Post on 10-Jul-2016
description
CENTRO UNIVERSITÁRIO ESTÁCIO DE SÁ
ARTIGO CIENTÍFICO
LUTO – A DOR DE QUEM FICA
AUTOR: Nayara Lima
PROFESSOR: Selene Regina Mazza
Fortaleza, 2015
NAYARA LIMA
LUTO – A DOR DE QUEM FICA
Artigo científico apresentado para a disciplina de Produção Avançada de Trabalho Acadêmico II, como requisito para avaliação do curso de Psicologia do Centro Universitário Estácio/FIC do Ceará.
Fortaleza, 2015
Luto – a dor de quem fica
Nayara Lima1
Selene Regina Mazza2
RESUMO
O presente trabalho aborda o assunto luto, tendo por objeto de estudo o caso de
Jackie Hance relatado no livro “Até que o tempo nos reúna – Uma história de perda,
esperança e renascimento” escrito por Jackie Hance e Janice Kaplan, publicado pela
editora Fontanar. A autora narra a experiência que viveu ao perder as três filhas num
acidente de carro. O presente estudo analisa os contornos psicológicos do luto
materno, investigando as interfaces entre as relações intersubjetivas da personagem
protagonista, apresentando perspectivas teórico-conceituais do luto materno,
verificando e analisando as fases do luto vivenciadas pela protagonista do livro à luz
dos estudos realizados por John Bowlby sobre o luto.
Palavras-chaves: luto, luto materno, perda
ABSTRACT
This work addresses the subject “mourning”, having as object of study the case of
Jackie Hance, reported in the book "I’ll see you again - a story of loss, hope and
rebirth" written by Jackie Hance and Janice Kaplan, published by Fontanar publisher.
The author narrates the experience she lived when she lost her three daughters in a
car accident. This study analyzes the psychological contours of maternal grief,
investigating the interfaces between the interpersonal relations of the protagonist
character, with theoretical and conceptual perspectives of maternal grief, checking
and analyzing phases of the mourning experienced by the protagonist of the book in
the light of Bowlby’s studies on mourning.
Keywords: mourning, maternal mourning, lost
1 Estudante de psicologia do Centro Universitário Estácio/FIC 2 Doutora pela USP, Professora do Centro Universitário Estácio/FIC
3
1 INTRODUÇÃO
A morte é a única certeza que nos acompanha por toda a vida, e da qual, dentre as
tantas incertezas, queremos nos afastar em pensamento e em realidade. A morte é algo que se
espera sem esperar, que se nega o tempo todo para não se sentir à margem e poder prosseguir
(VALENTE, 2008).
A morte da pessoa amada desencadeia desconforto psíquico, redução da carga libidinal
e das afeições que vinculavam ao ser amado, daí em diante configurando nova representação
intrapsíquica, como perda irremediável. Com a perda do amado, o enlutado encara o vazio, a
falta de sentido, a fragilidade do próprio ego, a ausência total dos investimentos libidinais que
aguçam nossos desejos fundamentalmente vinculados a nossa existência. A morte representa a
realidade, o indizível, a impossibilidade de significação.
O sentido etimológico da palavra “luto” (do latim luctus) é dor, mágoa, lástima. O luto
é uma reação natural ao rompimento de um vínculo afetivo. O sentimento de luto gera no ser
humano uma situação estressante, porque nasce em decorrência de uma perda não desejada
que, normalmente, ocorre de forma drástica e inesperada. Associado a uma perda irreversível,
o luto exige muito trabalho psíquico. Ele absorve o ego do indivíduo como um todo. É por
isso que diante do luto, todas as outras coisas significativas para a pessoa enlutada perdem,
momentaneamente, seu sentido e seu valor. O trabalho de luto, afirma Freitas (2000), exige
um esforço psíquico para que o enlutado possa resgatar as partes perdidas de seu ego porque
projetadas no objeto de amor perdido.
O luto é um processo lento e doloroso, que tem como características uma tristeza
profunda, afastamento de toda e qualquer atividade que não esteja ligada a pensamentos sobre
o objeto perdido, a perda de interesse no mundo externo e a incapacidade de substituição com
a adoção de um novo objeto de amor (FREUD, 1969). Seja esse luto por morte ou por
qualquer outro tipo de perda (separação, amputação, roubo, etc). O rompimento de uma
relação implica a necessidade de adaptação à condição de viver sem o amado. No confronto
com a crise iniciada pela perda, torna-se muito importante que seja dada a pessoa enlutada a
possibilidade de encarar, fase a fase, as implicações dessa morte em seu presente e futuro.
Quando se trata de luto materno, a crise se agrava consideravelmente, trazendo
consigo um sentimento irreparável de culpa e quebra do ciclo natural da vida.
4
O tema luto está presente na vida de todos, no entanto, é costumeiramente negado e
evitado. A certeza da morte humaniza o ser humano e o torna consciente da finitude. A
sociedade é carente de profissionais especializados ou que estejam no dia-a-dia lidando com
esse tema, uma vez que nos dias atuais, mortes repentinas e violentas são comuns. Os
profissionais treinados teórica e emocionalmente para efetuar atendimento a enlutados devem
estar abertos para olhar para dentro de si mesmos e encarar seus medos e suas angústias
relacionadas à morte, ao fato de morrer e ao medo da perda.
2 METODOLOGIA
Caracteriza-se por um estudo de caso, pois como apresenta Gil (1999), trata-se de um
estudo que busca:Explorar situações da vida real cujos limites não estão claramente definidos; preservar o caráter unitário do objeto estudado; descrever a situação do contexto em que está sendo feita determinada investigação; Formular hipóteses ou desenvolver teorias; E explicar as variáveis causais de determinado fenômeno que, em situações muito complexas, não possibilitam a utilização de levantamentos e experimentos (Gil, 1999, p.73).
A pesquisa baseia-se no caso de Jackie Hance, relatado no livro “Até que o tempo nos
reúna – Uma história de perda, esperança e renascimento” escrito por Jackie Hance e Janice
Kaplan, publicado pela editora Fontanar, em que a autora narra a experiência que viveu ao
perder as três filhas em um acidente de carro.
