatória das
personagens negras e um discurso que explicitamente defende a
igualdade racial.
Face a esse quadro, e j á que os estudos até aqui discuti
dos analisam livros publicados até 1975, cabe perguntar o que acoE
teceu no material mais recente. E especialmente, o que aconteceu
nessa literatura com relação â discriminação racial.
Com o intuito de responder a esta pergunta, efetuamos um
levantamento de obras segundo os seguintes critérios: obras tendo
negros como personagens principais ou obras que, de alguma manei-
ra, abordassem a questão racial. Como resultado, mais de cem obras
reunidas. Espanto? Não. Dúvida. Qual o significado deste boom de
personagens negras no contexto da reflexão sobre literatura infan-
to-juvenil?
Se os livros coletados seguiram o critério "ter negros
como personagens principais" e se esta primeira coleta reuniu mais
de cem livros, poderíamos concluir que a literatura infanto-juve-
31
nil passou por uma mudança, sendo que uma das conclusões apontadas
no capítulo anterior - as personagens negras não têm direito a
existência nesse material - não mais se aplica. Nestes novos li-
vros, as personagens negras aparecem, desempenham papéis princi-
pais, são ilustradas na capa. O caminho, então, 6 tentar observar
como são caracterizadas tais personagens e de que tipo de estórias
participam.
-
Uma primeira leitura de alguns livros desta nova amostra
já aponta para algumas conclusões.
Em 0s quitutes de Luanda9, obra premiada em 1985 pela Bi -
blioteca Internacional da Juventude de Munique, a personagem prin-
cipal é Luanda, menina negra que tem por sonho conhecer a avó, fa-
lecida antes mesmo de seu nascimento.
Na fala do narrador, criticas explícitas 2 situação do
negro no Brasil: "Dona Conceição, quando viva, foi quituteira fi-
na. Isto não deve assombrar ninguém, pois as negras do Brasil pas-
saram muitos e muitos anos nas cozinhas dos brancos ricos. Cozinha -
vam, e lavavam, e passavam, e amamentavam. E quando não cozinhavam
paraospatrões, comsobras da CasaGrande faziamcomidana senzala. Foi
assim que inventaram essa delícia de nome feijoada" (Osquitutes de
Luanda , s . p. ) . Quanto 2 caracterizacão das persònagens, apesar de o tez
to dar 2 crianca negra e sua família (neste texto as personagens
negras têm família) o papel de heroína, em torno de quem a trama
se desenvolve, as antigas fÓrmulas, que resultam na estereotipia,
são empregadas: embora tenha um nome próprio - Luanda - a perso- nagem 6 constantemente referida corno a 'pretinha", a "crioulinha",
"a negrinha", "a negrita"; a avó, que já era cozinheira na Terra,
continua a ser cozinheira no céu e o marido, por sua vez, no céu
LESCANO, Jorge. Os quitutes de Luanda. Curitiba, Criar, 1983.
32
6 mordomo; na ilustração da avó, a sempre presente estereotipia na
representação da mulher negra-empregada doméstica: gorda, beiçuda,
lenço na cabeça, argola na orelha, sempre usando avental, mesmo
sem estar realizando trabalho doméstico. E mais, ao realizar sua
fantasia de conhecer a avó, a heroina transforma seu sonho em rea-
lidade: "Agora, a negrinha faz doces e salgadinhos que viram a ca-
beça das crianças do bairro, e dos pais das crianças também. Agora
todos sonham com os quitutes de Luanda" ( O s quitutes de Luanda, s.
P. 1 . Luanda perpetua o destino atribuído 2 negra em nossa socieda- de.
As personagens negras conseguiram o direito a existir.
Porém, são ainda personagens pouco complexas, caracterizadas pelos
mesmos traços estereotipados, tomando parte em estórias demonstra-
tivas. são personagens cuja existência só se justifica enquanto
exemplificadora de certos comportamentos. Assim como os negros es-
tão presentes nos livros didáticos quando estes se referem às ra-
ças formadoras do povo brasileiro para exemplificar sua coexistên-
cia harmoniosa, as personagens negras nos livros atuais exemplifi-
cam certos temas. assim que Chico, menino negro, vive com Car-
los, menino branco, as Mandingas da Ilha Quilombalo, para que Car-
10s aprenda a respeitar o amigo e descubra a importância de alcan-
çarmos nossos objetivos por meio do próprio trabalho. Ou ainda, 6
através de Bino, menino negro, que o leitor 6 convidado a conhecer
a diversidade cultural do povo brasileiro, em Do outro ladotemse-
gredos l l .
Estudiosos j á denunciaram que a grande maioria dos tex-
tos produzidos para crianças e jovens caracterizam-se por um dis-
curso utiiitáriolz, ou seja, textos nos quais a preocupacão em
I o MACHADO, A.M.
l 1 MACHADO, A.H.
Mandingas da Ilha Quilomba. Rio de Janeiro, Salamandra, 1983.
Do outro lado tem segredos. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1985.
l2 O termo utilitãrio retoma, diretamente, o trabalho de Edmir Perrotti.
33
transmitir teses e ensinamentos acabou enbrenhando-se na própria
estrutura narrativa (como por exemplo, o predomínio de narradores
intrometidos, que tudo sabem, tudo vêem), determinando a natureza
deste gênero de literatura, dele eliminando o caráter estético prq
prio aos discursos artísticos.
Se o discurso da literatura infantil 6 utilitário porque
seus mecanismos estruturais estão voltados para o objetivo de edu-
car, podemos dizer que esse discurso 6 também racista, uma vez que
os mecanismos narrativos utilizados na criação e caracterização de
personagens discriminam as personagens negras.
Mais do que personagens construidas por meio de poucos
traços estereotipados, as personagens negras na literatura infan-
to-juvenil mais recente parecem desempenhar uma função determina-
da: 6 através delas que o autor-educador discute e passa atitudes
frente a temas polêmicos, importantes na formação de crianças e
adolescentes. Especificamente com relação 5 literatura para j o-
vens, encontramos nos livros mais recentes um grande número de per
sonagens femininas negras que,ao terem sua sensualidade explorada,
abrem a possibilidade de incorporação de certos temas tabu, tais
como gravidez na adolescência e aborto.
Portanto, o direito G existência não lhes garantiu o di-
reito 5 individualidade. Enquanto os livros infantis falarem som-
te para as crianças brancas, as personagens negras ou não existi-
rão, ou existirão enquanto motivadoras para o desenvolvimento de
certos temas, enquanto veículo para a educação da criança branca.
