Post on 18-Oct-2020
Ficha Técnica
Associação não te prives – Grupo de Defesa dos Direitos Sexuais
Coimbra, 2014
Seleção do 1º Concurso de Contos Infantis – De Pequenin@ se Torce a Discriminação, edição de 2013. Contos para crianças dos 3 aos 12 anos de idade.
Capa: Miguel Martins
Ilustrações: Nuno Canha, Carlos Nolasco e Filipe Pinto
INTRODUÇÃO
A infância oferece-nos memórias, referências, símbolos e
linguagens que marcam a construção das personalidades e as
representações sobre o mundo à nossa volta. Apesar de todas as
pessoas serem diferentes, a norma dominante remete a “diferença”
para um universo desconhecido e silenciado, gerando preconceito,
violência ou indiferença. Um imaginário infantil inclusivo, que
reconheça e valorize a diversidade, será, certamente, um primeiro
passo no sentido de uma sociedade mais justa e segura para todas
as crianças e pessoas adultas.
Assim, a partir de 2012, a Associação não te prives – Grupo de
Defesa dos Direitos Sexuais integrou nas suas atividades anuais a
realização de sessões de leituras de contos infantis inclusivos.
Perante o sucesso das duas primeiras edições, realizadas em 2012,
a não te prives lançou em 2013 o concurso de contos infantis “De
pequenin@ se torce a discriminação”. O concurso teve por objetivo
a promoção da escrita de histórias infantis originais nas quais se
valoriza a diferença, se desconstroem estereótipos e se combate de
forma evidente qualquer forma de discriminação.
A resposta foi imediata e muito significativa. Recebemos 20
contos, de autores/as de todo o país e de todas as idades. Este livro
coletivo é, portanto, o resultado de um processo difícil de seleção,
visando um equilíbrio entre temas e faixas etárias, sem descuidar a
qualidade e adequação literárias.
Divididas em três secções (3-6 anos; 6-9 anos e 9-12 anos), as
histórias que aqui compilámos abordam temas tão diversos quanto
a diferença por motivos de deficiência, por motivos de orientação
sexual ou identidade de género, por razões de cor de pele ou etnia,
por questões de doença, ou simplesmente histórias que
problematizam a própria noção de diferença. Acreditamos que
mães e pais, professoras e professores, técnicas e técnicos de
animação cultural, escolas, bibliotecas, associações, ATLs, entre
outras pessoas e entidades, irão encontrar neste livro uma
ferramenta para trabalhar temas que permanecem pouco visíveis
nestas faixas etárias
A não te prives agradece, sinceramente, a todos/as os/as
candidatos/as que nos enviaram as suas histórias. Aos/Às
autores/as selecionados/as, os nossos parabéns e agradecimentos
pelo pronto voluntarismo com que responderam sempre às nossas
solicitações na fase de edição da obra. Àqueles/as que não foram
selecionados/as enviamos uma palavra de encorajamento, para que
continuem a escrever e a desafiar imaginários pré-concebidos.
Estamos também gratas/os a quem nos acompanhou nas
leituras de contos infantis nas edições anteriores, incluindo aqui
todas as pessoas leitoras e crianças. Foi essa a semente entusiasta e
cheia de promessa que fez nascer este projeto editorial.
Queremos também reconhecer o papel fundamental dos/as
voluntários/as que colaboraram nesta publicação, em particular a
equipa de ilustradores – Carlos Nolasco, Filipe Pinto, Miguel
Martins, e Nuno Canha.
A Alexia Bravo, um agradecimento reforçado pela
disponibilidade em juntar-se à não te prives para a seleção dos
contos. A sua experiência e conhecimentos científicos na área da
Literatura Infantil foram muito importantes nesta difícil tarefa.
Estamos seguras/os de que este constitui o primeiro volume
de próximos livros. Assim continuem a haver entusiastas
escritores/as, mais ou menos anónimos/as, empenhados/as em
confrontar connosco estereótipos e versões lineares da vida e das
sociedades, convictos/as connosco de que é “De Pequenin@ que se
Torce a Discriminação”.
A não te prives
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ÍNDICE
INTRODUÇÃO .............................................................................................. 2
3-6 anos.................................................................................................... 6 As Nuvens são Todas Iguais, Carlos Nolasco............................ 8 A Camisola Arco-Íris, Dora Gomes ............................................ 11 O Senhor Mocho e a Dona Toupeira: uma amizade improvável mas não impossível, Mónica Pimentel .................... 14 As Bolinhas da Galinha, Renata Hessel....................................... 18
6-9 anos.................................................................................................. 23 O Menino mais Bonito do Mundo, Alexandra Carvalho ........... 25 Fogueira da Discriminação, Francisco Allen ............................. 28 Carolina e a Égua Branca, Rui Ivo Lopes................................... 34 Coração de Leão, Vanda Furtado Marques................................ 37
9-12 anos ............................................................................................... 42 O Baile de Máscaras, Ana Raquel Matos e Salvador Borges 44 Viagem a Coimbra, Bruno Magina................................................. 48 Amor de Várias Cores, Cristiana Pereira de Carvalho e Criziany Machado Felix .................................................................... 55
AS AUTORAS E OS AUTORES APRESENTAM-SE ....................................... 60
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3-6 anos
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De Pequenin@ se Torce a Discriminação 3-6 anos
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As Nuvens são Todas Iguais, Carlos Nolasco
Num céu de primavera, muito azulinho, havia uma vez duas
nuvens. Uma era clara e fofinha, parecia uma bolinha de algodão
doce. A outra era uma nuvem escura, grande e ameaçadora.
Enquanto a nuvem clarinha, ao sabor do vento, ia imitando figuras
de cavalos, carros e até de pessoas, a nuvem escura arrastava-se
com dificuldade, tapava o sol, e às vezes fazia uns barulhos
estranhos.
As pessoas, quando olhavam para o céu e viam a nuvem
branquinha, sorriam.
– Olha que nuvem tão engraçada! – diziam elas.
A nuvem clarinha ficava feliz. Mas quando as pessoas viam a
nuvem cinzenta, assustavam-se.
– Olha que nuvem tão feia.
A nuvem escura ficava então triste e chorava. Quando
chorava, caíam-lhe grossos pingos de água que molhavam as
pessoas, que tinham que fugir e procurar abrigo. A nuvem ficava
então muito triste, e por isso continuava a chorar todo o dia.
A nuvem clarinha irritava-se com a situação. Certo dia,
disse à nuvem cinzenta:
– Assim não pode ser! Tu assustas as pessoas, molha-las!
Porque não vais para um céu onde não há pessoas, e deixas-nos
em paz?
A nuvem escura assim fez, arrastou-se dali para fora e foi
para um céu sobre uma terra muito seca, onde não havia pessoas,
nem animais, nem flores, nem nada. O tempo foi passando, e a
nuvem branquinha continuava a alegrar as pessoas, e a cinzenta a
chorar sobre a terra.
Um dia começaram a acontecer coisas estranhas. A nuvem
clarinha começou a ficar escura e pesada, e as pessoas deixaram
de se alegrar com ela. Em contrapartida, a nuvem escura estava
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menos cinzenta e mais leve, e a terra que antes era seca estava a
ficar verde e com algumas flores. Por isso, a nuvem escura
deixara de chorar, mas em contrapartida a nuvem clarinha
estava aborrecida e por vezes deixava escapar uma lágrima. A
cada dia que passava a nuvem branquinha estava cada vez mais
escura, e a nuvem cinzenta cada vez mais clara; a nuvem
branquinha chorava cada vez mais e a nuvem cinzenta estava
mais satisfeita.
Porque as pessoas começaram a olhar com desconfiança
para a nuvem branquinha que agora era escura, esta decidiu sair
dali e ir procurar a nuvem escura que agora era clarinha. Quando
se encontraram quase que nem se reconheceram.
- És tu? Dantes eras escura e grande, e agora estás tão
diferente! O que te aconteceu?
A nuvem que antes era cinzenta respondeu:
– De tanto chorar, perdi a minha água que caiu sobre a
terra e fez nascer erva e flores. Agora estou mais leve e com
outra cor. E o que se passa contigo que nem te reconheci?
A nuvem que antes era clara lá respondeu:
– Olha, comecei a absorver água, cresci muito, fiquei
grande e cinzenta e as pessoas deixaram de se alegrar comigo.
As nuvens ficaram ali o dia todo a conversar sobre as suas
vidas, até que repararam que lá em baixo, no chão que antes era
seco e agora era verdinho, havia um grande rebanho de animais
que pastava tranquilamente enquanto o pastor olhava satisfeito
para as nuvens. Também havia uma família a fazer um piquenique,
com uma grande toalha aos quadrados vermelhos. E havia ainda
uma excursão de meninos da escola que tinham vindo conhecer o
campo.
– Que estranho, parecem tão felizes apesar da minha
presença ameaçadora, disse a nuvem que antes era branquinha.
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– Não é nada estranho! Aqui as pessoas gostam das nuvens
assim, carregadinhas de água para regar os campos e fazer
crescer as plantas – disse a nuvem que antes era escura.
– Pois, na cidade é ao contrário. As pessoas gostam mais
das nuvens claras, que não molham ninguém – retorquiu a nuvem
anteriormente branquinha.
No dia seguinte, a nuvem que agora era escura disse à
outra:
– Olha, sabes o que podíamos fazer? Eu ficava nesta terra a
regar os campos, porque isso torna felizes as pessoas daqui, e tu
podias ir para a cidade porque lá as pessoas gostam das nuvens
como tu estás agora.
A nuvem que agora era branquinha disse à outra:
– Já me tinha lembrado disso, e é isso que vou fazer.
E pronto, as nuvens arrastadas pelo vento lá seguiram o seu
destino, cada uma para seu lado, contentes porque nenhuma era
definitivamente cinzenta nem definitivamente branca. Ambas
eram iguais, distinguiam-se apenas pela água que tinham dentro
de si.
E eu, que estou a contar esta história, sei destas coisas
porque passo a vida com a “cabeça nas nuvens”, e gosto de todas
elas.