Os dados serão selecionados do caso Jackie Hance, supracitado, e correlacionados
com a teoria de livros e artigos disponíveis em sites de coleção de periódicos como: PePSIC,
SciELO e BVS-Psi, que trabalham a temática de dor, perdas e luto.
O presente estudo analisa os contornos psicológicos do luto materno, investiga as
interfaces entre as relações intersubjetivas da personagem protagonista, apresentando
perspectivas teórico-conceituais do luto materno, tendo como base os estudos de John Bowlby
sobre o luto. O caso de Jackie Hance é analisado, identificando as fases do luto estudadas por
J. William Worden.
2 O LUTO – Conceitos e teorias
A cultura grega considerava o morrer como a separação do corpo da alma. Acreditava-
se que esses dois encontravam-se em posição dualística. Porém não existiam evidências do
5
que acontecia no momento depois da morte, o que deixava as pessoas com medo. Surgem
assim, partindo de questionamentos de Sócrates e Platão, as primeiras dúvidas e receios a
respeito do morrer (SANTOS, 2007).
O historiador Phillipe Ariès (2002) caracteriza a Idade Média como o período da
“morte domada”, onde o fim da vida não era considerado sinônimo de morte física; mais do
que isto, era um sono e cabia à Igreja3 assegurar a ressurreição dos mortos por ocasião da
volta de Cristo.
Contudo, no final do século XVIII e durante todo o século XIX, a visão absolutamente
religiosa passou por um declínio surgindo o modelo científico e medicalizado. Na Europa
principalmente, a relação entre o moribundo e seu ambiente foi radicalmente mudada, pois o
indivíduo perde a aceitação da morte e passa a depender da vontade médica. Nos hospitais, os
médicos lutam pela sobrevivência. O desejo do paciente e de seus familiares torna-se
irrelevante. A morte deixa de ser um fenômeno natural e necessário na presença dos entes
queridos e passa a ser um ritual mórbido e temido por todos. O morrer torna-se associado não
só com o medo, mas a tudo que é ruim, transformando-se num reflexo dos valores da
sociedade.
“A sociedade atual expulsou a morte para proteger a vida. Não há mais sinais de que uma morte ocorreu. O grande valor de século atual é o de dar a impressão de que “nada mudou”, a morte não deve ser percebida. A boa morte atual é a que era mais temida na Antiguidade, a morte repentina, não percebida.” (Kovács, 1992, p.38).
Conforme Bowlby (2002), o medo da morte existe em todos, porém o homem vive
como se nunca fosse morrer, e como se nunca fosse sofrer nenhuma perda. O assunto está
sempre nas páginas de revistas e manchetes de jornais, mas só se dá conta de que qualquer um
está sujeito às diversas perdas, incluindo a morte, quando morre alguém muito próximo.
Para Freud (1969), a morte não é a única perda. A separação conjugal ou o divórcio, a
troca de emprego ou casa, a diminuição do funcionamento do corpo em decorrência de uma
doença crônica, ou o nascimento de um filho deficiente também envolvem perdas, incluindo
sonhos e expectativas. Qualquer mudança, até mesmo as desejadas como casamento ou
aposentadoria traz uma perda. Deve-se desistir ou alterar certas relações, papéis, planos e
possibilidades, para se ter outras. E toda perda produz um luto que reconheça a desistência e
transforme a experiência, para que se possa internalizar o que é essencial e seguir em frente.
3 Igreja católica
6
O luto chamado de normal implica um processo dinâmico e complexo, que envolve a
personalidade do indivíduo e abrange de modo consciente e inconsciente todas as funções do
ego, as atitudes, as defesas e as relações com os demais (FREITAS, 2000).
No luto dito normal há um sofrimento provocado pela perda do objeto, que é inegável,
quando ocorre a morte. Com a perda do objeto amado, se perde também a parte do ego que
era projetada nele, e consequentemente há um enorme esforço psíquico que implica em
recuperar as ligações com a realidade, causando o desligamento dos aspectos persecutórios do
objeto perdido (ESCUDEIRO, 2012). O luto normal é então aquele em que a pessoa passa por
todas as suas fases em um tempo chamado normal, sem se fixar em uma dessas fases; porém,
quanto maior o apego com o objeto perdido, mais doloroso será o luto.
No luto patológico, segundo Worden (1998), o indivíduo não passa pelas fases durante
o tempo considerado normal ou pula uma das fases, que são: entorpecimento, anseio e busca
da figura perdida, desorganização e desespero, e reorganização. No luto considerado
patológico, a libido permanece orientada para o próprio ego.
Worden (1998), a partir de sua experiência clínica e estudos com enlutados, postula a
existência de tipos especiais de luto que exigem uma compreensão adicional do processo,
como o luto por morte súbita de um ente querido. Worden identificou padrões inerentes a esta
condição, que devem ser conhecidos e contemplados para o entendimento da pessoa enlutada
e para a intervenção profissional, tanto no seu curso normal quanto complicado. São
classificados oito Padrões Especiais de Luto por morte súbita (PEL) expressos nas seguintes
manifestações:
1) sensação de irrealidade sobre a perda, podendo ocorrer pesadelos e imagens intrusivas
depois da morte, comprometendo a realidade do fato;
2) exacerbação de fortes sentimentos de culpa expressa por “se pelo menos...”, impondo-se
responsabilidade pela morte;
3) desejo extremamente forte de censurar alguém pelo que aconteceu, construindo o bode
expiatório;
4) frequente envolvimento com autoridades médicas e legais, em especial no caso de
acidentes e homicídios, dificultando o processo e conclusão do luto, relacionados a atrasos e
falta de conclusão do processo legal;
7
5) sensação de desamparo, ligada a uma incrível expressão de raiva, como defesa contra a
realidade e a dor da morte, devido ao abalo na sensação de poder e de regularidade
experimentado pela morte súbita;
6) depressão agitada;
7) preocupação por sensação de um trabalho não terminado, devido ao remorso por coisas que
não fizeram ou disseram para a pessoa amada que morreu;
8) interesse especial e crescente necessidade de compreensão, relacionado com a necessidade
de domínio quando a morte foi traumática, buscando determinar a causa e também o culpado.
