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LUGARES DE APRENDIZAGEM EM ESPAÇOS E TEMPOS PÚBLICOS
Modos de ocupar a noite na cidade de Porto Alegre, RS
Eloenes Silva
PPGEdu/UFRGS
Introdução
Novembro de 2016, noite de sexta feira. Dirijo-me ao local conhecido como Parque Farroupilha
ou Redenção, na região central da cidade de Porto alegre, RS. O motivo: a realização do
encontro noturno Serenata Iluminada.. Chego ao local e percebo centenas de pessoas em volta
do lago Espelho D’água. Os ocupantes do local, jovens em sua maioria, estão sentados,
deitados ou flanando pelo parque.Conversam e sorriem, beijam e abraçam, cantam e tocam,
dançam e recitam poesias em saraus improvisados ao ar livre. Bebidas, comidas e outros
produtos artesanais são comercializados, aumentando a interação entre os participantes.
Corpos, ações, sensações, imagens, cheiros, sons e luzes se misturam naquela paisagem
noturna. Uma composição de cenas em que os sujeitos atuam como personagens, realizando
inúmeras práticas, produzindo experiências, transformando aquele parque em um lugar de
aprendizagem..
(Diários de campo, novembro de 2016)
Este texto apresenta produções iniciais de dados para a pesquisa de doutorado
em andamento vinculada ao campo dos Estudos Culturais e Educação1. Aos fragmentos
de anotações retirados dos diários de campo, observações, registros fotográficos,
abordagens e conversas com indivíduos e grupos durante o evento conhecido como
Serenata Iluminada estão articuladas contribuições teóricas e metodológicas,
atribuindo credibilidade às ideias e discussões desenvolvidas.
Partindo do conceito elaborado por Ellswoerth (2005) de que determinados
locais da cidade podem se constituir em “lugares de aprendizagem”, o objetivo desta
análise consiste em investigar como determinadas práticas sociais realizadas durante a
ocupação noturna de um parque urbano e público configuram experiências de
aprendizados ao colocar seus participantes em constante interação com si mesmo, com
os outros e com o ambiente.
1Vinculada à Linha de Pesquisa dos Estudos Culturais e Educação do Programa de Pós Graduação em
Educação da UFRGS a pesquisa Pedagogias da Noite: Personagens Urbanos, Práticas Culturais e
Lugares de Aprendizagem na Noite da Metrópole tem por objetivo analisar como são produzidas as
pedagogias da noite urbana. Para tanto, as investigações enfocam espaços e tempos públicos previamente
selecionados na cidade de Porto Alegre, RS, onde são realizadas práticas culturais noturnas.
O texto está organizado em três partes. Na primeira, apresento os caminhos
teóricos e metodológicos que possibilitam adentrar espaços e tempos públicos
(SENNETT, 1988), buscando aproximações às práticas sociais cotidianas (CERTEAU,
2000) e à cultura da noite urbana (MARGULIS, 2005), além da inspiração na
“etnografia pós-moderna” (GOTTSCHALK, 1998; SANTOS, 2005) para a inserção nos
ambientes pesquisados. Na segunda parte seleciono práticas sociais cotidianas
registradas durante o referido evento noturno, reforçando seus traços pedagógicos a
partir dos encontros entre seus realizadores. Para tanto, três cenas noturnas são
compostas, visando analisar, juntamente com Maffesoli (2003, 2004) e Ellsworth
(2005), como são produzidas distintas experiências de aprendizado, constituindo aquele
local noturno como lugar de aprendizagem. Nas considerações finais, reforço como
determinados lugares de aprendizagem são identificados por meio de “espaços –entre”,
zonas intersticiais que possibilitam conectar sujeitos, práticas e objetos, produzindo a
materialidade do aprendizado em que o conhecimento se encontra em constante
processo de fabricação.
