Post on 28-Oct-2015
oINUMANO
R ecolha de «considerações» na sua maiorparte destinadas a um público vasto. Algunsprolongamentos à ideia de pós-moderno.
Os humanos arrastados num desenvolvimentoinumano a que já não ousamos chamar progresso.O desaparecimento de uma alternativa humana, política e filosófica, neste processo .
Ainda possível apenas uma resistência, apoiadasobre o outro inumano: a despo ssessão de si quedormita em cada um, a sua indomável infância.
Banalidade esmagadora, mediática, dos neo-human ismos que hoje em dia se erguem.
Questões deci sivas: o tempo, a memória , amatéria. Como a «vida administrada» (Adorno) asanula ao programá-las.
Como as artes visuais, do som e do pensamentolhes preservam a verdade paradoxal.
ISBN 972 -33- 1264-6
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FICHA TÉCNICA
Título origin al: L 'Inhumain . Causeries sur le tempsTradução: Ana Cristina Seabra e Elisabete AlexandreCapa: José AntunesImpre ssão e acabamento: Rolo & Filhos - Artes Gráficas, Lda .I " edição: Editorial Estampa, 19902,· edição: Editorial Estampa, 1997Depó sito legal n." 112125/97ISBN 972-33-1264-6Copyright: © Éditions Galilée, 1988
© Editorial Estampa, Lda , Lisboa, 1989para a língua portuguesa
ÍNDICE
Prefácio: do humano 9
Se pudermos pensar sem corpo 17
Reescrever a modernidade 33
Matéria e tempo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 45
Logos e tekhnê, ou a telegrafia 55
O tempo, hoje 65
O instante, Newman . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 85
O sublime e a vanguarda 95
Algo como: «comunicação sem comunicação» 113
Representação, apresentação, não apresentável 123
A palavra, o instantâneo 133
Após o sublime, estado da estética 139
Conservação e cor 147
Deus e a marioneta 155
A obediência 167
Scapeland . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 183
Domus e a megalópole . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 191
PREFÁCIODO HUMANO
O humanismo administra-«nos»(?) lições. De mil maneiras, frequentemente incompativeis entre si. Bem fundadas (Apel) e não fundadas (Rorty), contrafactuais (Habermas, Rawls), pragmáticas (Searle),psicológicas (Davidson) e ético-políticas (os neo-humanistas franceses) .Mas assumem sempre o homem como sendo pelo menos um valor seguro que não necessita ser interrogado. Que tem inclusivamente autoridade para suspender, interditar a interrogação, a suspeição, o pensamento que tudo corrói.
O que é valor, o que é certo, o que é homem, são questões muitoperigosas e damo-las por encerradas o mais rapidamente possível. Elasabrem, dizemos, a via ao «tudo é permitido», ao «tudo é possível», ao«nada tem valor», Vejam, acrescentamos, o que acontece aos que ultrapassam este limite: Nietzsche tornado como refém pela mitologiafascista, Heidegger nazi, enfim, passo ...
Mesmo o que, a este respeito, pode existir de inquietante em Kant,o que não é antropológico mas propriamente transcendental e o quena tensão crítica chega até a destruir a unidade mais ou menos pressuposta num sujeito (humano) como é o caso que me parece exemplar daanálise do sublime ou de escritos histórico-políticos, até esses os expurgamos. Sob pretexto de voltar a Kant, mais não fazemos que resguardar o preconceito humanista sob a sua autoridade.
Um mesmo movimento de restauração declara-se também contra aescrita como contra a leitura de textos, as artes visuais, a arquitectura.Em nome de uma recepção pública bem regulamentada, Jauss recusa otexto adorniano: a escrita da Teoria Estética, enodada, incerta, quaseselvagem é julgada ilegível. Sejam comunicáveis, está prescrito. O vanguardismo é um velho jogo, falem dos seres humanos humanamente,
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dirijam-se aos humanos, tenham eles prazer em vos receber e receber-vos-ão,
Não é que o humanismo seja simplesmente uma operação de marketing, Os que «nos»(?) admoestam não são todos industriais da cultura. Apelidam-se a si mesmos de filósofos. Mas aquilo que é afilosofia, também não deve ser interrogado sob pena de cair na vulgaridade. Eu não sonho: o que é apontado nas «vanguardas» (o nome émaldoso, reconheço) é algo que já foi declarado aos quatro ventos.Em 1913, Apollinaire escrevia ingenuamente: «Os artistas são, antes demais, homens que pretendem tornar-se inumanos.» E em 1969, se bemque com um pouco mais de prudência, Adorno escrevia ainda: «A artemantém-se fiel aos homens unicamente pela sua inumanidade paracom eles.»
As «considerações» aqui reunidas - são todas palestras encomendadas, destinadas na sua maior parte a um público não profissional, eo resto à confidência - não têm nem função nem valor de manifestoou de tratado. A suspeita que traem (nas duas acepções da palavra) ésimples, ainda que dupla: e se, por um lado, os humanos, no sentidodo humanismo, estão em vias de, constrangidos, se tornarem inumanos? E se, por outro lado, for «próprio» do homem ser habitado peloinumano?
Existiriam assim dois tipos de inumano. É indispensável mantê-losdissociados. A inumanidade do sistema em curso de consolidação; sobo nome de desenvolvimento (entre outros), não deve ser confundidacom aquela, infinitamente secreta, de que a alma é refém. Acreditar,como aconteceu comigo, que a primeira possa substituir a última, dar-lhe expressão, é cair no engano. A consequência maior do sistema é ade fazer esquecer tudo o que lhe escapa. Mas a angústia, o estado deum espírito assombrado por um hóspede familiar e desconhecido queo agita, fá-lo delirar mas também pensar - se pretendemos excluí-lo,se não lhe damos uma saída, agravamo-lo. O mal-estar aumenta comesta civilização, a exclusão com a informação.
Muitas destas palestras debruçam-se sobre a problemática do tempo. Ela é decisiva para a separação em questão. O desenvolvimentoimpõe que se ganhe tempo. Andar depressa é esquecer depressa, reterapenas a informação útil no momento, como acontece com a «leiturarápida», Mas a escrita e a leitura são vagarosas, avançam para trás, nadirecção da coisa desconhecida «no interior». Perde-se o tempo em
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busca do tempo perdido. A anamnese é o antipoda - nem isso, nemsequer existe um eixo 'comum - o outro, da aceleração e da abreviação.
Ilustremos isto numa palavra com um «exemplo» que é efectivamente exemplar e acessível aos humanistas: a educação. Se os humanos nascessem humanos tal como os gatos nascem gatos (com poucashoras de diferença), não seria possível - e nem sequer digo desejável,o que torna a questão diferente - educá-los. Que devamos educar ascrianças é uma circunstância resultante apenas do facto de elas não serem todas pura e simplesmente conduzidas pela natureza, de não estarem programadas. As instituições que constituem a cultura preenchemesta falta natural.
Que poderemos chamar de humano no homem? A miséria inicialda sua infância ou a sua capacidade de adquirir uma «segunda» natureza que, graças à língua, o torna apto a partilhar da vida comum, daconsciência e da razão adultas? Num ponto estamos todos de acordo:esta última assenta e suporta a primeira. A questão é apenas de saberse esta dialéctica, seja qual for o nome com que a enfeitemos, não deixa vestígios.
Se fosse esse o caso, seria inexplicável, para o próprio adulto, nãoapenas que ele tenha de lutar continuamente para assegurar a sua conformidade com as instituições, e até para as ordenar face a um melhorviver comum, mas que o poder de as criticar, a dor de as suportar e atentação de se lhes escapar persistam em algumas das suas actividades.E não me refiro apenas aos sintomas isolados, aos desvios singularesmas ao que, pelo menos na nossa civilização, passa igualmente porinstitucional: a literatura, as artes, a filosofia. Trata-se, também aqui,do rasto de uma indeterminação, de uma infância, que persiste mesmona idade adulta.
Resulta destas observações banais que podemos tirar partido do título de humanidade por motivos exactamente inversos. Desprovida dapalavra, incapaz da paragem certa, hesitante quanto aos objectos doseu interesse, inapta no cálculo dos seus benefícios, insensível à razãocomum, a criança é eminentemente humana, pois a sua aflição anuncia e promete os possíveis. O seu atraso inicial sobre a humanidade,que a torna refém da comunidade adulta, é igualmente o que manifesta a esta última a falta de humanidade de que sofre e o que a chama atornar-se mais humana.
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Mas, dotado dos meios de saber e de fazer saber, de agir e de fazeragir, tendo interiorizado os interesses e os valores da civilização, oadulto pode pelo seu lado aspirar à plena humanidade, à realizaçãoefectiva do espírito como consciência, conhecimento e vontade. Quelhe reste sempre a possibilidade de se libertar da selvajaria obscura dasua infância cumprindo essa promessa, é precisamente a condição dohomem.
Consequentemente, não existiria entre as duas versões do humanismo mais que uma diferença de acento. Uma dialéctica ou uma hermenêutica bem ordenadas resultariam na sua conciliação. Afinal, bastaque os nossos contemporâneos recordem que é próprio do homem asua falta de próprio, o seu nada, ou a sua transcendência, para poderafixar o letreiro de «completo».
Não me agrada esta pressa. O que apressa, o que esmaga, é o queacabo sempre por constatar ter tentado sob os mais diversos nomes,trabalho, figurabilidade, heterogeneidade, dissentimento , acontecimento , coisa, preservar: o inconciliável. (E não sou o único, razão pelaqual escrevo «nósn.) Que a diferença insensível seja votada a ter sentido, enquanto oposição, num sistema dito estruturalista, é uma coisa;outra é que ela seja prometida ao devir-se sistema. Como se a razãonão tivesse que duvidar da sua vocação para extrair o indeterminado,dando-lhe depois forma , e que desta acção não pode deixar de sairtriunfante. É contudo apenas ao preço desta dúvida que a razão é raciocinante.
Eis um motivo de princípio, digamos, para manter à distância todaa especulação reconciliadora. A apreciação da situação contemporâneafornece a esta reserva um outro alimento. É preciso antes de mais recordar que se o título de humano pode e deve caminhar entre a indeterminação nativa e a razão instituída ou a instituir-se, também o podee deve o inumano. Toda a educação é inumana visto que não funcionasem contrariedades e terror , e refiro-me à menos controlada, menospedagógica, aquela que Freud chama de castradora e que o faz dizer,a propósito da «boa maneira» de educar as crianças, que de qualquerforma será má (nisto próximo da melancolia kantiana). E inversamente, tudo o que no instituído pode, por vezes, deixar transparecer o infortúnio e a indeterminação é de tal maneira ameaçador que o espíritorazoável não pode deixar de temer, justificadamente, uma força inumana de desregulação.
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Mas o acento, posto desta maneira sobre o conflito, legitima-se hoje, mais do que nunca, devido a uma alteração, que creio ser profunda, da natureza do sistema.
É preciso tentar compreender esta alteração, sem a tornar patéticamas igualmente sem a negligenciar. Deve tomar-se por inconsistenteum pensamento que não faz caso disto e que «cobre» descrições, sejam elas contrafactuais, isto é, ideais ou utópicas (e sobretudo essas),como se nada se opusesse mais hoje que há dois séculos à sua verdadeou à sua concretização. O termo pós-moderno serviu , mas não muitobem a julgar pelos resultados, para designar algo desta alteração.
Veremos nas páginas seguintes como nos é possível procurar descrevê-la seguindo a hipótese geral, positivista, de um processo de complexização, de entropia negativa, ou para ser mais simples, de desenvolvimento. Esta hipótese não é apenas sugerida pela convergência dastendências que animam todos os subconjuntos da actividade contemporânea, ela é o próprio argumento do discurso que cientistas, tecnólogos e seus filósofos acreditados mantêm a propósito das suas pesqui sas, de forma a legitimar científica e tecnologicamente a possibilidadedo seu desenvolvimento. É inevitavelmente um discurso de física geral ,com a sua dinâmica, a sua economia, a sua cibernética. Todo o discurso de física geral é um discurso de metafísica, isto desde os tempos deAristóteles e de Leibniz.
Este discurso é igualmente aquele que serve a quem decide em política, socioeconomia para legitimar as suas opções: competitividade,melhor repartição de cargos, democracia na sociedade, na empresa, naescola e na família. Não inclui , no entanto, os direitos do homem, originários de um horizonte completamente diferente, e que não podemser chamados a reforçar a autoridade do sistema, da mesma forma queeste não pode fazer desses mesmos direitos, por construção, mais doque um caso episódico.
Não faço minha esta hipótese do desenvolvimento porque ela éuma maneira, mais precisamente ela é a maneira de a metafísica, interdita para sempre ao pensamento, restabelecer sobre ele o seu direito .De o restabelecer não no pensamento (se se excluir aquele que ainda seafirma filosófico ou seja metafisico) mas fora dele. A metafisica, sendo impossível como tal, torna-se realidade e adquire assim o direito dofacto. Esta situação define bastante bem aquilo a que ainda recentemente chamávamos de ideologia, não sendo esta tão notável como sis-
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tema de ideias quanto o é como poder de realização. O «desenvolvimento» é a ideologia do tempo presente, ele realiza o essencial da metafisica, que tem sido muito mais um pensamento de forças que umpensamento do sujeito.
Se prosseguirmos com o argumento, tal como é aqui colocado, acabamos por concluir que o sistema pelo qual a indeterminação nativa éobrigada, «forçada» a existir, mesmo que o seja sob o disfarce da permissividade, não advém da razão do humano, ou seja das Luzes; resulta de um processo de desenvolvimento, no qual o que está em jogonão é o homem mas a diferenciação. Esta obedece a um princípio simples: entre dois elementos, sejam eles quais forem, cuja interligação seja estabelecida logo à partida, é sempre possível introduzir um terceirotermo que assegurará uma melhor regulação. Melhor significa demaior confiança mas igualmente de maior capacidade. A ligação inicial aparece, assim mediatizada, como um caso particular numa sériede regulações possíveis. A mediação não implica apenas a alienaçãodos seus elementos face ao seu enquadramento; permite modulá-lo.E quanto mais «rico» for o termo mediato ou seja, ele próprio mediatizado, mais numerosas são as modificações possíveis, mais flexível oseu enquadramento, mais flutuante o nível de trocas entre os seus elementos, mais permissivo o seu relacionamento.
A descrição é abstracta. Seria mais fácil ilustrá-la se recorrêssemosa elementos, tão diversos na sua aparência como são os parceiros económicos ou sociais, as células de um órgão ou de um organismo, osconstituintes da molécula ou do núcleo, as divisas monetárias, os poderes militares adversos. As novas tecnologias e os media são aspectosdessa mesma diferenciação.
O que impressiona nesta metafisica do desenvolvimento é que elanão precisa de nenhuma finalidade. O desenvolvimento não está magnetizado por uma Ideia como seja a da emancipação da razão e da liberdade humanas. Reproduz-se acelerando-se e estendendo-se segundoa sua própria dinâmica interna. Assimila os acasos, memoriza o seuvalor informativo e utiliza-o como nova mediação necessária ao seufuncionamento. Não necessita senão de um acaso cosmológico.
O desenvolvimento não tem um fim, mas tem um limite, o da esperança de vida do Sol. A explosão prevista desta estrela é o único desafio que se coloca de forma objectiva ao desenvolvimento. A selecçãonatural dos sistemas não é de ordem biológica mas cósmica. É com o
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intuito de realçar este desafio que se preparam desde já todas as pesquisas, seja qual for o sector de aplicação, que estão em curso nos países dítos desenvolvidos. O interesse dos seres humanos encontra-seagora subordinado ao da sobrevivência da complexidade.
E como o desenvolvimento acaba por ser exactamente aquilo quesubtrai à análise e à prática a esperança de uma alternativa decisiva aosistema, como a política que «nós» herdámos dos pensamentos e dasacções revolucionárias se encontra para sempre sem emprego (independentemente de nos regozijarmos com isso ou de o lastimarmos) a questão que aqui coloco é a seguinte: que mais resta de «político» que nãoseja a resistência a este inumano? E que mais resta, para opor resistência, que a dívida que toda a alma contraiu com a indeterminação miserável da sua origem, da qual não cessa de nascer? Ou seja, com o outro inumano?
Esta a divida que temos para com a infância e que não é saldada.Mas basta não a esquecer para resistir e, talvez, para não ser injusto.Esta é a tarefa da escrita, do pensamento, da literatura, das artes,aventurar-se a prestar testemunho.
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SE PUDERMOS PENSAR SEM CORPO
ELE
Vocês, os filósofos, colocam questões sem resposta, que assim devem permanecer para que mereçam o nome de filosóficas. Uma questão equacionada só pode ser, segundo vocês, uma questão técnica. Eratécnica. Foi tomada por sendo filosófica. Desviam então a vossa atenção para uma outra que aparenta ser impossível de resolver e que deveresistir a toda e qualquer conquista do entendimento. Ou então, o queacaba por ser o mesmo, declaram que o facto de a primeira questãoter sido resolvida se deve à mesma ter sido mal colocada. E atribuem avocês mesmos o privilégio de manter irresolúvel, ou seja bem colocada, a questão que a técnica, ao acreditar tê-la solucionado, mais nãofez que a maltratar. Uma solução tem para vocês o valor de uma ilusão, é uma verdadeira falta para com a integridade devida ao ser, epor aí fora. Vida longa à vossa paciência. Poderão sempre resistir àcusta desta incredulidade. Não se espantem no entanto se por causadesta irresolução, o leitor caia no aborrecimento.
Mas não é essa a questão. Na espera, envelhece o Sol. Explodirádentro de 4,5 mil milhões de anos. Já ultrapassou um pouco a metadeda sua vida. É como um homem de quarenta e poucos anos dotado deuma esperança de vida de oitenta. Com o seu fim, terminarão igualmente as vossas questões insolúveis. Talvez se mantenham sem resposta, impecavelmente bem colocadas, mas não haverá mais onde as colocar, nem lugar para existirem. Explicais: não podemos pensar no fim
Texto escrito a partir da gravação de uma sessão do Seminário realizado no Graduiertenkolleg da Universidade de Siegen (RFA) em Novembro de 1986, por iniciativado seu director, Hans Ulrich Gumbrecht.
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puro e simples do que quer que seja pois fim é limite e é ne~~sárioes- · ·
_tar dos jlois lados do limite para o conceber. Da mesma forma, o fimdeve ser perpetuado em pensamento para que se reconheça como fim.Ora isto é verdadeiro para os limites do pensamento. Mas após a morte do Sol, não haverá pensamento para reconhecer que era da morteque se tratava.
Acredito que esta é a única questão séria que se coloca aos humanos de hoje. Diante dela tudo parece fútil. Guerras, conflitos, tensõespolíticas, movimentos de opinião, debates filosóficos, até paixões , tudo está desde logo morto se essa reserva de infinito da qual retiram actualmente a energia para diferenciar as respostas se, em suma, o pensamento como busca deve afinal morrer com o Sol. Talvez a palavraadequada não seja morte. Mas essa explosão que há-de vir, inevitável,é como se aquilo que fica esquecido diariamente nos vossos jogos depensamento chegasse desde já e tornasse esses jogos póstumos, fúteis .Falo do que é proscrito das vossas escritas , a matéria. A matéria en-quanto o de ener ia se desfaz e se -;efaz sem ces:-saro À escala corpuscular e/ou cósmica, digo. Não me re Iro ao bravo
-rmmdo terrestre, da boa imanência transcendente do pensamento paracom os seus objectos análoga à do olho para com o visível ou do habitus para com o situs.
Dentro de 4,5 mil milhões de anos, falecida a vossa fenomenologia,as vossas políticas utópicas, ninguém restará para tocar o dobre nempara o ouvir. Será demasiado tarde para compreender que o vossouma «vida espiritual» que, feitas as contas, subrepticiamente, maisnão era que uma forma de vida terrena. Espiritual porque humana,humana porque terrena, da terra dos mais vivos entre os vivos. O horizonte do pensamento, a sua orientação , o limite ilimitado e o fimsem fim que ele supõe, é à experiência corpórea, sensível, sentimentale cognitiva de um ser vivo muito sofisticado mas terreno , que o pensamento os vai buscar .