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A Camisola Arco-Íris, Dora Gomes
Olá, o meu nome é Tomé. Gostava de vos contar uma
história! Esta é uma história sobre o dia em que descobri que
tinha uma camisola arco-íris.
Vou começar a minha história, tomem atenção: era uma
vez….
Era uma vez…
Era uma vez…
Era uma vez…
Todos começam assim as histórias… mas não há só uma
maneira de começar… Bom, vou contar a minha história, como eu
sei.
A minha avó Madalena fez-me uma camisola quando eu era
pequenino, tinha cinco anos. A história que eu vou contar é sobre
o primeiro dia em que vesti essa camisola. Nunca mais me esqueci
deste dia, porque nesse dia fiquei muito contente, triste e outra
vez contente. Nessa altura, aprendi que no mesmo dia podemos
sentir muitos sentimentos diferentes.
Bom, agora é que vou começar a história.
No início do dia em que vesti pela primeira vez a minha
camisola arco-íris, estava muito feliz.
A minha mãe chama-se Matilde e nesse dia foi-me levar à
escola. Entrei na escola, sem a minha mãe e os meus amigos
olharam para mim a rir, a rir sem parar…
– O Tomé tem uma camisola de menina! Parece uma menina,
é menina… – disseram quase todos os meninos e meninas.
Apontavam com o dedo para mim e riam. Eu não sabia o que
dizer, nem o que fazer e a minha mãe já se tinha ido embora.
Entrei na escola e fiquei triste, muito triste e chorei… Era a
camisola que a minha avó Madalena me fez. Eu vi como é que a
camisola cresceu, a minha avó fez com duas agulhas e um novelo
e lã que tinha muitas, muitas cores.
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Quando comecei a chorar, sentei-me num canto da sala
sozinho. Entretanto, lá fora no céu, apareceu um arco-íris, mas
eu não o vi.
Nessa altura, a minha professora Rita disse para todos os
meninos e meninas:
– Vamos jogar um jogo novo. Juntem-se aqui perto da
janela.
– Que jogo? – perguntaram alguns dos meus amigos da sala.
– É o jogo das cores do arco-íris, não conhecem? É muito
fácil e divertido. Vamos todos olhar para a janela, conseguem ver
o arco-íris? – disse a Rita.
– Sim, está no céu e é bonito, muito bonito! – disse o Xavier.
Eu fiquei sentado, porque estava a chorar…
– Vou ensinar-vos o jogo, é muito fácil. Vamos encontrar
todas as cores do arco-íris na nossa sala! Quem sabe as cores do
arco-íris? – perguntou a professora Rita junto à janela.
– É azul, amarelo. – disse a Mafalda a olhar para o céu.
– E mais? – perguntou a professora outra vez.
– O arco-íris também tem vermelho. – disse a Laura.
– Muito bem! O arco-íris tem muitas cores: azul, amarelo,
vermelho e também verde, laranja e violeta. Quem as encontrar
primeiro ganha! – disse a Rita.
Quando a professora Rita disse as cores, levantei-me do
chão e também fui ver o arco-íris perto da janela.
– Preparados para jogar? Vamos então encontrar as cores
do arco-íris! Na sala, onde podemos encontrar o vermelho? –
disse contente a Rita.
– Na camisola do Tomé. – disse o João.
– E o laranja? – perguntou a Rita.
– Na camisola do Tomé! – disse a Sofia.
– Boa, Sofia! E o amarelo? – gritou a Rita.
– No Tomé… – disse o Xavier.
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– E o verde? – perguntou novamente a professora Rita.
– Na camisola do Tomé também. – disse o Tomás.
– O azul? – perguntou a Rita a piscar o olho na direção do
Tomé.
– Na camisola do Tomé e nas paredes da nossa sala. – disse
o Manuel.
– E por último, o violeta – disse por fim a professora.
– Rita, violeta é parecido com roxo? – perguntou a Maria.
– É parecido sim, Maria! – confirmou a professora Rita.
– A camisola do Tomé, afinal é um arco-íris, também tem a
cor violeta. – disse o Xavier com um ar envergonhado.
– A minha avó fez-me uma camisola arco-íris? Eu tenho uma
camisola arco-íris, professora Rita? – perguntou o Tomé muito
contente.
– Sim, Tomé, tens uma camisola arco-íris, e isso é muito
bom! Sabes, essa camisola é muito especial: tem todas as cores
do arco-íris e não há nenhum menino, nem menina que possa
comprar uma igual, porque não há nas lojas. Foi feita pela tua
avó! Sabem que não há cores de meninos e cores de meninas!
Isso não existe! O arco-íris está no céu e as cores são de todos
e de todas! – disse a Rita.
Nesse dia não chorei mais, e quando a professora Rita
acabou o jogo e explicou que o arco-íris é para todos, voltei a
ficar feliz! Depois da escola, quando cheguei a casa, contei à
minha mãe, que a camisola da avó se chamava arco-íris, e que era
muito especial!
Hoje tenho dez anos, mas nunca esqueci deste dia e apesar
de já não me servir, ainda tenho a minha camisola arco-íris…
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O Senhor Mocho e a Dona Toupeira: uma
amizade improvável mas não impossível, Mónica
Pimentel
Era uma vez, uma floresta muito verde, com árvores muito
grandes, repleta de flores e cheia de límpidos e ruidosos regatos
de água bem fresca, onde os seus habitantes se deliciavam a
tomar grandes banhocas.
Nessa magnífica floresta, viviam felizes muitas famílias de
animais, como por exemplo, Os “Patinhas Sortudas”, uma família
de coelhos pardos, composta pelo papá coelho, pela mamã coelho
e a sua prole de 12 coelhinhos, bem traquinas! Vivia também a
família “Dentolas”, um grupo de castores muito trabalhador, que
fazia grandes e fortes diques nos riachos que abundavam por ali.
E ainda a família das formigas, “As Rabinas”, que, por serem
tantas, não se sabe ao certo quantas!… A família das Rabinas era,
sem dúvida, a maior família de toda a floresta!
Neste sítio todos os animais eram felizes, havia água e
comida em abundância e divertiam-se o dia todo em grandes e
animadas brincadeiras.
Todos, menos dois!
Havia dois animais muito infelizes: o Senhor Mocho
Sabichão e a Dona Toupeira Lunetas.
Como vocês todos sabem, os mochos são animais noturnos,
que vivem nas árvores, são muito espertos (sabem sempre tudo!)
e veem MUITO BEM! Alimentam-se dos pequeninos animais, que
apanham no chão quando fazem grandes voos a pique na sua
direção!
Mas o Mocho Sabichão não tinha grande habilidade para
fazer voos rápidos e picados sobre as suas presas, porque tinha
uma asinha mais pequenina do que a outra, e sempre que via
algum animal voava para ele para se alimentar, mas quando lá
chegava já este estava bem longe!!!
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E era assim desde que nasceu! O Mocho Sabichão era muito
esperto, mas não tinha jeito nenhum para caçar como os mochos
costumam ter! E com aquele seu problema na asa…
Ele era diferente de todos os outros mochos da
floresta!!
E o Senhor Mocho lá passava a sua vida à espera, à espera,
à espera que mais um animal se aproximasse para o poder
apanhar, mas não tinha grande sorte! E passava muita fomeca!
Como vivia sozinho no buraco de um grande pinheiro bravo,
não tinha quem o ajudasse a resolver este problema!
Outro animal que também vivia em grandes dificuldades era
a Dona Toupeira Lunetas. Quase cega, como são todas as
toupeiras, guiava-se apenas pelo olfato. Era feroz e mal
humorada e por isso mesmo não tinha amigos!!
A Dona Toupeira adorava um dia poder aprender a ler!
Gostava de poder saber coisas sobre o mundo, sobre os países,
sobre a vida dos homens e das mulheres e de como vivem os
outros animais, mas não pode, porque não vê nada à frente do seu
nariz!
Mesmo com as grandes lunetas, que usa na ponta do
pontiagudo focinho, vê a pouco mais de um palmo!
É que as toupeiras são quase cegas! E a Toupeira Lunetas
tinha um grande desgosto de não ser como os outros bichos! De
não poder ler e conhecer o mundo todo através dos livros! Sim,
porque os livros ensinam-nos muitas coisas!
Um dia, quando estava a dirigir-se ao Ribeiro de Prata para
beber um pouco de água, e como não via quase nada, esbarrou
contra o Senhor Mocho que tinha acabado de se estatelar no
chão, atrás de uma minhoquita cor-de-rosa, que mais uma vez lá
se lhe escapou por entre as garras!
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– Ó minha senhora, veja lá por onde anda! Quase que me
partia uma asa! E se já assim é difícil comer, então com uma asa
partida!...
– O senhor desculpe, mas estava com pressa para ir ao
riacho e não o vi!
– É natural, a senhora é cega que nem uma toupeira!
– Olhem só o engraçadinho! Isso foi uma piada!? É que a
mim o senhor parece-me desajeitado como um… como um… como
um coiote velho e carunchoso! (“Espera aí, eu nunca vi um coiote!
E muito menos velho e carunchoso!...” - pensou para si a toupeira)
Enfim, como uma coisa qualquer que seja assim desajeitada!
– Ah! Ah! Ah! Eu bem tinha razão, a Senhora Toupeira não
vê um palmo à frente do nariz!
– E então, o senhor para mocho parece-me cá ter pouca
habilidade para apanhar a sua comida! Está com “fominha”, é?!
Tem um ratito na barriga?! Ah! Ah! Ah!
– Bem, por acaso até já ia uma minhoquita ou outra coisa
qualquer… Já vai para três dias que não como!!
– Ai não come?! Ora vejam lá o pobrezinho que é tão
inteligente, sabe tudo, e não consegue apanhar a sua própria
comida. Que raio de mocho é o senhor?!
– E então, qual é o problema? Os mochos têm de ser todos
iguais, é? Nunca viu um mocho que não saiba caçar e que tenha
uma asita diferente da outra?! Espera lá! Pois, nunca viu não: é
cega que nem uma toupeira!!!! Ah! Ah! Ah!