3 4
A INFLUENCIA DESSAS REPRESENTAÇOES NO LEITOR
No segundo capítulo j á nos referimos, ainda que muito ra -
pidamente, 6 influência dos conteúdos presentes nos livros e mate-
riais didáticos sobre a criança leitora, quando criticamos OS estu -
dos que, embora analisando os conteúdos em função de seu emissor,
isto 6 , de quem os produziu, fazem afirmações sobre o receptor, ou
seja, o leitor das mensagens contidas nos livros. e importante sa- lientar, entretanto, que esta observação diz respeito especifica-
mente ?i incorreçao metodológica implícita neste procedimento, por-
que, subjacente aos estudos que focalizam os conteúdos dos livros
infantis, especialmente a representação das etnias, está sempre a
preocupação com a criança leitora, enfim, com a influência que es-
tas representações irão exercer sobre ela. Isto 6 , há sempreopreg
suposto de que haverá algum tipo de influência, embora através da
metodologia empregada nestes estudos não haja condições para se fg
zerem afirmações sobre as características da decodificação que o
leitor irá realizar.
Deste modo, educadores comprometidos com uma educação dE
mocrática lutam para que estas representações sejam ao mesmo tempo
diversificadas e o menos deturpadas possíveis. Enfim, para que OS
livros se constituam realmente em veículos de abertura para o mun-
do, de formação de mentalidades democráticas.
No Brasil, desconhecemos estudos sistemáticos sobre a ig
fluência dos conteúdos dos livros no receptor. Porém, depoimentos
de negros e de professores, embora não específicos sobre o tema,
indiretamente nos levam a pensar sobre a possível reação do leitor
face a um conteúdo discriminatõrio. Militantes negros, ao recorda-
rem sua época de escola, lembram o mal-estar que sentiam durante
as aulas em que o tema discutido era a escravidão, nem sempre tra-
tada de forma adequada. Professores também confirmam esta reação,
35
bem como sua dificuldade em abordar o tema sem ferir a suçceptibi-
lidade do aluno negro.
Em outros países, entretanto, a reflexão sobre a influên -
tia dos livros sobre o leitor infantil encontra-se mais sistemati-
zada. Estudiosos que se dedicam a este tema mostram que esta preo-
cupação se acentuou principalmente após a 13 Guerra, momento em
que se colocou mais intensamente a necessidade de um entendimento
entre as raças, religiões e nacionalidades. Desde então, foi se so -
lidificando a crença de que as atitudes da crianca podem ser afeta -
das por suas leituras, sendo que, mais recentemente, essa influên-
cia 6 aceita quase que axiomaticamente por pais, professores, bi-
bliotecários e editores.
Por outro lado, pesquisas realizadas nos Estados Unidos,
por exemplo, vêm demonstrando que os estudantes que entram em con-
tato com livros representando as etnias não brancas de uma maneira
positiva, ou com livros e materiais multiculturais e multirra-
ciaiç isto é, preocupados em valorizar as diferentes culturas e
raças, tendem a mostrar uma atitude mais favorável a estes grupos
e a estas culturas do que os estudantes que não mantiveram este
contato. Isto também ocorre com os que tiveram a oportunidade de
conhecer a história desses grupos. Não só os alunos brancos passam
a encará-los de modo mais favorável, como os alunos pertencentes a
estes grupos tendem a se ver de modo mais positivo.
Porém, os estudos também nos chamam a atenção para o fa-
to de que esta influência não é linear nem direta, sendo mediada
por uma série de fatores. Assim, as crianças tenderiam a interpre-
tar o que lêem em funcão de suas atitudes, de suas idiossincra-
sias. Além disso, o impacto de um livro sobre uma pessoa depende
muito de seu nível de conhecimento sobre o tema que está sendo fo-
calizado. Neste sentido, parece que quanto menor o domínio do lei-
tor sobre um determinado assunto, maior a possibilidade de influêg
36
cia. No que diz respeito aos valores, estudos realizados espeficifi -
camente em relação & mídia, mas que podem ser extrapolados para os
livros, mostram que a influência tende a ser menor naqueles temas
sobre os quais os pais têm pontos de vista determinados, enfim, em
que os pais servem como modelos.
Ainda no que diz respeito 2 influência, parece que a ati-
tude do professor tem grande importância. Estudos que levaram em
conta esta variável mostram que as mudanças positivas, no aluno que
teve contato com estes livros e materiais, foram proporcionais ao
entusiasmo e identificação do professor em relação aos mesmos.
Há autores, entretanto, que têm procurado relativizar es-
tas afirmações, chamando a atenção para uma série de questões, sub-
jacentes aos estudos que tratam desta influência, e para determina-
dos pressupostos ainda não provados sobre o potencial afetivo dos
livros infantis.
As principais objeções dizem respeito às metodologias em-
pregadas para se detectarem os efeitos da leitura sobre conceitos,
atitudes e comportamentos do leitor. Em geral, questiona-se o lei-
tor sobre essa influência, sendo que na verdade não há meios de de-
terminar a acuidade dessas auto-avaliações, principalmente quando
elas dizem respeito a mudancas de atitudes ou 2 aquisição de novos
conceitos. Também se coloca em questão a efetividade de instrumen-
tos como os testes de atitudes, em geral aplicados ao leitor antes
e depois da leitura de determinados textos.
Neste sentido, os autores que levantam estas questões, em -
bora admitindo que os livros possam desempenhar um papel importante
em formar o pensamento do indivíduo, lembram que pouco se sabe so-
bre a maneira como isso ocorre e, o que é mais importante, que não
se pode esquecer o papel que o observador desempenha no dirnensiong
mento dessa influência. Em muitos casos, a leitura pode afetar mo-
37
mentaneamente as respostas do leitor, mas o quanto destes efeitos
permanece é algo ainda a ser pesquisado. O que os estudos mostram
de concreto 6 que a permanência dessas atitudes certamente depende
de um contínuo contato com materiais multiculturais, pois as atitu -
des positivas em relação às etnias não brancas e 5s suas culturas,
detectadas após a leitura destes materiais, tendem a se perder
com o passar do tempo.
Embora não se possa formar uma opinião conclusiva diante
de tais dados, estas reflexões são importantes na medida em que
nos alertam paraas possíveis conseqüências da interação entre O
leitor e os conteúdos com os quais ele entra em contato. De qual-
quer modo, 6 certo que há necessidade de maiores investigações pa-
ra se determinar com maior exatidão a magnitude e a direção desta
influência.
O QUE DIZEM AS LIDERANÇAS NEGRAS SOBRE A QUESTÃO
Num guia como este, que pretende informar o leior sobre
as questões subjacentes 5 representação das etnias nos livros e mg
teriais didáticos, não poderíamos deixar de fazer referência 5 po-
sição das lideranças negras sobre esta problemática. A representa-
ção do negro nos livros e materiais didáticos tem sido uma preocu-
pação constante destas lideranças que, principalmente após o res-
surgimento do movimento negro na década de 70, vêm se mobilizando,
seja para denunciar materiais que reputam como discriminatórios,
seja para sensibilizar as autoridades educacionais para os danos
que eles podem representar para o alunado negro.