Nos estágios de reação à perda e as fases do luto descritas respectivamente por Kübler-
Ross (2005) e Bowlby (1990), percebe-se que as respostas geradas pelo sofrimento da perda
de um ente querido são respostas que os indivíduos apresentam diante de um evento estressor.
Portanto, a perda repentina de um ente querido pode ser considerada um evento ameaçador à
integridade física, psicológica e social do indivíduo. Esquemas de privação emocional,
abandono, defectividade, além de esquemas de inibição emocional, são caracterizados,
principalmente, por evitar a expressão de sentimentos e pensamentos. São mecanismos
defensivos que barram emoções desagradáveis e podem ser encontrados nos primeiros
estágios de reação à perda e nas fases do luto descritas por Kübler-Ross (2005) e Bowlby
(1990), pois a negação e o entorpecimento configuram uma resposta de enfrentamento
desadaptativa frente à situação de perda por morte.
No luto normal, o impacto da perda pode ser diminuído em um breve espaço de
tempo, pela formação de novos vínculos substitutivos e no investimento em novas atividades
de aceitação social (FREITAS, 2000). Ao passo que no patológico, o vínculo permanece
intenso com uma pessoa que não está mais viva, não permitindo que a pessoa enlutada, no
caso a mãe, tenha a vitalidade necessária para a manutenção de uma vida psíquica saudável,
abrindo espaço assim para reações como negação, ambivalência, distorção e permanência no
passado, o que acaba levando ao adoecimento psíquico. Nessa perspectiva, Freud relata que o
luto normal:
(...) é a reação à perda de um ente querido, a perda de alguma abstração que ocupou o lugar de um ente querido, como pai, a liberdade ou o ideal de alguém, e assim por diante. (...) Também vale a pena notar que, embora o luto envolva graves afastamentos daquilo que constitui atitudes normais para com a vida, jamais nos ocorre considerá-lo como sendo uma condição patológica e submetê-lo a tratamento médico. Confiamos em que seja superado após certo lapso de tempo. (FREUD, 1969, p.249).
8
Caso não seja elaborado de forma natural, haverá o desenvolvimento de um luto
patológico, no qual não acontece um desligamento satisfatório do sujeito enlutado com o
objeto de investimento pulsional perdido (FREUD, 1969).
Um fator importante de recuperação, segundo Boris Cyrulnik (1998), é o apoio que as
pessoas recebem num momento difícil. Quanto mais se sentem amparadas durante e
imediatamente após a situação de dor, melhor será sua resposta. As pessoas enlutadas têm
muito em comum, o que nos leva a ver o luto como um todo, e a mapear o curso de
acontecimentos característicos que o acompanha.
Segundo Freitas (2000), a atitude convencional do homem civilizado diante da morte
fica complementada pelo abatimento espiritual quando a morte fere uma pessoa amada.
Enterra-se com aquele, as esperanças e aspirações dos que ficam. O rompimento de uma
relação implica a necessidade de adaptação à condição de viver sem aquela pessoa. Porém, no
confronto com a crise iniciada pela perda, é importante que se dê à pessoa enlutada a
possibilidade de encarar, fase a fase, as implicações desta morte em seu presente e futuro.
Visto globalmente, o luto se assemelha a uma ferida física mais do que qualquer outra
doença. A perda pode ser sofrida como “um choque”. Assim como no caso de uma lesão
física, o ferimento aos poucos se cura. Ocasionalmente, porém, podem ocorrer complicações
tornando a cura mais lenta ou outro ferimento se abre no lugar que estava quase curado.
De acordo com Queiroz (1999), a forma como o luto considerado sadio é vivido, muda
de pessoa para pessoa, mas existem algumas características que são comuns à maioria
daqueles que passam por este processo. Normalmente, na fase inicial, dá-se um torpor ou
dormência emocional em que a pessoa tem dificuldade em acreditar no que aconteceu. É esta
negação da realidade que faz com que seja natural o enlutado ter uma energia inicial, por
vezes quase eufórica, que lhe permite tratar das questões burocráticas inerentes a um
falecimento. Em seguida, surge a desorganização emocional, com uma grande agitação e
ansiedade, estados depressivos, revolta com o que aconteceu e sentimentos de culpa por achar
que podia ter dito ou feito algo enquanto a pessoa era viva ou para evitar a morte. Surge ainda
um forte sentimento de querer encontrar a pessoa que faleceu e a angústia extrema de saber
que nada pode trazer a pessoa amada de volta.
Ainda segundo Queiroz (1999), todas as situações e locais fazem lembrar o falecido e
por vezes tem-se mesmo a sensação de que este ainda está presente. Ocorre oscilação entre a
recusa e a aceitação do sucedido. Algumas pessoas começam a isolar-se porque sentem que
9
mais ninguém consegue compreender a sua dor e que o seu problema é único e impossível de
superar.
Por fim Queiroz (1999) afirma que num processo de luto normal, à medida que o
tempo passa e com o apoio adequado, a angústia e o sofrimento começam a diminuir a
intensidade e a pessoa começa a ganhar a capacidade de pensar noutros assuntos ou até
programar projetos futuros. Apesar da perda se manter e de ser algo que permanece no
interior da pessoa para a vida toda, torna-se possível que esta volte a sentir-se completa e que
encare a vida de uma forma positiva.
Nos casos de luto patológico, para Bowlby (1982), o indivíduo parece lutar contra o
destino com todo seu ser emocional, na tentativa desesperada de reverter a marcha do tempo e
reaver os tempos felizes que subitamente lhe foram arrebatados. Em vez de enfrentar a
realidade e tentar harmonizar-se com ela, a pessoa trava uma luta contra o passado. Nesses
casos, o enlutado necessita de acompanhado profissional adequado que lhe auxilie a assimilar
a dor e desenvolver maneiras de superá-la.
Bromberg (1994) diz que o processo considerado "anormal" pelos especialistas tem
duas reações opostas: ou a pessoa não sai do luto (a mãe que arruma o quarto do filho,
cultuando o morto todos os dias) ou sequer entra nele (a pessoa fica indiferente, não chora,
age como se não tivesse acontecido). Nesse luto "adiado", a dor fica guardada em algum lugar
e um dia vem à tona.