A Dona Toupeira, pensativa: “Eh lá, sou cega mas não sou
burra! E se eu fizesse um acordo com o Mocho!?”
– Pois muito bem, Senhor Mocho, lembrei-me agora de uma
coisa que pode resolver o seu e o meu problema.
– E que coisa é essa?
– O Senhor passa a ler-me os livros da biblioteca da
floresta e a contar-me tudo o que sabe do mundo. Lê-me o Diário
da Floresta, com as notícias fresquinhas dos nossos habitantes
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e, em contrapartida, eu arranjo-lhe comida fresquinha todos os
dias. Terá, a partir de agora, belas minhoquinhas cor-de-rosa
para o pequeno-almoço e grandes manjares ao almoço e ao jantar!
O que me diz?
Claro que o Mocho Sabichão nem esperou por mais nada
para entusiasticamente aceitar a proposta da Toupeira Lunetas.
Desde aquele dia, os dois tornaram-se inseparáveis e as
suas vidas completaram-se: o mocho passou a ter grandes
repastos preparados pela amiga e a toupeira experimentou a
magia do conhecimento e viajou pelo mundo todo através da sua
imaginação.
Meninos e meninas, ouçam bem com atenção!
Esta história prova que o que nos separa uns dos outros,
pode também ser o que nos une! E mais cedo ou mais tarde todos
precisaremos uns dos outros!
Vitória! Vitória! Acabou a Nossa História!
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As Bolinhas da Galinha, Renata Hessel
Gertrudes nasceu uma galinha muito bonitinha. Era
carinhosa como a mãe, e chorona como o pai. Todas as
galinhas do galinheiro onde Gertrudes morava tinham
bolinhas azuis pelo seu corpo, e os galos possuíam bolinhas
amarelas. Porém, Gertrudes nasceu sem nenhuma cor. Suas
bolinhas eram brancas, da cor das suas penas. Pareciam que
ainda não tinham sido coloridas, ou que precisavam de ser
coloridas mais tarde.
Todos os pintinhos que nasciam logo começavam a se
destacar pelas suas bolinhas amarelas ou azuis. Isso nunca
tinha sido um problema no galinheiro. Todos sempre tinham
concordado que os machos nasciam com as bolinnhas de uma
cor e as galinhas fêmeas de outra. Mas ela nasceu
diferente. Era a única sem bolinhas.
Gertrudes era muito curiosa. Queria saber o porquê
de tudo. Deixava muitas vezes o pai doido com tantas
perguntas.
Um belo dia, Gertrudes começou a perceber a
diferença entre as cores das bolinhas das galinhas e muito
curiosa e perguntou:
- Pai, porque tu tens bolinhas amarelas e a mãe tem
azuis?
- Para nos diferenciarmos. - Respondeu o pai.
- Mas porque não é ao contrário, pai: as fêmeas com
bolinhas amarelas e vocês com bolinhas azuis? - Retrucou
Gertrudes.
- Porque não. Sempre foi assim. - Respondeu o pai.
- Mas sempre foi assim porquê?
- Porque sim! - Respondeu o pai num tom bravo.
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- E porque eu não tenho cor nenhuma?
Já impaciente, o pai não lhe deu mais ouvidos,
deixando Gertrudes cheia de dúvidas.
Mas Gertrudes não se contentou e continuou curiosa. E
fez as mesmas perguntas à mãe: precisava saber porque ela
não tinha bolinhas coloridas. Para sua tristeza, teve as
mesmas respostas.
No galinheiro de Gertrudes havia uma lenda muito
antiga. Diziam que havia uma galinha muito velha que
morava do outro lado do lago. Que esta galinha era uma
sábia e que tinha todas as respostas do mundo, mas que
nunca ninguém a tinha visto, pois morava muito longe e
nunca aparecia para ninguém.
Diziam que foi vista somente uma vez. Falavam que era
uma galinha muito poderosa, que podia até se tornar
invisível se assim quisesse.
Foi aí que Gertrudes teve uma idéia. Queria encontrar
a velha galinha. Não sabia por onde ir, mas sabia aonde
queria chegar.
Assim saiu Gertrudes pelo mundo afora. Andou por
muitos lugares, sentiu muitos medos, dormiu no frio, na rua.
Passou fome. Até que um dia, chorando em frente a um
riacho, sentiu que alguém lhe tocou as costas. Se assustou!
Olhou para o lado e viu uma galinha muito diferente. Era
uma galinha pequena, larga e com bolinhas de todas as
cores que lhe perguntou:
- Porque está chorando?
- Estou longe de casa, não sei onde estou. Estou
perdida.
- Mas sabe aonde quer ir?
- Isso eu sei. Eu sei aonde quero ir, mas não sei por
onde ir.
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- Aonde quer chegar?
- Quero encontrar a galinha sábia. Preciso muito que
ela me ajude a encontrar respostas para as minhas dúvidas.
- Você acredita que exista a galinha sábia? - Disse a
galinha colorida.
- Lógico, porque você não acredita?
- Vou te contar um segredo... Há muitos anos, quando
eu era jovem como você, eu tinha muitas dúvidas também.
Não encontrava resposta para algumas perguntas e ninguém
no meu galinheiro sabia me responder. Um dia, resolvi sair à
procura de respostas. Também tinha ouvido sobre a
existência da tal galinha sábia e parti à procura dela. E
quer saber o final? Eu não precisei encontrá-la.
- Como assim? - perguntou Gertrudes.
- Simples. Eu andei tanto à procura da galinha sábia,
que quando estava muito próxima de a encontrar, percebi
que já havia descoberto as respostas que eu estava
procurando. - E continuou - Talvez a galinha sábia more
muito longe por isso mesmo. Todos os que vão à sua procura
têm que andar tanto, pensar tanto, que ao longo do caminho
encontram as suas próprias verdades, as suas respostas, e
já não precisam mais de ir até ela.
- Sério?! Mas mesmo assim, gostaria de encontrá-la,
pois já andei muito e não tenho nem sinal para as minhas
respostas. - Respondeu Gertrudes.
- Então continue minha jovem. Vá até o encontro da
sábia. Vou lhe ensinar o caminho. - Disse a galinha colorida,
fazendo um desenho muito complicado num papel.
Gertrudes olhou para o mapa e ficou tonta. Era muita
informação, tantos caminhos que pareciam nunca ter fim.
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Mas ela estava determinada. Colocou sua mochila nas costas
e começou a seguir as indicações do papel.
O primeiro ponto de partida a levava pelo meio de uma
mata muito fechada, escura. Gertrudes teve medo, mas
continuou caminhando. Conheceu muitos outros animais, fez
amizade. Passou por vários galinheiros. Subiu uma
montanha, desceu. Subiu outra. Começou a ficar com raiva.
Chorou. Parou. Resolveu pensar.
Sentou-se em cima de uma pedra e pensou. Lembrou-
se do dia em que nasceu, de tudo que tinha feito,
aprendido, da sua casa, da sua mãe e do seu pai. Do dia em
que resolveu sair em busca da galinha sábia e de quando
encontrou a galinha colorida.
Com um susto grande, começou a compreender algo
muito importante. Que aquele tempo todo ela estava
tentando entender quem ela era e não por que é que ela não
tinha as bolinhas como as outras galinhas. Ficou mais
aliviada. Entendeu que com ou sem bolinhas ela era feliz,
sentia-se bem, e igual a todos os outros do seu galinheiro.
Apenas tinha uma diferença: não tinha bolinhas.
Resolveu andar mais um pouco. Parou novamente e
falou.
- É isso!!! Se eu não tenho bolinhas significa que eu
posso escolher de que cor eu quero pintá-las!!! É isso... é
isso!!!!
E muito feliz Gertrudes começou a rir e a pular!! Tinha
encontrado a resposta para aquilo que mais tinha dúvidas.
Quando deu por si, olhou à sua volta e viu que o mapa
que a galinha colorida tinha desenhado a tinha feito andar
em círculos, por muitos dias e que o final do mapa a deixava
muito próxima da sua casa!
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- Minha nossa!! Exclamou Gertrudes!! Aquela galinha
colorida é muito sábia... Oops eu disse sábia??
Foi aí que Gertrudes se deu conta que havia
encontrado muito antes do que ela imaginava a sábia
galinha, que a tinha feito entender que o que ela estava
procurando não poderia ser dito ou explicado por niguém,
mas sim por ela mesma. E a tinha feito andar sem parar
para que tivesse tempo para pensar, entender e encontrar-
se a si mesma.
Gertrudes retornou a sua casa muito feliz onde, num
abraço muito grande, disse aos pais que finalmente sabia o
porquê de não ter bolinhas. Os pais que também não sabiam
a resposta, concordaram com a filha, que decidiu a partir
daquele momento ter as suas bolinhas todas coloridas,
diferentes, e iguais às da sábia!!
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6-9 anos
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O Menino mais Bonito do Mundo, Alexandra
Carvalho
– Meninos, está na hora de irem para a cama.
João e Bruno, os meus dois filhos de 6 e 4 anos, brincavam
juntos fingindo não me ouvirem.
– Vamos lá – insistia – eu conto-vos uma história.
Palavra mágica! De repente os dois pequenos reguilas
correm para o sofá onde eu estava sentado.
– Papá, papá – grita João – conta a historinha do menino
mais bonito do mundo.
– Ok – respondi eu – mas nas vossas camas.
Olhei para os meus filhotes, João e Bruno, já deitados e de
olhos esbugalhados à espera da historinha e sem sinais de sono…
“Era uma vez…” e assim comecei a contar a história do
menino mais bonito do mundo, como qualquer outro conto de
fadas.
******
– És o menino mais bonito do mundo – dizia a mãe para o seu
filho pela milionésima vez. Ele enchia o peito de orgulho e
respirava felicidade. Tinha apenas seis anos, filho único e era
uma criança feliz e saudável. Faltavam poucos dias para o seu
primeiro dia na escola primária. Andava tão excitado por ir para
uma escolinha nova! A mãe dizia-lhe que ia aprender a ler e a
escrever e que ia ter amiguinhos novos.