No entanto, a luta por um livro didático não discrimina-
tório e que se proponha a valorizar o negro insere-se num projeto
38
mais amplo de reivindicações em relação ao sistema educacional. Nes -
te sentido, organizações e instituições negras, militantes e inte-
lectuais ligados aos movimentos negros vêm se organizando e pres-
sionando as autoridades para uma revisão do currículo escolar, que
eles reputam como eurocêntrico, visando a introdução de disciplinas
que tenham como objetivo mostrar aos alunos brancos e não-brancos a
diversidade e o valor das culturas negras, a história da Africa e
dos povos africanos na diãspora. No entender desses militantes, é
somente através da recuperação de sua história que o negro poderá
auto-afirmar-se e afirmar-se perante a sociedade.
Nesse contexto, o livro didático adquire um papel de suma
importância, não só no sentido de incorporar essas contribuições
mas, principalmente, de eliminar imagens distorcidas e estereotipa-
das do negro, sua cultura e sua participação na história.
Realmente, em praticamente todas as manifestações e ini-
ciativas promovidaspor esses militantes e intelectuais negros, ou
simpatizantes da causa negra, tais como congressos, seminários, en-
contros, a reivindicação mais freqüente na área educacional tem si-
do a reformulação do currículo e, com maior ênfase, do livro didáti -
co. Inclusive, muitos desses militantes e estudiosos relacionam a
evasão e o baixo aproveitamento escolar da criança negra 5 ausência
de pontos de contato com sua cultura, além de um ambiente discrimi-
natório, principalmente no que diz respeito aos conteúdos escola-
res.
Ao lado de tais reivindicações já se observa, também, o
surgimento de uma série de iniciativas no sentido de reverter essa
situação. No Estado de São Paulo, a Comissão de Educação do Conse-
lho de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra l 3 vem de -
l 3 O Conselho de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra 6 um Órgão ligado ao gabinete do governador do Estado, subordinado ã Secretaria do Go- verno. "Ao Conselho cabe desenvolver estudos relativos 2 condição da comuni- dade negra e propor medidas que visem 5 defesa dos seus direitos, elimina- ção das discriminações que atingem sua plena inserção na vida sÓcio-econÕmi ca, polftica e cultural." (Decreto 22184, 11/05/1984).
39
senvolvendo trabalhos com o objetivo de conhecer a realidade do
alunado negro, do currículo, dos materiais instrucionais e o grau
de conhecimento dos professores sobre a história do negro no Bra-
sil. Há, também, um empenho em dar um novo sentido 2 s comemorações
de eventos históricos que digam respeito 2 trajetória do negro no
Brasil.
Recentemente, esta Comissão obteve uma vitória promisso-
ra ao se intalar, na Secretaria de Estado da Educação de São Pau-
lo, um Grupo de Trabalho para Assuntos Afro-Brasileiros, que tem
como objetivo formular uma política de erradicação do preconceito
racial contra o negro no sistema educacional, particularmente no
livro didático.
Dentre outras atividades desenvolvidas pela Comissão de
Educação, destaca-se a promoção de discussões com professores da
rede e especialistas das áreas de História, Literatura, Ciências,
interessados na questão racial, sobre as propostas de revisão cur-
ricular e introdução de novos conteÚdos: a colaboração com a Secre
taria Municipal de Educação na reformulação do currículo das oito
séries do 1Q grau. Do mesmo modo, a Comissão tem levado suas in-
quietaçÕes14 para a equipe técnica da Coordenadoria de Estudos e
Normas Pedagógicas, encarregada de proceder 5 reforma curricular
no âmbito estadual.
Concomitantemente, a Comissão de Educacão tem procurado
sensibilizar professores, autoridades e técnicos ligados ao ençi-
l 4 A principal critica em relação ao currículo que estava sendo elaborado di- zia respeito 2 maneira e ao momento em que o negro era abordado na História, isto é, como escravo que veio para o Brasil ou São Paulo trabalhar na lavox ra de cana-de-açúcar. A proposta era de que se abordasse o negro desde a hfrica. A principal preocupação dizia respeito 2 repercussão dos conteúdos no aluno negro. Deste modo, todas as sugestões sempre tiveram como pano de fundo a questão do auto-conceito da criança negra. E importante salientar que, neste primeiro momento, as reivindicações se rg feriram principalmente 5 área de Estudos Sociais, embora, a longo prazo, a Comissão tencionasse propor modif icaçÕes nas demais áreas. Entretanto, isso não aconteceu na ocasião porque a área de Estudos Sociais foi considerada prioritária e, também, porque na época não havia elementos que pudessem trg balhar nas demais áreas.
4 0
no, para a importância de se abordar a data de 13 de Maio sob um
novo enfoque e, ao mesmo tempo, introduzir no calendário escolar a
data de 20 de novembro, Dia Nacional da Consciência Negra, em que
a comunidade lembra a morte de Zumbi dos Palmares, herói da resis-
tência negra. Para a Comissão, a data de 13 de Maio, comumente utL
lizada para comemorar a Abolição, deve ser transformada numa opor-
tunidade de reflexão e denúncia contra o racismo, numa oportunida-
de de debate sobre a questão racial.
Esses objetivos vêm se concretizando através de algumas
iniciativas. Em 1985, foram remetidos cartazes 2s escolas por oca-
sião do 13 de Maio, sendo que alguns professores fizeram palestras
dentro do novo espírito da comemoração. Ainda em 1985, por ocasião
do 20 de Novembro, foram enviadas apostilas alusivas 5 data a pro-
fessores e alunos de algumas escolas de 1s grau da capital e do in
terior. As apostilas continham também um questionário que procura-
va avaliar o grau de informação desses alunos e professores sobre
a história do negro no Brasil.
-
Com base na análise desses questionários, aComissão apon
ta a necessidade de um currículo que enfatize, na História do Bra-
sil, a figura do escravo, posteriormente trabalhador livre, excluí -
do do processo de desenvolvimento economico e social, bem como a
necessidade de reciclar o magistério para que questões alusivas 2
realidade do negro sejam abordadas sob um novo enfoque histórico.
-
Em 1986, o trabalho alusivo 5 data de 13 de Maio se am-
pliou, recebendo, inclusive, o apoio oficial da Secretaria da Edu-
cação, através da Resolução nQ 9 5 / 8 6 , determinando 2 s escolas da re
de que discutissem a questão racial.
-
Para subsidiar esta atividade, a Comissão, através do
Grupo de Trabalho para Assuntos Afro-Brasileiros, juntamente com a
Assessoria Técnica de Planejamento e Controle Educacional- ATPCE,
41
elaborou um texto, Salve o 13 de Maio? distribuído a todas as es-
colas da rede, cerca de 5.500 estabelecimentos.
0 movimento negro também participou intensamente envian-
do conferecistas 5s escolas para debaterem o temaI5. A avaliação
da experiência pelo Grupo de Trabalho para Assuntos Afro-Brasilei-
ros, com base nos relatórios enviados pelas escolas sobre as ativi
dades desenvolvidas, configurou-se num documento extremamente rico
sobre o discurso racial nas escolas16.