A partir de conclusões da prática clínica e pesquisas, Freitas (2000) afirma que quando
existe o triunfo sobre a pessoa perdida, a morte dessa pessoa é sentida como uma vitória. Há
uma reativação dos sentimentos de ódio. Esse ódio transforma a pessoa amada e perdida em
um perseguidor, e faz com que o enlutado não acredite em seus bons objetos internos. O luto
torna-se prejudicado, patológico.
O desenvolvimento de reações complicadas de luto envolve fatores sociais. O luto é
um processo social, e é com apoio social que as pessoas podem suportá-lo. O primeiro fator
social refere-se à morte por suicídio, quando o pesar é socialmente inexprimível. A
conspiração do silêncio causa grande amargura no indivíduo enlutado, porque há necessidade
de comunicar-se com os outros para resolver o luto. O segundo fator social que complica o
luto ocorre quando este é socialmente negado. A terceira dimensão que pode causar
complicação é a ausência de uma rede adequada de apoio social. Essa ausência provoca
isolamento social, que leva às reações complicadas de luto.
10
Para que o luto seja resolvido adequadamente, o enlutado precisa confiar nos seus
bons objetos internalizados. O sofrimento da perda pode estimular sublimações, que
contribuem para elaboração do luto. Há pessoas que, após um luto intenso tornam-se mais
produtivas, mais tolerantes em suas relações com os demais e mais sensatas. Outras produzem
obras de arte e/ou se dedicam a trabalhos sociais. São experiências prazerosas e representam
uma forma de vencer as frustrações e o desprazer.
3 LUTO MATERNO: o caso de Jackie Hansen
No decorrer da história da humanidade o amor materno passou por modificações,
chegando, segundo Rousseau (1762), ao período de exaltação, onde as bases da família e
vínculos afetivos passaram a ser valorizados nos discursos filosóficos, médicos e políticos.
Para Kaplan (1994), a maternidade é definida como suprema capacidade criativa do
ser humano. Deve ser compreendida desde a fecundação até quando termina o
desenvolvimento infantil. Após a infância, a maternidade continua e representa a
transcendência por intermédio dos filhos, em sentido individual; pela nova geração, no
sentido social. Entende-se que o vínculo da mãe com o filho é determinado por uma gama de
fatores que transcende a Psicologia.
Até 26 de julho de 2009, Jackie Hance era uma mulher comum que residia em Floral
Park cidadezinha em Long Island, Estados Unidos, com o esposo Warren e as três filhas
Emma, Alyson e Katie de oito, sete e cinco anos respectivamente. Às meninas era dedicado
todo amor, atenção e tempo, estando as três em fase de desenvolvimento.
Em certo fim de semana de julho, as crianças foram acampar com os tios Diane (irmã
de Warren) e Danny seu marido, mais os filhos de Diane. A mesma viagem já havia sido
realizada no verão anterior e todos gostaram muito. Diane era uma segunda mãe para as
meninas, que se sentiam à vontade e seguras. Sendo assim, Jackie não imaginou nenhum
motivo para as filhas não irem.
Porém na volta, às 12h58 do domingo, a filha mais velha ligou para casa chorando. Ela
relatou que a tia parecia estar passando mal, e quando Jackie falou com a cunhada, que estava
ao volante, notou que a fala de Diane estava arrastada e confusa. O pesadelo começa. Jackie
ligou imediatamente para o marido, que consegue falar com a irmã, e implora para que ela
não saia de onde está no meio da estrada, que ele está se dirigindo imediatamente para o local.
11
A filha Emma lê as placas próximas orientando o pai, pois a tia não consegue falar.
Contrariando as instruções de Warren, Diane continua dirigindo mesmo passando mal.
Polícia, ambulâncias, familiares e amigos passam um bom tempo procurando o carro,
pois Diane não permaneceu no local combinado, até que se recebe a notícia que do lado
oposto das buscas houve um acidente na Taconic Parkway, onde um automóvel percorreu
cerca de três quilômetros na contramão e colidiu com outro levando a óbito oito pessoas, entre
elas quatro crianças (Emma, Alyson, Katie e Erin) e quatro adultos (Diane e três homens que
estavam no outro carro). De todos os envolvidos no acidente, o único que sobreviveu foi
Bryan filho de Diane. A tragédia adquiriu proporções nacionais, jornais e revistas passaram a
especular e perseguir a vida dos envolvidos e a polícia nomeou o acidente como “o pior dos
últimos setenta e cinco anos”.
Até aquele momento Jackie estava em casa acreditando que as filhas teriam parado no
meio da estrada e que pessoas lhes ajudariam até o pai chegar e socorrer a cunhada que
passava mal. Mas, com o passar do tempo, sua casa foi ficando cheia de amigos e a mãe aflita
negava-se a acreditar na gravidade do que tinha acontecido. Quando finalmente, Brad, um
grande amigo da família, lhe deu a notícia que mudaria sua vida: “Elas se foram”.
Daí em diante a vida de Jackie se torna um misto de dor, desespero e culpa. A cidade
inteira se comoveu com a tragédia. A casa dos Hances permanecia cheia de gente. Os amigos
montaram uma escala de horários para que sempre houvesse alguém com o casal. Vizinhos
levavam comida e doações para o funeral. As crianças próximas sofriam muito com a
ausência das três meninas. Os jornalistas não saíam das redondezas deixando Jackie
atordoada.
Os amigos tomaram todas as providências para o funeral. Jackie e Warren, devastados
emocionalmente, seriam incapazes de tomar algumas decisões. Nos momentos de lucidez,
Jackie se questionava sobre sua vida. Não queria vestir seu bem mais precioso como anjos
para a eternidade, ela queria as filhas de volta! Um grito de culpa se ouvia na mente de Jackie.
Quando chegou a hora do enterro, Jackie quis ver o corpo das filhas. Foi um choque
quando Jackie se deparou com suas meninas, tão perfeitas e tão sem vida. Mais uma vez sente
a enorme culpa de não ter conseguido cuidar e proteger seu bem maior. No enterro a cidade
inteira estava presente, menos Jackie, que só estava com o corpo lá. Depois do enterro, a mãe
enlutada foi para o quarto de suas filhas e chorou até as lágrimas acabarem. Só depois de
12
muito tempo, ela se deu conta que o apoio da comunidade, cada olhar e palavra consoladora,
foram sua tábua de salvação.