O Miguel acordou feliz. Saltou da cama e preparou-se para
o seu primeiro dia de aulas na nova escola.
Horas depois, na viagem de regresso a casa, a mãe
pergunta-lhe como correu o primeiro dia.
– Mamã, eu preciso de ir ao senhor doutor.
De Pequenin@ se Torce a Discriminação 6-9 anos
26
– Então porquê? – Perguntou a mãe com alguma
preocupação.
– Tenho uma doença – responde Miguel sem perceber o que
significa.
– O quê? Quem te disse isso Miguelinho?
– Os meus novos amigos disseram-me que tenho uma doença
e que vou morrer.
– Eles estão enganados. Não te preocupes!
A mãe de Miguel ficou apreensiva mas convenceu-se de que
era apenas o primeiro dia; tudo iria correr bem.
Miguelinho, uma criança feliz até então, andava triste,
isolava-se e chorava quando tinha de ir para a escola.
Dia após dia, Miguel vinha sempre com a mesma conversa de
que precisava de ir ao médico, porque tinha uma cabeça
demasiado grande, porque era um fracote, um lingrinhas… e
outras coisas mais sérias que levaram a sua mãe a ir à escola ver
o que se passava.
******
Ouço um choramingo e interrompo a história.
– Então Bruno, não chores. Isto é apenas uma história.
– Não estou a chorar, é da cebola papá – respondeu Bruno
ainda a fungar.
Evitei o riso e prossegui.
******
Na escola de Miguel, a mãe fala com a professora:
– São crianças, exclama a professora! Elas imitam os seus
coleguinhas e irmãos mais velhos sem perceberem o que estão a
dizer.
– Compreendo – diz a mãe de Miguel – mas não é esta a
melhor altura para começar a mudar as coisas? Ajudá-las a
compreender e a pensar por elas?
De Pequenin@ se Torce a Discriminação 6-9 anos
27
O silêncio da professora disse tudo.
Era altura de começar a agir pelo seu filho e pelos filhos de
outros. Durante semanas contactou a escola e os pais, insistiu e
finalmente conseguiu que alguns destes se juntassem a si. De
uma mãe persistente nasceu o “Dia da Igualdade da Diferença”, o
primeiro dia em que as crianças das novas gerações aprenderam,
além de ler e escrever, a pensar por elas mesmas, a deixar de
julgar os outros; antes pelo contrário, a aceitar as diferenças.
******
– Papá, tenho sono.
– Eu também – diz Bruno no meio de um bocejo.
– Ok meus marotos, toca a nanar.
Beijinhos de boa noite, apago as luzes e pronto a sair, ouço
a voz de João:
– Papá, és o meu herói!
Sorrio e encho o peito de orgulho e respiro felicidade. Não
lhes contei o resto da história. Nos dias seguintes nada mudou
para o menino mais bonito do mundo. Anos depois, alguns dos
amigos da sua escola primária são os seus melhores amigos.
Quanto a mim, tenho 30 anos, dois filhos e uma mulher
fantástica, velhos amigos da minha infância, sou anão e chamo-
me Miguel. Sou um homem feliz.
De Pequenin@ se Torce a Discriminação 6-9 anos
28
Fogueira da Discriminação1, Francisco Allen
Almerindo acordou sobressaltado. O despertador tocava
energicamente a sua música favorita. Não se lembrava porque
tinha posto o despertador para tão cedo e então pensou… e
pensou… e pensou:
– Já sei! – disse ele finalmente. – Hoje é o meu primeiro dia
de aulas! Olé!
E ao dizer isto levantou-se muito rápido, mas como já era
hábito, fê-lo tão desastradamente que deitou o candeeiro da
mesinha de cabeceira abaixo. Foi apanhá-lo mas tropeçou numa
bola e bateu com o queixo no chão.
– Ah! Ah! Ah! – Riu às gargalhadas a sua irmã gémea
Samaritana. – És mesmo desastrado!
De repente apareceu a mãe com cara de preocupada.
1 Conto publicado em livro pela Editora Chiado, 2014.
– Que barulho foi este? – perguntou a mãe.
– É o Almerindo que é mais desastrado que a pessoa mais
desastrada do mundo. – disse a irmã.
– Bem me parece que ainda não te habituaste à nova casa! –
disse a mãe com ar de troça. – Agora deixem-me ir preparar o
pequeno-almoço.
– Eu também me vou preparar – disse Samaritana. E
dizendo isto saiu do quarto do irmão.
Almerindo ficou a olhar para a janela. Ali a vista era muito
melhor, mas as saudades da sua antiga casa permaneciam. Ele era
cigano e tinha recentemente mudado para um bairro. Antes disso
morava num acampamento. Lá tudo era melhor aos seus olhos.
Brincava na rua até de noite e comia muitas vezes na casa da tia.
Tinha muitos tios e primos a morarem no mesmo acampamento e
isso fazia-o sentir-se seguro. Era bom cantar e dançar junto da
fogueira que se fazia todas as noites. Neste bairro sabe-se que
De Pequenin@ se Torce a Discriminação 6-9 anos
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o tio João também faz uma fogueira nas noites de outono, mas
não deve ser a mesma coisa.
A mãe e o pai explicaram-lhe que tinham sido realojados,
mas isso para ele nada significava. Realojados?! O que seria isso?
Bem, o melhor era ele despachar-se para ir para a escola
aprender sobre tudo isso.
De repente uma voz despertou-o dos seus pensamentos:
– Venham tomar o pequeno-almoço.
Almerindo vestiu-se à pressa e sentou-se na mesa. Depois
de uns cereais saborosos entrou para o carro, ansioso pelo
primeiro dia.
Quando chegou à escola notou que ela era bem grande, mas
as paredes podres e sujas estragavam toda a sua beleza.
Almerindo viu a sua irmã sair do carro e seguiu-lhe o exemplo
saindo também, e depois de muitas despedidas lá entraram eles
para a escola. Foram para a sala seis onde ambos ficaram
colocados e, enquanto aguardavam que a porta se abrisse, um
bando de rapazes aproximou-se e perguntou-lhe:
– São vocês o Almerindo e a Samaritana?
Eles assentiram com a cabeça, na esperança de fazerem
novos amigos.
– Ah, ah, ah! – disseram eles à gargalhada e a gritar. – Aqui
estão os esquisitóides Almerindo e Samaritana!
Naquele momento toda a escola se ria deles.
Almerindo, não suportando a vergonha, entrou na sala a
chorar, juntamente com a sua irmã. Estava tão triste que nem
reparou que se encontrava alguém na sala:
– Que se passa com os dois? – perguntou o desconhecido.
Almerindo olhou, era um homem e era adulto,
provavelmente um professor. Almerindo respondeu:
– Os outros meninos chamaram-nos esquisitóides e gozaram
com os nossos nomes. Eu acho que é por sermos ciganos.
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– Ah! Vocês são ciganos. Agora já percebi – disse o
professor.
– Percebeu o quê? – perguntou Samaritana que ainda estava
a limpar as lágrimas.
– Isso que vocês relatam chama-se discriminação e eu não
vou deixar que vocês se sintam mal nesta escola por serem
ciganos. Prometo ajudar-vos.
– Muito obrigado, professor, mas o que é a discriminação? –
perguntou Almerindo.
– Venham, explico-vos na sala dos professores.
Enquanto seguiam o professor, Almerindo e Samaritana
sentiam que se iam perder naquela imensidão de salas e
corredores. Tudo para eles era novo. Não tinham frequentado
jardim de infância. Os pais saíam quase todos os dias para a
feira e eles acompanhavam-nos. Era fantástico percorrer os
corredores das feiras. Brincavam todo o dia e ajudavam a mãe a
vender as roupas. Almerindo gostava de ajudar o pai a montar a
banca. Sentia-se grande e forte enquanto segurava nas cordas
para que o pai as esticasse. Podiam não conhecer as regras de
uma sala de aulas, mas certamente sabiam fazer contas como
ninguém. Nunca se enganavam nos trocos que tinham de dar aos
senhores.
Mal tinham chegado à sala dos professores, e já
Samaritana era elogiada por uma professora pelos seus lindos
cabelos compridos. Samaritana agradeceu mas a professora
percebeu que os seus olhos estavam ainda cheios de lágrimas e
perguntou:
– O que aconteceu?
Samaritana começou a explicar:
– Uns pajos gozaram comigo e com o meu irmão.
A professora admirada exclamou:
– Uns quê, querida?
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Almerindo começou a rir e explicou que os ciganos têm uma
linguagem própria e que nessa linguagem aos não ciganos se
chama de pajos. Todos riram com a naturalidade de Samaritana e
a maturidade de Almerindo. Ao ouvir o toque da escola o
professor afirmou:
– Já vi que este ano sou eu que vou ter muito que aprender!
Vamos para a sala e lá falaremos do que aconteceu com os outros
“paxos”. Com este erro do professor, os meninos riram à
gargalhada e seguiram-no para a sala de aulas.
Dia após dia, Almerindo e Samaritana foram ensinando
algumas das suas tradições aos seus novos amigos. A atitude do
professor Ricardo contribuiu muito para que esta turma
crescesse e aprendesse a respeitar as diferenças de cada um.
Já estavam a meio do segundo trimestre de aulas quando
Almerindo e a sua família foram convidados para um casamento.
Depois de faltarem três dias à escola, retornaram e o professor
perguntou:
– Porque faltaram às aulas três dias?
Samaritana respondeu-lhe:
– Fomos ao casamento de uma prima!
– Ah! – disse o professor. – Mas durante três dias?!
Almerindo respondeu:
– Sim, quando os ciganos casam fazemos uma festa de dois
ou mais dias!
– Fixe! – disse um dos alunos. – Eu já sabia que vocês eram
diferentes, mas tanto não. Assim podem faltar muitos dias às
aulas!
Almerindo explicou então aos colegas as razões de algumas
tradições da etnia cigana. Também lhes falou da importância do
luto e do respeito pelas pessoas mais velhas.