No interior de São Paulo, o trabalho em torno da data de
13 de Maio nas escolas, determinado pela Resolução 95/86, obteve
intensa colaboração de associações e entidades negras. Segundo re-
lato de pessoas que participaram da experiência, essas associações
já vinham desenvolvendo esforços no sentido de desmistificar o 13
de Maio, mas o aval da Secretaria tornou o trabalho mais efetivo.
Por outro lado, estes participantes ressaltam a importância de um
movimento negro organizado para a efetivação de uma atividade como
esta, pois, nas localidades em que não houve este apoio, a determi -
nação da Resolução não se efetivou por falta de pessoal capacitado
para discorrer sobre o tema. Esta questão foi tão crucial que algg
mas dessas associações já estão preparando monitores para atuarem
nessas ocasiões.
Ainda no interior de São Paulo, encontramos associações
negras que vêm desenvolvendo um intenso trabalho de divulgação e
promoção da cultura negra e de denúncia contra o racismo, entre os
l 5 Segundo relatos das pessoas que participaram, a experiência teve grande su- cesso. Alguns conferencistas compareceram em mais de uma escola e nem sempre foi possfvel atender a todas as solicitações, tal o volume de demandas.
l 6 Ver São Paulo (1987b). Esse mesmo Grupo de Trabalho publicou, em 1988, edição especial para comemorar o centenário da Abolição, com vários de militantes negros propondo-se a utilizar "a escola como espaço na contra a diçcriminagão racial" (São Paulo, 1988).
uma artigos
luta
4 2
quais destacamos o Centro de Cultura Afro-Brasileira Congada de São
Carlos e o Grupo Gana de Araraquara.
Entretanto, não 6 apenas no Estado de São Paulo que o mo-
vimento negro vem atuando no setor educacional. Em vários outros es -
tados, assiste-se 2 mobilização da comunidade negra através de suas
associações, centros de estudo, seja promovendo experiências educa-
cionais visando s valorização do negro e da cultura negra, seja prg movendo eventos, tais como cursos, encontros, seminários, comemora-
ções, para discutir as questões relativas a sua educação, sua cultu -
ra, sua participação na história, bem como sobre a questão racial.
Apenas para se ter uma idéia desta movimentação, citare-
mos alguns desses eventos e experiências mais recentesI7.
No Pará, o CEDENPA (Centro de Estudos e Defesa do Negro
do Par%), criado em 1 9 7 9 por um grupo de negros com a finalidade de
denunciar o racismo, tem colaborado com a rede escolar do Estado
por ocasião da data de 13 de Maio, proferindo palestras nas esco-
las. Ao mesmo tempo, o Centro vem denunciando 2s autoridades escola
res a maneira deturpada e omissa pela qual as disciplinas, princi-
palmente História, Geografia, Educação Moral e Cívica, retratam o
negro, chegando, inclusive, a elaborar material alternativo sobre a
história do negro18. Ainda dentro do objetivo de modificar a visão
do negro no contexto escolar, o grupo vem se empenhando para que a
questão do negro seja abordada no currículo escolar. O Centro tam-
bém vem realizando pesquisas sobre identidade e promovendo manifes-
tações com a finalidade de divulgar a cultura negra.
l 7 As experiências aqui relatadas baseiam-se nas comunicações ocorridas no senti Fundaçao
Comunidade &rio “O negro e a educação”, realizado em dezembro de 1986, pela Carlos Chagas e o Conselho de Participaçao e Desenvolvimento da Negra de Sao Paulo.
Trata-se da Cartilha do CEDENPA (Centro de Estudos e Defesa do Negro do Pa- r;, s.d.).
4 3
No Maranhão, o Centro de Cultura Negra; criado em 1979 ,
e cuja linha de ação se pauta por uma perspectiva social, politi-
ca, cultural e educacional, desde 1 9 8 0 vem promovendo as "Semanas
do Negro", evento que tem tido como tema central a educação e a es -
cola. Neste sentido, os debates e comunicações têm demonstrada
preocupação com a transmissão da educação, da cultura, com a socig
lização da população negra e com a reprodução do racismo no conte5
to escolar. Com base nestas denúncias, o Centro vem desenvolvendo
estudos sistemáticos (leituras, pesquisas de opinião, palestras?
debates) visando elaborar uma opção pedagógica diante da estrutura
educacional vigente. Estas reflexões, inclusive, foram levadas pa-
ra as instituições educacionais de diversos níveis e, desde 1982,
integram regularmente as atividades realizadas nas escolas por oca -
siso das "Semanas do Negro".
O Centro de Cultura Negra do Maranhão também tem procura -
do incentivar as manifestações culturais negras através da criação
de um Bloco Afro, um Grupo de Danças, lançamento de um jornal e
criação de oficinas de dança afro e de capoeira.
Em MaceiÓ, a Associação Cultural Zumbi desenvolveu o Pro -
jeto Palmares, cujo objetivo era incorporar a história de zumbi
dos Palmares no ensino regular de 10 e 20 graus da cidade de União
dos Palmares, interior do Estado de Aiagoas. Entretanto, o Projeto
não chegou a se concretizar devido 2 incompreensão dos professores
e autoridades educacionais em relação 2 opção pedagógica adotada
e, também, a outras dificuldades, tais como a recusa dos alunos nE gros em se assumirem como negros e o pr6prio racismo imperante na
comunidade que, desde 1980, vem recebendo uma grande afluência de
negros por ocasião da celebração do 20 de Novembro.
Na Bahia, o movimento negro tem se destacado por uma sé-
rie de iniciativas no campo educacional. Associações negras vêm de -
senvolvendo atividades, principalmente, com o propósito de incenti -
4 4
var a cultura negra. Entre elas, destaca-se o Grupo Cultural 010-
dum, que além da promoção de cursas afro-brasileiros e publicação
do Jornal Olodum, organiza periodicamente exposições a fim de in-
centivar artistas negros, mantém uma banda mirim com a finalidade
de formar instrumentistas para o Bloco Afro ao qual é ligado, e
realiza regularmente palestras nas escolas públicas e particulares
sobre a questão do racismo, sobre a importância de se comemorar o
dia 2 0 de Novembro ao invés do 13 de Maio. Outra entidade 6 o NÚ-
cleo Cultural Niger Okan, que desenvolve várias atividades na área
da cultura e, inclusive, mantém uma Oficina de Danças dentro de
uma escola de Salvador.