A cada novo dia Jackie acreditava que iria acordar e tudo aquilo seria um sonho mau.
Suas meninas estariam em casa voltando do acampamento e a vida seguiria. Como ela não
fazia outra coisa a não ser se dedicar às crianças, a vida perdeu totalmente o sentido. Ela não
tinha outra ocupação. Seu trabalho era ser mãe vinte e quatro horas por dia. Os dias se
tornaram monótonos, silenciosos, desesperadores. Jackie sentia angústias terríveis, não saía de
casa, buscava incansavelmente respostas, principalmente na religião, pois achava que Deus
estava lhe castigando. Até que chegou à conclusão que iria se matar para reencontrar as filhas,
só assim poderia voltar a cuidar delas. Mais uma vez as amigas mais próximas se fizeram
presente. Passaram a acompanhar Jackie, muitas vezes concordando com suas alucinações,
respeitando sua dor e estado de extrema confusão mental. Todos os objetos cortantes, xales,
cintos, etc, foram retirados de seu alcance.
Nesse momento ficam claras as fases do luto: choque, negação e procura. Segundo
Bowlby (1985), “o individuo enlutado se encontra perdido e sem motivos para continuar
vivendo, ou procura respostas que não existem e por isso se culpa pelo fato ocorrido”.
Quando o resultado do exame toxicológico de Diane foi liberado pela perícia, foi
constatado que a irmã de Warren apresentava um nível de álcool na corrente sanguínea de
0,19%, o que corresponde a mais de dez doses de vodca ingeridas em uma hora. Havia
também evidências de ela ter fumado maconha há menos de uma hora. A notícia devastou o
casal, que imaginava já ter alcançado o sofrimento máximo com a perda das filhas. Com a
notícia, perceberam que o fundo do poço ainda estava longe.
A primeira reação de todos foi de descrença, pois Diane não bebia, era uma mãe e tia
cuidadosa e jamais ariscaria a vida de cinco crianças daquela maneira. Repentinamente a rua
estava tomada de jornalistas e fotógrafos, e a tragédia retomava sua força. Porém, dessa vez,
Jackie se sentiu na obrigação de dizer algumas palavras, pois naquele momento sua culpa se
multiplicara por ter confiado as filhas a uma mulher que, descobrira tarde demais, era usuária
de álcool e drogas.
Nesse momento muitos outros questionamentos passaram a fazer parte do luto, e um
novo sentimento surgiu: a raiva. Ela passou a exigir respostas que ninguém podia dar. Mas o
que dizer a uma mãe no auge do desespero? Dali em diante, tudo que fazia Jackie se lembrar
13
da cunhada era motivo de revolta, inclusive a presença do marido Warren, por ser irmão da
cunhada.
Desse momento em diante, o acúmulo de estresse, sofrimento, desespero, angústia,
entre outros sentimentos, podem ter provocado amnésia factual em Jackie. Todos os dias ela
acordava achando que era o domingo do acidente e as filhas estavam a caminho de casa. O
inconsciente sabia dos fatos, mas parecia não querer aceitar. Involuntariamente, ficava
retornando ao dia do acidente para consertar a tragédia com a ilusão de que tudo se
normalizasse. Mais uma vez os amigos se fizeram essenciais. Montaram vigilância na porta
do quarto de Jackie, deixavam jornais do acidente para ela ver quando acordasse, escreviam
bilhetes com instruções para ela se reorientar. Depois de ler os jornais, ouvir das pessoas e
passar um tempo desorientada, a memória ia voltando e com ela todo o recente sofrimento e
solidão. Em alguns momentos, sentia culpa por estar fazendo todos aqueles amigos sofrerem.
Eles interromperam suas vidas por sua causa.
Depois de um tempo, Jackie soube que algumas amigas lhe contaram da morte de suas
filhas mais de dez vezes. A fase de negação aparece e reaparece mesmo que inconsciente.
Períodos de desorientação se repetiam. Seu cérebro como que travou no dia do acidente. Dava
sinais de que o corpo não suportava a carga emocional.
Durante o luto, o contato com o esposo Warren era o mínimo possível. Ele também
estava sofrendo com a perda. Além disso, sofria por ver a companheira naquele estado
desequilibrado. O casal não conseguia manter um diálogo, pois sempre a raiva de Diane
aparecia e Warren era culpado por ser irmão da assassina das filhas. Quando tentavam ter
momentos agradáveis, Jackie surtava, pois não podia mais ser feliz com as filhas mortas.
Questionava-se: como poderia ainda amar alguém se tinham lhe tirado o coração? Quando
ficavam sozinhos em casa, se deparavam com o silêncio, a dor da perda era como o ar que
respiravam. Quando saía para tentar se divertir um pouco, a culpa tomava conta. Era como se
estivesse traindo as meninas. Nunca mais poderiam ter momentos de felicidade, pensava. Era
uma culpa irracional.
O tempo passava e a peleja de Jackie com a culpa continuava. No dia que resolvia se
maquiar e sair para fazer compras, se sentia pressionada por um elogio na rua. Quando
ganhou um novo automóvel do marido (e se sentiu feliz) achou que iam falar que ela trocou as
filhas por um carro. Saía com as amigas por obrigação. No fundo acabava gostando de
14
preencher a semana. Os fins de semana eram vazios, pois o casal não tinha com que se
ocupar, sempre acabavam no silêncio da perda.
Com a aproximação do aniversário de Emma e da primeira comunhão de Alyson,
Jackie resolveu comemorar as duas datas e foi respeitada por todos ao seu redor. Na primeira
ocasião, todos os amiguinhos da escola de Emma, vizinhos e familiares foram para a casa dos
Hances onde foi preparada uma pequena comemoração. Jackie viu a casa cheia de crianças
novamente, chegou até dar alguns objetos das filhas para as amiguinhas, mas seu coração
gritava de dor, pois nenhuma daquelas eram suas meninas. No segundo momento, o local
escolhido para a primeira eucaristia de Alyson foi um salão da cidade, o mesmo em que
Emma tinha feito a sua. A festa foi maior, e novamente a vontade de sair correndo dali. Ela se
manteve sorridente a noite toda, até chegar a casa, trancar-se no quarto das filhas e uivar de
dor.