A terra desaparecerá, o pensamento cessará, deixando esse desaparecimento absolutamente impensado. É o horizonte mesmo que se aniquila e nesta imanência a vossa transcendência. A morte, se bem quel':limite , é por excelência aquilo que se oculta e se adia e que por issoocupa tantas vezes o pensamento, esta morte que afinal é a vida do espírito. Mas a morte do Sol implica a morte do espírito pois é a morteda morte como vida do espírito. Nada há a substituir nem a diferen-
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ciar se nada sobreviver. Este aniquilamento é totalmente diferente daqueles sobre os quais vocês criticam a propósito da «nossa» morte, daquela que faz parte do lote dos seres vivos pensantes. E falar em aniquilamento é ainda demasiado patético. Trata-se de uma mudança doestado da matéria, ou seja das formas de energia. Esta mudança bastapara tornar nula qualquer antecipação do estado da pós-explosão. Osromances de ficção política imaginam o desértico frio de um mundohumano após uma guerra atómica. A explosão solar não ficará adever-se a uma guerra humana. Não deixará atrás de si um mundo humano devastado, desumanizado, não deixará sequer um último sobrevivente para prestar testemunho do que se passou e escrevê-lo. Desumanizado é apesar de tudo ainda do domínio do humano, do humanomorto mas pensável porque morto no sentido humano, mas reerguidoem pensamento. O que ficar após a explosão solar, não permitirá aexistência de vivalma, nem um só ser humano, terreno, inteligente,sensível e sentimental para testemunhar o acontecimento pois ele dissipar-se-á no fogo juntamente com o horizonte da terra.
Digamos: o Sol, a Ur-Erde de Husserl, dissipa-se em calor e emnuvens de matéria. Considerada como matéria, a terra não é, de modoalgum, originária, pois está submetida a alterações do seu estado, vindasde mais ou menos longe, da matéria, da energia e das leis da suatransformação. A Erde é um arranjo de matéria-energia. Este arranjoé transitório, alguns milhares de milhões de anos, discute-se. Anos lunares. Muito pouco, se comparado ao cômputo cósmico. O Sol, a nossa terra e o vosso pensamento não terão sido mais que um estado espasmódico de energia, um instante de ordem estabelecida, um sorrisoesboçado pela matéria a um canto do cosmos. Vocês, os incrédulos,acreditam, demasiado até, neste sorriso, na conivência das coisas como pensamento, na finalidade do todo. Vocês terão sido, como o restodo mundo, vítimas das relações de ordem estabelecidas neste canto, seduzidos por aquilo a que chamam de natureza, uma congruência doespírito e das coisas; Claudel falava de um conhecimento, Merleau-Ponty de um quiasma do horizonte e do olho, o banho onde se banhao espírito. A explosão solar, a simples ideia dessa explosão, deveriadespertar-vos da vossa euforia. Vejam: vocês tentam colocar o acontecimento no seu quod, no advindo do «Só chegará» antes de qualquer«quididade» não é? Pois bem, permitam-me então posicionar a explosão do Sol como o quod em si mesmo, após o que nada será possível.
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Apenas desta morte, Epicuro teria confirmado o que diz da morte: -Pl:t.---da tenho a ver com ela pois quando ela cá estiver não estarei eu e en-
I~anto cá estou ~estã efu:A morte humana está incluída na vidado espírito humano. A morte solar implica uma disjunção irreparavelmente excluente entre a morte e o pensamento: se há morte, então não~. Negação pura e simples. Neniiüffiã conjugação põssível entre os dois. Ocorrência incontestável, desastre. Qualquer acontecimento, qualquer catástrofe que conhecemos e sobre os quais reflectimos não terão sido mais que ténues simulacros.
Ora este acontecimento 'é fatal. E, sendo assim, vocês não se ocupam dele, permanecendo ocupados com a vida do espírito e a fenomenalidade terrena . Como Epicuro dizem: enquanto ela cá não estiver, estou cá eu e continuo a filosofar no tépido ambiente da conivência homem-natureza . Mas apesar de tudo com o triste pensamento reservado: depois de mim o cataclismo. O cataclismo da matéria. Concordemque esta é uma grande divergência entre o nosso pensamento e o pensamento clássico e moderno do Ocidente: a evidência da não existência@JlatJlTez~ mas apenas do monstro materiiij"doRêve de d'Alembert,v ~ -----a chôra do Timeu. A natureza foi o nosso inte utor nas coisas.
4 matéria não nos pergunta nada nem espera nenhuma resposta ssa.----- -------- -Ignora-nos . Criou-nos da mesma maneira que fez os corpos, ao acasoe segundo as suas leis.
Ou então procuram antecipar o desastre, evitá-lo com os meios doseu ordenamento que são os das leis da transformação da energia. Decidem enfrentar o desafio da mais que provável extinção da ordem solar e do vosso pensamento. E a tarefa então, a única, é bem perceptível e foi iniciada há muito tempo: simular as condições da vida e dopensamento de tal forma que uma ideia permaneça materialmente possível após a modificação do estado da matéria provocada pelo desastre. Esse é o grande objectivo de todas as pesquisas técnico-científicasde hoje, seja qual for o seu âmbito de investigação, desde a dietética àneurofisiologia, à genética e ao tecido de síntese até à física dos corpúsculos, à astrofísica, à electrónica, à informática e ao nuclear. E pareçam o que parecerem ser os objectivos próximos: saúde, guerra, produção, comunicação, em benefício do ser humano, dizem eles.
Sabem, a técnica não é uma invenção dos homens. Talvez o contrário. Tanto antropólogos como biólogos admitem que o organismovivo, mesmo o mais simples como sejam os infusórios, pequenas algas
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existentes na beira das poças, sintetizadas pela luz há já milhões deanos, são um dispositivo técnico. É técnico qualquer sistema materialque filtre informação útil à sobrevivência, que a memorize e a trate, eque induza, a partir de uma instância reguladora, determinadas condutas, ou seja, a intervir sobre o meio ambiente assegurando pelo menosa sua perpetuidade. O ser humano não é por natureza diferente de umtal objecto. O seu sistema de captura de dados não é excepcional secomparado ao de outros seres vivos. É apenas omnívoro em matériade informação, sendo o seu sistema regulador (códigos e regras de tratamento) mais diferenciado e a sua capacidade de armazenamentomais elevada. Encontra-se sobretudo dotado de um sistema simbólico,que o torna ao mesmo tempo arbitrário na sua semântica e na sua sintaxe, o que lhe garante uma maior independência face ao que o cercano mais imediato, e recursivo (Hofstadter) o que lhe permite tomar como referência, para além das informações em si, a maneira de as tratar, isto é, ele mesmo. Ou seja, de lidar com as suas próprias regras deuma forma organizada como se se tratassem de informações e de induzir outras maneiras de as tratar. É em suma uma organização viva,não apenas complexa, eu direi antes replexa. Pode curar-se a si própria na qualidade de meio como em medicina, de órgão como numaactividade finalizada, de objecto como na reflexão (e refiro-me tanto àestética como à especulativa). Pode inclusivamente abstrair-se de simesma e ter apenas em conta as suas regras de tratamento como emlógica e matemática. O limite que se opõe a esta recursividade simbólica reside nas necessidades resultantes do local onde está, seja qual for onível méta- do seu funcionamento, ou seja, manter simultaneamente asregulações que asseguram a sua sobrevivência no meio em que se encontra. Não é exactamente isto o que funde a vossa transcendência naimanência? Ora até aos nossos dias, este meio é o terrestre. A sobrevivência da organização pensante exige modificações para com este meiopara que aquilo a que chamamos corpo humano se possa perpetuar.Isto é igualmente verdade para o funcionamento méta- por excelênciaque é o pensamento filosófico. Para pensar é preciso pelo menos respirar, comer, etc. Será sempre necessário «ganhar a vida».
O corpo pode ser considerado como o hardware do complexo dispositivo técnico que é o pensamento. Sem o seu bom funcionamentoas vossas operações extremamente complexas, as meta-regulações depotência três ou quatro, as desregulações controladas que vocês tanto
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apreciam, são impossíveis. A vossa filosofia do fim sem fim, da morteimortal, da diferença incessante, do incidível, é uma expressão, e podeser a expressão por excelência, da meta-regulação. Como se esta porsua vez se tomasse como referência enquanto méta-, Pois muito bem,mas não esqueçam que esta faculdade de mudar de nível referencialnão advém de outro sítio que não seja o do poderio simbólico e recursivo da linguagem. Ora este último é nem mais nem menos que a forma mais complexa das «memórias» (vivas e mortas) que regulam todosos seres vivos e que criam objectos técnicos melhor adaptados ao meioambiente que os conjuntos mecânicos. Dito de outra forma, a vossa filosofia não é possível uma vez que o conjunto denominado «homem»está dotado de um sistema lógico muito sofisticado. Mas também estesoftware, a linguagem humana, está dependente do estado do hardware. Este, por sua vez, será consumido pela explosão solar que arrastarána sua combustão o pensamento filosófico da mesma forma que arrastará qualquer outro.
O problema das tecno-ciências enuncia-se então: garantir a estesoftware um hardware que seja independente das condições da vidaterrestre.
Seja: tornar possível um pensamento sem corpo, que persiste apósa morte do corpo humano. Só a este preço a explosão será pensável ea morte do Sol será uma morte como as outras que conhecemos. Pensar sem corpo é a condição para poder pensar na morte dos corpos ,solares e terrestres, e em pensamentos dissociáveis dos corpos.
Mas sem corpo num sentido preciso: sem o comp'jxo organismovivo terrestre conhecido como o corpo humano. Não sem hardware,como é evidente.
Em princípio a solução é muito simples: conceber um hardware capaz de «alimentar» um software que seja igualmente complexo, e digo:replexo, como o é o cérebro humano actual, só que em condições nãoterrestres. Isto significa apenas: encontrar, para o «corpo» em questão, um «alimento» que nada deva aos componentes bioquímicos sintetizados à superfície da Terra pela acção da energia solar. Ou entãoser capaz de realizar tais sínteses em qualquer lugar que não seja aTerra. Numa conclusão que serve os dois casos, conceber um hard capaz de suster o nosso soft ou o seu equivalente, mas que este se conserve a partir de fontes de energia disponíveis no cosmos.
É óbvio, mesmo para o ignorante que sou, que o nuclear, a elec-
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•trónica, a fotónica e a informática conjugadas, abrem as portas àconstrução de objectos técnicos, de capacidade não apenas física mascognitiva e que «extraem» (ou seja seleccionam, tratam e consomem)as energias de que necessitam para funcionar sob formas amplamentepropagadas pelo cosmos.
Isto quanto ao hard. Em relação ao soft com o qual estas máquinas têm de estar equipadas, ele é objecto de pesquisas sobre inteligência artificial e das polémicas que as rodeiam. Vocês, filósofos, escritores, artistas, desprezaram desde muito cedo o reles desempenho dosprogramas que os logiciais actuais produzem. É certo que estas «máquinas de representar», como diz Monique Linard, de pensar, são fracas se comparadas com o cérebro humano comum, mesmo pouco exercitado.
Poderemos sempre argumentar que os programas que «entram»nesses computadores são elementares e que será necessário aguardar oprogresso da informática, nas linguagens artificiais, na transmissão demensagens. É verosímil, mas a objecção maior reside exactamente noprincípio destas inteligências. Foi resumida em algumas teses por Hubert L. Dreyfus. A decepção causada por estes órgãos de «pensamentosem corpo» provém do facto de as operações serem efectuadas em lógica binária, aquela que se impôs com a lógica matemática de Russelle Whitehead, a máquina de Turing, o modelo neuronal de McCulloc ePitts, a cibernética de Wiener e von Neumann, a álgebra de Boole, ainformática de Shannon.
Ora, objecta Dreyfus, o pensamento humano não raciocina em termos binários. Não trabalha por unidades de informação (os bits), maspor configurações intuitivas e hipotéticas. Aceita dados imprecisos,ambíguos, que não se apresentam seleccionados segundo um código ouuma capacidade de leitura pré-estabelecidos. Não negligencia os apartes, as margens de uma situação. Não é apenas focalizado mas também lateral. Pode discriminar o que é importante e o que não é semfazer uma recolha e uma selecção exaustiva dos dados e sem testar asua importância face ao fim pretendido, através de uma série de ensaios e de erros. Como Husserl mostrou, o pensamento ausculta um«horizonte», visa um «noema», um tipo de objecto, uma espécie demonograma não conceptual que lhe fornece configurações intuitivas eque abre «à sua frente» um campo de orientação e de espera que émais do que um frame (Minsky). E neste «desenquadrado» que seria
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mais como um esquema. ele avança na direcção do que procura «escolhendo». ou seja. separando e reunindo os dados de que precisa massem dispor no entanto de critérios pré-estabelecidos que determinam àpartida o caminho da escolha. Não deixaremos de associar a este quadro a descrição que Kant fazia do processo de pensamento que denominou julgamento reflexivo: uma maneira de pensar não dirigida porregras de determinação dos dados, mas que demonstra eventualmenteser capaz de elaborar estas regras a partir de resultados objectivos depois da reflexão.
Esta descrição do pensamento reflexivo oposta ao pensamento determinante não esconde. nem em Husserl nem em Dreyfus, o que ficaa dever à experiência perceptiva . Existe um campo de pensamento damesma forma que existe um campo de visão (ou de audição); o espíri-to orienta-se aí tal como o olho no entendimento sensível. Esta analogia dominava já os trabalhos de Wallon em França. por exemplo. e osde Merleau-Ponty. É «bem conhecida». Importa no entanto salientarque não é extrínseca mas intrínseca. Não descreve apenas um pensamento analógico. no seu processo. com uma experiência perceptiva. 1
Descreve um pensamento que se processa analogicamente, e não logi-. camente, nada mais. Onde os processos do tipo: «assim como.... domesmo modo ... »; ou: «como se...• então». ou ainda: «como o p estápara o q. o r está para o s» são privilegiados relativamente aos processos digitais do tipo «se.... então ... » e «p não é não -P». Estas são asoperações paradoxais que constituem a experiência do corpo. do corpodito «próprio», fenomenológico. no seu espaço-tempo de sensibilidadee percepção. Eis porque seria conveniente tomá-lo como exemplo naprodução e programação das inteligências artificiais. se entendermosque as mesmas não se limitam à faculdade de raciocinar logicamente.
Podemos ver. por esta objecção, que o que torna inseparáveis opensamento e o corpo. é muito simplesmente o facto deste último sero indispensável hardware do primeiro, a sua condição material de existência é que cada um deles é análogo ao outro no seu relacionamentocom o respectivo ambiente (sensível. simbólico). sendo o próprio relacionamento em si do tipo analógico nos dois casos. Encontramos nestadescrição uma forte razão para não apoiar a hipótese recentemente introduzida por Putnam da «separabilidade» de princípio da inteligência, através da qual era sua intenção legitimar o empreendimento dainteligência artificial.
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ELA
Haveria aqui com que nos satisfazermos, nós filósofos. Pelo menoscom que apaziguar uma parte das nossas inquietações. Um campo perceptivo tem limites mas são limites que se encontram fora de alcance .Um objecto visual, se bem que ofereça ao olhar uma das suas faces,esconde sempre outras. Uma visão correcta e focalizada rodeia-se sempre de uma zona curva ondc;o. xj§íveI se dissimula sem no entanto estar ausente. Disjunção inclusiva. E n~ me refiro à memória que sópor si põe em causa o olhar mais simples. ~_yisão actual conservaconsigo a imagem percepcionada no instante anterior sob outro ãngulá. Antecipa a de há pouco. Destas síntese resultam identificações deõbjectos, que nunca chegam a ser completas e que um olhar u tenorpC;derá sêmpre solicitar, anular. E o olho, nesta experiência, encontra-se constantemente em busca do reconhecimento, da mesma forma queo espírito o pode estar de uma descrição completa do objecto que eleprocura pensar, sem que no entanto o observador possa, a qualquermomento, afirmar que reconhece perfeitamente o objecto, uma vezque o seu campo de apresentação é absolutamente individual em cadacaso e que um olhar verdadeiramente observador não pode esquecerque há sempre mais ainda para ver, a partir do momento em que oobjecto visto tenha sido «identificado». º. ~( reconhecimento» perceptivo não satisfaz nunca a exigência lógica da descrição completa.- :§sta li a expenêncla, a subtilidade. a incerteza. a fê no mesgotável
sensível, que conotamos ao falarmos com seriedade de analógico, e nãoai)eiiãSã um modo de transporte dos dados sobre uma superficie deinscrição que não é originariamente a sua. Da mesma forma, tambéma escrita é mergulhada no campo das frases , por onde avança à custade tentativas, de ensaios, ao encontro do que «quer dizer» e não ignorando nunca, quando pára, que o que fez foi suspender por um instante (que pode ser toda uma vida) a sua exploração e que, para alémdesta escrita parada, estão uma infinidade de palavras, de frases e desentidos latentes, sofredores talvez, e tantas coisas «para dizer» comono principio. A verdadeira «analogia» requer que a máquina pensanteou representadora se insira no meio dos seus «dados» como os olhosse inserem no visual ou a escrita na língua (no sentido mais amplo).Não basta que estas máquinas simulem pouco mais ou menos os resultados da visão ou da escrita. Trata-se de (o francês tem esta expressão
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· bonita e adequada) «dar corpo» ao pensamento artificial de que elassão capazes. E é este o corpo, ao mesmo tempo «natural» e artificial ,que será necessário transportar para longe da terra antes da sua destruição, se o que se pretende é que o pensamento sobrevivente à explosão solar seja algo diferente do miserável esqueleto binarizado de quese constituía anteriormente.
Com efeito, se assim fosse teríamos alguma razão para não desesperar com a tecnociência, Se um tal «programa» é ou não realizável ,nada sei. E terá fundamento pretender pôr num programa uma experiência que desafia, senão a programação, pelo menos o programa, como é o caso da visão do pintor ou da escrita? Esta é uma experiênciaao vosso dispor. Afinal, isto é para vocês um problema urgente, o dacompreensão da linguagem comum pelas vossas máquinas. Problemacom o qual se deparam, em particular, na situação de interactividadeentre o terminal e o operador. É nesta interacção que reside o contactoentre a vossa inteligência artificial e a inteligência ingénua transportada nas línguas ditas «naturais», imergida nelas.
Mas há uma outra questão que me inquieta. Será outra? Existeuma imbricação do pensar e do sofrer. Disseram vocês que estas palavras, estas frases em instância de escrita, estas nuances e estes timbresem latência ao redor da pintura e da música a criar, não se deixam encerrar. E mesmo quando inscritos sobre a folha ou a tela, continuam a«dizer» outra coisa diferente do que «queriam ter dito» , pois são maisvelhos que a intenção actual, sobrecarregados de utilizações, ou seja ligados a outras palavras, frases, nuances, timbres . Exactamente por isto constituem um campo, um «mundo», o «bravo» mundo humano deque vocês falam mas que na verdade é mais uma opacidade de além-horizontes a serem desbravados. Quando pensamos em descrever opensamento sob a forma de uma selecção de dados e da sua articulação, calamos a verdade: os dados não são dados mas dáveis e a selecção não é uma escolha. Pensar, assim como escrever ou pintar, é quase s6 receber o que nos chega a partir dos dados. Na discussão tida sobre estes assuntos no ano passado em Siegen, a ênfase foi exactamentecolocada sobre o tipo de vazio que o artista-guerreiro japonês ao caligrafar, o comediante ao actuar, devem obter do seu corpo e do seu espírito, um certo tipo de suspensão dos motivos habituais do espíritoque se encontram associadas aos habitus, às disposições do corpo. É aeste preço, disseram-nos Glen e Andreas - e vocês a pensar que eu
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concordaria, com as ajudas de Dôgen, Diderot e Kleist - que o pincelacabará por encontrar as formas «certas», que a voz e o gesto cénicosse verão dotados dos tons e alturas «certos». Este lançamento no vazio, esta evacuação, contrariando uma actividade identificatória, selectiva , conquistadora, não são conseguidos sem sofrimento. Não querocom isto dizer que a graça de que falava Kleist, a graça do traço, dotimbre , do volume, seja conquistada, isso seria presunçoso , mas elachama-se. É necessário desobstruir o corpo e o espírito para que elapossa tocá-los. Isto não se consegue sem sofrimento. É o prazer do adquirido que se perde.
Também aqui, teriam por certo reparado, é preciso passar pela experiência do corpo, recorrer a casos exemplares de ascese corporal para poder compreender e fazer compreender esta espécie de limpeza doespírito, tão necessária para que ele possa pensar. O que nada tem aver com a «tabula rasa», com o que se pretendia (em vão) em Descartes, que o pensamento conhecedor começasse do zero, o que, paradoxalmente, só pode ser um recomeçar do zero. Mas naquilo a que chamamos pensar, o espírito não é por nós «dirigido» mas suspenso. Nãolhe fornecemos regras mas ensinamo-lo a acolher. Não desbastamos oterreno para construir com mais luz, entreabrimos uma clareira onde apenumbra do quase dado poderá entrar e modificar o seu contorno.Um exemplo deste trabalho pode ser encontrado , mutatis mutandis, naDurcharbeitung freudiana. Onde se vê com clareza, sem querer insistirnisto, com que dor o pensamento a trabalhar é pago. Este pensamentonão tem qualquer ligação especial com a combinação estabelecida desímbolos. Mas a combinação quando procura e aguarda a sua regrapode estar intimamente ligada ao pensamento.