Apesar da sua tenra idade, todas as crianças ficaram mais
de uma hora a ouvi-lo discursar e o professor Ricardo sentiu-se
um privilegiado pela diversidade que coloria a sua turma. Naquele
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momento percebeu que seria sua obrigação apoiar este pequeno
ativista, que ainda não tinha descoberto que o era, levando a que
toda a comunidade escolar ficasse mais informada sobre a
cultura e as raízes ciganas. Só desta forma iria conseguir
mostrar a todos que é comum ouvirmos discursos sobre os outros
e sobre as suas diferenças, mas também é comum entendermos
que, quando conhecemos esses outros, percebemos que o que foi
dito não passa de mentiras e outros mitos.
Muito embora na sala de aula todos se relacionassem
adequadamente com Almerindo e Samaritana, o professor
Ricardo tinha sido várias vezes abordado por encarregados de
educação que atribuíam todos os desastres da turma à presença
destes dois irmãos. E Ricardo sabe bem que apenas o fazem pelo
facto de eles serem ciganos. Cabia-lhe a ele a mais difícil tarefa,
a de provocar alterações nos pais e nas mães, nos funcionários e
restantes professores, ou seja, nos adultos.
Hoje era o último dia de aulas e Almerindo e Samaritana
não sabiam que ia ser o melhor da vida deles. Quando chegaram à
escola viram-na deserta e Almerindo disse:
– Devemos ser os primeiros a chegar.
Samaritana assentiu com a cabeça.
Mas quando ambos entraram na escola surgiram miúdos que
gritaram:
– Surpresa!
Não imaginam a alegria que estas duas crianças sentiram
quando perceberam que toda a escola se tinha organizado em
segredo para que a festa de final de ano fosse uma festa cigana.
Com a chegada das famílias a festa continuou com danças e
cantares ciganos e até fizeram uma fogueira no recreio da
escola.
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No final deste dia Almerindo pensou para com os seus
botões: “Nunca vou deixar de acreditar que a discriminação irá
um dia ter fim!”
******
Nota do autor
Sou pequeno em tamanho e em idade mas confundo muitas vezes os adultos com o que penso e digo. Acredito que o mundo visto aos olhos das crianças é normal. Normal com tudo o que a normalidade traz: todas as diferenças se esbatem e somos todos idênticos.
Quero muito ser adulto, mas sonho poder continuar a pensar como a criança que hoje sou. Quero olhar para os outros e ver apenas meninos e meninas, homens e mulheres. Não me importa a cor, o cheiro, a “raça”, a etnia, a orientação sexual e todas as outras coisas que os adultos valorizam.
Uma vez, com enorme perplexidade, perguntei à minha mãe porque é que dois adultos tinham sido autorizados a casar. Estávamos a falar sobre casamento entre duas pessoas do mesmo sexo. E a minha mãe, que sempre me ensinou que tudo tinha que ver com o que sentimos, respondeu-me que nem sempre aquilo que sentimos é suficiente para unir duas pessoas que se
gostam. Sinceramente não compreendi e felizmente hoje já todos podem casar.
Escolhi o tema dos ciganos porque acho que poucas pessoas se irão debruçar sobre ele e a mim interessa-me muito. Porque a minha mãe trabalha com ciganos e eu tenho a sorte de poder ter amigos ciganos e ouvir muitas histórias e perceber muitos sentimentos de injustiça e discriminação. Mas também perceber sentimentos tão bons de união e alegria.
No final da minha história o protagonista deixa a ideia de que a discriminação deixará de existir. Ora bem, eu acho que ela apenas passará a tornar-se mais ténue quando os adultos começarem a olhar para os outros como se tivessem olhos de criança.
Agradeço a toda a minha família pelo apoio e carinho, mas principalmente à minha mãe por me educar em igualdade, por me explicar o que é a discriminação e por me dar informações sobre os ciganos, bem como à Associação não te prives por me darem esta oportunidade. Agradeço ainda à Professora Rosa Maria que me ensinou a ler e escrever, fomentou e alimentou o meu gosto pela leitura e escrita e ainda hoje acredita em mim.
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Carolina e a Égua Branca, Rui Ivo Lopes
Ouve-se, primeiro, o silvo que indica que a cana está a subir
bem alto. Segundos depois uma explosão violenta quase rebenta
os ouvidos…
− Meu Deus! Bem sei que é tradição mas deviam acabar com
os foguetes. Ainda por cima os incêndios andam aí a espreitar a
aldeia. E olha a menina…
O pai baixa-se para ver a filha. Sentada na sua cadeira de
rodas, Carolina agita energicamente a cabeça como se quisesse
libertar aquele imenso estrondo que lhe invadiu primeiro os
tímpanos, depois o cérebro.
− Calma, Carolina! Já passou… E estamos quase a chegar a
casa da avó! E vamos ver os tios e os primos todos. Aqueles de
quem tu gostas muito… E pode ser que alguém tenha feito aquela
sobremesa…
Carolina continua a contorcer-se… como se quisesse
libertar-se do que lhe tinha invadido o corpo.
De seguida, é a mãe que faz um novo esforço para a
acalmar…
− Olha! Olha ali! Já viste aquelas bandeirinhas que estão
penduradas na varanda da avó? Olha bem!! Sabes-me dizer que
desenhos são aqueles e quem os fez?
Finalmente, um sorriso acalma a menina quando, olhando
aqueles enfeites de festa, reconhece o desenho e tenta
vocalizar a palavra cavalo.
Carolina é, já se sabe, uma menina diferente. E com sorte.
No dia seguinte à festa, ainda conserva os totós que a mãe lhe
fizera. Por ser a última a entrar na carrinha que vai buscar os
meninos, fica sempre com o lugar da janela. Gosta de se ver
refletida no vidro. Naquele dia, essa imagem tem cor, por causa
dos elásticos que tem nos seus cabelos ruivos. E é uma imagem
colorida a que surge quando, ao passar pela Quinta de Sto.
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Adrião, vê os cavalos do Senhor Joaquim, soltos, uns a beber
água junto do ribeiro que atravessa o prado, outros a correr por
aquele imenso verde.
− Então meninos! Gostaram da festa? − pergunta, cheia de
boa disposição a Dona Conceição, monitora daquela classe de
meninos muitos especiais… E continua:
− Aí em cima da mesa já têm as vossas novas atividades.
Esta semana vamos fazer fada-do-lar.
A semana vai correndo com trabalhos de recortes,
bordados, costura, pinturas… À Carolina calha sempre o mesmo
molde. São cavalos e mais cavalos que a menina constrói naqueles
materiais, como se uma manada de equídeos selvagens lhe tivesse
invadido os pensamentos e ela os quisesse libertar.
Chega o último dia da semana, que começa invariavelmente
com a aula de natação. A mãe de Carolina também participa.
Naquele dia, agarra num canudo de esponja comprido e passa-o
por debaixo das suas pernas e das pernas de Carolina.
Troteando, de um lado para o outro da piscina, vai exclamando:
− Vê Carolina! Imagina que isto é um cavalo…
E vão troteando e troteando em brincadeiras inocentes.
Até que a dada altura, todos se libertam e, sob o olhar atento da
mãe, Carolina mergulha deixando-se envolver por uma mágica
sensação de liberdade que lhe transmite toda aquela água.
E na tarde desse dia, um passeio à Quinta de Sto. Adrião!
Uns meninos conseguem já montar sozinhos os cavalos, outros
fazem-no com os pais. Outros ainda, como a Carolina, observam
apenas… Naquele dia solarengo, os instrutores decidem fazer as
atividades no prado ao ar livre. Desde que começaram aquelas
atividades de Equitação Terapêutica, uma estranha ligação se
desenvolveu entre os cavalos do Senhor Joaquim e aqueles
meninos especiais.
De vez em quando, uma égua branca, que participa nos
exercícios, fixa atentamente Carolina, sentada na sua cadeira de
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rodas… Até que, num dado momento se liberta do seu instrutor e
corre depressa para a pequena aproximando a cabeça do seu
regaço. Carolina reage levando as mãos às bochechas, num
comovente abraço. Ouve-se um silêncio profundo mesmo antes da
petiz dizer:
− CA-VA-LO!
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Coração de Leão, Vanda Furtado Marques
Estava a amanhecer... No Vale Encantado, a azáfama era
grande: os coelhos limpavam as tocas, os passaritos lavavam as
caras no orvalho matinal, as raposas ajeitavam as suas caudas
farfalhudas e os esquilos armazenavam as nozes nos buraquinhos
das árvores.
Lá em cima, nas nuvens, aterrava uma cegonha muito, muito
cansada.
– Ufa! Finalmente encontrei a morada certa para deixar a
encomenda. Ora deixa-me ler bem: Vale Encantado – Rua das
Cenouras, nº 6.
A cegonha abriu as suas longas asas e desceu a grande
velocidade para o vale. Olhou com atenção e procurou a morada
que vinha na encomenda.
Não havia nome nas ruas, mas também não foi preciso,
porque assim que avistou um grande campo de cenouras, a
cegonha riu de satisfação.
Pousou lentamente, baixando as asas. Procurou a casa com o
número seis e ia pensando “mais uma missão cumprida”.
Bateu à porta…TOC, TOC, TOC, pousou o cesto e voou para
o céu.
Dentro da casa ouviram-se uns guinchos fininhos e
histéricos:
– Mãeee! Chegaram os novos manos, nós vimos a cegonha
pela janela.
A Mãe Coelha abriu a porta e recolheu o cesto, como
sempre fazia.
Levantou o cobertor, espreitou, arregalou os olhos de
espanto e disse para os filhos:
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– Desta vez a Senhora Cegonha trouxe um mano bem
diferente!
– Diferente? Como? – Perguntaram os coelhinhos
atrapalhados!
– Venham ver com os vossos próprios olhos.
Entretanto, por debaixo do cobertor, já se viam umas
patinhas.
– Mãe, um dos bebés não tem patinha de coelho!
Depois, entre as orelhas compridas de coelhos, saltavam à
vista umas orelhas redondas:
– Mãe, o bebé não tem orelhitas de coelho!