a
Por outro lado, foi na Bahia que o movimento negro obte-
ve uma vitória considerada bastante expressiva por seus integran-
tes, com a introdução, em 1986, ainda que em caráter experimental,
da disciplina "Introdução aos Estudos Africanos" nos cursos de 10
e 2s graus da rede estadual de ensino19. Esse acontecimento 6 o re -
sultado de um longo processo que contou com a participação de vá-
rias entidades negras da Bahia e do CEAO (Centro de Estudos Afro-
-Orientais), entidade ligada 5 Universidade Federal da Bahia, que,
desde 1974, mantém um "Convênio de Cooperação Cultural entre o Bra -
si1 e os países Africanos para o Desenvolvimento dos Estudos Afro-
-Brasileiros". Por outro lado, o desconhecimento sobre a realidade
da hfrica, por parte de alunos e professores que procuram o Centro
para realizar trabalhos de pesquisas, levou o CEAO, juntamente com
o Movimento Negro Unificado e várias entidades negras da Bahia, a
pleitearem a inclusão da disciplina "Introdução aos Estudos Africa -
Em 1986, a Câmara Hunicipal de Salvador aprovou a indicasão no 1230/85 ao Conselho Municipal de Educação e 5 Secretaria Hunicipal de Educação sobre a inclusão, no currículo das escolas da rede municipal de ensino, das disci- plinas História da Africa, Dança Afro-Brasileira, Literatura Afro-Brasilei- ra, MÜsica Afro-Brasileira e Capoeira.
45
nos" na rede estadual de ensino de IS e 20 graus. A disciplina in-
tegra a parte diversificada do currículo, não tendo, portanto, ca-
ráter obrigatório. A experiência 6 pioneira e , apesar das dificul-
dades encontradas como resistência, ausência de pessoal especiali-
zado para ministrar a disciplina - o que levou o Centro a ofere-
cer cursos específicos para os futuros professores - a comunidade negra tem grandes expectativas quanto a seus resultados. Pois e
com base nestes resultados que os negros terão argumentos para rei
vindicar a consolidação da experiência.
~
também na Bahia que surge a proposta de uma pedagogia
interétnica, desenvolvida pelo Departamento de Sociologia do NÚ-
cleo Cultural Afro-Brasileiro, e que tem como objetivo "O estudo
e a pesquisa do etnocentrismo, do preconceito racial e do racismo
transmitidos pelo processo educacional (família, comunidade, esco-
la, sociedade global e meios de comunicação social), além de pro-
por medidas educativas para combater os referidos fenômenos, crian - do, assim, uma nova escola que venha prestigiar os valores cultu-
rais dos grupos étnicos dominadosttz0.
No Rio de Janeiro, o Projeto Zumbi dos Palmares, criado
em 20 de novembro de 1983, no âmbito do Departamento de Cultura
Geral da Secretaria da Educação 21, vem deflagrando uma sériedeati -
vidades visando o reconhecimento da cultura afro-brasileira e sua
incorporação no currículo escoiar22.
2 o Segundo o folheto informativo do I Seminário de Pedagogia Interétnica, real& zado na Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia, em setembro de 1985.
21 Por ocasião da criação da Secretaria Municipal de Cultura em janeiro de 1986, o Projeto Zumbi dos Palmares passou a ser desenvolvido por este Órgão, sendo que a partir de maio de 1987 transformou-se na Comissão de Cultura Afro-Bra- sileira, sob a coordenação da professora Helena Theodoro.
22 Mais especificamente, o Projeto visa: promover a comemoração do 20 de Novem- bro comoDiaNaciona1 daConsciênciaNegra, i ncen t iva rapesqu i sadacu l tu raAf ro - -Brasileira enquanto sistema próprio de pensar, sentir e agir; incentivar prz ticas educativo-culturais que assegurem aos alunos negros a assunção de sua própria identidade cultural; def lagrar um processo de reflexão sobre a questão racial na sociedade brasileira, de modo a permitir a critica e erradicação das práticas discriminatórias; e criar condições para o reconhecimento e aceita- ÇãQ dos aspectos pluriculturais da sociedade brasileira (Rio de Janeiro, 1985).
4 6
Dentro deste objetivo, já foram oferecidos cursos de re-
ciclagem para professores da rede oficial e para a comunidade, CUL sos de extensão universitária sobre cultura afro-brasileira e lite -
ratura africana, e um curso sobre o teatro do oprimido para profes -
sores da rede municipal e da FUNABEM, além de palestras e contac-
tos com escolas. Em 1985, esse trabalho de sensibilização atingiu
100 escolas e 4 2 CIEPs (Centros integrados de Educação Pública).
Em Brasíiia, militantes negros, através do CEAB (Centro
de Estudos Afro-Brasileiros), vêm desenvolvendo um trabalho volta-
do para a recuperação da identidade do negro, promovendo exposi-
ções, atividades, cursos e seminários, para professores e para a
comunidade, sobre questões relativas ao negro. Dentro deste objeti -
vo, em 1986 o CEAB, em colaboração com a Secretaria da Educação do
Distrito Federal, organizou um curso sobre História e Cultura dos
Negros no Brasil, ministrado por especialistas em história e culty
ra negra, destinado a reciclar os professores, mas também aberto 2
comunidade.
Em Minas Gerais, integrantes do Chico Rey Clube, grupo
sediado na cidade de Poços de Caldas, também vêm desenvolvendo in-
tensos esforços no sentido de recuperar as raizes culturais do ne-
gro e divulgar a cultura africana no contexto escolar, dentro de
uma proposta de valorização do negro e da cultura do oprimido, em
geral.
Mesmo em estados em que o contingente de negros 6 menor,
assistimos o protesto da comunidade negra e seu empenho em resga-
tar sua cultura, em afirmar-se dentro do sistema educacional. Em
Santa Catarina, por exemplo, está ocorrendo um trabalho de cons-
cientização da comunidade escolar, através de palestras e cursos
sobre o negro, desenvolvido por integrantes do Núcleo de Estudos
Negros. Esse processo iniciou-se numa escola de formação para o ma
gistério e numa escola particular da cidade de Florianópolisi, mas
4 7
tem o propósito de se ampliar', o que tem levado O
contacto com escolas e associações de professores
se mostraram receptivos em discutir as propostas.
Núcleo a manter
que , inclusive,
No Rio Grande do Sul, os integrantes dos Agentes de Pas-
t~ra l N e g r o s~~ vêm desenvolvendo um intenso trabalho de análise e
crítica do material didático, inclusive o utilizado na catequese.
Concomitantemente, também estão elaborando suas próprias cartilhas
com o fim de valorizar a participação do negro na História e em
nossa sociedade atual.
Outro acontecimento importante nesse processo de mobili-
zação do negro aconteceu em junho de 1987, quando entidades ne-
grasZ4 de vários estados do Brasil, juntamente com a FAE (Fundação
de Assistência ao Estudante), Órgão vinculado ao Ministério da Edu -
cação, assinaram um Protocolo de Intenções visando o desenvolvimen -
to de esforços para divulgar a "real imagem do negro". Tal objeti-
vo será desenvolvido através de um trabalho junto aos autores de
livros didáticos, que prevê a promoção de debates e incentivo ã
elaboração de textos; co-edição de obras de caráter didático desti -
nados a professores de 10 grau, versando sobre a história da Áfri-
ca e sobre o patrimonio cultural afro-brasileiro; assessoria por
parte do Instituto de Recursos Humanos João Pinheiro à s secreta-
rias de educação dos estados para a melhoria da qualificaçao do
professor de 10 grau no que diz respeito 2 história da Ãfrica e ao
e
2 3 Os Agentes de Pastoral Negros são pessoas engajadas na comunidade negra que
24 Centro de Integração Cultural Comercial Afro-Brasileiro;
lutam contra toda forma de racismo.