A dor de pensar não é um sintoma que, vindo de qualquer parte,se instala no espírito em vez de ocupar o seu verdadeiro lugar. É opróprio pensamento em si que, convertido à irresolução, decide tornar-se paciente e querer não querer, querer, exactamente, não querer dizerem vez do que deve ser significado . Reverência feita a este dever, queainda não tem nome. Este dever talvez não seja uma dívida, mas apenas o meio pelo qual o que ainda não é, a palavra, a frase, a cor, há-de chegar. De maneira que o sofrimento de pensar é um sofrimentodo tempo, do acontecimento. Resumindo: será que as vossas máquinasde pensar, de representar, sofrem? Que futuro poderão ter se não passam de memórias? Dir-me-ão que pouco importa, desde que possam
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«concretizam a relação paradoxal dos ditos «dados», que são apenasquase-dados, dáveis, tal como acabo de descrever. Não acredito emnada disto.
Este sofrimento, se é que com efeito ele define o verdadeiro pensamento, deve-se ao facto de pensarmos o que já antes foi pensado, oque já está inscrito, e na enorme dificuldade em mantê-lo afastado ouem retomá-lo sob outra forma, para que o que ainda não foi pensadopossa chegar e inscrever-se aquilo que o deva ser. Não me refiro apenas às palavras que faltam na superabundância das palavras disponíveis, mas à maneira de as interligar, a despeito de articulações que nosinspiram a lógica, a sintaxe das nossas línguas, os trejeitos adquiridospela nossa leitura. (A Sepp, espantando-se que todo o pensamento, segundo eu, exija e arraste inscrição, eu digo: nós pensamos, e fazemo-lo a partir deste mundo de inscrições já feitas, chamemos-lhe cultura,se quiserem. E se pensamos, é porque no entanto existem lapsos nestaplenitude e é preciso encontrar lugar para estas faltas através da limpeza do espírito que permite que outra coisa sobrevenha, outra coisa queainda falta pensar. Mas esta não pode «vir» se não estiver inscrita nasua vez). O ainda não pensado faz-nos mal pois sentimo-nos bem entreo já pensado. E pensar que afinal aceitar este mal, é também, para odizer sumariamente, encontrar maneira de acabar com ele. Esta a esperança que carrega toda a escrita (pintura, etc.); que no fim, será melhor. Como não existe fim, a esperança é ilusória. Pois bem seria necessário que o não pensado fizesse mal às vossas máquinas, que façamal à sua memória, o não inscrito que falta inscrever, percebem? Senão, porque se meteriam elas a pensar? São precisas máquinas que sofram com o encobrimento da sua memória. (Mas o sofrimento nãotem boa reputação na megalópole tecnologista. Sobretudo o sofrimento de pensar. Já nem faz rir, não temos ideia dele. O espírito está no«ludismo», quando não está em performance.
Enfim, o corpo humano é sexuado. Sabemos bem que esta diferença, a dos sexos, é o paradigma do incompleto não apenas dos corposmas dos espíritos. É mais que certo que existe algo de masculino namulher e algo de feminino no homem. Senão, como poderia existirnum dos sexos a ideia do outro e a emoção por aquilo que lhe falta?Falta-lhe porque existe nele, no mais íntimo do corpo e da mente, assim como um velador, na reserva, de lado, indirectamente, no horizonte. Inapreensível. Ainda a transcendência na imanência. A ideia de
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sexo que reina na sociedade contemporânea impõe que se esconda estafalha, que se desfaça esta transcendência, que se ultrapasse o «impoder». Supostos parceiros passam contrato em face de um comum «go:zo», disposição-prazer, da própria diferença sexual. Em contrato ficaassente que nem um nem outro sofrerão com esta associação e que aoprimeiro sinal de falta, por falta ou não, de desfocalização, de descontrolo e de transcendência, dá-se a ruptura, a palavra é demasiado forte, será um abandono puro e simples. E se a moda desejar que de tempos a tempos o «amor» seja restabelecido, no seu lugar, em todas asmontras de objectos a expor, é a título de relação sexual, «topo da gama», reservado às sumidades do star system e difundido como excepção invejável. Vejo nesta disposição o indício de que a tecnociênciaacostuma o pensamento a negligenciar o diferendo que transporta consigo mesma. Não sei se a diferença sexual é uma diferença ontológica.Como sabê-lo? A minha pequena descrição fenomenológica é aindademasiado branda. A diferença sexual não está apenas ligada ao corpoque experimenta a sua condição de incompleto mas ao corpo inconsciente, ou ao inconsciente como corpo. Ou seja, separado do pensamento, inclusive do pensamento analógico . Esta diferença está por hipótese fora de controlo. É ela, talvez, porque inscreve os seus efeitos ,como Freud demonstrou ao descrever o que acontece em seguida, semque a inscrição seja memorizada no sentido da lembrança, é ela que,talvez, pelo inverso dispõe inicialmente o campo de percepção e ocampo do pensamento segundo a condição da espera, da fuga de quefalei. E parece muito provável que seja ela que define o sofrimento,no entender e no conceber, o sofrimento ocasionado pela impossibilidade de unificar e de determinar completamente o objecto em vista.
Aquilo que seria, sem a diferença dos sexos, uma experiência neutra do espaço-tempo das percepções e dos pensamentos, uma experiência onde este sentimento de incompleto não existiria como infelicidadee que daria lugar a uma simples estética cognitiva pura, ela junta-lhe osofrimento de um abandono porque ela lhe traz o que nenhum campode visão ou de pensamento comporta em si, a procura. A faculdade detranscender o dado de que falavam, alojado na sua imanência, encontra sem dúvida os seus meios na recursividade da linguagem humana,mas faculdade não é apenas possibilidade , é força e esta força é o desejo.
Será pois necessário que a inteligência que vocês preparam para so-
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breviver à explosão solar possua em si mesma, na sua navegação interestelar, esta força. Que as vossas máquinas não se alimentem apenasde radiações, mas do diferendo irremediável dos sexos.
E é aqui que é necessário retomar a questão da complexidade.Concordo com o pensamento físico de que o desenvolvimento tecno-científico é o aspecto que toma presentemente à superfície da terraum processo de nég-entropia ou de complexificação em curso desde osprimórdios da existência da terra. Concordo que o humano não é,nunca foi, o motor mas sim o efeito, e o portador, o continuador.Concordo que a inteligência sem corpo, que tudo e todos se esforçampor criar, permitirá reanimar o desafio oposto ao processo de complexificação através do marmoto entrópico que constitui, sob esse pontode vista, a futura explosão solar. E que com o exílio cósmico desta inteligência, um lugar de enorme complexidade, um centro de nêg-entropia, terá escapado ao mais provável, ao destino prometido a todo osistema isolado pelo segundo princípio de Carnot. Exactamente porqueesta inteligência não se deixará isolar na sua condição terrestre-solar.Juntando tudo isto, admito que não é o desejo humano de conhecer etransformar a realidade que move a tecno-ciência, mas uma circunstância cósmica. Vejam apenas isto: a complexidade desta inteligênciaexcede a dos sistemas lógicos mais sofisticados , é de outra natureza.O corpo humano como um todo material, obstrui a separabilidadedesta inteligência, o seu exílio, e portanto a sua sobrevivência. Mas ocorpo, fenomenológico, mortal, receptor, é ao mesmo tempo o únicoanalogon disponível para pensar uma certa complexidade da mente.
O pensamento utiliza analogias com profusão. Também na descoberta científica, naturalmente, «antes» de estabelecer a sua operacionalidade sobre os paradigmas. Esta potência analogisante pode, por outro lado , voltar a exercer-se sobre a analogia espontânea do corpo perceptor para educar o olhar de Cézanne, o ouvido de Debussy a ouvir ea ver dados, nuances, timbres «inúteis» à sobrevivência, mesmo cultural.
Mas, mais uma vez, esta faculdade analogisante de que o corpo e amente dispõem analogicamente um ao outro e que trocam na arte deinventar, é mínima se comparada com a transcendência irreparável inscrita no corpo pela diferença dos sexos. Nem o cálculo nem a analogiaconseguem decifrar o que sobra desta diferença. Ela faz pensar semfim, ela não se deixa pensar. A mente não pode ser separada do corpo
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fenomenológico. Mas o corpo sexuado está separado da mente e dirige-a. Sentimo-nos tentados a ver nesta diferença uma explosão primordial, um desafio que se opõe à mente , comparável à catástrofe solar.Mas não é esse o caso uma vez que ela, reservada no íntimo dos corpos e das mentes, provoca infinitamente o pensamento. Ela apenasaniquila o Um. É para esta complexidade, esta separação sem fim, quedeve ser preparado o pensamento pós-solar. Senão, será ainda a entro-pia o piloto do Exodus espacial. .
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REESCREVER A MODERNIDADE .J.--
Este título, reescrever a modernidade, foi-me sugerido por KathyWoodward e Carol Teneson, do Center of XXth Century Studies deMilwaukee. Agradeço-lhes. Parece-me bastante preferí"'e1 às rubricashabituais como «pós-moder'ííIdãae», «pós-modermsmo», «pós-moderno», s~uals é geralmente colocado este hpo derenexão~~ Avan:tagem consiste em duas deslocações, a transformação do prefixo«pós-» em «re-», do ponto de vista léxical e a aplicação sintáxica doprefixo assim modificado no verbo «escrever» em vez do substantivo«modernidade».
Esta deslocação dupla indica duas direcções principais . Primeiramente faz realçar a futilidade de qualquer periodização da história cultural em termos de «pr ê-» e de «p ós-», de antes e de depois pelo simples facto de não resolver a posição do «agora», do presente a partirdo qual é suposto podermos adoptar uma perspectiva legítima sobreum decurso cronológico. Para mim, velho filósofo «continental», talefeito não deixa de recordar a análise que Aristóteles faz sobre o tempo no livro IV da Física. É impossível, e o sentido é em suma este, determinar a diferença existente entre o que aconteceu (o proteron, o anterior) e o que está para acontecer (o husteron, e o ulterior) sem situaro fluxo dos acontecimentos face a um «agora». a um now. Mas também não é menos impossível apoderarmo-nos desse «agora» que éconstantemente arrastado por aquilo a que chamamos o fluxo da consciência, o curso da vida. das coisas, dos acontecimentos, como quisermos - ele não cessa de se dissipar . De maneira que ele nunca chega aser demasiado cedo nem demasiado tarde ao mesmo tempo para que
Texto de uma exposição traduzido (e modificado) e apresentado na Universidade doWisconsin, Milwaukee e Madison , em Abril de 1986. Publicado em inglês in Substance,Outono de 1987; em francês in Cahiers de Philosophie, 5, 1988.
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qualquer coisa como um «agora» possa ser apreendido de uma maneira identificável. O «demasiado tarde» assinala um excesso no «partir»,no desaparecer, o «demasiado cedo» um excesso no advir . Excesso sobre o quê? Sobre a intenção de identificar, sobre o projecto de apreender e reconhecer um «sendo» que seja «aqui e agora» , a própria coisaem si.
Quando este argumento é aplicado à modernidade, tem como resultado que nem a modernidade nem a dita pós-modernidade podemser identificadas e definidas como entidades históricas claramentecircunscritas, onde a segunda chegaria sempre «depois» da primeira.Falta precisar, pelo contrário, que o pós-moderno está já compreendido no moderno pelo facto de que a modernidade, a temporalidademoderna comporta em si o impulso para se exceder num estado quenão é o seu. E não apenas a exceder-se nele mas a converter-se nelecomo uma espécie de estabilidade última como seja a que visa porexemplo o projecto utópico, mas também o simples projecto políticopresente nos grandes elogios da emancipação. Devido à sua constituição, e sem descanso, a modernidade está grávida do seu pós-modernismo.
Mas, mais que o pós-moderno, o que realmente se oporia à modernidade seria a idade clássica. Esta comporta com efeito um estado dotempo, digamos: um estatuto da temporalidade onde o «advir» e o«partir», o futuro e o passado são tratados como se, em conjunto, englobassem a totalidade da vida numa mesma unidade de sentido. Essaseria, por exemplo, a maneira pela qual o mito organiza e distribui otempo: ritmando, até os fazer rimar, o princípio e o fim da históriapor ele contada.
Sob o mesmo ponto de vista, observa-se que a periodização da história está de certa forma ligada a uma obsessão que é característica damodernidade. A periodização é uma maneira de colocar os acontecimentos numa diacronia, e esta é comandada pelo princípio de revolução. Da mesma forma que a modernidade contém a promessa da suaultrapassagem, está da mesma forma indigitada a marcar, a datar ofim de um período e o início do seguinte. Logo que uma nova era éinaugurada e reputada como inteiramente nova, é conveniente ajustaro relógio à nova hora, de a fazer começar do zero. No cristianismo,no cartesianismo ou no jacobinismo este mesmo,gesto designa um AnoUm, o da revelação e da redenção no primeiro caso, da renascença ou
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da renovação no segundo, ou ainda da revolução e da reapropriaçãodas liberdades no terceiro.
Estas três figuras do «re-» revelam um aspecto determinante daquestão da rescrita. E é a segunda direcção indicada pela deslocaçãoque denotei logo no princípio. É a própria ambiguidade do termo«reescrever» que assombra a ligação da modernidade com o tempo.Reescrever pode consistir nesse gesto que acabo de descrever, que faz.com que o relógio volte ao zero, que anula o passado, o gesto que adada altura inaugura o início da nova era e da nova periodização. Estautilização do «re-» no sentido de um retorno ao ponto de partida, aum começo supostamente isento de quaisquer pressupostos pois sempre imaginamos que os pressupostos resultem unicamente do armazenamento e da tradição das suposições que anteriormente acreditámosserem verdadeiras sem as termos no entanto re-considerado. O jogoque é desta forma jogado entre o «pre-» e o «re-» (aqui com o sentidode retorno) tem por objectivo apagar o «pre-» implicado em pelo menos algumas destas antigas suposições. É assim que é necessário entender, por exemplo, o nome «pré-história» que Marx dá a toda a história humana que tenha precedido a revolução socialista aguardada epreparada por ele.
É possível agora clarificar uma segunda acepção, diferente, deste«re-». Ligado de maneira fundamental à escrita, ele não significa demaneira nenhuma um retorno ao começo mas, de preferência aquiloque Freud designou por «perlaboração», a Durcharbeitung», ou sejaum trabalho dedicado a pensar no que, do acontecimento e do sentidode acontecimento, nos é escondido de forma constitutiva, não apenaspelo pressuposto anterior, mas também por estas dimensões do futuroque são o pro-jecto, o pro-grama, a pro-spectiva, e mesmo a pro-posição e o propósito de psicanalisar.
Num texto curto, mas memorável, referente à técnica psicanalítica,Freud distingue repetição, rememorização e perlaboração, A repetição,originária da neurose ou da psicose, resulta de um «dispositivo» quepermite que o desejo insconsciente se realize, organizando toda a existência do sujeito como um drama. Um destino, uma sina, esta a formaque tomaria a vida de um doente submetido à lei do desejo assim «disposta». A história de Édipo foi o modelo de Freud. No destino, o início e o fim da história rimam no que dessa história ressalta da organização «clássica» de que falei, do tempo, aquela em que os deuses, o
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deus, como escreve Hõlderlin, não param de intervir. O dispositivo dodesejo formulado pelo oráculo de Apolo estabelece desde logo osacontecimentos maiores com que Édipo irá deparar no decurso da suahistória. A vida do rei está como que carimbada, o seu futuro inscritono passado já revelado, o fatum que ignora e que portanto repete.
As coisas não são pois tão simples como as relato. Tanto na tragédia de Sófocles como na análise freudiana , Édipo, ou o doente, procura tomar consciência, descobrir a «razão» ou a «causa» do mal que oatormenta e que o atormentou durante toda a sua vida. Quer relembrar-se. Quer condensar a temporalidade insubmissa, desmembrada.Este tempo perdido denomina-se infância . O rei Édipo resolve entãodescobrir a causa do mal, um pecado que estaria na origem da pesteque assola a cidade. Deitado sobre o divã o doente parece estar empenhado numa busca semelhante. O caso é instruído, convocadas as testemunhas, recolhidas informações, como em qualquer romance policial. É assim que se trama a intriga que eu chamaria de segunda categoria, que desdobra a sua própria história sobre aquela em que secumpre o seu destino e que tem por fim encontrar remédio para ela.
É frequente que se entenda «reescrever a modernidade» neste sentido, o da relembrança, como se se tratasse de reparar e identificar oscrimes, os pecados, as calamidades engendradas pelo dispositivo moderno - e por fim de revelar o destino que um oráculo, no princípioda modernidade, teria preparado e completado na nossa história .
É sabido como, sob este ângulo, a reescrita pode ser enganadora.O logro reside no facto de as buscas sobre a origem do destino fazerem elas mesmas parte desse destino. E que a questão do principiar daintriga é posta no fim da intriga porque ela só constitui o fim. E à medida que o detective o desmascara, o herói vai-se tornando no culpado. É afinal a razão porque não existe o «crime perfeito» , o crime doqual nunca vem a ter-se conhecimento. Um segredo nunca seria um«verdadeiro» segredo se ninguém soubesse que é um segredo. Para queo crime seja perfeito, é preciso que seja conhecido perfeito, e por issomesmo ele deixa de o ser. Ilustrando de outra maneira, mas permanecendo na mesma disposição de memória, ao estilo de John Cage, nãoexiste silêncio que se faça escutar como tal e não faça pois qualquerruído. Entre silêncio e som, entre criminoso e polícia, entre inconsciente e consciente, a mesma intriga, no fundo, trama uma intimidade.
Se compreendermos «reescrever a modernidade» desta maneira, as-
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sim como buscamos, designamos e nomeamos os factos ocultos queimaginamos estarem na origem dos males de que sofremos, ou seja:através de um simples processo de relembrar, não podemos deixar deperpetuar o crime, e de o perpetuar de novo em vez de lhe darmos umfim. Em vez de a rescrevermos de verdade, se é que tal é possível, oque fazemos é escrever mais e realizar a modernidade. É que o escrever é sempre a re-escrita. A modernidade escreve-se, inscreve-se sobresi mesma, numa re-escrita perpétua.
Este logro pode ser ilustrado com dois exemplos. Marx detecta ofuncionamento escondido do capitalismo. No centro do processo deemancipação e de tomada de consciência ele coloca a desalienação daforça de trabalho. Assim acredita ter podido identificar e denunciar ocrime original de onde nasce o infortúnio da modernidade: a exploração dos trabalhadores. E como um detective, imagina que ao revelar arealidade, ou seja a sociedade e a economia liberais, como uma mentira, permite à humanidade escapar desta grande peste. Sabemos hojeque o que a Revolução de Outubro fez, sob a égide do marxismo, é oque qualquer revolução faz e fará, reabrir a cicatriz. O local e o diagnóstico podem mudar mas é a mesma doença que ressurge nestas rescritas. Os marxistas acreditaram ter trabalhado para desalienar a humanidade e a alienação do homem repetiu-se, apenas se deslocou minimamente.
Do lado filosófico, até hoje. Nietzsche esforçou-se por emancipar opensamento, a maneira de pensar, daquilo a que chamou metafísica,ou seja deste princípio que prevalece de Platão a Schopenhauer, segundo o qual o único propósito dos seres humanos é o de descobrir o fundamento que lhes permita falar de acordo com a verdade e agir deacordo com o bem ou o justo. O pensamento nietzshiano tem por tema central o não existir nada «de acordo com», porque nada existeque seja princípio primeiro ou original, um «Grund», como o foi aideia do Bem em Platão ou, em Leibniz, o princípio da razão suficiente. Qualquer discurso, inclusive o científico ou o filosófico, é apenasuma perspectiva, uma We/tanschauung.
Mas Nietzsche por sua vez, não resiste à tentação de designar aquilo que funde as perspectivas e a que ele chama vontade de poder.A sua filosofia reitera assim o processo metafisico, realiza-lhe mesmoobstinadamente e repetitivamente a essência, pois a metafisica da vontade pela qual ele dá por concluído o processo é exactamente a mesma
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que encerram todos os sistemas filosóficos do Ocidente moderno.O que Heidegger mostra.
Que a despeito de si mesma a reescrita nietzschiana repita e volte acometer o mesmo erro e falha, faz-nos reflectir sobre o que seria umarescrita que escapasse, se é que se pode escapar, à repetição do que éreescrito. O dinamismo do processo de rememorização poderia ser opróprio querer. É o que Freud prevê quando dissocia a Durcharbeitung, a perlaboração da relembrança, da Erinnerung.