E depois o narizito.
– Mãe, o bebé não tem narizito de coelho; tem um nariz
enorme!
Até que, uma cara e um corpo muito peludo saíram do
cestinho.
– Mãe!.. Que giro que ele é! Mas é um bocadinho diferente
de nós!
– Vamos mostrar ao papá! Ele vai adorar.
Caminharam até à cozinha, onde o pai preparava uma
cheirosa sopa de cenoura.
– Paiiiiiiiii! Anda ver um dos novos manos! Olha bem como ele
é especial!
O pai olhou, voltou a olhar, arregalou os olhos e disse:
– Este nosso filho é mesmo diferente, mas é tão giro!...
Nessa noite, a família coelhinha foi cumprir o ritual lá do
vale: apresentar os bebés à Rainha Coruja.
A Rainha Coruja já os esperava, no seu tronco real.
– Apresentem-me lá os vossos bebés, para eu os abençoar.
A Mãe Coelha, atrapalhada, tratou de avisar que um dos
bebés era especial e levantou o cobertor. A Rainha Coruja olhou,
voltou a olhar e arregalou os olhos:
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– Que bebé especial! Mas ele não é um coelhinho!
– Nós sabemos, mas ele é nosso filho na mesma, e é tão
bonito!
– Só há um pequenito problema: é que este bebé vai ficar
grande, enorme! – disse a coruja.
– Enorme? Como?
A coruja, cheia de sabedoria, disse:
– Vai ficar do tamanho de seis raposas.
– Como!? Mas quem é este bebé?
A coruja ajeitou os óculos e disse:
– Este bebé chama-se Leão. Ele é tão grandioso, que é
chamado o Rei da Selva.
Os coelhinhos olharam uns para os outros aflitos e
perguntaram à coruja:
– Como iremos tomar conta dele? E como o iremos
alimentar? Onde o iremos deitar?
– Calma, vocês vão tratar dele como se fosse um coelho.
Vão-lhe dar cenouras e ervinhas e por enquanto deitem-no no
berço dos coelhos. Daqui a um mês voltaremos a conversar para
ver como está tudo a correr.
Um mês depois… O Leãozinho estava enorme! A família
coelha já não conseguia passar despercebida na rua e todos os
animais do vale queriam saber quem era aquele animal estranho.
A Rainha Coruja teve de fazer uma reunião com todos os
animais e explicar-lhes quem era este novo animal. Os bichos já
andavam a criar histórias mirabolantes e de terror sobre o
pequeno animal.
– Animais do bosque: este filhote chama-se Leão e
habitualmente mora na selva. Mas a Senhora Cegonha trocou a
encomenda, por isso a partir de hoje ele será um dos nossos.
– Mas ele é perigoso? – perguntaram os castores.
Os animais começaram a agitar-se, e algumas vozes já
gritavam que ele ia destruir o bosque:
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– E se ele nos fizer mal e assustar os nossos filhos?
– Nós não queremos cá este estranho… Ele vai trazer-nos
problemas – disseram as raposas.
– Vamos expulsá-lo! Não merece estar aqui – gritaram em
coro os veados.
A Rainha percebeu que tinha de encontrar uma solução e
falou com um ar doutoral e com muita calma:
– Para a segurança de todos, o Leão irá ficar na prisão do
vale. Daqui a uma semana, iremos reunir o conselho dos animais
para tomar nova decisão.
A família coelha chorava, o Leão tinha o coração
despedaçado e pequenino, mas os animais do vale achavam que
tinham tomado a decisão mais justa e certa para a sua
segurança.
Comentava-se pelo bosque que agora sim: com o animal
perigoso e diferente na prisão, tudo iria voltar ao normal.
Até ao dia em que uma alcateia de lobos uivava: Auu… Auuu,
correndo pelo vale e assustando tudo e todos.
Os animais, aflitos, corriam em todas as direções, fugindo
da fúria dos lobos.
O Leão assistia a todo este desespero, por detrás das
grades de madeira da prisão.
– Isto não pode continuar – pensou o Leão. Por isso, abriu a
sua enorme boca e soltou um rugido, tão forte e tão assustador
que os lobos se encolheram de susto.
Depois soltou mais um rugido, e outro Grauuu…
Grauuuuuuuuuuuuu… Grauuuuuuuuuuuuuuuuuuuuu…
Os animais do bosque também ficaram perplexos com este
rugido tão forte que vinha lá dos lados da prisão. Assim que os
lobos se puseram em fuga, os animais correram para a prisão,
rodearam o Leãozinho, deram as mãos e em coro pediram
desculpa por terem sido tão injustos.
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– Desculpa, desculpa! Nós não pensamos com o coração, e
fomos levados a agir por sentimentos menos nobres… Ser
diferente, especial é uma enorme riqueza – disseram em coro
todos os animais do bosque.
De lobos nunca mais se ouviu falar no vale encantado… e
tudo graças a um leão que sabia ouvir a voz do coração.
Podem achar que esta história não é verdadeira, mas se
forem falar com os leões da selva, não há um único que não
conheça esta história: ela faz parte do Maravilhoso Livro das
Histórias dos Leões.
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O Baile de Máscaras, Ana Raquel Matos e Salvador
Borges
A Maria acabou de receber a notícia de que vai poder
finalmente regressar à escola depois de um longo período
ausente. Assim que o médico autorizou o seu regresso, um
silêncio tranquilo tomou conta do consultório. Quase se podia
ouvir o som da lágrima teimosa que foi rolando pela cara da
Maria. Era uma lágrima diferente das últimas que chorara. Esta
era quente, feita de alegria, da mesma alegria que agora morava
nos olhos dos seus pais e nas palavras do seu médico.
Aos poucos todos se recompuseram das boas emoções
provocadas pela notícia e retomaram uma conversa pautada por
palavras bonitas aos ouvidos da Maria, como “escola”, “amigas”,
“brincadeira”, “passear”. Maria fazia um esforço para ouvir tudo
atentamente enquanto puxava ligeiramente o elástico da máscara
para deixar passar a mão e limpar a lágrima que ainda descia
devagar junto à sua boca.
– Maria, não te esqueças de usar a máscara por mais uns
tempos, por precaução – disse o médico.
A Maria tivera uma doença com um nome muito, muito feio
(quase impronunciável!). Nem toda a gente sabe, mas as pessoas
que trabalham com doenças como essa respeitam uma regra
muito importante. Sempre que descobrem uma doença má dão-
lhe um nome horrível. Uma espécie de castigo enquanto não
descobrem a sua cura. Afinal, quem gostaria de se chamar
“leucemia mieloide”, “hepatoblastoma” ou, pior ainda,
“rabdomiossarcoma”? Sim, nada disto acontece por acaso, nomes
como estes são pensados ao pormenor, letra por letra!
Assim que acabou a consulta, a mãe da Maria desdobrou-se
em telefonemas felizes. O último foi para a escola, avisando que
ela estava de regresso. Voltar à escola era um sonho que se ia
realizar. E se até ali o tempo teimou em passar devagar, quase
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parado, o tempo da Maria estava, agora, prestes a regressar ao
ritmo normal que acontece quando não estamos doentes.
A Maria desejava, mais do que nunca, apressar o tempo,
fazê-lo voar:
– Nunca mais é amanhã! – pensava enquanto sorria por
dentro e por fora. Até que o tempo lhe fez a vontade.
Nessa manhã, estava tudo diferente na rotina que Maria
conhecera. O trânsito agitado representava agora um festival de
vida e de cor. As paragens forçadas nas longas filas eram
oportunidades para trocar ideias sobre coisas, sobre qualquer
coisa! E o barulho de fundo no caminho até à escola já não era
feito de notícias sobre economia e política, mas do som da chuva
a cair no vidro do carro e da admiração conjunta da família da
Maria em relação ao espetáculo proporcionado pelo limpa para-
brisas, enérgico, quase cómico, na sua missão quase inglória
contra as gotas que se formavam nas suas costas. “Não é preciso
um belo dia de sol para ser feliz”, pensava a Maria.
Os pais atrapalharam-se em recomendações, ansiedades e
cuidados na chegada à escola. Maria não ouviu quase nada. Ela
procurava os amigos e as amigas com os olhos, ao longe.
À porta da sala, o som do coração da Maria sobrepôs-se ao
alarido próprio de um início de aula no primeiro horário da manhã.
Entrou, e atrás dela entrou um silêncio e um espanto
generalizado. Ela estava diferente e para além disso tinha uma
máscara.
Ouviram-se, de um e de outro canto da sala, alguns “olá”,
tímidos, distantes e estranhos, sobretudo estranhos. Não
aconteceram os abraços que a Maria tinha imaginado, nem
chegou a sentir o calor da mão da melhor amiga na sua mão.
Maria tinha apenas 11 anos, idade suficiente para perceber
que a máscara que estava a usar tinha uns longos braços que
afastavam coisas más, mas que também mantinham muitas
pessoas à distância.
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Deixou-se cair devagar numa cadeira, ao fundo da sala,
sozinha. Todos os alunos e alunas olhavam para o quadro verde,
em silêncio, àquela hora da manhã. Pela cabeça da Maria
passaram muitas coisas, como a ideia muito forte de sair dali, ir
embora.
A professora de língua portuguesa, porém, em instantes,
decifrou cada um dos pensamentos dos seus alunos e alunas e
apressou-se em direção à Maria. Parou à sua frente, abriu um
sorriso à largura dos seus braços e deu-lhe um abraço demorado.
– Bem-vinda, Maria. Senti muito a tua falta. – Disse-lhe,
consciente de que em momentos como este devemos falar só por
nós. “Afinal, é a melhor maneira de fazer os outros refletir”,
pensou ela.
O resto desse dia da vida da Maria continuou recheado de
solidão, uma solidão diferente, daquelas que existem no meio do
bulício. O dia dos colegas, esse, foi feito de medos infundados,
de distâncias medidas e de uma culpa que não sabiam explicar e
que nem sequer sabiam se fazia algum sentido, mas que mesmo
assim os deixava tristes.