Lugares de aprendizagem noturna em espaços públicos da cidade: procedimentos
teórico-metodológicos
Sennett (1988) destaca que as palavras “público” e “privado” são básicas para
compreendermos as transformações da cultura ocidental2. O autor afirma que as
primeiras ocorrências da palavra “‘público’, na língua inglesa, identificavam esse termo
com o bem comum de toda a sociedade, acrescentando-se, perto do século XVII, ao
sentido de “‘público’ aquilo que é manifesto e está aberto à observação geral”, enquanto
[...] “‘privado’ significava uma região protegida da vida, definida pela família e pelos
amigos” (p.30).
2Os sentidos de “público” também surgem na França renascentista onde os significados atribuídos a le
public diziam respeito ao bem comum e ao corpo político, tornando-se gradualmente uma região especial
da sociabilidade. (Sennett, id., ibid.) “Na época em que a palavra “público” já havia adquirido seu
significado moderno, portanto, ela significava não apenas uma região da vida social localizada em
separado do âmbito da família e dos amigos íntimos, mas também esse domínio público dos conhecidos e
dos estranhos incluía uma diversidade relativamente grande de pessoas” (Sennett, ib., ib., p.30).
Segundo esse autor (1988) diferentes culturas entravam em contato na cidade e
estavam associadas com o público “cosmopolita da vida urbana que se movimenta
despreocupadamente em meio à diversidade e sem vínculo com o que é familiar. Desse
modo, Sennett (1988) conclui que o sentido de “‘público’ veio a significar uma vida que
passa fora da vida da família e dos amigos íntimos; na região pública, grupos sociais
complexos e díspares teriam que entrar em contato inelutavelmente. E o centro dessa
vida pública era a capital”.
Assim como os contextos urbanos sociais e públicos se modificam, também a
cultura da noite se transforma em uma composição de cenas com intensa atividade. Para
Margulis (2005), uma das oposições que permite aproximar a significação do espaço
urbano é a de dia-noite, a oposição entre luz e escuridão, ou o tempo processado
socialmente que regula a vida urbana, os horários de trabalho e descanso. Nos espaços e
tempos da noite “a cidade renasce na madrugada e se povoa [principalmente] de jovens
de ambos os sexos. Durante a noite, muitos territórios urbanos carregam um significado
diferente e também complexos itinerários se cruzam” (p. 12). Uma noite entendida
menos como período de refúgio e descanso que remete à volta para a esfera privada e
mais como composição da cultura urbana e coletiva que busca retomar espaços públicos
de convivência, produzindo experiências e aprendizados, configurando outros modos de
ser e estar em ambientes noturnos.
Olhares investigativos em direção aos lugares da noite onde são estabelecidas
relações entre os sujeitos e suas práticas, procurando conexões com a produção de seus
aprendizados, são possíveis através da ampliação dos usos e entendimentos do conceito
de pedagogia em contextos urbanos. Ellsworth (2005) considera que determinados
lugares da cidade são considerados pedagógicos, pois colocam em relação tanto as
condições exteriores como a arquitetura e demais ambientes físicos, quanto às
experiências que o sujeito realiza consigo mesmo a partir de movimentos de interação
com os espaços e os tempos da metrópole. Nesses lugares, segundo a autora, o
conhecimento e o aprendizado estão em fabricação constante, pois ao conectar o “lado
de dentro” e o “lado de fora” possibilitam o encontro de diferentes realidades a partir do
contato entre o “eu” e o “outro”. Os sentidos e sensações acionados por meio do corpo,
da mente e do cérebro de indivíduos em contato com os lugares de aprendizado
produzem distintos modos para vivenciar e se relacionar com o mundo (ELLSWORTH,
2005).
Adentrar espaços e tempos de uma cidade noturna a partir de uma perspectiva
cultural e pedagógica em busca das práticas realizadas pelos seus habitantes necessita a
inserção do pesquisador em territórios onde a vida é preenchida por múltiplos
significados e representações. Santos (2005) afirma que, ao “recuperar” o vivido pelos
habitantes locais, “os objetos trazidos, as fotos, as anotações do diário de campo/de
viagem funcionam, nesta (re)constituição, como matéria para compor/ilustrar a história
que se conta – eles dão autenticidade à narrativa do (a) contador(a)” (p.12). Compostos
por imagens, falas, gestos, práticas, sujeitos e lugares, a investigação de tais cenários
urbanos se assemelha a uma “viagem narrativa” onde é possível assumir, como destaca
Santos (2005), menos os modos de olhar e experimentar que caracterizariam um
“turista” urbano do que a experiência a partir da perspectiva de um “etnógrafo viajante”.