Instituto Nacional Afro-Brasileiro; Instituto de Pesquisa das Culturas Negras; Centro de Estudos Afro-Brasileiro; Movimento Negro Unificado; Grupo de Trabalho para Assuntos Afro-Brasileiros da Secretaria da de São Paulo; Grupo de Consciência Negra; Conselho das Entidades Negras da Bahia; e Comissão de Cultura Afro-Brasileira da Secretaria Municipal de Cultura Rio de Janeiro.
Educação
do
4 8
patrimõnio cultural afro-brasileiro. O Protocolo prevê, ainda, o ig
tercâmbio entre o Brasil e os países africanos para fins de asses-
soramento técnico dos projetos da FAE.
Mas o militante negro preocupado com a educação não tem
limitado sua ação a estas realizações e propostas de intervenção no
sistema educacional. Ele também vem realizando um trabalho de reflg
xão sobre o sistema educacional. Assim, embora de forma ainda bas-
tante incipiente, começa a surgir uma produção acadêmica25 na forma
de teses, artigos de revistas, projetos de pesquisa, comunicações
em congressos e seminários que refletem uma profunda preocupação
com o sistema educacional em função dos problemas que a criança ne-
gra enfrenta no contexto escolar. E, ao que tudo indica, 6 pxinci-
palmente a questão da formação da identidade da criança negra no
contexto escolar e, conseqüentemente, a maneira como este sistema
se articula com a história do negro e com a questão racial, que vem
preocupando estes estudiosos no campo da educação.
Através das iniciativas aqui descritas percebe-se que o
negro vem adotando posições cada vez mais firmes e críticas em rela
cão ao sistema educacional, não só através de sugestões para modifi
cá-10 mas, algumas vezes, chegando a atuar nesse sistema em conso-
nância com suas propostas e interesses.
Por outro lado, um elemento novo se insinua, cada vez
mais, no contexto dessas reivindicaçÓes: a consciência de que o ne-
gro 6 detentor de um universo cultural, de um passado histórico que
o irmana a outros povos. E esse elemento que vai constituir a ban-
deira de luta, enfim, a estratégia através da qual o negro se posi-
cionará perante o sistema educacional. A palavra de ordem, agora,
25 Esta informação reflete uma visão bastante impresçionista, pois não se ba- seia num levantamento sistemãtico dos trabalhos realizados por estudiosos nz gros na área da educação.
49
já não é só a de reivindicar instrução para o negro, mas é também
a demanda de reconhecimento, por parte do sistema, de s u a identi-
dade enquanto grupo que tem sua história e sua cultura, grupo que
se orgulha de sua identidade e quer vê-la valorizada.
UMA QUESTÃO DIFÍCIL: AVALIAÇÃO OU CENSURA?
No Brasil, embora não exista uma tradição de elaboração e
divulgação de guias para a análise de livros do tipo que apresen-
tamos neste trabalho, há toda uma preocupação com osconteúdosdes -
tinados 2 criança a ao jovem. i s s o ocorre tanto na esfera of i-
cial, a nível da legislação, como no âmbito da sociedade civil,
onde diversos episódios expressam essa questão -episódios em que
estiveram envolvidos pais de alunos e professores em função de di -
vergèncias quanto ao conteúdo de determinados livros que estavam
sendo adotados nas escolas. Esses acontecimentos foram amplamente
divulgados pela imprensa, sendo que alguns chegaram a ser resolvi
dos no âmbito da justiça.
No que diz respeito ao livro didático, por exemplo, há
uma legislação que regulamenta o sistema educacional brasileiro
especificando programas, currículos e sua organização seqüencial,
enfim, toda a estruturação do sistema de ensino que repercute ne-
cessariamente na produção e, conseqüentemente, no conteúdo do li-
vro, uma vez que este deverá se pautar pelas diretrizes desta le-
gislação. Além disso o Estado, através de uma série de medidas e2
pecíficas - decretos, resolucões, pareceres, leis, tanto fede-
rais como estaduais - interfere na produpão didática, seja como
orientador técnico-pedagógico, seja como censor, sendo que estes
dispositivos se aplicam indistintamente aos livros editados tanto
pela iniciativa privada quanto pelo poder público.
50
A ação do Estado neste setor iniciou-se com a promulgação
do Decreto-Lei n0 1006/38, regulamentado posteriormente pelo Decre -
to-Lei n0 8460 de 26/12/45, criando a Comissão Nacional do Livro
Didático, a qual tinha entre suas atribuições o exame dos livros
didáticos para autorização com vistas a seu uso. importante res-
saltar que o mesmo Decretoproibiaa adoção de livros didáticos que
não tivessem autorização, sendo que o racismo 6 uma das causas ar-
roladas como impedimento 5 autorização. De acordo com seu Artigo
20, não podem ser aprovados livros que incitem o Ódio contra as rz
ças.
No âmbito do Estado de São Paulo, a preocupação com o con-
teúdo dos livros didáticos também se faz presente. Após a publica-
ção do Decreto-Lei no 1006 em 1938, o Departamento de Educação da
Secretaria da Educação do Estado tomou a seu encargo a tarefa de
analisar e autorizar, a título precário, os livros didáticos nos
termos do referido decreto, fazendo publicar anualmente no Diário
Ofical do Estado a lista de livros aprovados por aquele Departamen
toz6. Posteriormente, em 1951, essa função passou a ser desempenhz
da oficialmente pela Comissão Estadual do Livro Didático27 e, em
1969, pela Equipe Técnica do Livro e Material Didático. Com sua e5
tinção em 1976, as equipes de currículo da Secretaria da Educação
ficaram responsáveis pela indicação dos livros que estivessem de
acordo com as propostas curriculares.
26 Essa atuação do Estado visava preencher uma função que, na verdade, era atribuição do poder federal mas, ao mesmo tempo, revelava a inconformidade dos estados, principalmente de São Paulo, frente ã polftica centralizadora que lhes cerceava uma atuação mais autônoma no que diz respeito ao livro d& dático (Franco, 1982).
no ano de 1965. Até esta data tal atribuição continuou a cargo do Departamento de Educação.