Outras datas chegavam. O tempo não para. A tradicional festa do dia das bruxas na
casa da Jannine foi cancelada. No Natal, o casal nem montou árvore, ganharam dos vizinhos,
aceitaram a contragosto. Na manhã de Natal, o coral da igreja foi à casa dos Hances lhes
oferecer conforto e para surpresa geral, Jackie tinha feito um belo café da manhã para os
amigos.
Ainda no período de luto, Jackie e Warren, com a ajuda dos amigos e moradores da
cidade (muitas vezes a população carregando o casal), criaram uma Fundação que, em nome
das meninas, ajudaria crianças carentes com baixa autoestima. Todo o dinheiro recebido vinha
de doações e cada membro da fundação era voluntário.
Pouco tempo depois do acidente, as pessoas quase que imediatamente passaram a
sugerir novos filhos ao casal, sendo Jackie ainda jovem (menos de quarenta anos). Contudo,
ela não pensava assim. Achava a ideia sem cabimento, não queria outros filhos, pois já tinha
as suas filhas. Seu coração estava fechado para qualquer tipo de sentimento bom e sua saúde
mental em risco. Voltaria a ser a mesma? Contudo, alguma coisa preparava Jackie para uma
nova caminhada. Mesmo que ela lutasse contra isso, seus instintos secretos lhe diziam que ela
tinha que reagir, reescrever a história sem necessariamente esquecer-se das filhas.
O casal acabou fazendo fertilização in vitro com um profissional renomado dos
Estados Unidos que se comoveu com a história. E congelaram quinze embriões para
implantação posterior.
15
Perto de completar um ano do congelamento, quando Jackie estava decidida a se
suicidar, ela teve um sonho no qual Deus dizia que ela não fez tudo o que podia na Terra, e só
depois de cumprida a tarefa de aceitar o presente que lhe foi oferecido, a mãe poderia se
juntar às meninas. Jackie então acordou decidida a fazer a implantação seguindo mais uma
vez seus instintos. Teria que deixar os antidepressivos, o que a tornaria uma “bomba relógio”
prestes a explodir. Contrariando muitos pensamentos de Jackie, a primeira implantação deu
certo e ela engravidou. Como era esperado foi uma gravidez cheia de crises e culpas.
Muitas mudanças vieram ao longo da gravidez, e com cada uma delas, uma briga e um
choque: O dia de tirar a cama de Emma do quarto e doar, o dia de pintar o quarto de Katie
para transformá-lo em closet. Jackie não se sentia pronta para amar e se dedicar a outra vida.
Sempre esperava uma notícia ruim, uma nova tragédia. Chegou a pensar em dar o bebê para
adoção, não queria saber o sexo, no fim se propôs a cuidar do bebê por obrigação e
agradecimento ao médico, Dr. Rosenwaks, que tinha sido tão generoso.
Nos últimos meses de gestação, Jackie passou a observar a vida por outro ângulo.
Compreendendo algumas atitudes do marido, evitando confrontos com ele e se aproximando
daquele coração tão devastado quanto o seu.
No dia 11 de outubro de 2011 nasceu Kasey Rose, uma menina saudável com 3,1
quilos e a boca em formato de coração. Como esperado, o quarto do hospital estava lotado de
amigos e parentes, todos mais entusiasmados e encantados do que os pais, que se
encontravam em estado de pânico com medo do futuro.
A volta do hospital foi mais um bloqueio para Jackie. Agora era a culpa de ter algo
mais importante para se dedicar que a memória das filhas falecidas. Para ela, Kasey era um
farol que apontava para tudo que tinha perdido, e o choro do bebê se confundia com o último
choro de Emma ao celular no dia do acidente.
Do dia do acidente até o dia do nascimento de Kasey, mais de dois anos se passaram e
Jackie ainda não se sentia bem. Tinha crises de choro e sensação de desespero. O que para
Moorey (2005) é compreensível, pois quanto mais traumática é a perda, maior a discrepância
entre a nova informação e os subsídios pré-existentes, sendo maior o processo de assimilação
da nova informação.
As semanas se passaram. Jackie voltou a suas corridas matinais, o que a deixava com
energia e disposta para cuidar da filha, novo objetivo de vida. Jackie não acordava mais com
16
vontade de se juntar às três meninas mortas, e sim com vontade de viver para criar bem a irmã
das meninas. Essa era sua nova escolha. E isso aconteceu aos poucos, em cada saída diária
com a menininha, uma ida ao mercado vizinho, um passeio no shopping, caminhadas no
parque da cidade, locais que, nos dois últimos anos, era doloroso frequentar, voltaram a ser
normais para Jackie. Certo dia, o amor materno foi finalmente despertado na mulher que dizia
ter um coração de lata. Quando menos se deu conta, se viu amando e se sentindo mãe
novamente.
A cada dia ela se sentia mais forte e preparada para lidar com as situações adversas da
vida, incluindo o perdão que precisava ser concedido à Diane. Uma vez que é provável que
nunca se saiba o que exatamente aconteceu naquele dia, é muito melhor tentar construir um
futuro baseado no amor do que no ódio do passado. O relacionamento com Warren foi
melhorando à medida que Jackie passou a enxergar a vida de outra forma. Porém, resolveu
fazer algumas coisas diferentes, como não se dedicar à maternidade integralmente, para ela,
havia coisas e pessoas que não podiam ser deixadas de lado.
Em abril de 2013, quase quatro anos depois do acidente, Jackie lança o livro com
Janice Kaplan “I’ll see you again” (título em português: Até que o tempo nos reúna), no qual
relata toda sua experiência com a perda das filhas e finalmente expõe ao mundo seu
sofrimento e ponto de vista sobre os fatos, além do seu desejo maior que era apresentar as
suas meninas ao mundo. Nesse tempo, seu coração de mãe estava pronto e necessitando se
expor, agradecer a tantos que se comoveram, que mandaram cartas, doações, palavras de
consolo e, por fim, ajudaram outras famílias através da Fundação Família Hance. Jackie, por
fim, entendeu que a dor da perda jamais acabaria, mas que ela tinha compreendido, depois de
dois anos de desespero, choro e desequilíbrio, que a história de sua vida não seria apagada ou
esquecida, mas que um novo capítulo poderia ser escrito todos os dias com sonhos e
esperança. Jackie aceitou o fato como infortúnio do acaso, e não mais como castigo de Deus.