Gottschalk (1998), por sua vez, assevera que as produções investigativas
desenvolvidas por meio das “etnografias pós-modernas”, tanto no estilo quanto no
conteúdo, têm sido mais sensíveis às formas culturais que se apresentam no momento
contemporâneo. O autor continua, salientando que as etnografias desenvolvidas na
multiplicidade de ambientes contemporâneos necessitam estar “mais alertas às
disposições psicológico-sociais que possam ser estimuladas, mais modestas quanto às
reivindicações de possuírem a verdade e a autoridade, mais criticamente auto-reflexiva
com respeito à subjetividade e mais autoconsciente das estratégias linguistícas
narrativas”(p. 2).
Gottschalk (1998) destaca as possíveis “derivações” que podem surgir em
diversos pontos da cidade, enfatizando como isto pode produzir as “verdades locais” ou
“lógicas” próprias de cada ambiente. O mesmo autor (1998) busca inspiração na derive
3que os Situacionistas4 creditavam às cidades, onde os habitantes seriam mais do que
espectadores, e sim participantes de toda a interação no espaço urbano. Para o autor
3A expressão derive foi utilizada pelo movimento de vanguarda formado por Guy Debord, em 1951
conhecido como Internacional que propunha outras formas críticas de perceber, entender e interagir com
a cidade.Fonte: http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/03.035/69. Acesso em 21/03/2015. 4 Segundo Felício (2007), os Situacionistas propunham uma forma de “psicogeografia”, estudando como
componentes geográficos, a arquitetura, a luz, o clima, os sons produzidos na cidade e o território urbano
afetavam o comportamento humano.
(1998), a etnografia pós-moderna considera a “sensibilidade” aos impactos de luz, som,
cores e cheiros presentes em diversos locais e que afetam nossos sentidos.
No entanto, a utilização de procedimentos inspirados nas etnografias pós-
modernas não dispensa tarefas essenciais como coleta, organização, interpretação,
validação e comunicação de dados, exigindo que o pesquisador permaneça constante e
criticamente atento a questões como “as subjetividades, os movimentos retóricos e os
problemas da voz, poder, política textual, limites à autoridade, asserções de verdade,
desejos inconscientes e assim por diante” (GOTTSCHALK, 1998, p.3).
Interações sensíveis com os espaços e tempos da cidade ampliam as formas de
condução dos sujeitos em lugares onde os relacionamentos entre os indivíduos e os
lugares públicos da noite urbana produzem experiências diversas e distintos
aprendizados. Segundo Ellsworth (2005), a experiência é crucial para entender os
processos pedagógicos desenvolvidos em lugares em que os processos de aprendizagem
são constituídos. No entanto, essas experiências de aprendizado nem sempre são
legíveis e transparentes, pois são constituídas por meio de “caminhos experimentais”
em que entram em cena o corpo, a mente, o cérebro e as sensações produzidas através
desses contatos com os ambientes urbanos (ELLSWORTH, 2005).
Uma das estratégias utilizadas para a identificação dos lugares de aprendizagem
noturna na cidade foi observar e registrar práticas cotidianas, penetrar nas vivências dos
sujeitos, montando cenas na paisagem de um parque púbico à noite. Investigação que
adota a perspectiva de Certeau (2005) em seguir “procedimentos – multiformes,
astuciosos e teimosos – que escapam à disciplina sem ficarem mesmo assim fora do
campo onde se exerce, e que deveriam levar a uma teoria das práticas cotidianas, do
espaço vivido e de uma inquietante familiaridade da cidade” (p.175). Assim, nas seções
seguintes,apresento como a realização de determinadas práticas durante o encontro
Serenata Iluminada pode estar relacionado com a produção de aprendizados naquele
ambiente.