27 Na realidade, a função da Comissão passou a ser exercida efetivamente
51
Ao lado desta ação sistemática encontramos, também no Es-
tado de São Paulo, uma série de iniciativas de Órgãos vinculados
ao sistema formal de ensino, com o objetivo de incentivar uma vi-
são crítica do produtor e do consumidor do livro didático e para-
didático, sejam eles professores ou alunos, com relação aos con-
teúdos veiculados por este material, inclusive no que diz respei-
to representação das etnias.
Assim, a Fundação para o Livro Escolar - FLE, na gestão
83/84, assumindo-se como interlocutora da Secretaria da Educação
do Estado para todos os assuntos ligados aos materiais instrucio-
nais e concebendo a política do livro escolar como parte do pro-
grama de democratizaçãoeducacional, incluiu entre seus objetivos o
de lutar por um livro didático que, entre outras características,
não pode ser um veículo de preconceitos e inverdades.
Para implementar essa proposta, a FLE desenvolveu alguns
programas, entre os quais o programa "Estimulando a adoção críti-
ca e solidária do livro didático", com o objetivo de levar a ãis-
cussão sobre o livro didático para dentro da escola, através de
vários eventos, em que transparece a preocupação com a veicuiação
de preconceitos.
O s professores foram esclarecidos sobre o programa atra-
vés de um documento que explicitava seus objetivos, convidando-os
a se manifestarem a respeito. Como resposta atalmanifestação dos
professores, o jornal O livro nosso de cada dia, distribuído para
toda a rede estadual de ensino, divulgou uma critica sobre o li-
vro didático, na qual também era apontado seu papel de veículo de
preconceitos. No mesmo espírito, promoveu-se também o I Encontro
Estadual sobre o Livro Didático e realizou-se um ciclo da pales-
tras, ocasião em que se discutiu a representação do índio, da mu-
lher e do negro no livro didático.
52
Neste contexto, tem sido importante também a atuação da
Comissão Especial Contra Todas as Formas de Discriminação, criada
no ãmbito da ATPCE, da Secretaria da Educação de São Paulo. Além
de prestar assessoria 5 Secretaria, a Comissão elaborou uma carti-
lha, A escola na luta contra a discriminaçãoz8, onde se discute O
tratamento preconceituoso e discriminatório dispensadoahdios, ng
gros, mulheres e deficientes em nossa sociedade.
E importante assinalar, entretanto, que esses órgãos têm
procurado exercer sobretudo uma função orientadora, seja em rela-
ção ao autor e ao editor, apontando-lhes os aspectos considerados
inadequados tanto de natureza pedagógica como no que diz respeito
a valores veiculados pelos livros, seja em relação ao professor,
no sentido de levá-lo a apreender os aspectos negativos daobraZ9.
A propósito desta Última questão, vários estudos têm rei
terado a importância e a responsabilidade do professor em relação
ao livro didático, na medida em que este pode exercer um papel crg
tico perante os conteúdos veiculados, contrapondo-os a outros pon-
tos de vista, a outras abordagens. Deste modo, mesmo textos que
veiculamimagens deturpadas, ou que omitem determinados acontecime;
tos, são passíveis de serem utilizados de maneira positiva, desde
que o professor esteja alerta e que se disponha a trabalhar-lhes o
conteúdo com esta preocupação. neste contexto que o papel dos
guias de avaliação adquire importãncia fundamental, na medida em
que funcionam como instrumento de alerta para determinadas ques-
tões que poderiam passar despercebidas, e como fonte deestímulo pa -
ra o senso critico, levando o professor, inclusive, a ampliar as
dimensões através das quais um texto pode ser avaliado.
28 Ver São Paulo (1987a).
29 Esta observação se aplica sobretudo 2 Equipe Técnica do Livro e Material DA dático, cujas atividades pudemos conhecer mais profundamente, através de eg trevista concedida por sua diretora.
5 3
Mas, como j á dissemos, essa preocupação com o conteúdo
dos livros didáticos e de literatura emana também da parte de se-
tores da opinião pública, principalmente de pais de alunos, apreen -
sivos com o conteúdo de determinados livros indicados para leitura
nas escolas de seus filhos. Tal fato se consubstancia não só atra-
vés de reclamações dirigidas a autoridades cornpetente~~~, como até
de processos movidos contra autores cujas obras são consideradas
inadequadas ao público infatil, ou a professores que os adotam pa-
ra desenvolverem trabalhos com os alunos31, Pelo teor dos parece-
res, a literatura de caráter realista é a que tem provocado as
maiores reações por parte da opinião pública. No que diz respeito
2 representação das categorias étnicas, desconhecemos qualquer ma-
nifestação, embora não tenhamos efetuado um levantamento exaustivo
sobre este tema.
Também, pessoas e entidades não ligadas 5 área educacio-
nal, como parlamentares e autoridades religiosas, têm-se manifesta -
do contra determinados livros didáticos que contestam instituições
e valores considerados importantes para a formação do educando.
Algumas tentativas têm sido feitas no sentido de inter-
pretar essa preocupação com os conteúdos destinados 2 infância e 2
3 0 Vários pareceres do Conselho Federal de Educação procuram responder a essas inquietações da comunidade reconhecendo sua legitimidade , mas reiterando sem pre o direito e a responsabilidade do professor na escolha do livro. Adotar uma atitude diretiva, segundo estes pareceres, seria colocar em dúvida a formação do professor para deliberar num campo que é de sua responsabilida- de. Por outro lado, a legislação também sempre facultou ao professor a liber dade quanto 5 adoção do livro didático, se bem que restrita aos livros que tivessem a autorização prévia dos Órgãos competentes.
3 1 A propõsito, veja-se o episódio descrito por Edmir Perrotti em sua disser- ção de mestrado ( 1 9 8 4 ) , que envolveu o escritor João Carlos Marinho, autor do livro O caneco de prata, bem como uma professora que o indicou como lei- tura para a @ série de um colégio da rede particular. Neste mesmo traba- lho, Perrotti também se reporta ãs reações provocadas pela obra de Monteiro Lobato, totalmente inovadora face ao discurso que até então era adotado na literatura infantil da época, um discurso preocupado sobretudo com a eficã- cia. Lobato, no entender de Perrotti, ocasionou a primeira ruptura nesse discurso ao privilegiar um discurso estético que, embora capaz de veicular posições, permite ao leitor uma recepção ativa que não se esgota nas codi- f icações do emissor,
5 4
juventude. A análise do discurso tanto de especialistas em litera-
tura infantil, quanto dos setores envolvidos com a formação da
criança mostra que, subjacente às suas considerações, está a idéia
da especificidade da infância e o desejo de preservá-la. Assim, em
nome de uma natureza da criança, 5s vezes identificada com a ver-
deira natureza humana, cuja especificidade psicológica precisa ser
preservada, surge uma preocupação com sua proteção e com o sanea-
mento do ambiente e dos materiais a ela destinados. Proteção esta
que se torna tanto mais necessária uma vez que, nas representações
desses autores, a crianca 6 um ser extremamente influenciãvel: se
isto, de um lado, a torna educável por excelência, de outro a tor-
na também suscetível 2s influências perniciosas. Daí, o cuidado
com os materiais que lhe são destinados. Neste sentido, então, as
críticas dirigidas 2 literatura infantil pelos adeptos desta tese
são, em grande parte, pautadas por uma ação saneadora calcada em
valores morais 32.