Ao relembrarmos, queremos mais ainda. Queremos agarrar o passado, apreender o que se torna passado, dominar, exibir o crime inicial, o crime original, perdido, manifestá-lo como tal, como se ele pudesse desembaraçar-se do seu contexto afectivo, das conotações do erro, da vergonha, do orgulho, da angústia, as quais ainda hoje se fazem sentir e que justamente motivam a ideia de uma origem .
No esforço para encontrar uma causa objectivamente primeira, assim como Édipo, esquecemos que a vontade de identificar a origem domal advém de uma necessidade do desejo. Porque é da essência do desejo desejar igualmente libertar-se de si próprio, uma vez que o desejonão é suportável. Pensamos assim pôr fim ao desejo e concretizamos oseu fim (tal é a ambiguidade da palavra fin em francês, objectivo efim: a mesma do desejo). Tentar recordar é provavelmente uma outramaneira de esquecer .
Se é verídico que o conhecimento histórico exige que o seu objectoseja isolado e subtraído a qualquer investida libidinal vinda do historiador, então é certo que desta maneira de «redigir» a história, maisnão resultará que uma maneira de a «reduzir». Refiro-me a dois sentidos do conjunto das expressões latina redigere e inglesa putting down:deitar por escrito e reprimir . Da mesma forma que writing down sugere ao mesmo tempo a inscrição ou o registo e também o descrédito.Encontramos esta espécie de rescrita em muitos textos históricos. É amesma que Nietzsche visa nas Considerações Intempestivas quandoquestiona a armadilha da pesquisa histórica.
É sem dúvida a consciência dessa armadilha, ainda, que leva Freuda renunciar à sua hipótese sobre a origem das neuroses. Atribuiu-a ini- .cialmente ao que denomia «cena primitiva» , cena de sedução da criança pelo adulto. Ao abandonar o realismo inicial, Freud abre uma via,do outro lado da psicanálise, do lado do seu fim , à ideia de que oprocesso da cura poderia, deveria ser interminável. Contrariamente à
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rememorização, a perlaboração definir-se-ia como um trabalho semfim e, portanto, sem vontade: sem fim, no sentido de não ser guiadopelo conceito de um objectivo, mas não sem finalidade.
É pois neste gesto duplo, em direcção ao anterior e ao posterior,que reside a concepção mais pertinente que se possa ter sobre a reescrita. Sabe-se que Freud salienta particularmente a dita regra da «atençãoigualmente flutuante», regra que o analista deve observar em relaçãoao paciente. Consiste em dar a mesma atenção a todos os elementosdas fases proferidas pelo paciente, por mais insignificantes e fúteis quepossam parecer.
A regra diz em suma: não ter preconceitos, suspender o julgamento, receber, dar a mesma atenção a tudo o que acontece e à forma como acontece. Por seu lado, o paciente deve respeitar a simetria: libertar as palavras, dar livre curso a todas as «ideias», figuras, cenas, nomes, frases da forma como surgem na sua boca e no seu corpo, em«desordem», sem selecção nem repressão.
Esta regra dá um novo significado à obrigação de ser «paciente»:não suportar de modo passivo e repetitivo a mesma paixão antiga e actual, mas aplicar a sua própria passibilidade, uma mesma resposta ou"répons" para tudo o que surge no espírito, entregar-se aos acontecimentos que lhe advêm de «qualquer coisa» que desconhece. Freud denomina esta atitude de «associação livre». É apenas uma maneira deligar uma frase a outra sem se preocupar com o valor lógico, ético, estético da ligação.
Perguntar-me-ão qual a relação desta prática com a rescrita damodernidade. Lembro que o único fio condutor de que dispomos naperlaboração é o do sentimento ou antes, da escuta do sentimento.Um fragmento de frase, um pedaço de informação, uma palavra queocorra, ligando-se de imediato a uma outra «unidade». Não há raciocínio, argumento ou mediação. Ao proceder deste modo, aproximamo-nos pouco a pouco de uma cena, a cena de algo. Descrevêmo-la. Ignoramos o que é. Temos apenas a certeza de estar relacionada com opassado, o mais longinquo e o mais próximo; simultaneamente o nosso próprio passado e o dos outros. O tempo perdido não é representado como num quadro, nem sequer é representado. É o que representaos elementos do quadro, de um quadro impossivel. Reescrever é registá-los.
É óbvio que esta reescrita não fornece nenhum conhecimento do
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passado. É também o que pensa Freud. A análise não está sujeita aoconhecimento mas à «técnica» e à arte. Não resulta na definição deum elemento passado mas pressupõe que o próprio passado seja o protagonista ou o agente que dá ao espírito os elementos com os quais acena se irá constituir.
Mas a cena não pretende reproduzir fielmente a pretensa «cena primitiva». Ela é «nova» porque é sentida como tal. Pode dizer-se que ojá acontecido ainda está presente, vivaço, vivo. Não presente como umobjecto, se é que um objecto pode estar presente , mas como umaaura, como uma brisa que sopre ligeira, como uma alusão. Em Buscado Tempo Perdido de Proust, o Sens Unique ou o Enfance Berlinoisede Benjamin operam de acordo com essa mesma techne (obviamentesem se cingir a ela). E correndo o risco de parecer estranho, acrescentarei que o processo de atenção livre e igualmente flutuante é objectodos Ensaios de Montaigne.
Em jeito de conclusão impossível, três observações. Em primeiro lugar, mesmo que Freud tenha encarado esta «técnica» como uma arte,como demonstra a palavra grega technê, não deixou de a pensar inscrita como um elemento constitutivo num processo de emancipação . Trata-se de, graças a ela, desmontar a retórica do inconsciente, os conjuntos pré-organizados de significados que constituem o dispositivo nevrótico' ou psicótico e que organizam a vida do sujeito na forma de umdestino. Não me parece que esta hipótese seja ajustada. Ao descreverde forma sucinta o que entendo por rescrever, tinha em mente umaideia que não poderei desenvolver aqui. Contento-me em assinalar oquanto a dita descrição da reescrita está relacionada com a análise deKant sobre o trabalho da imaginação inerente ao gosto e ao prazer dobelo. Tanto uma como outra atribuem a mesma importância à liberdade segundo a qual são tratados os elementos fornecidos pela sensibilidade e ambas insistem no facto de as formas em jogo no prazer estético puro ou na associação e escuta livres serem tão independentesquanto qualquer interesse empírico ou cognitivo o possa ser. A belezado fenómeno é proporcional à sua fluidez, mobilidade e condição deefémero. O que é ilustrado por Kant em duas metáforas, a da chamainapreensível na fogueira e a do desenho evanescente formado pelaságuas vivas de um ribeiro. Por fim, Kant conclui que a imaginação dá«muito a pensar» ao espírito, muito mais do que o trabalho conceituaIdo entendimento o possa fazer. Esta tese está ligada à questão do tem-
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po introduzida por mim no início. A apreensão estética das formas sóé possível se se renunciar a toda a pretensão de dominar o tempo comuma síntese conceituaI. Porque o que está aqui em jogo não é a «recognição» do dado, como diz Kant, mas a aptidão para deixar aparecer as coisas da forma como se apresentam. Numa tal atitude cadamomento, cada agora, é como que um «abrir-se a». Baseando-me nesta tese, citaria Theodor Adorno ou Ernst Bloch, e particularmente osSpuren deste último. No fim de Dia/ética Negativa e também na Teoria Estética, obra inacabada, Adorno dá a perceber que é de facto necessário reescrever a modernidade, que a modernidade é, afinal, a suaprópria rescrita, mas que só pode ser rescrita sob a forma daquilo aque chama de «rnicrologias» e que não deixa de estar relacionado comas «passagens» de W. Benjamim.
Acabo de salientar os traços comuns do livre jogo da imaginaçãoestética e da associação ou atenção livres que estão em jogo na relaçãoanalítica. É também necessário marcar a sua heterogeneidade. Para serbreve vou inumerar as suas diferenças essenciais.
Em primeiro lugar, o prazer inerente ao belo não é objecto de umapesquisa. Surge ou não, apesar do artista procurar o seu efeito atravésdo trabalho que executa. O artista nunca domina esse efeito de gosto.O prazer estético «abate-se» sobre o espírito como uma graça, uma«inspiração». Pelo contrário, o discurso do paciente ou a escuta doanalista representam um trabalho, a perlaboração, «livre» nos seusmeios mas chamada a um objectivo. Este não é decerto um conhecimento, é sim a aproximação a uma «verdade» ou «realidade» inapreensiveis .
Se assim for, e em segundo lugar, é porque o trabalho analítico encontra a sua motivação no sofrimento insuportável que divide o sujeito dentro de si ao mesmo tempo que conserva esse sofrimento de forma repetitiva. Errado seria imaginar que a cura pudesse originar a reconciliação da consciência e do inconsciente. A cura não tem fim porque o desapossar do sujeito, a sua sujeição a uma heteronomia, é-lheconstitutiva. O que nele existe de infans, de inaptidão para proferir, éirredutível. Pelo contrário, o prazer do belo, como Stendhal e Adornoo escrevem, é uma «promessa de felicidade», ou, como Kant, a promessa de uma comunidade sentimental, sensus communis do sujeitopara consigo e para com os outros.
E por fim, do mesmo modo que existe uma estética do sublime que
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tem origem na distensão das formas belas até ao «disforme» (Kant) eque por isso mesmo conduz ao transtorno, à destruição da estética dobelo, existe também a necessidade, segundo a tese freudiana, de dissociar do recalcamento secundário que origina «formações» do sonho,do sintoma, do acto falhado, etc - todas representações do inconsciente nos confins da cena consciente -, é necessário dissociar o queLacan chamava «a Coisa» e Freud «a afectação inconsciente», osquais nunca se deixam representar. O recalcamento original , estreitamente ligado a essa Coisa, teria o mesmo valor para o recalcamentosecundário que o sublime face ao belo.
Reescrever, como o entendo aqui, diz respeito à anamnese da Coisa. Não só a Coisa que representa o ponto de partida para uma singularidade dita «individual» mas a Coisa que assombra «a linguagem» , atradição , o material com o qual, contra o qual e no qual se escreve.Assim, a reescrita depende tanto de uma problemática do sublime, ehoje ainda mais e mais obviamente, do que do belo. Isto abre a grande porta para a questão das relações entre a estética e a ética.
A minha segunda observação final é das mais simples. O que éaqui denominado reescrita não está relacionado de forma evidente coma pós-modernidade e o pós-modernismo no mercado das ideologiascontemporâneas. Não tem nada a ver com a utilização de imitações ede citações de obras modernas ou modernistas como podem ser observadas na arquitectura, pintura ou teatro. E menos ainda com esse movimento da literatura que regressa às formas mas tradicionais da narrativa . Às formas e aos conteúdos. Eu próprio me servi do termo pós-moderno. Era uma forma algo provocatória de colocar ou de deslocaro debate sobre o conhecimento à luz do dia. A pós-modernidade não éuma era nova. É a reescrita de alguns traços reivindicados pela modernidade , e antes de mais da sua pretensão em fundar a sua legitimidadeno projecto de emancipação de toda a humanidade com a ciência ecom a técnica. Mas esta reescrita já o disse, está desde há muito emcurso na própria modernidade.
A última observação debruça-se sobre as questões originadas pelaintrodução espectacular das novas tecnologias na produção, difusão,distribuição e consumo dos bens culturais. Porquê fazer-lhes menção?Porque estão a transformar numa indústria aquilo que chamamos decultura. Esta observação é banal. É também possível encarar esta mudança como uma reescrita. É uma palavra admitida pela gíria jornalís-
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tica, «re-writing» e que se refere a uma já velha profissão. Este termoconsiste precisamente em apagar todas as marcas deixadas num textopor associações inesperadas e «fantasistas». As novas tecnologias deram grande impulso a esse trabalho já que submetem a cálculo exactoqualquer inscrição sobre qualquer suporte, imagens visuais, sonoras,palavra, linhas musicais e por fim a própria escrita. A meu ver, o resultado notável deste processo não consiste, como Baudrillard o julga,na constituição de uma imensa rede de simulacros. Parece-me que oque é realmente perturbante é, muito mais, a importância do conceitode unidade de informação do bit. Com os bits já não se trata de formas livres dadas aqui e agora à sensibilidade e à imaginação. Pelocontrário, são unidades de informação concebidas pelo engenho docomputador e que podem ser definidas em todos os níveis de linguagem: léxica, sintáctica, retórica, etc. São agrupados em sistemas segundo um conjunto de possibilidades (um «rnenu») sob controlo de umprogramador. Se bem que a questão posta pelas novas tecnologias faceà ideia de reescrita como expressa aqui, pudesse ser formulada da seguinte forma: admitindo que a perlaboração é antes de mais assuntoda livre imaginação e que exige o desdobrar do tempo entre «aindanão», «já não» e «agora», o que é que poderá ser preservado e conservado após a utilização das novas tecnologias? De que modo poderáa perlaboração esquivar-se à lei do conceito, da recognição e da predi ção? Por agora contentar-me-ei com a seguinte resposta: reescrever amodernidade é resistir à escrita dessa suposta pós-modernidade.
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MATÉRIA E TEMPO
Uma das questões levantadas é: a utilização do ..k.onceito de matériana filosofia contemporânea. O que significa a questão? O que é «a util~ção de um Conceito»!:;erá este último uma ferramenta? E qual será o objectivo dessa utilização?
Na questão, vejo a predominância de um pensamento tecnologistado pensamento, ou seja o pensamento como trabalho . Uma energiamecânica, potencial e/ou cinética, é aplicada a um objecto para transformá-lo (deslocação no espaço; modificação quantitativa: aloiôis):utilização «produtiva».
Ora , em dinâmica, tal objecto é chamado de ponto ou sistema material.
Com a matéria vêm a força, os diferentes géneros de energia e otrabalho.
Tratar-se-á de metáforas? Ou então será assim que opera o quecontinuamos a chamar de pensamento? Uma energia que seria aplicada a um ponto material para o transformar? O «conceito» desempenhando então o papel de transformador?
Existem várias famílias de transformadores porque existem váriasformas revestidas pela energia: mecânica, calorífica, eléctrica, química,irradiante, nuclear. Será necessário acrescentar: pensante ou espiritual,como dizia Bergson?
Os «pontos materiais» aos quais se aplica cada um desses génerosde energia são todos diferentes. A mecânica cartesiana estuda «cor-
Texto extraído do seminário «La rnatiêre et les immatériau x» organ izado em Abrilde 1985 pelo Espaço de seminário do Centre Georges-Pompidou, por iniciativa do seudirector, Christian Descamps. Neste seminário participaram: Francis Bailly, FernandoGil, Vittorio Gregotti, Dominique Lecourt, Fernando Montes, Jean Petitot, Paolo Portoghesi, Gianni Vattino.
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pos» perceptíveis à observação humana e transformações analógicas àexperiência humana.
As transformações de elementos, como a do urânio 238 em neptúnio, bombardeando os núcleos por meio de neutrões, não só não estãoà nossa escala, como também requerem uma ideia da matéria a partirda qual o filósofo, ignorante e tímido, aprende pelo menos que estaúltima parece já não estar à altura do modelo substancial.
1.
A mecânica de Descartes e a metafísica precisam apenas de umasubstância nua. «A natureza da matéria ou do corpo visto como umtodo não consiste no facto de ser uma coisa dura, pesada, colorida ouque toque os nossos sentidos de qualquer outra forma, mas apenas nofacto de ter uma substância longa, larga e profunda» (Princípios daFilosofia, II, 4). Assim é o corpo «substância das coisas materiais».A extensão é infinitamente divisível (§20) e não é portanto constituídapor elementos simples (átomos), não contém nenhum vazio (§16-18), éhomogénea e contínua; é indefinida (§21).
Num sentido particular, o corpo é uma parte extensa. O movimento é a deslocação desse corpo, de uma vizinhança entre dois corpos. O movimento é apenas relativo a um observador julgado imóvel.Se bem que não haja diferença substancial entre repouso e movimento.O movimento não exige nenhuma forma especial, é uma propriedadedo móvel, o repouso é uma propriedade diferente. A mecânica é umaparte da geometria: o estudo e a produção de figuras em movimento.Os únicos transformadores pertinentes são os axiomas da geometriaclássica. A matéria cartesiana é um conceito, a extensão perfeitamentetransparente para o pensamento geométrico-algébrico. Tudo o que dela vem pelos sentidos é retirado como aparência. Sendo o meu corpouma parte de extensão não me pode informar sobre a extensão em geral e sobre a sua lógica matemática. A fisiologia, pelo contrário, tentaexplicar as aparências (dureza, peso, cor, etc.) pelo único mecanismode figuras e movimentos. É necessário encontrar a máquina sob a sensibilidade que apenas é um efeito de teatro.
Hoje diríamos que não há matéria no pensamento cartesiano .A expiração do «outro material» inspira a decisão de recusar os «sabe-
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res» do próprio corpo. A união da alma e do corpo permanece umenigma inexplicável. A alma só se une a si própria, por meio dos seustransformadores próprios, as ideias originais, as categorias.
Dispõe da linguagem única. O corpo é um locutor confuso: diz«mole», «morno», «azul», «pesado» , em vez de falar de linhas, curvas, choques e relações.
A matéria assim recusada, expirada, permanece nesse pensamentoviolentamente moderno: é a confusão enigmática do outrora, a confusão da vila mal construída, da criança ignorante, cega, do olhar estranho da pequena rapariga amada por René Descartes quando criança.De tudo o que nos vem por trás, «da frente» . A confusão, o preconceito são matéria do pensamento, a desordem do passado que ocorreantes de ter sido desejado e concebido, que não sabe o que diz, que sedeve traduzir e corrigir sem parar, actual e activo em intuições distintas. A infância, o inconsciente, o tempo (porque «então» é «agora»),o antigo, são a matéria que o entendimento pretende resolver no actoe na actualidade da intuição instantânea.
Toda a energia pertence ao pensamento que diz o que diz, que quero que quer. A matéria é o fracasso do pensamento, a sua massa inerte,a estupidez.
Que impaciência, que angústia no modernismo cartesiano, dizemos!
2.
As transformações nucleares como as que afectam certos elementosmateriais ditos radioactivos ou que ocorrem nesses crisóis de transmutações que são as estrelas ou como as que provocamos com os bombardeamentos e a fissão do núcleo de plutónio ou de urânio 235, essastransformações não só exigiram a longa história das pesquisas físicas,de Descartes a Heisenberg, mas pressupõem um transtorno completoda imagem da matéria. É com esta imagem invertida, por mais confusa que seja para um espírito tão mal formado quanto o meu , que semede inevitavelmente, de perto ou de longe, o pensamento contemporâneo.
lJJlw:ixo essencial dessa inversão da image~consiste ~aproeminência do tempo, na análise da relação entre o corpõe o espíri-
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fJ to. «As questões relativas ao sujeito e ao objecto, a sua distinção e/ união, devem ser postas, escreve Bergson, em função do tempo e não"ldo espaço.» (Matéria e Memória, §4.) O autor da Energia Espiritual
recorda a seguinte frase da autoria de Leibniz: «Podemos considerarqualquer corpo como um espírito instantâneo se bem que privado dememória.» (Carta para Arnaud, Novembro de 1671.)
..o..instante que~~.~:a.(). .as.L(:u~~p.i!:!!':laLna2-~~empo intemporal do entendimento, oscila para o lado da actualidade materlãLA-móna e esquecida de um"mstante parao outro. O verdadeiro espírito é memória e anamnese, tempo contínuo. No entanto, esta memória permanece local, limitada a um «ponto de vista». Apenas Deus tem ou é a memória do todo e o seu programa respectivo. Apenas Ele dispõe de todas as «noções» das mónades, de todas as propriedades que desenvolvem, desenvolveram e irãodesenvolver. Memória absoluta, que é, ao mesmo tempo, um acto intemporal. A localização das rnónades criadas é a versão espacial dasua temporalidade. Têm um «ponto de vista» imanente ao espaço porque são imanentes ao tempo, porque não têm memória suficiente, nãose recolhem o suficiente.
Ao considerá-la espacialmente, qualquer mónade é um ponto material que se encontra em interacção (directa, no caso de Bergson, mediatizada pela sabedoria divina que assegura a harmonia de todas asinteracções, no caso de Leibniz) com todos os outros pontos materiais.Eis porque Bergson pode dar o nome «imagem» a esse ponto material(in Matéria e Memória), e Leibniz o dota de uma «percepção». Poderíamos dizer que o mundo inteiro se reflecte em cada ponto material,mas o que dele estiver mais afastado e o que levar mais tempo para setornar distinto (como calculamos as distâncias em tempos nos passeiosde montanha ou nas expedições interestelares), só poderá inscrever-seno «espelho», se o ponto material tiver a capacidade de reunir e conservar muitas informações de uma só vez. Se assim não for, o registopode ocorrer mas continua desconhecido. É portanto necessário imaginar que entre matéria e espírito existe apenas uma diferença de grauque consiste na capacidade de recolher e conservar . O espírito é maté- .ria que se lembra das suas interacções, da sua imanência. Mas o desdobramento é contínuo entre o espírito instantâneo das coisas e a matéria muito recolhida dos espíritos.