Serenata Iluminada: o lugar de aprendizagem e as cenas noturnas
Cena 1: “POA me faz sorrir” e os “abraços grátis”
“Ocupando o parque para pensar a convivência em Porto Alegre” é a descrição
do encontro noturno divulgado via redes sociais na internet e conhecido como Serenata
Iluminada. O evento é apresentado como uma causa que visa “a ocupação dos espaços
públicos da cidade, em prol de mais segurança, do direito à cidade, para que todos
possam compartilhar os parques, as ruas, com os amigos, vizinhos, familiares, enfim,
com todas as pessoas, também à noite”. Assim, pensar em serenata é pensar em noite,
iluminada, tanto tecnologicamente quanto metaforicamente, é pensar em outros modos
para investigar e entender como as práticas realizadas com o intento de ocupar espaços e
tempos públicos noturnos produzem aprendizados em determinados lugares na noite da
cidade.
“Porto Alegre está tão triste, conte pra nós um lugar que te faz feliz na
cidade!”, interpelam entusiasmadas as meninas enquanto oferecem adesivos e
conversam com os ocupantes do parque durante o evento.Momentos em que suas
açõessão registradas com fotografias e depoimentos.
Fonte acervo pessoal do autor. Foto por Cristiano Guimarâes
Em meio ao burburinho de vozes e envolto pelo som dos instrumentos musicais
tocados ao vivo, escuto a empolgada descrição da campanha realizada por aquelas
jovens recém-saídas da adolescência:
A nossa campanha se chama POA ME FAZ SORRIR e ela consiste em fazer com que as
pessoas se lembrem de alguns momentos e alguns lugares que já fizeram elas sorrirem
em Porto Alegre {...} para que agente possa mostrar para outras pessoas, e talvez
outras pessoas terem a iniciativa de viver, de conhecer, de ir nesses lugares, de ter
esperança que Porto Alegre pode ser um lugar bom de novo.
Registrar fotograficamente os lugares da cidade que são lembrados através de
experiências pessoais positivas é uma prática para lidar com a dificuldade cada vez
maior, nos espaços e tempos públicos que se apresentam na cidade, de se vislumbrar os
locais onde a felicidade se acomoda. Embora o objetivo seja louvável, o que se
evidencia naquela prática são as possibilidades de experiências que são ampliadas e
produzidas durante sua realização. Experiências vividas intensamente com a interação
com os demais participantes do encontro, colocando o corpo, a mente e o cérebro em
movimentação constante para a produção de conhecimentos e aprendizados realizados
naquele lugar.
Ellsworth (2005) destaca que os aprendizados realizados em determinados
locais são difíceis de classificar como pedagógicos, pois são produzidos em lugares
peculiares, lugares que só podem ser identificados se mudarmos nosso ângulo de visão.
Segundo a mesma autora (2005, p.5), tais lugares são considerados “anômalos”, pois os
aprendizados e práticas que aí se desenvolvem são difíceis de serem vistos como
pedagógicas se “apenas os olharmos do ‘centro’ dos discursos e práticas educativas
dominantes – posição que leva o conhecimento a ser uma coisa já feita e o aprendizado
uma experiência já conhecida” [grifos da autora]. Mas, se olharmos para esses lugares
como possibilidades de multiplicar as potencialidades de aprendizados, a “excêntrica
conotação da frase ‘a experiência da auto-aprendizagem em construção’ torna sua força
pedagógica mais aparente. [grifos da autora] (p. 5).
Os lugares de aprendizado propostos por Ellsworth (2005) podem ser
identificados como espaços em que diversas práticas individuais ou em grupo são
realizadas. Para Ellsworth (2005), diferentes realidades colocadas em interação em um
mesmo espaço e tempo produzem experiências crucias para o entendimento entre o eu e
o mundo. Lugares de experiências vividas que se transformam em aprendizados,
colocando diferentes realidades em um mesmo espaço e tempo.
Durante a caminhada investigativa que eu continuava empreendendo pelo parque,
observo em diferentes grupos, distribuindo naquele local o gesto do abraço,
simbolizando as afetividades que aquele encontro possibilita. Momento em que me
aproximo e registro dois meninos oferecendo “abraços grátis”. (Diários de campo,
2016)
Na potência daquelas aproximações físicas, e “grátis”, são promovidos atos de
afetividade, assumindo tanto uma sutil forma de resistência às sensações de insegurança
e medo que provocam o esvaziamento dos espaços públicos de lazer à noite, quanto ao
que “parece ser a característica da comunhão sensível ou afetiva que vem substituir a
sociedade puramente utilitária”(Maffesoli, 2004, p.40).