No último tempo de aula desse dia, o professor de ciências
da natureza vinha preparado para dar uma aula diferente. Uma
aula sobre doenças como a da Maria. Falaram da importância do
sistema imunitário (que nos defende das doenças) e da
necessidade, em certos casos, do uso da máscara para nos
proteger quando estamos mais frágeis.
Aos poucos todos perceberam que a máscara da Maria,
afinal, não servia para proteger a turma. A doença já não existia
e quando existiu nem sequer era contagiosa. A máscara era uma
proteção útil à Maria contra os perigos que a rodeavam, porque
ainda estava debilitada.
Este esclarecimento fez crescer na turma a certeza de que
também era urgente proteger o sistema dos afetos da Maria,
pois sabiam que o tinham fragilizado.
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As atitudes que tinham tido ao longo de todo o dia, afinal,
também tinham nomes feios, não tão feios como o das doenças
más, mas nomes que ninguém quer ter associados a si próprio.
No dia seguinte, quando a Maria chegou, já toda a turma
estava na sala. Entrou e por trás da máscara percebeu-se a sua
boca a abrir-se de espanto, tal como se viam os seus olhos a
brilhar de surpresa.
Naquele dia todos tinham uma máscara colocada. Cada
colega pintara uma com motivos divertidos, feitos à medida do
seu jeito para o desenho: corações, bolas de futebol, bonecos,
ursinhos, flores e estrelas.
– Maria – disse uma amiga – desculpa o dia de ontem e a
forma como te recebemos.
Maria já tinha desculpado. Ela sabia melhor do que ninguém
que aos 11 anos nem sempre é fácil perceber e aceitar certas
coisas, como a sua doença, a sua máscara, os nossos medos.
Afinal, nenhuma cura deveria esconder sorrisos!
Aquele “baile de máscaras” tomou conta da sala de aula
naquela manhã e marcou, definitivamente, o regresso da Maria à
escola, um regresso que nem ela teria conseguido imaginar.
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Viagem a Coimbra, Bruno Magina
Intervalo da aula de português
Este é o meu lugar preferido da escola… desde hoje. Aqui
ninguém me vê, por isso posso estar tranquila. Sim, afinal é bom
estar sozinha. Desde a visita de estudo de sexta-feira à Quinta
das Lágrimas, em Coimbra, que venho para aqui assim que toca
para o intervalo.
Em Coimbra, as “lágrimas” eram as de Inês de Castro mas
podiam muito bem ter sido as minhas. Afinal, tenho 11 anos, ainda
posso chorar. Sempre ouvi dizer que os homens não choram, por
isso as raparigas como eu devem estar autorizadas. Haverá
algum limite de idade para chorar?
Estava tão contente por ir a Coimbra. Passei as férias da
Páscoa a falar com os meus pais sobre a viagem e a planear tudo
ao pormenor. Nas aulas, lemos muitos textos sobre D. Pedro e
Inês. Até vimos um DVD e fizemos pesquisas na internet. Eu e as
minhas amigas estávamos ansiosas por ver ao vivo a fonte e o
jardim.
No final, nada foi como eu tinha imaginado. A fonte lá
estava, com a mancha vermelha que consta ser o sangue de Inês
de Castro, tal como o jardim e tudo o resto. Eu é que não
“estava” lá.
Foi na aula de português que tive a ideia de escrever esta
espécie de diário, para que um dia alguém possa ler e perceber o
que estou a sentir.
Já está a tocar. Assim que puder volto para aqui.
Inês
******
Intervalo da aula de ciências
Na aula de ciências, chorei. Chorei porque me tiraram a
mochila, durante a própria aula. Quando olhei para o lado, no
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chão, ela já não estava lá. Olhei para trás e vi a mochila mais ou
menos a meio da sala. Alguém da turma agarrou nela, sem eu dar
por nada, e foi passando aos colegas de trás, até chegar ao
fundo da sala.
É óbvio que os meus colegas só fizeram isso para gozar
comigo. Por isso não aguentei e chorei. Chorei muito, mesmo ali,
sentada à mesa, quase em frente ao quadro. Poucos segundos
depois, como seria de esperar, a mochila já estava de volta. Mas
que importava isso? O que me magoou não foi a mochila estar ali
ou não estar ali. O que me magoou foi a atitude dos meus colegas
para comigo.
Assim que a aula acabou, vim a correr para aqui. A
professora não me disse nada. Nem sei se ela se apercebeu de
alguma coisa, mas o meu lugar é na segunda fila da frente, não
era difícil reparar. Por que é que não me perguntou o que é que
se passava para eu estar a chorar? Ao menos assim eu podia ter
contado tudo de uma vez por todas. E se fosse ali, em frente à
turma, melhor ainda.
Não sei mais o que fazer. Não me apetece sair daqui. Não
quero ir para as aulas. Mas está quase a tocar outra vez…
Inês
******
Intervalo da aula de história
Vou finalmente tentar escrever tudo o que aconteceu na
visita de estudo a Coimbra.
É fácil contar. Nem é preciso resumir.
Como íamos passar quase todo o dia fora, a camioneta ia
partir de manhã bem cedo. Os meus pais preferiram levar-me de
carro para a escola, em vez de eu ir a pé, como quase sempre
faço. E assim foi. Os meus colegas viram pela primeira vez os
meus pais. Eu tenho dois pais: um pai e um pai.
As minhas amigas já sabiam disso. Elas costumam ir lá a
casa lanchar ou fazer os trabalhos. Ao princípio, elas acharam
estranho e fizeram muitas perguntas. Eu disse-lhes sempre que
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eu não sei o que é ter uma mãe, porque nunca conheci a minha,
mas que vivo bem com os meus pais e não me falta nada. Sou feliz
com eles.
Para mim, ter dois pais é normal, mas as minhas amigas
achavam que os colegas da nossa turma, sobretudo os rapazes,
não iam perceber e até podiam rir-se de mim por causa disso.
Então, nunca contei, tal como não conto muitas outras coisas.
Na camioneta, a caminho de Coimbra, não havia mais como
esconder ou negar. Já toda a turma sabia a verdade.
Inês
******
Hora de almoço
Felizmente, moro perto da escola e posso vir aqui almoçar.
A empregada dos meus pais, a Dona Delfina, cozinha muito bem.
Ela perguntou-me se eu estava triste. Como não gosto de mentir,
desviei o olhar e disse que não. Ela pareceu não acreditar mas
não insistiu.
Durante a viagem a Coimbra, dentro da camioneta, os meus
colegas cochicharam entre si e escreveram-me um papelinho a
perguntar se “aqueles” é que eram os meus pais. Como não
respondi, começaram a enviar mais e mais papelinhos. “Qual deles
é a tua mãe?”, “Tens duas ‘bichas’ de estimação e nunca nos
contaste?”, “Também vais ser como eles quando cresceres?”,
foram algumas das mensagens que recebi.
Incapaz de dizer ou fazer alguma coisa, apenas machucava
os papelinhos, atirava-os para dentro da mochila e chorava cada
vez mais.
A Sara, que estava sentada ao meu lado, tentava consolar-
me e chamava os meus colegas de “parvos”. A viagem parecia não
chegar ao fim… e faltava ainda regressarmos a Lisboa…
Esse foi de certeza o pior dia da minha vida.
De Pequenin@ se Torce a Discriminação 9-12 anos
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Na Quinta das Lágrimas, tentei imaginar o que sentiu a
“outra” Inês antes de ser morta com tanta crueldade.
Sinto que naquele dia também mataram um pouquinho de
mim.
Inês
******
Intervalo da aula de educação física
No fim de semana, os meus pais fizeram-me imensas
perguntas sobre o passeio. Eu não queria contar-lhes o que tinha
acontecido. Estava com medo e vergonha. Mas os meus pais
conhecem-me muito bem (tal como os pais das minhas amigas as
conhecem, imagino eu) e lá desabafei.
Os pais disseram-me que aquilo que os meus colegas
fizeram não estava correto, mas que já imaginavam que um dia
isso poderia acontecer.
Eles combinaram vir hoje, depois de almoço, falar com a
minha diretora de turma. Não sei se terá sido boa ideia…
A aula de educação física foi ainda pior do que a de
ciências. O professor pediu para fazermos equipas de quatro
jogadores. As equipas tinham de ser mistas. Eu fiquei com a
Sara, mas nenhum rapaz quis formar equipa connosco, ou melhor,
comigo. Estivemos as duas para ali a atirar a bola uma à outra.
Pergunto-me se daqui em diante será sempre assim.
Pergunto-me se este pesadelo irá algum dia ter fim. Gostava
tanto de acordar e ver que tudo não passou de um sonho mau.
Ainda bem que está quase na hora de ir para casa.
A seguir temos educação visual e tecnológica. Qual será a
melhor cor para pintar a tristeza?
Inês
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******
Antes de dormir
No caminho para casa, cruzei-me com a Dona Delfina, que
me abriu a porta. Quando entrei, pareceu-me ouvir os pais a
discutir. Os meus pais raramente discutem, sobretudo à minha
frente, por isso assim que me viram calaram-se e mudaram de
assunto.
Durante o jantar, os pais contaram-me como foi a conversa
com a diretora de turma. Ela já sabia que eu tinha dois pais, pois
eles vão sempre às reuniões da escola. Umas vezes vai o meu pai
Artur, outras vezes vai o meu pai André.
A diretora de turma disse que esta é uma situação delicada
e até nova para ela e para a própria escola. Mesmo assim, ela
disse que vai reunir-se com os outros professores e tentar ter
ideias para resolver o problema. Eu perguntei se os meus colegas
irão ficar de castigo, mas acho que não vai ser preciso. Ainda
bem…
Os meus pais também sugeriram ir eles próprios à escola
falar pessoalmente com os meus colegas no início ou no final de
uma aula. Eu adorava que isso acontecesse, pois assim os meus
colegas iam perceber que os meus pais gostam muito de mim e
que não são “anormais” ou “aberrações” como já os ouvi dizer.
Agora tenho a certeza de que tudo se vai resolver.