Se existir tal continuidade entre os estados da matéria, significa que
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todas as unidades materiais, mesmo as mais «nuas», como é dito naMonadologia, só podem consistir na sua forma, tal como Aristóteles oentendera. Isto porque a matéria considerada como «massa» se divideinfinitamente e porque a unidade que pode produzir é apenas fenomenal. Acontece o mesmo com cada corpo humano, o qual não pára demudar de massa e só tem unidade real e exacta devido à sua diferença,ao seu «ponto de vista», ele próprio determinado pela sua «forma»,ou seja: a sua capacidade para recolher as acções que se exercem sobreele (o que chamamos de interacções). Se existem «átomos de substâncias» eles são, portanto, «pontos metafísicos»; «são algo vital e umaespécie de percepção, e os pontos matemáticos são o seu ponto de vista, para exprimir o universo», escreve-se no Systême Nouveau de LaNature.
Esta quase-percepção, que me faz pensar no «cogito pré-reflexivo»que Merleau-Ponty tentava isolar, ou na «percepção pura», co-extensão perfeita do percepto e do perceptivo a propósito do qual Bergsonelabora a hipótese do início de Matéria e Memória (voltarei a falar sobre isso mais tarde), essa quase-percepção não é nada mais do que a«expressão num ser único indivisível dos fenómenos divisíveis ou devários seres». Leibniz acrescenta que não é necessário «ligar permanentemente o pensamento ou a reflexão a essa representação»: a percepção pode permanecer imperceptível. Além do mais, e ainda segundo Leibniz, é necessário mostrar que existem «expressões imateriaisque não têm pensamento», não só no caso dos animais, como tambémno caso de seres vivos como os vegetais e mesmo nas «substâncias corporais».
Imagino portanto este átomo como o ponto onde se projectam todas as imagens que a m6nade tem do universo. Nenhuma possui o universo por inteiro no seu espelho (Monadologia, §56); de outro modonão a poderíamos distinguir de outra m6nade. Ora, um ser é um ser.Na matéria, não é a «massa» que obedece ao princípio dos indiscerníveis, (pelo contrário ela é multidão), mas é a forma que é a projecçãonum ponto matemático de uma textura de relações. E, se as imagensmudam no espelho de cada átomo formal, é necessário que todos osoutros espelhos reflictam, cada um segundo o seu ponto de vista, asmudanças complementares do primeiro. Esta harmonia é asseguradapela sabedoria divina, a única que representa tudo, enquanto que a diferenciação dos «pontos de vista», a multiplicação das m6nades que
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representam a diversidade do mundo e a complexidade dos corpos, resultam do principio segundo o qual a potência total deve desdobrar todas as suas possibilidades.
A nossa ciência laica dá o nome de energia à potência dita total eatribui a responsabilidade da concordância entre os pontos da matéria,à sua compossibilidade, não a uma sabedoria, mas sim ao acaso e àselecção que fixam (para «durações de vida» muito desiguais), organizações materiais, «átomos formais» que são, de qualquer forma, precários.
3.
Volto um instante à «percepção pura» imaginada por Bergson emMatéria e Memória, para fazer sentir o quanto a sua problemática darelação entre matéria e espírito é leibniziana no seu fundo. É certo quea hipótese de trabalho é muito diferente, é pragmática, se assim o quisermos: o corpo vivo é um agente de transformações das coisas, qual quer percepção conduz a uma acção. Mas o que não é pragmático éque a percepção seja aplicada por Bergson a qualquer ponto material :«Quanto mais imediata for à reacção, mais será necessário que a percepção se pareça com um simples contacto e o processo completo depercepção e de reacção distingue-se apenas aquando da impulsão mecânica seguida de um movimento necessário.» (Matéria e Memória.)
À medida que se sobe a escala dos seres organizados, observamosque a reacção imediata é atrasada, «impedida» e que essa inibição explica a indeterminação, o imprevisível, a liberdade crescente das acçõesque esses seres podem levar a cabo.
Bergson vê o motivo para a existência desta inibição na extensão ena complexidade dos dispositivos nervosos que se interpõem entre asfibras aferentes, ou sensitivas , e as fibras eferentes, ou motrizes.O «espelho» complexifica-se, o influxo produzido pode ser filtradopor muitas vias.
Passará apenas por uma via, e esta será a acção real. Mas muitasoutras acções eram possíveis e ficarão inscritas no seu estado virtual.É assim que a percepção deixa de ser «pura» ou seja , instantânea, eque a consciência representativa pode nascer dessa reflexão (no sentidoóptico), desse «eco», do influxo sobre o conjunto das outras vias pos-
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síveis, e ignoradas actualmente, que formam a memória. (Trata-se apenas da memória imediata, ou hábito, A lembrança será a memóriadessa memória.) É assim que o que se dá um por um, um após outroou, como o diz Bergson, «abalo» após abalo, no ponto material amnésico, é «identificado», condensado, como numa só vibração de altafrequência, na percepção auxiliada pela memória. A diferença pertinente entre o espírito e a matéria é o ritmo. Num «instante» de percepção consciente que é na realidade um bloco indivisível de duraçãofeito de vibração, «a memória condensa uma multiplicidade enorme deabalos que aparecem todos juntos, apesar de sucessivos» (Matéria eMemória, p. 73). Para encontrar a matéria a partir de uma consciência, bastar-nas-ia «dividir de modo ideal esta espessura individida detempo e distinguir nela a multiplicidade desejada dos momentos»(ibid.) .
Podemos exemplificar com uma dessas «qualidades segundas»abandonadas pela explicação mecanicista, por exemplo a cor vermelha.A ciência vê neste exemplo uma autêntica matéria, reconhece na luzvermelha uma vibração do campo electromagnético cuja frequência é,diz Bergson, de 400 triliões de vibrações por segundo . O olho humanoprecisa de dois milésimos de segundo para dissociar duas informaçõesno tempo. Se tivesse que dissociar vibrações condensadas na percepçãodo vermelho, seriam necessários vinte e cinco mil anos . Mas ao sincronizar-se a esse ritmo, deixaria de notar a cor vermelha, registaria apenas, diz Bergson, «abalos puros» já qu é lhe seriam co-extensivos,O indivíduo passaria a ser cada um dos abalos, instante após instante.Seria um ponto material «puro» ou «nu».
4.
A continuidade entre espírito e matéria depende assim de um casoparticular da transformação de frequência noutras frequências, em queconsiste a transformação da energia. A ciência contemporânea ensina-nos, creio, que a energia se propaga, em todas as suas formas, deforma ondulatória e que «qualquer matéria (cito Jean Perrin) é nofundo uma forma particular muito condensada da energia». A realidade que devemos atribuir a tal forma de energia, e portanto de matê-
~l
ria, é evidentemente pendente dos transformadores de que dispomos.- Apesar de muito sofisticado, na escala do vivo, o transformador cons
tituído pelo nosso sistema nervoso central s6 pode transcrever e inscrever de acordo com o seu próprio ritmo, as excitações que lhe chegamdo meio onde vive.
Se dispomos de interfaces capazes de memorizar, de uma formaque nos .seja acessível, vibrações que estejam naturalmente fora danossa consciência, ou seja, que nos determinem apenas como «pontosmateriais» (é o caso de quantidades de radiações), então alargamos anossa potência de diferenciação e a nossa memória, atrasamos reacções ainda não controladas, aumentamos a nossa liberdade material.Este complexo de transformadores, sempre encarado do ponto de vistapragmático, merece certamente o seu nome: tecno-ciência,
As novas tecnologias, baseadas na electrónica e na informática devem ser, sempre sob um mesmo aspecto, consideradas como extensõesmateriais da nossa capacidade de memorizar, no sentido de Leibniz maisdo que de Bergson, tendo em conta o papel de «condensador» supremo de toda a informação, desempenhado aqui, pela linguagem simbólica. Atestam, à sua maneira, que não existe ruptura entre matéria eespírito, pelo menos nas suas funções reactivas, a que chamamos performantes. São um córtex ou, pelo menos, um elemento do córtex queapresenta a propriedade de ser colectivo, justamente por ser físico enão biológico. O que não deixa de levantar questões sobre as quaisnão me debruçarei aqui.
Para acabar, irei tentar responder à nossa questão inicial: qual aincidência que a ideia da matéria, tal como acabo de lembrá-la de forma geral, pode ter sobre a filosofia?
Podemos dar a uma filosofia da matéria, como o faz Bergson emMatéria e Memória, um revestimento pragmático que se encadeia facilmente com o tecnologismo ou o tecno-cientismo ambiente, isto apesardo que o próprio Bergson pensou acerca disso. O encadeamento deuma filosofia com outra exige no entanto uma correcção, a qual, sepensarmos bem, não é mínima e de que Bergson tinha consciência.O pragmatismo, como o seu nome indica, é uma das numerosas versões do humanismo. O sujeito humano que pressupõe é certamentematerial, empenhado num meio e virado para a acção. Resulta que esta última é finalizada por um interesse que se representa como um género de ajustamento óptimo do sujeito em relação ao meio ambiente.
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Se observarmos a história das ciências e das técnicas (e das artes deque não falei, apesar da questão da matéria, do material em particular, ser aqui decisiva), notamos que tal não foi e tal não é, sobretudohoje em dia, a sua finalidade.
A complexificação dos transformadores teóricos e práticos tevesempre o efeito de desestabilizar o ajustamento do sujeito humano emrelação ao seu meio ambiente. E, modifica-o sempre no mesmo sentido: atrasa a reacção, multiplica as respostas possíveis, aumenta a liberdade material e, neste sentido, só poderá decepcionar o pedido de segurança que está inscrito no humano como no mundo vivo. Por outraspalavras, não vemos que o desejo, podemos chamá-lo assim, de complexificar a memória possa depender do pedido para equilibrar a relação entre o homem e o seu meio ambiente. De forma pragmática, estedesejo opera num sentido contrário, pelo menos no início, e sabemosque as descobertas ou as invenções científicas (ou artísticas) são raramente motivadas por um pedido de segurança ou de equilíbrio.
Esta deseja o repouso, a segurança, a identidade; o desejo ignoraestes aspectos, nenhum êxito o faz parar ou o satisfaz.
Para reduzir esta objecção, Bergson introduz a noção de um ímpeto vital, de uma invenção criadora. É aqui que ele deixa o pragmatismo e troca uma metafísica do bem-estar por uma teleologia da vida.Esta não é nova, é romântica ou pré-romântica, ofereceu a sua plenadimensão na dialéctica especulativa.
Mas, no estado actual das ciências e das técnicas, o recurso à entidade «Vida» para cobrir o que chamo, à falta de melhor, desejo (conatus, appetitlo noutros casos), ou seja, a complexificação que nega,desautoriza por assim dizer, um a um os objectos de procura, - estaapelação aparece demasiado tributária da experiência humana, demasiado antropomórfica. Que sistemas se formem como o átomo ou a estrela ou a célula ou o córtex humano ou o córtex colectivo constituídopelas memórias-máquinas e dizer que uma Vida é responsável por isso,é contrário, como qualquer teleologia, ao espírito materialista, no sentido nobre, no sentido de Diderot, sentido esse que é o do conhecimento. Só pode invocar o acaso ou a necessidade, como Demócrito eLucrécio. A matéria não faz uma dialéctica.
Não penso evidentemente resolver o problema. Mas, ao invocarDemócrito e Lucrécio, penso que a microfísica e a cosmologia inspiram mais um materialismo do que uma teleologia, ao filósofo de hoje.
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Um materialismo imaterialista, se for verdade que a matéria é energia e que o espírito é vibração retida.
Uma das implicações dessa corrente de pensamento, é que deveriatrazer um novo impacto àquilo a que chamaria narcisismo humano.Freud já tinha detectado três impactos: o homem não está no centrodo cosmos (Copérnico), não é o primeiro dos seres vivos (Darwin),não é dono do significado (o próprio Freud) . Com a tecno-ciência contemporânea, aprende que não tem o monopólio do espírito, ou seja decomplexificação, mas que esta não é inscrita como um destino na matéria, mas que é possível e que tem lugar, ao acaso, mas de forma inteligível, muito antes dele próprio. Aprende que a sua própria ciência épor sua vez, uma complexificação da matéria onde, por assim dizer , aprópria energia se reflecte, sem que daí retire algum benefício. E, destemodo, não se deve considerar como uma origem nem como um resultado, mas como um transformador que assegura, pela sua tecno-ciência, as suas artes, o seu desenvolvimento económico, as suas culturas ea nova memorização respectiva, um suplemento de complexidade nouniverso .
Este ponto de vista pode levar à alegria ou ao desespero. Gostariade ter tempo para mostrar no Le rêve de d'Alembert, por exemplo,mas também em muitos outros textos, que esse ponto de vista é o mesmo de Diderot. Foi o de Marcel Duchamp e de Stéphane Mallarmé.Talvez seja suficiente, em toda a sua sobriedade, para nos dar uma razão para pensar e escrever e ter um amor da matéria. A matéria faz asua anamnese no nosso esforço.
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LOGOS E TEKHNE OU A TELEGRAFIA
O título logos e tekhnê é bastante pretensioso.Na argumentação do presente colóquio, os organizadores salientam
a incidência das ditas novas tecnologias sobre as sínteses constitutivasdo espaço e do tempo. Numa nota preparatória ao mesmo colóquio,Bernard Stiegler salientou três pontos:
1 - a técnica não é, e provavelmente nunca o foi, um meio paraalcançar um objectivo que seria a ciência;
2 - pelo contrário, a «tecno-ciência» (de Habermas) é a realizaçãoactual de um tekhnologos em relação à obra de modo constitutivo nologos ocidental (mesmo se as tekhnai gregas foram sobretudo, em primeiro lugar, matérias de linguagem logotécnicas);
3 - e, por fim, as novas tecnologias invadem agora o espaço público e o tempo comum (invadindo-os sob a forma de objectos industriais de produção e de consumo inclusivamente «culturais»), a nívelplanetário; é, deste modo, o espaço-tempo mais «intimo», digamos assim, nas suas sínteses mais «elementares» que é «assaltado», perseguido e, sem dúvida, modificado pelo estado actual da tecnologia.
Partirei da hipótese-mãe dos trabalhos de Stiegler, segundo a qualqualquer técnica é uma «objectivação» ou seja, uma espacialização dosignificado, cujo modelo é dado pela própria escrita no sentido corrente da palavra. E, que a inscrição , o traçado, por um lado porque é«legível» (descodificável , se se quiser), abre um espaço público de significado e gera uma comunidade de utilizadores produtores e, por outro lado (?) porque é dotada de persistência pela sua marca sobre umsuporte espacial, ela conserva o sinal do acontecimento passado, ou de
Comunicação no Colóquio «Nouvelles technologies et mutation des savoirs», organizado em Outubro de 1986 pelo College internacional de philosophie e o IRCAM, poriniciativa de Bernard Stiegler.
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preferência, do produto enquanto memória disponível, apresentável ereactualizáveI.
A partir daquí, a minha intenção é dissociar, com algum formalismo, vários aspectos deste efeito-memória assim engendrado pela técnica enquanto inscrição, referindo-o mais particularmente ao estado actual da tecnologos . Fá-lo-ei numa terminologia que poderíamos qualificar de materialista e portanto, metafísica. Digo-me que é por comodidade, para não tornar a exposição demasiado severa. Será talveztambém porque a dificuldade do tema me impede de fazer melhor .
Distingo portanto, sem pretender ser exaustivo, três géneros deefeitos-memória da inscrição tecnológica em geral: de acesso, de varredura e de passagem, os quais coincidem, grosso modo e respectivamente, com os seguintes géneros de síntese do tempo ligado à inscrição: o hábito, a remernoriação e a anamnese.
1.
o hábito é um dispositivo estável, por vezes complexo, de plasticidade variável, que estrutura um tipo de comportamento num tipo desituação contextuaI. A estabilidade do dispositivo permite a repetiçãodo comportamento tipo, com um ganho notável de energia.
O psicólogo e o fisiologista dizem que o hábito se adquire, ao contrário de outros dispositivos estáveis, tais como o instinto. No entanto, é do seu conhecimento que a delimitação entre os dois géneros dedispostivos não é nítida. Por exemplo, o desencadear de certos instintos pode exigir a aprendizagem óu, pelo menos, ser facilitada por ela.
Mas, a minha questão não é essa. O hábito baseia-se num acesso(comandado geneticamente ou não), como se dizia há um século atrás,isto é, numa colocação em série de elementos, por exemplo: de neurónios, de zonas ou de condutores nervosos, quando se trata de invertebrados. Vista de cima, esta colocação em série parece um caso particular do que a astronomia e a cosmologia arcaicas chamam de atracção.Elementos (astros, partículas, células, indivíduos de uma espécie viva)que podem ser concebidos isoladamente formam um conjunto notávelpela sua dupla transcendência interna: as propriedades do todo excedem as da soma das partes e, cada elemento, por si próprio, não se esgota na sua definição de parte de tal totalidade. A atracção, no senti-
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do clássico, é ela própria, um caso particular do que a teoria física geral chama, hoje, de interacção (no núcleo, no átomo, na molécula, nacélula, no sistema planetário, na nebulosa, na galáxia, no cosmos).Chamada também de acção recíproca, na filosofia clássica.
Sabem de que modo a teoria da informação e da comunicação (acibernética) desde Newman e Wiener, permitia afinar este conceito deinteracção, por exemplo, no que diz respeito à regulação genética doorganismo vivo, e também qual é o seu impacto sobre a concepção e aprática correntes hoje em dia, dos conjuntos sociais.
As «culturas» , no sentido do culturalismo, podem ser consideradascomo nebulosas de hábitos cuja acção persistente sobre os indivíduos,os quais são seus elementos, é assegurada por esses dispositivos energéticos estáveis que a antropologia contemporânea chama estruturas . Asleis de estrutura que asseguram a circulação (o acesso), para as palavras, os bens e as mulheres (retomo a trilogia de Lévi-Strauss) de forma singular, digamos idiomática, enquanto que outras maneiras sãoem princípio possíveis, estas leis são normas de acesso. Nas culturastradicionais, os hábitos assim comandados incluem também elementosgeográficos e cronológicos, seria melhor falar de lugares e momentos,lugares-ditos e momentos-ditos, já que, por construção, estas culturassão nebulosas de hábitos inseridas num espaço-tempo familiar. Familiar como a terra natal.
Uma das questões que a nota de Stiegler e da argumentação do colóquio, mas também o estudo de Jean Chesneaux, colocam com insistência, é a da «deslocalização» e da «destemporalização» dos acessosapós as novas tecnologias. Este desancorar começou com a «primeirarevolução tecnológica» que permitiu à indústria (carvão, vapor e/ouelectricidade) a possibilidade de espalhar sobre todas as culturas (maisou menos rapidamente, mais ou menos profundamente) objectos queexigiam modos (hábitos) de produção, de intercâmbio e de consumopossíveis e válidos fora do território e fora do momento.
As máquinas contemporâneas podem levar a cabo operações quequalificávamos de mentais: apreensão de dados em termos de informação e o seu armazenamento (memorização), regulação dos acessos àinformação (o que chamávamos de «recordação»), cálculo dos efeitospossíveis de acordo com os programas, tendo em conta as variáveis eas opções (estratégia). Qualquer dado torna-se útil (explorável , operacional) a partir do momento em que pode ser traduzido em informa-
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ção , É também o caso dos dados ditos sensiveis: cores, na medidaexacta em que as suas propriedades físicas constitutivas são identificadas . Após a digitalização , estes dados podem ser sintetizados em qualquer sítio e a qualquer momento, para obter produtos cromáticos ouacústicos similares (simulacros). Tornam-se assim independentes em relação ao lugar e ao momento da sua recepção «inicial», realizáveis àdistância espacial e temporal, digamos: telegrafáveis . A própria ideiade que existe uma recepção «inicial», à qual se dá o nome de «estética» desde Kant, um modo empírico ou transcendental de afecção do espírito por uma «matéria» que não controla facilmente o que lhe aconteceaqui e agora, esta ideia afigura-se de um arcaísmo ultrapassado.