Maffesoli acredita (2004) em experiências sociais em que repousa a “razão
sensível”, pois a sensibilidade deposita ênfase na vida e na experiência, mas também no
banal e no cotidiano, acentuando e pluralizando as razões e as sensações. Para o autor
(2004), é na fusão da experiência, da vivência e da coletividade que podemos encontrar
o fundamento e a legitimidade da razão que entra em sinergia com o sensível. Os
espaços e tempos imaginados, sentidos e praticados estão repletos de vivências
cotidianas, de experiências plurais que se fundem por meio do contato com o outro,
pois, como afirma Maffesoli (2004, p. 42), “é essa experiência do outro, a experiência
de sua vivência através da minha que fundamenta a compreensão dos diferentes
‘mundos’ constitutivos de um dado período”.
As formas de ocupar os espaços e tempos da noite naquele parque público estão
articuladas com as sensações que emergem a partir dos encontros. Encontros presenciais
por meio da potência do corpo, que está fisicamente presente e promove a emergência e
a experiência dos aprendizados que ali se efetuam. Realizadas em um evento público
onde diferentes encontros acontecem, essas iniciativas buscam tanto os “locais felizes”
em uma metrópole ameaçada pela tristeza claustrofóbica, quanto atitudes afetivas que
desejam retomar a prática cotidiana dos usos sociais de ocupação do espaço público
Fonte: acervo pessoal do autor. Foto por Cristiano Guimarães
urbano.Sobretudo, através dessas práticas,os aprendizados estão em constante produção,
estão continuamente sendo feitos e colocando seus realizadores em relação de
experimentação com si mesmo e com as realidades do outro.
Cena 2 : o“saber-fazer pessoal” do aprendizado
Fonte: acervo pessoal do autor. Foto por Cristiano Guimarães
Para fugir das totalizações dos olhares que cegam outras visibilidades possíveis,
continuei na busca de detectar demais práticas em meio aquele agrupamento social
noturno. Em alguns pontos do local existia a comercialização de bebidas, alimentos e
outros produtos fabricados artesanalmente, práticas que remetiam a formas
contemporâneas de escambo, pois seus realizadores trocavam entre si suas produções.
Para Certeau (2000), desde que o conceito de “popular” foi inscrito para identificar uma
hierarquização entre o trabalho científico e industrial sobre a produção que não tem por
finalidade exclusiva o lucro, baseando-se, assim, por outros modelos socioeconômicos,
certas práticas e saberes tem sido relegadas à “marginalidade” social.
Certeau (2000), ao usar o modelo da “sucata” para identificar as práticas que
subvertem a força da economia contemporânea e fogem da lógica industrial, de tempo e
fins lucrativos pode nos auxiliar a encontrar nas práticas “artesanais” observadas
durante o evento Serenata Iluminada o que o autor denomina de um “saber-fazer
pessoal”. Saberes e fazeres que servem menos pela forma como o seu material é
produzido, de forma “popular” ou “artesanal” e mais como possibilidades pedagógicas,
pois se configuram como práticas culturais que, além de realizar rupturas na ordem
social e econômica, sua produção e troca estão envoltas em aprendizados e
conhecimentos.
Ellsworth (2005) comenta que “se a pedagogia consiste de práticas e processos
que transformam qualitativamente os modos como pensamos e atuamos no mundo, isto
também transforma qualitativamente nossa incorporação no e do mundo”5 (p.118). Isto
significa dizer que, na pedagogia, o objeto de atenção e curiosidade pode ser
incorporado na experiência do aprendizado de si. Segundo a autora, eventos, objetos e
ambientes estão materialmente e profundamente implicados com o cérebro, a mente e as
sensações corporais que são cruciais para entender como são processados esses
movimentos de interação. Por isso, para a autora (2000), ao engajar-se com a
materialidade do tempo e do lugar, a pedagogia está implicada com as sensações e os
movimentos que são cruciais para potencializar o conhecimento e o entendimento,
produzindo a materialidade do aprendizado de si.