Ou ainda que fosse sua culpa não ter protegido as filhas. Apesar de tudo, ela precisava viver.
E tinha o marido que a amava. Amigos presentes, familiares que mesmo sofrendo tentavam
ajudar, pessoas desconhecidas que lhe abraçavam e o Dr. Rosenwaks que lhe ofereceu uma
nova fonte de esperança: Kasey Rose, sua quarta filha.
4 ANÁLISE DO LUTO DE JACKIE HANSEN
17
O luto é um processo necessário e fundamental que visa preencher o vazio deixado por
qualquer perda significativa. O processo de luto é acompanhado por um conjunto de
sentimentos, entre os quais: tristeza, raiva, culpa, ansiedade, solidão, fadiga, desamparo,
choque, anseio, torpor, alívio e emancipação.
A pessoa que passa por situações de estresse, com a perda de um ente querido,
desenvolve respostas de enfrentamento, ou seja, uma estratégia que se apresenta para
conseguir lidar com o evento traumático. Esquemas caracterizados por um conjunto de
crenças globais e enraizadas, com pressuposições e regras acerca do mundo, podem ser
ativados: Lutar, fugir, paralisar-se, são as principais respostas.
Com a perda repentina de suas filhas Jackie entrou em um processo de luto
complicado. Ela esperava suas filhas retornarem para casa como se toda aquela situação fosse
um sonho mau. A paciente dedicava sua vida a cuidar das filhas. Com a perda do papel de
mãe, ela demostra estar perdida sem ver sentido para sua vida.
Podemos perceber que o luto de Jackie se enquadra em diversas características
mencionadas por Worden (1998), como a sensação de irrealidade sobre a perda. Quando faz o
aniversário da filha falecida; quando comemora a eucaristia; nutre forte sentimento de culpa,
busca possibilidades que poderiam ter evitado o acidente, busca um bode-expiatório sobre
quem descarregar a culpa. Percebemos isso, ao ver Jackie culpar o marido por seu parentesco
com Diane que dirigia o carro; apresenta também uma forte sensação de desamparo, ao sentir-
se completamente isolada, “sem rumo” e sem perspectiva de futuro; preocupa-se com aquilo
que poderia ter feito pelas filhas e não fez. Sente remorso por não ter se esforçado mais e por
não ter concluído o suporte materno que planejara para toda a vida.
Dava continuidade em cuidar das filhas mortas, ao ponto de fazer a festa de
aniversário de uma delas. Ela relata estar falando muito pouco com o esposo, pois “como ele é
irmão da mulher que matou suas filhas, ele também é culpado”. Esse movimento de procurar
um culpado é bem pressente no processo de luto, pois inconscientemente a pessoa tenta aliviar
sua dor, tirando a culpa imaginária dela e transferindo para outra pessoa.
De acordo com os relatos de Jackie, fica claro o processo de um luto complicado. Com
este foco terapêutico, o processo terapêutico tem que trabalhar quatro faces para ela elaborar
esta perda. O primeiro passo é fazer a sensibilização para levar Jackie a aceitar a perda, saindo
da negação, trazendo o processo de conscientização de que o que aconteceu não tem retorno,
ajudando-a a significar este momento de sua vida.
18
Depois de Jackie ter aceitado a perda, começar a trabalhar a dor da perda de suas filhas
e do ser mãe, realocando o papel de cada filha em sua vida e dando uma nova direção, pois
agora ela tem que se adaptar à nova realidade. Só depois que ela teve esta conscientização é
que começam os ajustes dos papéis dela de agora em diante, pois as crianças já não estão mais
em casa e ela tem que dar um novo sentido a sua vida.
Ela encontrou nos amigos um apoio para enfrentar a situação e viu novo sentido em
sua vida ao criar uma fundação para ajudar crianças. Contudo, em uma recaída em seu
processo de luto, a paciente fez uma fertilização buscando, inocentemente, substituir seus
filhos. A gravidez foi complicada, pois ela teve várias crises, e confusão de sentimentos pelo
novo filho. Chegou a pensar em dar o bebê para adoção, pois achava que não estava pronta
para amar novamente.
Nos estágios de reação à perda e as fases do luto descritas respectivamente por Kübler-
Ross (2005) e Bowlby (1990), percebe-se que as respostas geradas pelo sofrimento da perda
de um ente querido são respostas que os indivíduos apresentam diante de um evento estressor.
Portanto, a perda repentina de um ente querido pode ser considerada um evento ameaçador à
integridade física, psicológica e social do indivíduo. Esquemas de privação emocional,
abandono, defectividade, além de esquemas de inibição emocional, são caracterizados,
principalmente, por evitar a expressão de sentimentos e pensamentos. São mecanismos
defensivos que barram emoções desagradáveis e podem ser encontrados nos primeiros
estágios de reação à perda e nas fases do luto descritas por Kübler-Ross (2005) e Bowlby
(1990), pois a negação e o entorpecimento configuram uma resposta de enfrentamento
desadaptativa frente à situação de perda por morte.
Praticamente todos esses sintomas e sentimentos de ambivalência fazem parte do luto
de Jackie. Observa-se que além das fases “normais”, ela enfrentava um processo especial de
luto, por se tratar de uma morte súbita, e de filhas.
No momento em que Jackie soube, via exame toxicológico, que Diane havia bebido e
fumado maconha antes do acidente, veio o desejo forte de censurar alguém pelo ocorrido. A
eleita foi Diane. Muitos outros questionamentos passaram a fazer parte do luto, e um novo
sentimento surgiu: a raiva. Ela passou a exigir respostas que ninguém podia dar. Dali em
diante, tudo que fazia Jackie se lembrar da cunhada era motivo de revolta, inclusive a
presença do marido Warren, por ser irmão dela.
19
Recai sobre o processo de luto materno um tempo de resolução para além do
cronológico, estipulado nos critérios diagnósticos de luto normal e esperado. Impõe-se a
necessidade de cautela diagnóstica para não se incorrer no erro de estigmatizar e diagnosticar
de forma inadequada os sintomas de mães enlutadas, atribuindo-lhes um curso patológico,
simplificando sua condição.