Não 6 apenas no Brasil que se observa esse empenho em
proteger a criança de conteiidos considerados perniciosos 2 sua foi
mação. Um estudo realizado pelo Comitê Europeu para os Problemas
Criminais, em 15 países da Europa, sobre a influência exercida pe-
los meios de comunicação de massa nos jovens, mostra que, em rela-
ção aos materiais impressos por exemplo, existe uma legislação vo-
lumosa, bem como uma longa jurisprudência regulamentando esta que?
tão. Praticamente a totalidade dos países estudados tem disposi-
ções especiais visando a proteção do jovem e da criança dentro da
legislação que regulamenta os materiais impressos, ou mesmo uma i5
gislação específica para proteger a juventude das publicações noci -
32 Informações mais especificas sobre este tema podem ser encontradas na dis- sertação de mestrado de Gustavo Adolfo Ramos Mello Neto, 1988.
55
vas. Se bem que a idade limite $ qual se aplica esta proteção va-
rie, subjacente a estas disposições existe um consenso de que es-
tas publicações podem se constituir num perigo para os jovens.
Este mesmo estudo lembra, entretanto, que a complexidade
das problemas envolvidos nesta legislação, principalmente no que
diz respeito a sua aplicação, tem levado alguns países a recorre-
rem a especialistas. Estes especialistas podem ser convocados em
função de problemas específicos que aparecem, ou podem formar co-
missões permanentes encarregadas de examinar o conjunto das publi-
caCÕes destinadas 5 criança e ao jovem. A competência dessas comi5
sÕes varia conforme o país. Algumas possuem poder de decisão, ou-
tras emitem apenas pareceres e, finalmente, há aquelas que esco-
lhem a autoridade considerada mais adequada para decidir.
Nos Estados Unidos também têm ocorrido polêmicas em tor-
no do conteúdo dos livros infanto-juvenis envolvendo pais, organis -
mos ligados 2 educação, representantes da sociedade civil e das mi -
norias étnicas que se mobilizam para discutir, e mesmo para impe-
dir, a adoção de determinados livros nas escolas. Em contraposi-
çáo, há aqueles que se opõem a essas iniciativas mais drásticas as
quais, em seu entender, ferem os princípios democráticos e a li-
berdade dos educadores no que diz respeito $ escolha dos livros di
dáticos. Há pessoas, inclusive, que colocam em questão a pertinên-
cia de se adotarem e divulgarem critérios de análise de livros nos
termos dos que apresentamos neste trabalho, identificando-os com
a própria censura, ou alegando que a adoção desses guias poderiam
enfraquecer ou representar um retrocesso na luta contra a censu-
ra.
-
Argumentando que, embora não se possa suprimir da crian-
que
que
ça o acesso às idéias e à s controvérsias que a envolvem, os
são favoráveis 2 adoção desses guias consideram inadmissível
56
os materiais destinados 2 criança sejam danosos a sua identidade ra
cial. Em seu entender, avaliar os livros não significa um cerceamen
to na liberdade de publicá-los, editá-los ou mesmo de escrevê-los,
mas significa denunciar a representação estereotipada e distorcida
da sociedade neles contida, representação esta sim cerceadora, na
medida em que exclui do mundo dos livros a diversidade inerente ao
mundo real, geradora de experiências plurais. Neste sentido, OS
guias de avaliação podem ser Úteis, uma vez que eles chamam a aten-
ção para as omissões, para as distorções, para a complexidade da
realidade e a possibilidade de outras posições e pontos de vista
diferentes dos expressos no livro.
O objetivo desses guias, no que diz respeito representa
ção das etnias por exemplo, 6 sobretudo o de ampliar o conhecimento
do usuário sobre as mesmas, de incentivar a diversificação e O
aprofundamento da abordagem dos livros infanto-juvenis sobre a par-
ticipação das minorias na história, sobre sua vivência cotidiana,
bem como de lutar para eliminar as imagens negativas e estereotipa-
das sobre as mesmas.
Finalmente, em se tratando de literatura destinada 2 cria2
ça, existe mais um elemento que depõe a favor do uso de tais guias,
ou seja, o fato de que geralmente a criança não tem escolha. Quando
estes livros são adotados na escola, ela 6 obrigada a entrar em con -
tato com este material, situação completamente diferente daquela vi venciada por aqueles que têm liberdade de escolha.
Embora consideremos essa polêmica interessante, na medida
em que nos chama atenção para alguns problemas subjacentes & avalia
ção de livros didáticos e paradidáticos, acreditamos que a divulga-
ção e o USO destes guias 6 sumamente importante para alertar os res -
ponsáveis pela produção e adoção destes materiais, principalmente o
professor, no que diz respeito 5s representações das etnias. No cir -
57
cuito produção-recepção em que se insere o livro didático, o profes
sor desempenha um papel muito importante. E ele, em geral, quem es-
colhe o livro a ser adotado, sendo portanto o responsável por sua
entrada no ambiente escolar, e 6 ele quem, em Última instância, vai
auxiliar o aluno a decodificar as mensagens aí contidas. Neste sen-
tido, então, sua postura e seu posicionamento muito provavelmente
irão despertar o espírito crítico do aluno. "Um professor competen-
te 6 capaz de fazer um bom uso crítico até de um livro deficiente.
O livro didático pode ser portador de sugestões, de atividades de
expressáo criadora, mas a atitude do professor face a elas 6 fator
decisivo para que se realizem e expandam, ou se percam no vazio"
(Pondé et al, 1985, p.1041.
Em nosso entender, inclusive, o curso de formação de pro-
fessores e os cursos de licenciatura das faculdades de filosofia dg
veriam incluir no currículo uma discusção ampla sobre os conteúdos
divulgados pelos livros didáticos no que diz respeito 5 representa-
ção das etnias, sua participação na vida nacional, na história do
país e sobre a pertinência de avaliá-los sob essa perspectiva, in-
clusive utilizando-se de guias como o que apresentamos neste traba-
lho .
Essa medida faz-se tanto mais necessária tendo em vista
o fato, já mencionado, de que os professores raramente fazem refe-
rências 2 omissão ou 2 representação de categorias étnicas, quando
indicam seus critérios de adoção ou rejeição de livros, ou quando
criticam determinados conteúdos. Uma pesquisa que observou isso
(Franco et al., 1985) também apontava que, mesmo quando aparecem
tais referências, estas são muito vagas, tornando-se impossível
captar o que o professor entende por preconce i toediscr iminação , ou
O que ele identifica como discriminatório nos livros didáticos e,
muito menos, sua postura quando se depara com estas discriminações.
58
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