O “saber-fazer pessoal” dessas práticas vai além de uma manufatura artesanal,
elas promovem encontros, fabricando conhecimentos e vivências por meio de trocas em
que a comunicação, a reciprocidade, as amizades são produzidas através da interação
entre os sujeitos e os espaços e tempos em que estão inseridos. Observar a realização de
determinadas práticas durante aquele encontro noturno possibilitou compreender como
são produzidas diferentes experiências, movimentos e atuações, transformando aquele
local em um lugar de aprendizado.
Cena 3: sensações e aprendizados
5 As traduções da autora, neste texto, são de minha responsabilidade.
Fonte: acervo pessoal do autor. Foto por Cristiano Guimarães
Não sei o que o rapaz lia, posicionando-se como um pensador introspectivo na lateral
do lago conhecido como Espelho D´água parecia não se importar com os passantes em
volta de si. Seguiu absorto... Em frente ao mesmo lago, músicos tocavam e cantavam
em uma interação com o público presente no encontro. Canções e luzes na noite,
chegando aos lugares mais escondidos do parque, atingindo indivíduos e grupos,
movimentando seus corpos..(Diários de campo, 2016)
Maffesoli (IE, 2003, p. 56) constata que existe uma dificuldade em certos
intelectuais de captarem “a parte de poesia que é preenchido o cotidiano”. Poesia que,
segundo o autor, certamente não é reivindicada como tal, mas que se encontra com força
“nessas comunicações não verbais pelas quais se expressa a paixão social” (p.56).
Certeau(2005) também pode nos auxiliar nessa aproximação do olhar ao afirmar que
uma “prática do espaço é indissolúvel do lugar sonhado”, é o “[...] processo indefinido
de estar ausente e a procura de um próprio” (p. 183). De acordo com esse autor (2000),
aos modos como os praticantes operam, ou como produzem suas “maneiras de
fazer”,um lugar praticado também pode ser vivido,sentido e aprendido de distintas
maneiras.
Aliada à contribuição de tais autores, a perspectiva adotada por Ellsworth (2005)
possibilita percorrer outros caminhos para entender como distintas formas pedagógicas
podem coexistir, além de serem produzidas e colocadas em funcionamento em diversos
lugares noturnos da cidade. Descobrir um novo sentido para a pedagogia tem se tornado
a busca e o desejo para Ellsworth (2000) articular uma “nova pedagogia das sensações”.
Tratam-se de pedagogias fluídas, formas de condução que emergem a partir de
múltiplos processos de interação, pois os saberes e aprendizados podem ser
“esculpidos” entre o eu e o mundo de diferentes maneiras, não seguem uma lógica
linear. Surgem “de um lugar que não pode ser acessado ou autenticado através da
linguagem proposicional ou referencial”6 (ELLSWORTH, 2008,p.8).
Para Ellsworth (2005) o “desconhecido” ou o “desconhecimento” é a radical
relação e interação do sujeito com o “outro” por meio de um espaço de transição, e é
esse “trânsito” entre o exterior e o interior que vai estabelecer o conhecimento. Segundo
a autora (2005), o espaço in-between, o “espaço entre”, que estabelece a diferença, é
espaço que encontra um “not me”, um eu que ainda não estava descoberto e que se
descobre em ações e práticas como respostas para mudar os encontros, tanto dentro de si
quanto fora.
O aprendizado de si é entendido por Ellsworth (2005,p.29) “[....] como um
processo engajado de duração e movimento, articulado através de redes de sensações e
por meio de panoramas de espaços, corpos e tempos”. Assim, a música, a poesia,
formas de artes ou práticas em que o corpo, a mente e o cérebro estão em
funcionamento constante, produzem sensações que colocam em interação o indivíduo
com os ambientes em que se encontram. São experiências de aprendizagem, pois, de
certo modo, forçam interações em lugares onde tudo se mistura: sons, ruídos, luzes,
vozes, arquitetura, os sujeitos e seus corpos. Nesse sentido, Ellsworth (2005) considera
as práticas realizadas em tempos e espaços como construtores de sensações, pois o
“corpo” dos ambientes pedagógicos encontra com o corpo dos sujeitos por meio de
redes de relações de interação produzidasnos lugares de aprendizados.