Não sigo aqui esta pista de uma crise profunda da estética e portanto das artes contemporâneas. Quanto à memória-acesso, basta salientar dois factos notáveis :
a) A tecnologia actual, este modo específico de tele-grafia, escritade longe, afasta os contextos próximos onde culturas enraizadas sãoelaboradas. Assim, pela sua forma própria de inscrição, é de factoprodutora de um género de memorização liberta das condições ditasimediatas do tempo e do espaço. A questão a seguir aqui seria: o queé um corpo (corpo próprio, corpo social) na cultura tele-gráfica? Refere-se a uma produção espontânea do passado nos hábitos, a uma tradição ou transmissão das formas de pensar , de querer e de sentir e,por consequência, a um tipo de acesso que vem complicar , contrariar,neutralizar e extenuar os acessos comunitários anteriores. E que , pelomenos, as traduz para as fazer transitar por sua vez e torná-Ias transmissíveis. Os acessos anteriores, apesar de permanecerem ali e de resistirem um pouco, tornam-se subculturas . A questão de uma teleculturahegemónica à escala planetária já se coloca.
b) Para a maior parte dos humanos, os acessos correspondentes aesta cultura continuam largamente por efectuar. Eis a razão pela qualessa cultura cria dúvidas. Stiegler está certo quando insiste sobre a necessidade de tornar os modos de inscrição (portanto de memorização)que lhe são próprios , disponíveis para os indivíduos . A escola ensinavaa escrita aos futuros cidadãos . Qual a instituição que se encarrega deensinar a tele-grafia? Poderá o ideal perseguido por tal instituição serainda o cidadão? Não estará a ideia de instituição ligada ao Estado e àescrita-leitura? Ou seja , ao ideal de um corpo político? De qualquermodo , é demasiado nítido que os Estados não são as instâncias de
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controlo do processo geral do novo acesso telegráfico. Representamum elemento e apenas um elemento de regulação deste processo, oqual os ultrapassa largamente no seu princípio. Seria aqui necessárioretomar a análise, diria metafísica e ontológica, do capitalismo. Masestas questões da aprendizagem e do seu controlo dependem já de umoutro efeito-memória que não é o acesso, mas sim a varredura.
2.
o que aqui chamo varredura corresponde a essa síntese do tempoque na filosofia e na psicologia clássicas tinha o nome de rememoriação, Ao contrário do acesso-hábito, a síntese da remernoriação nãoimplica somente a retenção do passado no presente enquanto presente,mas a síntese do passado como tal e a sua reactualização enquantopassado, no presente (de consciência). A remernoriação implica a identificação do rememoriado, a sua classificação num calendário e umacartografia.
Kant dizia: não só as sínteses apreensiva e reprodutiva, como também a síntese recognitiva. Bergson dizia: não só o atraso na reacçãoao estímulo, a suspensão e o armazenamento dessa reacção enquantopotencial , o qual é o hábito, como também a apreensão dessa reacçãoinibida no momento em que não é solicitada pela situação presente.O que implica, numa e noutra descrição, ·a intervenção de uma mêta-instância que inscreve sobre ela própria, conserva e torna impossível oconjunto acção-reacção independentemente do lugar e do momentopresente . Portanto já uma tele-grafia. No caso de Kant é o conceito epara Bergson é a consciência-córtex. Hoje em dia, dizemos que é a linguagem stricto sensu, a linguagem humana caracterizada pela articulação dupla, semântica e fonética. De acordo com este raciocínio , a linguagem é imediatamente apreendida, ela própria, enquanto técnica etécnica de um grau superior, metatécnico. Ao contrário dos acessossimples, a memória linguagem implica propriedades desconhecidas pelo hábito: a denotação do que é retido por ela (graças à sua transcrição simbólica), a recursividade (a combinação dos sinais é inumerável,a partir de regras generativas simples , da sua «gramática»), e a referência a si (os sinais de linguagem podem ser denotados por sinais delinguagem: a metalinguagem). Muito mais do que a linguística funcio-
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nalista, a linguística generativa e transformacional tem vindo a aproximar-se da técnica da linguagem. Isto porque tekhnê é o abstracto extraído de tiktô, o qual significa engendrar, gerar (os tekontês, os genitores; o teknon, o rebento).
Podemos dizer que a célula viva, o organismo com os seus órgãossão já tekhnai, que a «vida» (como se costuma dizer) já é a técnica resta que a sua «linguagem» (o c6digo genético, digamos assim) nãos6 limita a operatividade desta técnica, como também (e é a mesmacoisa) não permite a sua objectivação, o seu conhecimento e a suacomplexificação controlada. A hist6ria da vida sobre o nosso planetanão é assimilável à hist6ria da técnica, no sentido corrente, porquenão agiu por rememoriação mas sim por acesso.
A linguagem, em virtude das ditas propriedades, enquanto auto-tekhné indefinida, e porque possui nela pr6pria uma capacidade infinita de combinações, revela ao mesmo tempo o que existe de acabadoem qualquer inscrição, incluindo a sua . Esta última exige, com efeito,a selecção do que é inscrito. As pr6prias estruturas da linguagem sãooperadores de exclusão, a qualquer nível, fonético, semântico, mítico,narrativo, etc... Com a logikê tekhnê, a rhétorikê tekhnê e a poétik êtekhnê, os Gregos, Arist6teles, não determinam apenas grupos de regras que se devem seguir nas artes da argumentação, da persuasão oudo charme; desvendam, ao mesmo tempo, a finitude dessas utilizaçõese descobrem, assim, o horizonte infinito do por-dizer, a tarefa infinitade gerar novas frases e regras. Tarefa a que dávamos então o nome defilosofia, essa palavra engraçada. A filosofia tornou-se então a instância meta- ou tele-gráfica que disse ser pr6pria à mem6ria «activa»,mas esta instância que aparece quase como uma instituição no espaçopúblico e que apreende denotativamente e põe em questão a cultura dehábitos onde surge.
O tekhnologos é portanto também rememoriação; não é apenas hábito. A sua capacidade auto-referencial, reflexão no sentido habitual,crítica, se assim o quiserem, exerce-se ao rememoriar os seus pr6priospressupostos e subentendidos, como se fossem as suas pr6prias limitações. E, do mesmo modo, o tekhnologos abre o mundo constituídopelo que foi excluído pela sua própria constituição, pelas suas estruturas de funcionamento, a todos os níveis. É assim que se inventam novos géneros de linguagem denotativos, aritmética, geometria, análise.É assim que se gera a ciência, as ciências, como processo de conquista
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do desconhecido, de experimentação, para além da experiência culturaltradicional, de complexificação do logos, para além do tekhnologos recebido do acesso. É este processo ao qual dou o nome de varredura.
É ele, enquanto denotativo, que acaba por aparecer como instituição, naquilo a que chamamos pesquisa e desenvolvimento. A tecno-ciência contemporânea é a sua emanação directa, após séculos de formação hesitante. Mas agora sabemos que «funcionou» de forma irreversivel.
Que esta rememoriação está activa e cada vez mais activa, exponencialmente activa, é o que os filósofos conhecem da modernidade quando nela detectam o sintoma de uma hipertrofia da vontade. O aspectode reactividade, tão notável quanto o acesso, desaparece diante da varredura. Deus, a natureza, o destino, também eles são «varridos».E, com eles, o principio de uma finalidade do processo de pesquisa edesenvolvimento. A analogia deste processo com o processo de umaadaptação biológica, não resiste à reflexão, porque esta última está apenas assente sobre o acesso. É claro que com a tecno-ciência no seu estado contemporâneo, é uma potência para «pôr em série» , como dizia noinicio, uma capacidade de sintese que está em curso no planeta Terra ede que a espécie humana é mais seu veiculo do que o seu beneficiário.Terá mesmo que «desumanizar-se», no sentido em que ainda não é umaespécie biocultural, para chegar à altura da nova complexidade, para vira ser tele-gráfica. Os problemas de ética postos pela tecno-ciência estãoaqui para testemunhar que a questão já foi posta. Quando se pode simular in vitro a explosão solar ou a fecundação e a gestação de um servivo, é necessário saber o que se quer. Ora, não temos nenhuma ideiaacerca disso . No principio da varredura, existe esta exclusão dos fins.Ela revestiu-se de todos os disfarces: destino do homem, progresso, luzes, emancipação, felicidade. Hoje, esta exclusão aparece completamente nua. Saber e poder mais sim, mas porquê, não .
Poderá uma t élékoinônia, uma comunidade telegráfica sem té/os,constituir-se (à volta) dessa exclusão?
3.
Por fim, algumas palavras sobre a «passagem». É uma outra rememoriação ligada a uma escrita que é diferente da inscrição por acesso
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ou por experimentação, da repetição habitual e da rememoriação voluntária. Utilizo o termo «passagem», para fazer alusão a essa terceiratécnica de memória que Freud opõe às duas primeiras, no seu escritosobre a «técnica psicanalítica»: o «passar» (infinitivo) em questão é odurch alemão da Durcharbeitung ou o through do working through inglês, o passar através da trans- ou da per- laboração.
Esta palavra de trabalho, utilizada após Freud, é bastante enganadora. Existe também trabalho em qualquer técnica: não acedemos, nãovarremos sem gasto de energia. Se a passagem não consome, sem dúvida, mais força do que qualquer outra técnica, é porque é uma técnicasem regra ou com uma regra negativa, desregulada, uma generatividade sem outro dispositivo do que a ausência do dispositivo, se possível.
O próprio logos, nessa tecnologia, não deverá fechar-se sobre simesmo, como na varredura, com os objectivos de apropriação e de expansão, mas virar-se contra ele mesmo, isto porque está «ligado», como dizia Freud, e sintetizado, a todos os níveis, desde o fonético atéao argumentativo e retórico. Trata-se, em geral e precisamente, de passar ao lado da síntese.
Ou, se assim o quisermos, de passar ao lado da lembrança daquiloque foi esquecido. Tratar-se-ia de se lembrar do que não pôde ser esquecido porque não foi inscrito. Será possível lembrar-se, se não houve inscrição? Será sensato? Será uma tarefa tecnológica para o tekhnologos?
De qualquer forma, estaremos de acordo quanto ao facto de seruma bela tele-grafia, uma inscrição de longe, de muito longe e paramuito longe, no tempo e no espaço. E, essa longitude, sabemo-lo, nãose situa a anos luz, pode estar, e deve estar, muito próxima. Na própria questão deixada pela varredura experimental. No secretismo daexclusão em que se baseia.
Falo aqui do que a psicanálise chama de anamnese, do que o dito«pensamento francês» chama de escrita, desde há muitos anos. Nãovejo esta «passagem» como uma transgressão e é por isso que me afastei (talvez demasiado rapidamente) de Bataille e de Klossowski. Eis como gostaria de ternatizá-la, na minha actual aproximação «materialista)) das tecnologias.
É sensato tentar recordar alguma coisa (digamos: alguma coisa)que não foi inscrita, isto se a inscrição dessa alguma coisa tiver quebrado o suporte inscritível ou memorável. Irei utilizar a seguinte metá-
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fora de Dôgen, pertencendo a um tratado do Shobôgenzô, o Zenki, esta metáfora do espelho: pode haver uma presença que o espelho nãopode reflectir, mas que o quebra em migalhas. Um estrangeiro, umchinês podem aparecer diante do espelho e a sua imagem reflectir-senesse espelho. Mas, se o que Dôgen chama de «espelho claro» faz faceao espelho, então «tudo se quebrará em migalhas» . E Dôgen salienta:«Não imaginem que ocorra primeiro o tempo em que o que não existequebra, nem que haja em seguida o tempo em que tudo se quebra.Trata-se simplesmente da "quebra"» (Shobôgenzâ, pp. 106-107). Háportanto uma presença que quebra e que nunca é inscrita ou memorável. Não aparece. Não é uma inscrição esquecida, não tem lugar nemmomento, no suporte das inscrições, no espelho reflector , permaneceignorada pelos acessos e pela varredura.
Não estou certo de que o Ocidente tenha conseguido pensar isto ,devido à sua vocação tecno-lógica - o Ocidente filosófico - Platãotalvez, quando tenta pensar o agathon para além da essência ou talvezFreud, quando tenta pensar o recalcamento originário. Mas, tanto umcomo outro sentem a ameaça de uma recaída no tekhnologos. Istoporque tentam encontrar «a palavra que liberta», como escreve Dôgen. E, no último trabalho de Heidegger, talvez falte também a violência da quebra, talvez exista uma facilidade demasiadamente ampla emchamar «clareira» ao efeito do espelho claro do ser sobre o espelho dosendo.
O esgotante trabalho de Édipo para com a presença que estilhaçoua sua memória, a palavra do deus, não estou certo de que mereça onome de perlaboração, de anamnese . Tudo depende do modo como se«situa» a palavra de Apolo no desdobramento da vida de Édipo.É toda a questão da posterioridade freudiana: será que o primeiro actoque, como sabeis, não foi registado e que não volta senão como umsegundo acto , disfarçado, será que este primeiro acto foi levado a cabo na mesma superficie de inscrição onde o segundo e os seguintesirão inscrever-se, diferente apenas porque indecifrável? Estes termos de«primeiro» e de «segundo » são temíveis: colocam em paridade o espelho claro e o espelho.
A anamnese seria esse aviso, esse alerta ou essa suspensão (mnao mai, mnômai, latim monere, monimentum) em relação ao acto de seerguer (ana-) diante do espelho claro, através da quebra.
Podemos ter, e de certa forma confesso que tenho reservas quanto
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à concepção freudiana da anamnese. Resta que, como que por acaso,os escritos sobre a técnica psicanalítica, a partir dos quais estabeleci,entre outras coisas, como reconhecesteis, a trilogia que me guia: repetição, rememoração, perlaboração - estes escritos de técnica ensinamo que deve ser a tecnologia quando se trata de assegurar a passagemou anamnese. Para o psicanalísta trata-se de abrir o terceiro ouvido ede retirar todo o pré-inscrito dos dois outros ouvidos (tapando-os), deabandonar as sínteses já estabelecidas, independentemente do seu nível, seja ele lógico, retórico ou até linguístico e de deixar trabalhar deforma flutuante o que passa, ou seja o significante, por mais insensatoque pareça.
Apenas vejo a escrita, sendo ela própria anamnese do que não foiinscrito, para suportar a comparação com esta regra a-técnica oua-tecnológica. Isto porque oferece à inscrição o branco do papel, branco como a neutralidade do ouvido analítico.
Apesar do facto de ainda tentar ilibar-se das associações qualificadas, elas próprias, de livres.
Não vou desenvolver este problema extraordinariamente complexoe intrigante. Esta escrita, vista como passagem ou anamnese, encaramo-la no caso dos escritores ou dos artistas (é evidentemente a perlaboração de Cézanne), como uma resistência (num sentido não psicanalítico, penso mais no sentido do Wilson de 1984, de Orwell) às síntesesde acesso e de varredura. Nos programas espertos e nos longos telegramas. Toda a questão é: será a passagem possível com ou permitida pelo novo modo de inscrição e de memoriação que caracteriza as novastecnologias? Não irão estas impor as sínteses e as sínteses concebidas,de uma maneira ainda mais íntima nas almas do que qualquer tecnologia anterior? Mas por isso mesmo, não irão elas ajudar também a afinação da nossa resistência anamnésica? Vou terminar nesta vaga esperança, demasiado dialéctica para ser levada a sério. Tudo isto está porpensar e experimentar.
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o TEMPO, HOJE
1.
O título «O tempo, hoje» não está isento de paradoxo. «Hoje» designa o tempo, é um deíctico que indexa o tempo do mesmo modo que«agora», «ontem», etc . Como todos os deícticos temporais, opera aoreferir o que designa apenas no presente da própria frase ou na frase,apenas pelo facto de esta estar presente. Temporaliza o referente dafrase corrente ao situá-lo exclusivamente em relação ao tempo em queessa frase está a acontecer, sendo esse tempo o tempo presente. Istosem recorrer de modo algum ao tempo no qual a frase poderia ser porsua vez localizada, utilizando por exemplo, um relógio ou um calendário. Neste último caso, a frase 1 poderia ser utilizada como referênciapara uma frase 2 que, por exemplo, diria o seguinte: «A frase 1 ocorreu no dia 24 de Junho.» O calendário e o relógio constituem redes detempo «objectivo» que permitem localizar o momento da frase 2, semreferência ao tempo «de» frase 1. Supondo mesmo que uma nova frase (chamemos-lhe 3) não utilize datas e horas para se referir à frase I,por exemplo (frase 3): «a frase I ocorreu ontem», em que o acontecimento da frase 1 está de facto localizado em referência ao único presente da frase 3, resulta que a frase I está aqui colocada em posiçãode ser designada pelo deíctico «ontem». A frase 1 já não é aqui o presente que apresenta, torna-se esse presente «que então apresentava eque é agora apresentado», ou seja, o passado.
Enquanto ocorrência, cada frase é um «agora». Apresenta agoraum sentido, um referente, um destinador e um destinatário. Em rela-
Texto reescrito a part ir de uma exposição feita em inglês em Julho de 1987 na CarlFriedrich von Siemens Stiftung em Munique, por iniciativa do seu director administrativo, Heinrich Meier, no âmbito de um programa intitulado «Zur Diagnose der Moderne». Publicado in Critique, 493-494, Junho-Julho de 1988.
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ção à apresentação, devemos imaginar o tempo de uma ocorrência como, e apenas como , presente. Este presente não se pode apreender enquanto tal, é absoluto. Não pode ser sintetizado directamente com outros presentes. Os outros presentes com os quais pode ser relacionadosão necessária e imediatamente alterados para presentes apresentados,isto é, passados .
Quando se glosa o tempo da apresentação ao concluir que «cada»frase aparece em cada tempo, omite-se a inevitável transformação dopresente em passado, coloca-se ao mesmo nível todos os momentosnuma mesma e única linha diacrónica.
Deixamo-nos assim deslizar do tempo que apresenta, implicado em«cada» ocorrência, para o tempo apresentado em que se tornou, oumelhor, para o tempo como «agora» (nun, now), ao tempo considerado como «desta vez» (dieses Mal, this time), expressão que pressupõeque «uma vez» (einmal, one time) é equivalente à «outra vez» (das andere Mal, that time). O que se esquece nesta sintese objectivante, é queela própria tem lugar agora, na ocorrência apresentadora que efectua asíntese, e que esse «agora» ainda não é ainda uma das «vezes» queapresenta na linha diacrónica.
Pelo facto de ser absoluto, o presente que apresenta não é apreensível: ainda não é ou já não é presente . Para apreender a própria apresentação e apresentá-la, é sempre cedo demais ou tarde demais. Tal é aconstituição especifica e paradoxal do acontecimento. Que alguma coisa aconteça, a ocorrência, significa que o espírito é desapropriado.A expressão «Acontece ... » é a própria fórmula da não dominação doser pelo ser. O acontecimento torna o ser incapaz de tomar posse econtrolo do que é. Testemunha de que o ser é essencialmente, passívelde uma alteridade purificadora.
Com o titulo «o tempo, hoje», o meu discurso coloca-se obviamente sob a égide desta passibilidade. Não tem, de modo algum, o objectivo de exercer um controlo total, mesmo teórico, sobre o referente quedesigna, o tempo. Quero simplesmente tentar isolar certas modalidadessegundo as quais o modernismo trata a condição temporal.
2.
O facto de recordar brevemente a questão do tempo, vista sob o ângulo da apresentação, é marcado conceptualmente pelo privilégio que é
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atribuído à descontinuidade, ao «discreto» e à diferença. É claro queesta descrição pressupõe, tal como o seu oposto e o seu complemento, acapacidade de juntar e de reter numa só «presença», um certo númerode momentos distintos, pelo menos potencialmente. Como a palavra osugere, consciência implica memória, no sentido husserliano de uma«Retenção» elementar. Ao opor a síntese à descontinuidade, a consciência parece lançar um desafio à alteridade. Neste conflito, o objectivo édeterminar os limites dentro dos quais a consciência é capaz de receberuma diversidade de momentos (de «informações», como se diz hoje emdia) e de os actualizar «cada vez» que for necessário.
Temos alguma razão ao imaginar dois limites extremos à capacidade de sintetizar uma multiplicidade de informações, uma sendo mínima e a outra, máxima. Tal é a intuição maior que guia a obra deLeibniz, em particular a Monadologia. Deus é a mónade absoluta desde que conserve a totalidade das informações que constituem o mundonuma completa reunião. E se a retenção divina deve ser completa, éporque inclui do mesmo modo as informações que ainda não estãopresentes diante das mónades incompletas representadas pelos nossosespíritos e que estão por acontecer no que chamamos futuro. Nestaperspectiva, o «ainda não» só é devido ao limite que rodeia a faculdade de síntese que está à disposição das mónades intermediárias. Para amemória absoluta de Deus, o futuro é, ao contrário, sempre dado. Podemos assim conceber, para a condição temporal, um limite superiordeterminado por uma capacidade perfeita de registar ou de arquivar.Arquivador consumado, Deus está fora do tempo. Eis um fundamentoda metafísica ocidental moderna.