O luto obriga o ser humano a passar por um processo de reconstrução da vida pessoal
e familiar. Ele promove um desafio emocional e cognitivo com o qual a pessoa enlutada
precisa lidar. O luto exige um processo elaborativo que depende da atividade do sujeito que
pode ser ou não bem-sucedido. É um trabalho que o ego tem que realizar para adaptar-se à
perda do objeto amado que foi perdido (FRANCO, 2007).
Quando Jackie, no seu tempo, percebeu isso, tudo passou a ter um novo sentido. Pais
enlutados frequentemente têm dificuldade de compreender a noção de retirada emocional. Ao
pensar em recolocação, a tarefa para a mãe enlutada é continuar a estar em contato com os
pensamentos e lembranças associados a seus filhos, e fazendo isso de forma que lhe permita
continuar sua vida depois da perda.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
As pessoas que reagem bem a pequenas perdas (com um alto índice de resiliência, ou
capacidade de voltar a seu estado normal) são as que mais se recuperam diante de um caso
mais grave. Quem não admite perder, nem em jogo de cartas, obviamente vai ter mais
dificuldade de superar uma dor intensa. Portanto, procurar elaborar as perdas menores do
cotidiano pode preparar para acontecimentos mais difíceis.
Lidar com a morte, enfrentá-la, é talvez uma das tarefas mais árduas do ser humano. A
forma com que uma pessoa enfrenta a morte está ligada diretamente ao modo que ela encara
este processo natural da vida. O luto pressupõe sofrimento, que advém do anseio em recuperar
a pessoa perdida e de um sentimento de culpa e de medo de retaliação. Se a figura de apego
estiver temporariamente ausente, a reação é de ansiedade, mas se está permanentemente
ausente, a reação é de dor. Caso o ser humano negue essa realidade, ou seja, a ausência
permanente, continuando a busca da figura do morto, ele não entrará em um processo de luto
normal.
20
Nos casos de luto materno e por morte súbita, o trabalho mental do luto se torna
excessivamente doloroso, inevitável e exige um longo tempo até que o filho seja
reposicionado e internalizado emocionalmente e não mais materialmente.
A organização psíquica feminina espera um sentido, vindo de alguém. Ao desejar um
filho, a mãe revive inconscientemente a realização fálica, de plenitude. Para receber esse filho
como sujeito do investimento libidinal, a mãe, durante os meses de gravidez, separa um
espaço emocional para o filho. A morte desse filho, especialmente a morte súbita, é muito
penosa. O filho, além de ser o fruto primeiro da libido materna, também imortaliza nos
desejos da mãe, sua imagem e sua vida. Deparar-se com a morte de um filho é vivenciar a
total impotência. É encontrar-se com o vazio da morte, perder a possibilidade de respostas ao
desejo próprio. O desejo vinculado ao afeto ativa planejamentos, organização da vida presente
e sentido para o futuro. A perda do filho representa a perda de toda a complexa estrutura
edificada para a sua chegada. Todo o investimento emocional se esvai num precipício sem
retorno. O processo de luto é imposto para construir nova estrutura emocional, com grande
dor, pois tal nova estrutura não provém do desejo, mas sobrevém à força das circunstâncias da
morte.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARIÉS, Philippe. História da Morte no Ocidente, Ediouro, 2003.
BOWLBY, John. Apego e perda. Vol. 1. Martins Fontes: São Paulo, 1990.
BROMBERG, M. H. P. F. A psicoterapia em situações de perdas e luto. Livro Pleno: São
Paulo, 2000.
CIRULNYK, Boris. Resiliência essa inaudita capacidade de construção humana. Instituto
Piaget: São Paulo, 2007.
ESCUDEIRO, A. (Org.) A Morte e suas implicações para a Vida. Fortaleza, LC Gráfica e
Editora, 2012.
21
FRANCO, Maria Helena Pereira; MAZORRA, Luciana. Criança e luto: vivências
fantasmáticas diante da morte do genitor. In: Revista Estudos de Psicologia. Campinas-SP,
v. 24, nº 04, out.-dez., p. 503-511, 2007.
FREITAS, Neli Klix. Luto materno e psicoterapia breve. São Paulo: Summus, 2000.
FREUD, Sigmund. Luto e melancolia. In: Edição standard brasileira das obras psicológicas
completas de Sigmund Freud, Rio de janeiro: imago. 1969.
GIL, A. C. Métodos e técnicas de pesquisa social. 5ª. Ed. São Paulo: Atlas, 1999.
KAPLAN, H. I.; SADOCK, B. J.; GREBB, J. A. Compêndio de psiquiatria. Ciências do
comportamento e psiquiatria clínica. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997.
KOVÁCS, M. J. Morte e desenvolvimento humano. 5ª. Edição: Casa do psicólogo, São
Paulo, 2003.
KÜBLER-ROSS, E. Sobre a morte e o morrer. Martins Fontes: São Paulo, 2008.
MOOREY, S. Quando coisas ruins acontecem com pessoas racionais: terapia cognitiva
em circunstâncias adversas de vida. In: Salkovskis, P. M., Fronteiras da terapia cognitiva.
São Paulo: Casa do Psicólogo, 393-395.
QUEIROZ, Rosane. Dossiê luto – A vida de quem fica. Revista Marie Claire. São Paulo:
Editora Globo S.A. 2002. Disponível em: <http://revistamarieclaire.globo.com/Marieclaire/
0,,EML571015-1740,00.html>. Acesso em: 20 out 2015.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social (1762). Edição Ridendo Castigat Mores.
Edição para eBook. Disponível em: <http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/
contratosocial.pdf>. Acesso em: 10 out 2015.
SANTOS, Franklin Santana. (Org.). A arte de morrer. Visões plurais. Bragança Paulista:
Editora Comenius, 2007.
VALENTE, Thaysa Zubek; LOPES, Cléa Maria Ballão. A perda simbólica e a perda real: o
luto materno. Salão de extensão e cultura 2008. Disponível em: <http://anais.unicentro.br/
sec/isec/pdf/resumo_59.pdf>. Acesso em: 21 out 2015.
WORDEN, J. Terapia do luto. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998.
22