Continuei não sabendo o que o rapaz lia na beira do lago, continuei observando a
interação dos indivíduos durante a apresentação musical. Um olhar a partir de um ponto
fixo, a partir de uma perspectiva direcionada, refutaria a possibilidade de encontrar
aprendizados naquelas ações, mas, no espaço-tempo daquele lugar, eles eram
6 No trecho completo: Such knowings arise, in other words, from a place that can be neither accessed nor authenticated through propositional ou referential language (ELLSWORTH, 2005, p.8).
produzidos por meio da interação entre os sujeitos e tudo o que acontecia em sua volta.
Condição externa que atuava “internamente” por meio do corpo, da mente e do cérebro
dos indivíduos que ali se encontravam, conexões realizadas por meio de encontros entre
o “eu” e o ambiente onde os sujeitos participantes do encontro experimentavam outras
formas de viver, de sentir, de aprender.
Os sujeitos seguiam, caminhando pelo parque, enquanto a música entrava pelos
seus ouvidos, invadia seus cérebros e movimentava seus corpos. Tudo parecia interagir
naquele lugar. O “lugar sonhado” parecia encontrar os “lugares de aprendizagem”
através das sensações produzidas em seus espaços e tempos.
Considerações finais
Segundo Ellsworth (2005) as experiências de aprendizado, são produzidas
através de caminhos processuais entre o “eu” e as condições do lugar, ligando as
dimensões “interiores” e “exteriores”. São experiências de aprendizado, que se
localizam nos interstícios, práticas que se realizam “entre” espaços e tempos,
produzindo conexões através de encontros. Espaços, tempos, indivíduos, arquiteturas,
práticas, corpos e sensações se fundem como composições que colocam em contato os
sujeitos e os distintos modos de ocupar, conviver e aprender em determinados lugares
da cidade. Lugares de aprendizado onde os indivíduos vivem em redes de proximidades
presenciais, físicas, realizando práticas sociais, constituindo modos de ser e estar
consigo, com os outros e com o ambientes em que se encontram.
Os lugares de aprendizado evidenciam o que Maffesoli (2004) denomina
“ligância” social no sentido dado pelo termo francês como “aquilo que me liga ao
outro” (p.49), ou, conforme o autor, sua significação inglesa “que remete à confiança
que podemos sentir nos outros, ou à confiança que experimento com terceiros diante de
algo que nos é externo”(p.49). Assim, continua o mesmo autor (2004), “o meio, misto
como é, seria condição de possibilidade da existência humana, a partir da existência
social e da existência natural. Isso equivale a dizer que o ‘eu só toma consciência de si’
como relação” (p.49).
A composição das cenas noturnas a partir das práticas observadas e registradas
durante o encontro Serenata Iluminada demonstram que os aprendizados podem ser
produzidos por meio de relações entre o corpo, a mente e o cérebro, pois estão em
contato com as materialidades presentes no lugar de acontecimento da ação.
Aprendizados produzidos por meio de conhecimentos e saberes que estão
continuamente em fabricação, fugindo de lógicas que teimam em constituir a
aprendizagem como algo acabado. Práticas e experiências de aprendizados que ampliam
o entendimento de “pedagogia”, pois nem sempre são nítidas as fronteiras pedagógicas
que demarcam, conduzem e modelam os sujeitos envolvidos nesses processos.
Diante disso, finalizo esse texto seguindo Ellsworth (2005) e seu convite para
repensar como fabricamos e são fabricadas as teorias pedagógicas sobre sujeitos
humanos, como incorporamos experiências de movimentos, ações e sensações no
mundo, como realizamos leituras aos lugares de aprendizagem da cidade e, sobretudo,
repensar sobre a forma como conhecemos e usamos as teorias no campo da educação.
REFERÊNCIAS
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