A física ocidental moderna, no que lhe diz respeito, encontra o seufundamento do lado do outro limite. Podemos imaginar um ser incapazde registar e de utilizar informações transmitidas quando inseridas entreo acontecimento e o seu efeito: um ser que poderia portanto unicamenteveicular ou transmitir as unidades de informações (bits) do mesmo modoque as recebe. Nestas condições, na ausência de qualquer filtro servindode interface entre o input e o output, esse ser situar-se-ia no grau zero daconsciência ou da memória. É esse ser que Leibniz chama de «ponto material». Representa a mais simples unidade requerida pela ciência do movimento, a mecânica. Na física e na astrofísica contemporâneas, a família das partículas elementares é constituída por entidades quase tão«nuas» (a palavra é de Leibniz) quanto o ponto material.
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Resulta que cada subconjunto de partículas incluído na dita famíliaapresenta propriedades que permitem que esses elementos entrem emrelação com os outros de acordo com regularidades próprias. Esta especificidade significa que uma partícula dispõe , apesar de tudo, de umgénero de memória elementar e, por consequência, de um filtro temporal. É assim que os fisicos contemporâneos têm tendência a pensar queo tempo emana da própria matéria e que não existe uma entidade exterior ou interior ao universo que teria por função juntar os diversostempos numa história universal. Tais sínteses (apesar de parciais) poderiam apenas ser detectadas dentro de certas regiões. Existiriam áreasde determinismo onde a complexidade estaria em crescimento.
De acordo com esta aproximação, o cérebro humano e a linguagemsão sinal de que a humanidade é um complexo desse género, temporário e muito improvável. Será então tentador pensar que o que chamamos pesquisa e desenvolvimento na sociedade contemporânea e cujosresultados não cessam de desestabilizar o nosso meio, é muito mais oefeito do tal processo de complexificação «cosmolocal» do que a obrado génio humano empenhado em descobrir a verdade e em fazer obem.
3.
Gostaria de desenvolver um pouco este aspecto da hipótese maisparticularmente relacionada com o nosso tema, «o tempo, hoje ». Penso que a angústia que prevalece hoje no domínio filosófico e políticoacerca da «comunicação», do kommunikative Handeln, da «pragmática», da transparência, na expressão das opiniões, etc.. ., não tem praticamente nada a ver com os problemas filosóficos e politológicos «clássicos» relacionados com o fundamento da Gemeinschajt (comunidade), do Mitsein (estar junto), da communitas e mesmo do espaço público (Õjjentlichkeit), tal como foram pensados pelas Luzes.
Esta compulsão em comunicar e em assegurar a comunicabilidadede qualquer coisa: objectos, serviços, valores, ideias, linguagens, gostos, que se exprimem particularmente no contexto das novas tecnolo gias - é necessário, para interrogá-la correctamente, renunciar, creio,à filosofia da emancipação da humanidade implicada na metafisicamoderna «clássica», Qualquer tecnologia, a começar pela escrita consi-
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derada como uma technê , é um artefacto que permite aos seus utilizadores armazenar mais informações, reforçar a sua competência e optimizar as suas performances.
Quanto às novas tecnologias construídas a partir da electrónica edo tratamento informático, a sua importância reside no facto de seemanciparem cada vez mais das condições de vida na terra (a programação e controlo da memorização, ou seja, a síntese de tempos diferentes num só tempo). É muito provável que por entre os materiaiscomplexos que conhecemos, o cérebro humano seja o mais capaz deproduzir, por sua vez, complexidade, como as novas tecnologias provam. Como tal, resta também a instância suprema apta para controlaressas tecnologias. Todavia, a sua própria sobrevivência requer que sejaalimentado por um corpo, o qual, por sua vez, só pode subsistir nascondições de vida na terra ou num simulacro dessas condições. Pensoque é, hoje em dia, um dos objectivos essenciais da pesquisa, tentarquebrar o obstáculo que o corpo opõe ao desenvolvimento das tecnologias comunicacionais, ou seja, à memória em expansão. Poderia particularmente acontecer que tal fosse o objectivo real das pesquisas incidindo sobre a fecundação, a gestação, o nascimento, a doença, a morte, o sexo, o desporto , etc. Todas parecem convergir para o mesmoobjectivo: tornar o corpo adaptável a condições de sobrevivência nãoterrestres ou substituí-lo por um outro «corpo».
Dito isto, ao considerar a mudança considerável à qual é submetidaa nossa cultura, observaremos o quanto, analogicamente, as novas tecnologias estão a libertar o bloqueio constituído pela vida dos humanosna terra. As etnoculturas foram durante muito tempo esses dispositivos de memorização da informação graças aos quais os povos tinhama possibilidade de organizar o seu espaço e o seu tempo. Eram nomeadamente a forma pela qual multiplicidades de tempos (de «vezes») diferentes podiam ser reunidas e conservadas numa memória única(B. Stiegler). Elas próprias consideradas como technai, permitiam acolecções de indivíduos e de gerações a possibilidade de dispor de verdadeiros stocks de informações, através da duração e da extensão.Produziram nomeadamente essa organização específica da temporalidade que nomeamos narrativas históricas. Existem várias maneiras decontar uma história, mas a narrativa enquanto tal, pode ser considerada como um dispositivo técnico, o qual dá a um povo os meios paraarmazenar, ordenar e relembrar as unidades de informações, ou seja,
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os acontecimentos. Mais precisamente, as narrativas são como filtrostemporais cuja função é transformar a carga emocional ligada ao acontecimento, em sequências de unidades de informações susceptíveis de engendrar enfim algo parecido com o sentido. Voltarei a falar sobre isto.
Ora, é claro que estes dispositivos culturais, os quais constituemformas de memória relativamente vastas, permanecem estreitamente ligados ao contexto histórico e geográfico no qual operam. É esse contexto que fornece à dita memória a maior parte dos acontecimentosque deve apreender, armazenar, neutralizar e tornar disponíveis.A cultura tradicional permanece assim profundamente marcada pelalocalização à superficie da terra, de modo que não se deixa facilmentetransplantar, nem comunicar. Como o sabemos, esta inércia constituium aspecto maior dos problemas ligados, hoje em dia, ao fenómenogeral da imigração e da emigração.
Pelo contrário, com as novas tecnologias, que fornecem modelosculturais que não são inicialmente enraizados no contexto local, masque se formam tendo imediatamente em vista a maior difusão na superficie do globo, surge um meio notável para ultrapassar o obstáculocriado pela cultura tradicional à apreensão, ao trânsito e à comunicação das informações.
Esta acessibilidade generalizada e oferecida pelos bens culturais novos, não me parece que seja propriamente um progresso. A penetraçãodo aparelho tecno-científico no campo cultural, não significa, de modoalgum, que o conhecimento, a tolerância e a liberdade se tornem maiores nos espíritos. Ao reforçar este aparelho não se emancipa o espírito,tal como o Aufklãrung o pôde esperar. Fazemos talvez mais a experiência inversa: barbarismo novo, neo-alfabetismo e empobrecimentoda linguagem, nova pobreza, impiedosa remodelagem da opinião pelosmedia, um espírito vocacionado à miséria, uma alma ao desuso, o queWalter Benjamin e Theodor Adorno não pararam de salientar.
Isto não significa no entanto que podemos contentar-nos, como adita Escola de Frankfurt, com a crítica à subordinação do espírito àsregras e aos valores da indústria cultural. Positivo ou negativo, estediagnóstico depende ainda de um ponto de vista humanista. Ora osfactos são ambíguos. A cultura «pós-moderna» está de facto a estender-se a toda a humanidade. Nesta medida, tem tendência a abolir aexperiência local e singular, a martelar o espírito com grandes estereótipos, não deixando lugar, ao que parece, à reflexão e à educação.
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Se a nova cultura pode produzir efeitos tão divergentes, de generalização e de destruição, é porque não parece depender do domínio humano, nem pelos seus objectivos, nem pelas suas origens. Como o desenvolvimento do sistema tecno-científico o mostra, a tecnologia e acultura que lhe estão associadas, são necessárias para continuar o seuesforço e essa necessidade deve estar relacionada com o processo decomplexificação (de nég-entropia) que ocorre na área cósmica habitadapela humanidade. A espécie humana é por assim dizer puxada «para afrente» por esse processo, sem ter a menor capacidade de o dominar.É necessário que se adapte às novas condições. É mesmo possível quetenha sido este o caso, no decorrer da história da humanidade. Alémdo mais, se podemos tomar consciência disso hoje em dia, é por causado crescimento exponencial que afecta correntemente as ciências e astécnicas.
A rede electrónica e informática que se estende sobre a terra dáorigem a uma capacidade global de memorização que devemos estimarà escala cósmica, com uma medida muito diferente da escala das culturas tradicionais. O paradoxo implícito nesta memória está no factode não ser, ao fim e ao cabo, a memória de ninguém. Mas «ninguém»,neste caso, não significa que o corpo que sustém essa memória já nãoseja um corpo terrestre. Os computadores não param de sintetizar cada vez mais o tempo (as «vezes»), de tal modo que Leibniz poderia terdito que esse progresso está a engendrar uma mónade ainda mais«completa» do que a própria humanidade alguma vez o foi.
A espécie humana está já constrangida pela necessidade de ter queevacuar o sistema solar daqui a quatro biliões e meio de anos. Terá sido o veículo transitório de um processo muito improvável de complexificação. O êxodo já está a ser programado. A única hipótese que háde o conseguir, é que a espécie se adapte à complexidade que a desafia. E se o êxodo se cumprir, o que se terá preservado não será a própria espécie, mas a «rnónade mais completa» que a espécie era em potência.
4.
Teremos vontade de sorrir ao ver o quanto o quadro que acabo deesboçar depende da ficção. Gostaria de retirar dele algumas implica-
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ções «realistas», ao regressar à questão inicial: de que modo se sintetiza o tempo no nosso pensamento e na nossa prática correntes?
Volto à hipótese «Ieibniziana». Quanto mais completa for uma mónade, mais numerosos serão os dados que memoriza, tornando-se assim capaz de mediatizar o que ocorre antes de reagir e de se subtrairdeste modo à sua dependência directa em relação ao acontecimento.Assim, quanto mais completa for a mónade, maior será a neutralização do elemento aferente. Para uma mónade supostamente perfeita,como Deus, já não há, em último caso, qualquer unidade de informação. Deus não tem nada a aprender. No espirito divino, o universo éinstantâneo.
Poderá ser atraido por este ideal de Mathesis Universalis ou, parautilizar a metáfora borgesiana, de Biblioteca de Babel. Saturar a informação consiste em neutralizar um maior número de acontecimentos.O que já é conhecido não pode ser, em principio, encarado como umacontecimento. Por consequência, se quisermos controlar um processo,o melhor meio é subordinar o presente ao que (ainda) chamamos de«futuro», já que nestas condições, o «futuro» será completamente predeterminado e o próprio presente deixará de se abrir sobre um «após»incerto e contingente.
O que acontece «depois» do «agora» deverá vir «antes» dele. Pormais que uma mónade esteja a saturar a sua reserva do futuro, o presente perde o seu privilégio de ponto inapreensivel, a partir do qual otempo deveria todavia distribuir-se entre o «ainda não» do futuro e o«já não» do passado .
Ora, existe um modelo de uma situação temporal semelhante. Essemodelo é-nos oferecido pela prática quotidiana de intercâmbio . Alguém (X) dá a alguém (Y) um objecto a, no tempo t. Esta doação tema condição seguinte: Y dará a X um objecto b, no tempo t', Deixo delado a questão clássica que consiste em determinar como a e b podemtornar-se equivalentes. O que é todavia pertinente para nós, é o factode que a primeira fase do intercâmbio aconteça se, e apenas se a segunda estiver perfeitamente garantida, num ponto em que a possamosconsiderar como já realizada.
Existe uma quantidade de «jogos de linguagem», prefiro dizer:«géneros de discursos», nos quais uma ocorrência ulterior e definida éesperada, prometida, etc., no momento em que a primeira ocorre.Mas, no caso do intercâmbio, a «segunda» ocorrência, o pagamento,
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não é esperada aquando da primeira, ela é pressuposta como a condição da «primeira». Desta forma, o futuro condiciona o presente.O intercâmbio requer que o que é futuro seja como se fosse presente.Garantias, confiança, segurança, são meios para neutralizar o caso como se fosse ocasional, para prever, digamos assim, o ad-vir. De acordo com esta maneira de tratar o tempo, o su-cesso depende do pro-cesso informacional, o qual consiste em assegurar que nada mais podeacontecer, no tempo t', a não ser a ocorrência programada notempo t.
Quanto à duração que separa t' de t, podemos dizer que não é pertinente em relação ao principio essencial do intercâmbio que acabamos derecordar. É no entanto interessante, podemos dizê-lo, pelo facto de condicionar o lucro. Quanto maior é o intervalo temporal, maior é a possibilidade de acontecer alguma coisa que não estava prevista e, em suma,maior será o risco. O crescimento do risco pode ser calculado em termosde probabilidade e traduzido, por sua vez, em quantidade de dinheiro.O dinheiro aparece aqui como o que realmente é: tempo armazenado para prever o que advém. Não vou desenvolver mais esta ideia.
Digamos apenas que o que chamamos de capital baseia-se no principio de que o dinheiro não é mais do que tempo posto em reserva e àdisposição. Pouco importa que seja depois ou antes daquilo a que chamamos o «tempo real». O «tempo real» é apenas o momento em queo tempo, conservado sob a forma de dinheiro, é realizado. O importante, para o capital, não é o tempo já investido em bens ou serviços,mas sim o tempo que ainda está armazenado em reservas de dinheiro«livre» ou «fresco», atendendo que este último representa o únicotempo que possa ser utilizado para organizar o futuro e neutralizar oacontecimento.
Podemos assim dizer que existe uma correlação estreita e pertinenteentre o que chamei de mónade em expansão, a qual produz o dispositivo tecno-científico do capitalismo nas sociedades mais «desenvolvidas» e o seu modo de utilizar o dinheiro. É necessário ver o capital como o efeito, observável na terra, de um processo cósmico de complexificação e não como uma figura maior da história humana. O que estáem jogo com o capitalismo é sem dúvida tornar o intercâmbio e a comunicação mais leves entre os humanos, como vimos pelo abandonodo padrão-ouro na avaliação das divisas e na adopção dos meios decontabilidade electrónicos, na instituição das multinacionais, etc. Estão
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aqui numerosos sinais da necessidade de complexificaç ão das relaçõeshumanas. De onde poderá vir essa necessidade, se for verdade que osseus resultados nem sempre são vantajosos para a humanidade em geral, nem mesmo para a fracção dessa humanidade que deveria beneficiar dela directamente? Porque seremos obrigados a poupar dinheiro etempo até ao ponto em que esse imperativo se torne a lei da nossa vida? É porque a poupança (à escala do sistema, é claro) permite ao sistema aumentar a quantidade de dinheiro consagrado a antecipar o futuro. É o caso do capital que será investido na pesquisa e no desenvolvimento. O prazer da humanidade deve ser sacrificado, é claro , ao interesse da mónade em expansão.
De entre os numerosos efeitos engendrados por essa indiscutível hegemonia, irei mencionar apenas um. Desde as suas origens, a humanidade criou um meio específico e próprio para controlar o tempo, anarração mítica. O mito permite, de facto, colocar uma sequência deacontecimentos num quadro constante onde o início e o fim de umahistória formam uma espécie de ritmo ou de rima, como o escreviaHõlderlin, A ideia de destino que prevaleceu durante muito tempo nascomunidades humanas - e mesmo hoje no inconsciente, se acreditarmos em Freud - pressupõe a existência de uma instância intemporalque «conhece» na sua totalidade a sucessão dos momentos que constituem uma vida, individual ou colectiva. O que acontece é pré-determinado no oráculo divino e os seres humanos deverão apenas desenvolver identidades anteriormente constituídas, na sincronia ou na acronia.Proferido na época do nascimento de Édipo, o oráculo de Apolo nãodetermina, antecipadamente, menos do que o destino do herói até àsua morte. Esta tentativa inicial, sumária, de neutralizar a ocorrênciainesperada foi abandonada, à medida em que o espírito tecno-científico e a figura do capitalismo chegavam à maturação, ambos sendomuito mais eficazes, em matéria de controlo do tempo.
Muito diferente, e no entanto muito próxima, é a maneira pelaqual a modernidade, por seu lado, encara o problema. A modernidadenão é, penso eu, um período histórico, é uma forma de dar forma auma sequência de momentos, de modo a que esta última aceite umataxa elevada de contingência. Não é insignificante que esta formulaçãopossa verificar-se em obras tão diversas quanto as de S. Agostinho,Kant ou Husserl. A descrição da síntese temporal que esbocei no iníciopertence também à modernidade assim encarada.
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Mas, o que merece a nossa atenção, é que a metafisica modernadeu no entanto luz à reconstituição de grandes narrativas - Cristianismo, Luzes, romantismo, o idealismo especulativo alemão, o marxismo - as quais não são totalmente estranhas às narrativas míticas. Implicam seguramente que o futuro permaneça aberto enquanto objectivo último da história humana, sob o nome de emancipação. Conservam, no entanto, o princípio do mito segundo o qual o desenvolvimento geral da história pode ser concebido.
A narrativa moderna induz sem dúvida uma atitude mais políticado que ritual. Resta que o ideal situado no termo da narrativa deemancipação é suposto ser concebível, mesmo se possui, sob o nomede liberdade, uma espécie de vazio ou de «branco», uma indefinição,que deve ser salvaguardada. Noutros termos, a destinação (a Bestimmung) não é o destino. Mas, ambos designam uma série diacrónica deacontecimentos cuja «razão» é pelo menos explicável, como destino,pela tradição, como tarefa, pela filosofia política.
Ao contrário do mito, o projecto moderno não baseia de modo algum a sua legitimidade sobre o passado, mas sim, sobre o futuro. E éassim que oferece uma melhor apreensão ao processo de complexificação. No entanto, uma coisa é projectar a emancipação humana e outraé programar o futuro como tal. A liberdade não é a segurança. O quealguns chamaram de pós-modernismo só designa talvez uma ruptura,ou pelo menos uma brecha, entre um «pró» e o outro, quero dizer:entre o projecto e o programa. Este último parece poder, hoje em dia,fazer melhor do que o projecto, aceitar o desafio lançado à espécie humana pelo processo de complexificação, Mas, por entre os acontecimentos que o programa se esforça para neutralizar tanto quanto pode,é necessário, infelizmente, contar também com os efeitos imprevisíveisque engendram a contingência e a liberdade próprias do projecto humano.
5.
Como é de esperar, faltar-me-á o tempo para «concluir» o argumento. Apenas quero dizer o quanto a hipótese quase leibniziana queacabo de apresentar é estranha ao meu pensamento. Algumas «teses»o mostrarão brevemente, para acabar.
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1. O dispositivo tecno-científico a que Heidegger dá o nome deGestell «cumpre» de facto a metafísica, como ele o escreve. O princípio de razão, der Satz vom Grund, localiza a razão no campo da «física», em virtude do postulado, metafisico, que qualquer acontecimentono mundo deve ser explicado como o efeito de uma causa e que a razão consiste em determinar essa causa (ou essa «razão»), ou seja, racionalizar o que é dado e neutralizar o futuro. O que chamamos deciências humanas, por exemplo, tornou-se, em grande parte, numa sucursal da física. O espírito, a própria alma, estudam-se como se fossem interfaces em processos fisicos. É assim que os computadores começam a poder fornecer simulacros de certas operações mentais.
2. O capital não é um fenómeno económico e social. É a sombraque o princípio de razão projecta sobre as relações humanas. Prescrições tais como: comunicar, poupar tempo e dinheiro, controlar e prever o acontecimento, aumentar os intercâmbios, são todas próprias para estender e reforçar a «grande mónade». Que o discurso «cognitivo»tenha conquistado a hegemonia sobre os outros géneros, que na linguagem habitual o aspecto pragmático e inter-relacional passe ao primeiro plano, enquanto que o «poético» parece merecer cada vez menos a atenção - todos estes aspectos da condição da linguagem contemporânea não podem ser encarados como os efeitos de uma simplesmodalidade do intercâmbio, a que a ciência económica e histórica chama «capitalismo». São sinais de que uma nova utilização da linguagemaparece, cujo objectivo é conhecer os objectos tão exactamente quantopossível e realizar acerca deles, entre os locutores normais, um consenso tão vasto que seja suposto reinar na comunidade científica.
Quanto ao conhecimento, qualquer objecto é bom para ele, mascomo uma dupla condição: em primeiro lugar, que nos possamos referir a esse objecto num léxico e numa sintaxe lógica e matematicamenteconsistente, cujas regras e termos podem ser comunicados com umaambiguidade mínima; e em seguida, que uma prova qualquer da realidade dos objectos aos quais se referem as proposições assim formuladas, possa ser administrada, exibindo dados sensoriais julgados pertinentes em relação a esses objectos.