Inês
******
Depois de almoço
É a última vez que venho para aqui, pelo menos sozinha e
para escrever. Não vou mais fugir de tudo. Não vou mais
esconder-me de todos.
Ontem, na aula de inglês, a professora leu um livro sobre
um menino que, tal como os meus pais, é homossexual. Claro que
os meus colegas passaram todo o tempo a rir baixinho, sobretudo
no início, mas a professora não deu importância ou fingiu não
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ouvir. Ela disse uma coisa muito importante e muito sábia, algo
em que eu nunca tinha pensado antes. Disse que o rapaz da
história não escolheu ser homossexual, tal como não escolheu o
país em que nasceu, a cor do cabelo e dos olhos ou a própria
família. A professora disse que há coisas que não podemos
escolher, apenas aceitar.
Hoje de manhã, veio à escola uma senhora de uma
associação que defende as pessoas como os meus pais e o rapaz
da história. A senhora (que se chama Sara, tal como a minha
amiga) contou que ela é casada com uma mulher. Quando ela
disse isso, os meus colegas ficaram muito sérios e admirados.
Provavelmente, na cabeça deles, ela nunca teria coragem para
dizer aquilo à nossa frente.
A Sara pediu para irmos dizendo em voz alta uma lista de
palavras que normalmente se usam para ofender pessoas
homossexuais. Os meus colegas – e eu! – ficaram surpreendidos.
“Dizer palavras destas numa sala de aula?”, pensei eu na altura.
Mas acabaram por dizer “Gay”, “Maricas”, “Virado” e outras que
nem me atrevo a escrever!
A Sara é mesmo fixe. Depois disso tudo, ela própria sugeriu
mais palavras e escreveu-as no quadro. E disse que aquelas
palavras não a afetam porque, de facto, ela é homossexual.
Acho que a força e a confiança que a Sara demonstrou
ajudaram muito a transmitir a mensagem que ela queria. E acho
também que a visita da Sara, para mim, veio no momento certo.
A Sara “salvou” a minha vida – tal como a professora de
inglês.
Tudo isto deve ter sido ideia da minha diretora de turma.
O que importa é que parece que os meus colegas
aprenderam alguma coisa, pois hoje não se meteram mais comigo
nem fizeram comentários sobre os meus pais ou sobre outra
coisa qualquer.
Acho que tudo vai voltar a ser como era dantes. Claro que
só terei a certeza disso quando for de novo para as aulas, hoje à
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tarde. Mas a boa notícia é que, pela primeira vez em muito
tempo, não estou com medo nem com vergonha de ir para a
escola!
Inês
PS: Ao arrumar a mochila, encontrei dois papelinhos bem
dobradinhos. Deviam estar ali desde a viagem a Coimbra! Um
dizia “Eu também sou gay” e o outro “Não fiques triste, eu gosto
de ti”. De quem serão?
De Pequenin@ se Torce a Discriminação 9-12 anos
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Amor de Várias Cores, Cristiana Pereira de Carvalho e
Criziany Machado Felix
Parecia uma aula como outra qualquer.
Enquanto o Professor Duarte explicava o aparelho
reprodutor feminino, as dúvidas começavam a invadir a mente
dos alunos. Escutavam-se os risos envergonhados e sussurros
tímidos. Queriam fazer perguntas, mas não tinham coragem. Até
que… Paulo coloca o dedo no ar. O Professor Duarte dá-lhe a
palavra.
– Professor, o meu pai tem um amigo que tem um
namorado… – Explicava Paulo, quando foi interrompido por Maria.
– Um namorado? Não! Uma namorada! – Corrigiu Maria.
– Não sejas totó, Paulo. É lógico que os homens têm
namoradas e não namorados! – Enfatiza Rui.
Tranquilamente, Paulo responde:
– O António, amigo do meu pai, tem um namorado, o Afonso
Henriques.
– Uhhhh! Que nojo! – Ouve-se ao fundo da sala.
Rapidamente o Professor Duarte percebera que aquela
seria uma aula diferente.
– Turma, vamos respeitar o colega e deixar o Paulo acabar.
– Intervém o Professor Duarte.
– Eu só queria perguntar como eles poderão ter um filho ou
uma filha, já que nenhum deles tem aparelho reprodutor
feminino. – Pergunta Paulo, com ar de preocupação com os amigos
do pai, pois ele já os ouvira várias vezes mencionar o quanto
gostavam de ter uma criança.
– Que parvoíce! A minha mãe disse-me que todos temos que
ter um pai e uma mãe… – Afirma Luís de forma irritada.
– Isso não é verdade! Quem sempre cuidou de mim foram os
meus avós. – Volta a intervir Maria.
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– ‘Tá bem! Mas tens um pai e uma mãe. – Contraria Luís.
O assunto era polémico e suscitava grande debate. O
Professor Duarte, querendo aproveitar a oportunidade para
esclarecer os seus alunos e alunas sobre pontos importantes da
educação sexual, interveio:
– Todas as vossas questões são muito importantes. Mas
temos que ter cuidado para não confundir o que cada uma
envolve.
– Oh Professor, mas algum dia um homem pode gostar de
outro homem? – Pergunta Rui ansiosamente.
– Era exatamente por aí que eu ia começar. – Destaca o
Professor Duarte e prossegue:
– Um homem pode gostar de outro homem, pode gostar de
uma mulher ou pode gostar de ambos. E uma mulher também.
– Eu nunca vou gostar de outra rapariga! – Afirma
rapidamente Raquel.
– Raquel, não escolhemos de quem gostar. Amor sente-se,
não se escolhe!
– Mas Professor, eu sei que nunca vou escolher gostar de
uma rapariga! – Insiste Raquel.
– Raquel, e tu vais escolher qual o rapaz de quem vais
gostar?
– Oh Professor, claro que não! Eu vou me apaixonar e
pronto! – Diz Raquel.
– Exatamente! Primeiro vocês vão sentir-se física e
emocionalmente atraídos e só depois irão perceber por quem.
Pode ser por um rapaz ou por uma rapariga, dependendo da
orientação sexual de cada um.
– Ah! Então podemos andar sempre a mudar. – Afirma Rui.
– Claro que não! Isso é uma doença, só no dia que
descobrirem a cura... – Diz Luís.
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– Então isso é contagioso? Eu quero ser sempre rapariga! -
Manifesta Raquel a sua inquietação.
A confusão estava instalada! A timidez inicial tinha dado
espaço às dúvidas, às muitas dúvidas... E o Professor Duarte
ouvia cada uma com muita atenção.
– Calma, turma! Vocês estão a fazer uma grande confusão.
Não podemos baralhar o sexo biológico com a orientação sexual.
A orientação sexual, como eu já expliquei, define por que género
(masculino ou feminino) nos sentimos atraídos. O sexo biológico
indica-nos se somos mulher, homem ou inter-sexo. - Explicou o
Professor.
– Inter-sexo? O que é isso? – Interrompeu o Luís, com um
olhar intrigado.
– Muito bem questionado! Então, a mulher possui, como
estávamos a ver, no início da aula, vagina, ovários e cromossomas
XX. O homem possui pénis, testículos e cromossomas XY. Uma
pessoa inter-sexo é uma combinação dos dois, mulher e homem.
– Ah, então... o amigo do pai do Paulo é assim? Por isso ele
gosta de homem? – Interrompeu novamente o Luís com o seu ar
questionador.
– Não! O professor já explicou que ele é homem. Os inter-
sexos são como o cabeleireiro da minha mãe, cheio de tiques de
mulheres. – Afirma entusiasticamente Raquel, acreditando que
tinha compreendido tudo.
– Ahhhhh, eu conheço homens que querem ser mulheres. E
mais, mulheres que parecem homens, vestem-se e andam como
homens, queriam ser como nós Professor. – Destaca Luís.
– Isso não é verdade! – Interrompe Paulo. A minha mãe já
me explicou que o amigo do meu pai não quer ser mulher e nem as
lésbicas querem ser homens. São apenas pessoas que gostam de
pessoas do mesmo sexo.
– Pois, inter-sexo!!! – Afirma Luís já um pouco zangado.
– Oh pá, calem-se! Deixem o Professor explicar. – Ouve-se
ao fundo da sala.
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O Professor Duarte, esboçando um leve sorriso, continua:
– Uma pessoa inter-sexo não pode ser confundida com gays
ou lésbicas, nem mesmo com pessoas transexuais. A pessoa
inter-sexo possui características biológicas de ambos os sexos, e
a sua orientação sexual não tem nada a ver com isso. Os gays e
lésbicas não! O gay é aquele homem que gosta de outro homem e
a lésbica é aquela mulher que gosta de outra mulher. Não
assumem necessariamente as características biológicas ou de
identidade de outro género, e por isso, não podemos afirmar que
uma pessoa por ser gay tem tiques de mulher, ou por ser lésbica
é masculina. Mas, prestem atenção, se o gay tiver tiques de
mulher e a lésbica for masculina isso está bem, pois cada pessoa
tem a sua forma de ser.
– Ahhhhhhhhhhh! – Exclama Rui.
– Espera um bocadinho Rui – interrompe o Professor Duarte
que continua a explicar:
– Ainda não vos esclareci sobre as pessoas transexuais.
Essas pessoas possuem uma identidade de género diferente da
biológica, ou seja, podem ter nascido homens ou mulheres mas
sentem-se como sendo do outro género.
– Então o amigo do pai do Paulo é um homem que se sente
mulher e por isso gosta de outro homem? – Questiona Rui.
- Não, Rui! Não faças confusão. O amigo do pai do Paulo é
um homem, que se sente homem e gosta de outro homem. Por
isso eles são gays. – Explica Maria.
– Sim, isso mesmo! – Confirma o Professor. São gays porque
têm uma orientação homossexual. Quando uma pessoa gosta de
outra de sexo diferente tem uma orientação heterossexual.
– E quando muda de orientação? Ou gosta dos dois? Já que
não se escolhe, pode-se gostar de mais de um sexo, não pode? –
Interroga Raquel.
– Sim. Pode gostar dos dois sexos e