A primeira condição não engendrou apenas o notável crescimentodo formalismo lógico e matemático que observamos desde a segundametade do século passado. Permitiu também trazer novos objectos ou
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novas idealidades (digamos: novas frases), na cultura matemática e lógica e salientar assim novos problemas. Que se consiga, entre outrascoisas, formular numerosos paradoxos que, anteriormente, deixavam atradição perplexa, é o sinal indubitável de que a complexificação daslinguagens simbólicas progride e que as ciências utilizam hoje em diaos objectos que lhe eram indiferentes até então. Notar-se-á que muitosparadoxos pertencem, de perto ou de longe, à problemática do tempo.Basta mencionar questões como a recorrência (a utilização da enigmática expressão «e assim em seguida... »), em particular na argumentação do paradoxo do Mentiroso (que Russell elimina com o seu princípio dos tipos), o desenvolvimento das lógicas e das linguísticas do tempo que permite resolver ou melhor colocar os problemas difíceis damodalidade, a matemática das catástrofes (René Thom), a teoria darelatividade...
Quanto à segunda condição necessária para a linguagem «cognitiva», a qual é a necessidade de administrar a prova da asserção, implica que as tecnologias sejam desenvolvidas de forma contínua. Isto porque se as proposições que se devem verificar (ou falsificar) têm de sercada vez mais sofisticadas, então os dispositivos encarregados de fornecer os dados sensoriais pertinentes devem ser melhorados e complexificados indefinidamente. A física das partículas, a electrónica e a informática servem hoje em dia, e de forma indispensável, para conceber (e realizar) a maior parte das «máquinas de provar». Noto que ocapitalismo se encontra fortemente interessado por esta questão daprova. Isto porque as tecnologias necessárias ao processo científicoabrem caminho para a produção e distribuição de novas mercadorias,quer directamente destinadas à pesquisa científica, quer modificadaspara utilizações mais profanas. Pelo menos nesta medida, os meios deconhecimento tornam-se meios de produção e o capital aparece comoo dispositivo mais potente, se não for o único, para realizar a complexidade atingida no campo das linguagens cognitivas. O capital não governa o conhecimento da realidade, mas dá realidade ao conhecimento.
Pensa-se frequentemente que se o sistema económico é levado aportar-se dessa maneira, é porque é guiado pela sede do lucro. E, defacto, a utilização das tecnologias científicas na produção industrialpermite aumentar as quantidades de mais-valias, ao poupar tempo etrabalho. Parece, no entanto, que o «último» motor deste movimento
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não será essencialmente da ordem do desejo humano: consiste de preferência no processo de nég-entropia que parece «trabalhar» na áreacósmica habitada pelo género humano. Poderíamos até dizer que o desejo do lucro e da riqueza não é, sem dúvida, nada, a não ser essepróprio processo pelo qual opera nos centros nervosos do cérebro humano, e que o corpo humano experimenta esse facto directamente.
3. Hoje, o pensamento parece ser obrigado a tomar parte do processo de racionalização. Qualquer outro modo de pensar está condenado, isolado e rejeitado pelo facto de ser irracional. Desde o Renascimento e da idade clássica, digamos, Galileu e Descartes, um conflitolatente opõe o racionalismo às outras formas de pensar e de escrever,nomeadamente à metafisica e à literatura. Com o Círculo de Viena, aguerra é declarada abertamente. Em nome do mesmo motivo «ultrapassar a metafisica», Carnap por um lado , Heidegger por outro, cortam a filosofia ocidental em dois, o positivismo lógico e «a ontologia»poética. Esta ruptura afecta essencialmente a natureza da linguagem.Será a linguagem um instrumento destinado , por excelência, a dotar oespírito do conhecimento o mais exacto possível da realidade e a controlar, o melhor possível, a sua transformação? A verdadeira tarefa dofilósofo consiste então em ajudar a ciência a subtrair-se à inconsistência das linguagens naturais, construindo para isso uma linguagem simbólica pura e unívoca. Deverá a linguagem ser, pelo contrário, pensada como um campo de percepção, capaz de «fazer sentido» por si próprio , independentemente de qualquer intenção de significar? A partirdaqui, as frases, longe de serem colocadas sob a responsabilidade doslocutores, devem de preferência ser concebidas como concreções discontínuas, espasmódicas de um «meio falante» contínuo, tal como o éa Sage heideggeriana, esse mesmo meio ao qual Malraux e Merleau-Ponty dão o nome de «voz do silêncio» e que o francês chamaria de«linguageiro» em vez de linguístico.
Podemos dizer que a primeira opção concorda, em certa medida,com o tipo de «racionalidade» exigido pela mónade em expansão.O que, no entanto, limita a sua concordância perfeita com a complexidade, é esse resto de filosofia humanista, o qual está escrito, paradoxalmente, no princípio de que a linguagem é um instrumento utilizadopelo espírito humano. É de facto possível, e foi real, que numerosasproposições, fossem elas bem formadas e estabelecidas segundo os cri-
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térios das novas ciências, não tivessem, à primeira vista, nenhuma utilidade ou evidência para o espírito humano. Ora, esta mesma dificuldade pode ser considerada precisamente como o sinal de que o «utilizador» verdadeiro da linguagem não é o espírito humano enquantohumano , mas a complexidade em movimento, cujo espírito é somenteum suporte transitório. Comunicar em geral e tornar comunicávelqualquer asserção, não significa que seja favorecida uma maior transparência da comunidade humana para com ela própria, significa apenas que um maior número de informações pode ser combinado comoutras, de modo a que a sua totalidade venha a formar um sistemaoperatório leve e eficaz, isto é, a mónade.
Quanto à segunda opção, a que qualifiquei de ontológica, está, pornatureza, virada para esses modos de linguagem cujo léxico e sintaxetêm por único objectivo descrever de forma exaustiva os objectos aosquais se refere. Por entre esses modos de linguagem, podemos mencionar, a diversos títulos, a conversação livre, o julgamento reflexivo e ameditação, a associação livre (no sentido psicanalítico), a poética e aliteratura, a música, as artes visuais, a linguagem quotidiana. O queimporta nestes modos é sem dúvida que cada um deles gere ocorrências antes de conhecer as regras dessa geratividade e que alguns de entre eles não tenham preocupações em determinar essas regras . É estefacto que Kant e os românticos tematizaram notavelmente sob a rubrica do génio, de uma natureza que actuaria no próprio espírito . Podemos também relacionar os géneros de discursos mencionados por mim,com o princípio de uma imaginação produtiva. Notar-se-á, no entanto,que tal imaginação não desempenha um papel menor na própria ciência, aquele do momento heurístico de que necessita para progredir.O que estas formas diversas, ou mesmo heterogéneas, têm em comum,é a liberdade e a não-preparação com que a linguagem mostra ser capaz de receber o que pode acontecer no «meio falante» e de ser acessível ao acontecimento. De modo que podemos perguntar se a verdadeira complexidade não consistirá nessa passibilidade em vez de se situarna actividade de «reduzir e construir» a linguagem, como Carnap opropunha.
Em definitivo, uma racionalidade não merece o seu nome se recusar a sua responsabilidade no que existe de passibilidade aberta e decriatividade incontrolada, na maior parte das linguagens, incluindo alinguagem cognitiva. Por mais que recuse essa responsabilidade, a ra-
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cionalidade técnica, científica e económica mereceria de preferência onome de «ideologia», se o termo não tivesse, por sua vez, demasiadaspressuposições metafísicas. Apesar de tudo, é certo que o modelo deconsenso que declaramos retirar da comunidade argumentativa dasciências e que propomos em ideal às sociedades humanas, atesta oquanto esta «racionalidade» exerce a sua hegemonia sobre a diversidade dos géneros de discursos possuídos pela linguagem. Para qualificaressa racionalidade de racional, foi necessário aceitar como valor único,a performance que comanda a lógica da grande mónade, perante o desafio cosmológico.
4. Não ficaremos su: preendidos que a minha hipótese seja aqui asegunda. Estar apto para receber o que o pensamento não está preparado para pensar, é o que devemos chamar pensar. Esta atitude, já odisse, encontra-se tanto na linguagem reputada racional quanto napoética, na arte e na linguagem habitual, se, pelo menos, for necessário que o discurso cognitivo progrida.
Não saberíamos admitir, em consequência, a grosseira separaçãodas ciências e das artes prescritas pela cultura ocidental moderna. Desempenha a tarefa, sabe-se, de relegar as artes e a literatura para afunção miserável de distrair os seres humanos do que os preocupa epersegue em permanência, a obsessão de controlar o tempo. Sei que aresistência que podemos opor ao processo de formação e de expansãoda grande mónade não alterará nada a esse facto. É no entanto necessário nunca esquecer que, se pensar consiste mesmo em receber oacontecimento, segue-se que não se poderia pretender o pensamentosem se encontrar ipso facto em posição de resistência diante dos processos de controlo do tempo.
Pensar é questionar tudo, inclusivamente o pensamento, a questãoe o processo. Ora, questionar requer que algo aconteça cuja razão nãoseja ainda conhecida. Quando pensamos, aceitamos a ocorrência peloque é: «ainda não» determinada. Não a pré-julgamos, nem nos asseguramos dela. É uma peregrinação no deserto. Não podemos escreversem testemunhar este abismo que é o tempo, quando chega.
A este propósito, duas formas de assumir a questão devem ser distinguidas, consoante o peso é posto ou não sobre a urgência da resposta. O princípio de razão é esta maneira de questionar que se precipitapara o seu fim, a resposta. Possui um género de impaciência no único
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pressuposto de que podemos sempre encontrar uma «razão» ou umacausa para qualquer questão. As tradições de pensamento não ocidentais oferecem uma atitude muito diferente. O que conta, na matériaque questionam, não é, de modo algum, determinar a resposta o maisrapidamente possível, apreender e exibir algum objecto que seja válidoenquanto causa do fenómeno em questão. É ser e continuar a serquestionado por ele, de se suster pela meditação «em resposta» comele, sem neutralizar pela explicação o seu poder de inquietação. Nopróprio seio da cultura ocidental , tal atitude tem e/ou teve o seu análogo na maneira de ser e de pensar originada pela cultura judaica.O que, segundo esta, se chama «estudo» e «leitura» requer que qualquer realidade seja tratada como uma mensagem obscura enviada poruma instância desconhecida, ver mesmo inomínável. Como para o versículo da Tora, é necessário dar ouvido ao fenómeno, decifrá-lo e interpretá-lo, evidentemente, mas com humor, sem ignorar que a interpretação, por sua vez, será interpretada como uma mensagem enigmática, Lévinas diria: não menos maravilhosa do que a mensagem inicial.A problemática derridiana da destruição e da diferença, o princípiodeleuziano de nomadização dependem, apesar de diferentes, destaaproximação do tempo. O tempo permanece aqui incontrolável, nãodá origem ao trabalho, pelo menos no sentido que damos habitualmente à palavra «trabalhar».
Uma última observação sobre o que chamamos de passibilidade .Seria pretensioso, mesmo criminoso, por parte de um pensador ou deum escritor, pretender ser testemunha de um acontecimento ou garanti-lo. É necessário perceber que o que testemunha não é, de modo algum, a entidade, seja qual for, que se afirma como estando encarregada dessa passibilidade ao acontecimento, mas sim o próprio acontecimento. O que memoriza ou retém, não é uma capacidade do espírito,nem mesmo a acessibilidade ao que acontece. Mas, no acontecimento,a «presença» inapreensível e indubitável de algo que é diferente do espírito e que acontece, «de vez em quando... »
5. Heidegger tentou fundar a resistência de que falo, em relação aomodelo clássico da arte encarrado como tekhn ê. No entanto, desdePlatão, a arte ou a Dichtung concebe-se como uma remodelagern, umplattein e foi o modo principal pelo qual a política tentou moldar acomunidade de acordo com talou tal ideal metafísico . Seguindo aqui
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Lacoue-Labarthe, penso que existe uma correlação estreita e essencialentre a arte política e as belas artes. Um caso eminente desta combinação encontra-se na República de Platão: o problema político consisteapenas em observar o bom modelo, o qual é o modelo do Bem, comvista a moldar a comunidade humana. Mutatis mutandis, encontraremos o mesmo princípio nas filosofias políticas da Idade Média, do Renascimento ou da modernidade.
O nazismo inverteu de algum modo a relação : é a «arte», de formaexplícita que desempenha aqui a função de política. Os nazis, sabe-mo-lo, utilizam frequente e sistematicamente o mito, os media, a cultura de massas e as novas tecnologias, para alcançar a mobilização total da energia, em todas as suas formas. Deste modo, inscrevem nosfactos o sonho wagneriano da «obra de arte total». Syberberg mostrouque o Gesamtkunstwerk encontra-se muito mais no cinema, na té/étechné em geral, do que na 6pera. Hoje, a política, utilizando outrasjustificações, por vezes com argumentos contrários, tem a mesma natureza . No que chamamos de democracia moderna, a hegemonia persiste no princípio segundo o qual a opinião das massas deve ser seduzida e conduzida pelo que chamaria de processos «telegráficos» , por diversos géneros de «inscrição à distância» que permitem descrever eprescrever. E, deste modo, um nazismo ganhou: como mobilização total.
6. O pensamento e a escrita, mesmo que não se deixem subordinarà «telegrafia», estão isoladas e postas num ghetto, no sentido em quea obra de Kafka desenvolve este tema. Mas, este nome de ghetto não éapenas aqui uma metáfora. Os judeus de Vars6via não s6 foram prometidos à morte, como também tiveram de pagar pelas «medidas deprotecção» decididas contra eles, a começar pelo muro que os nazisdecidiram construir, contra a suposta ameaça de uma epidemia de tif6ide. Acontece o mesmo com os escritores e os pensadores: se resistirem à utilização predominante do tempo hoje, não s6 estão predestinados a desaparecer, como devem também contribuir para a fabricaçãode um «cordão sanitário» que os isole. Ao abrigo desse cordão, a suadestruição é suposta poder ser diferida. Mas eles «compram» esse prazo de sobrevivência, breve e vão, ao modificar a sua maneira de pensar e de escrever, de modo a que as obras se tornam mais ou menoscomunicáveis, trocadas, numa palavra: comercializáveis. Ora, a troca,
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a venda e a compra das ideias e das palavras não deixam de contribuir, de forma contraditória, para a «solução final» do problema: como escrever, como pensar? Quero dizer que contribuem para tornarainda mais hegemónica a grande regra do tempo controlado. Segue-seque o espaço público, a Õffentlichkeit deixa, nestas condições , de sero espaço onde se sente, se experimenta e se afirma o estado de um espírito oferecido ao acontecimento e onde o espírito tenta elaborar umaideia desse próprio espírito, em particular sob o sinal do «novo». Hoje, o espaço público transforma-se num mercado de bens culturais onde o «novo» se tornou uma fonte adicional de mais-valia.
7. Quando se trata de aumentar as capacidades da rnónade, parecerazoável abandonar, mesmo destruir activamente, essas partes da espécie humana que parecem supérfluas, sem utilidade para este fim. Porexemplo, as populações do Terceiro Mundo. Um significado mais particular liga-se ao facto do nazismo ter escolhido o povo judeu para serexterminado. Disse que esta parte da herança antiga europeia formadapelo pensamento judaico representa uma forma de pensar inteiramentevirada para a escuta e a interpretação contínuas e sem fim, de umavoz. É isto, e é disto que, fascinado pelo modelo grego, o pensamentode Heidegger falhou completamente.
8. Quanto à voz que aconselha: «deves resistir (apesar de teres quepensar ou escrever)», ela implica obviamente que o problema do tempo presente não é de modo algum a comunicação. O que retém a atenção e se torna questão, é, de preferência, o que esta prescrição pressupõe: o quê ou quem é o autor (que envia) essa ordem? Qual a sua legitimidade? Isto leva-nos a pensar que esta ordem implica que a questãoseja deixada em aberto, se for verdade que esse «tu deves» preserva ereserva a vinda do futuro segundo o seu aspecto inesperado .
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o INSTANTE, NEWM~N
o ANJO
Seria necessário distinguir o tempo de que precisa o pintor parapintar um quadro (o tempo de «produção»), o tempo necessário paraolhar e perceber essa obra (o tempo de «consumo»), o tempo ao quala obra se refere (um momento, uma cena, uma situação, uma sequência de acontecimentos: o tempo do referente diegético, da história contada pelo quadro), o tempo que demorou para chegar até ao observador, desde a sua «criação» (o seu tempo de circulação) e, por fim também, talvez, o tempo que ela própria é. Este princípio, na sua ambiçãoinfantil, permitiria isolar «lugares de tempo» diferentes.
O que distingue a obra de Newman, no corpus das «vanguardas»e, nomeadamente, no do «expressionismo abstracto» americano, não éo facto de estar obcecada pela questão do tempo, esta obsessão é partilhada por muitos pintores, mas sim o facto de dar uma resposta inesperada: que o tempo é o próprio quadro.
Para destacar e desenvolver este paradoxo, o meio conveniente éconfrontar o «lugar do tempo» newmaniano com o que rege as duasgrandes obras de Duchamp. Le grand Verre e Étant donnés fazem referência a esses acontecimentos, à «nudez» da Noiva, à descoberta docorpo obsceno. Estes acontecimentos são apenas um: o acontecimentoda feminilidade, o escândalo representado pelo «outro sexo». No«atraso em vidro», ainda não chegou; nos arbustos, por detrás doóculo da porta, já chegou. As duas obras são duas maneiras de repre-
Texto extraido do catálogo da exposição «Le ternps: regards sur la quatriême dimensíon» organizada em Setembro de 1984 por Michel Baudson, director-adjunto de laSociété des expositions au Palais des Beaux-Arts de Bruxelles. Publicado novamente emPoésie, 34, 1985.
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sentar o anacronismo do olhar em relação ao acontecimento, o trovãoque cega o olho, uma epifania. Mas, segundo Duchamp, esta ocorrência, a «feminilidade», não pode ser tida em conta no tempo do olharda «virilidade».
Resulta que o tempo necessário para «consumir» (sentir, comentar)estas obras é, por assim dizer, infinito: é ocupado na pesquisa da própria aparição (termo duchampiano), cuja «nudez» é o analogon sacrilégio e sagrado. A aparição é algo que acontece e que é diferente. Deque modo podemos nós dar figura a essa diferença? Seria necessárioque fosse identificada, o que é contraditório. Duchamp organiza o espaço da Mariée de acordo com o «ainda não», o de Étant donnés, deacordo com o «já não». O observador do Vidro espera Godot; por detrás da Porta de Étant donnés, o que olha persegue a Albertine desaparecida. As duas obras de Duchamp formam uma charneira entre aanamnese proustiana perdida e a paródia beckettiana prospectiva.
Um quadro de Newman não tem como objectivo fazer ver que aduração excede a consciência, mas de ser ele próprio a ocorrência, omomento que chega. Duas diferenças com Duchamp, uma de «poética» por assim dizer, a outra temática. Nem que seja de longe, o temaduchampiano depende de um género , as Vaidades; o de Newman pertence às Anunciações, às Epifanias. Mas o afastamento entre as duaspoéticas plásticas ainda é mais vasto. Um quadro de Newman, é umanjo. Não anuncia nada, é o próprio anúncio. A aposta plástica dasgrandes peças de Duchamp é frustrar o olhar (e o espírito) porque tenta representar de forma analógica a forma pela qual o tempo frusta aconsciência. Mas Newman não apresenta um anúncio inapresentável,deixa-o apresentar-se.
O tempo gasto a «consumir» uma pintura de Newman é muito diferente do tempo exigido pelas grandes obras de Duchamp. Nuncaacabamos de contar Le grand Verre e Étant donnés. A narrativa, asnarrativas envolvem a Noiva, induzidas pelos nomes estranhos esboçados nos pedaços de papel das Bottes, figurados sobre o vidro, representados pelos comentadores. A narratividade reserva-se, quase desaparece, nas instruções de montagem de Étant donnés, mas rege o próprio espaço do berçário obsceno . Conta uma natividade. E o barroquismo dos materiais reclama também narrativas.
Uma tela de Newman opõe às histórias a sua nudez plástica. Estátudo ali, dimensões, cores, traços, sem alusão. Ao ponto de ser um
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problema para o comentador. O que dizer que não seja dado? A descrição é fácil, mas monótona como uma paráfrase. A melhor glosaconsiste na interrogação: o que dizer?, na exclamação: hal, na surpresa: e esta! Todas expressões de um sentimento que tem um nome natradição estética moderna (e na obra de Newman): o sublime. É o sentimento: aqui está. Não há assim quase nada para «consumir», ou nãosei o quê. Não se consome a ocorrência, mas apenas o seu sentido.Sentir o instante é instantâneo.
A OBRIGAÇÃO
A ruptura tentada por Newman com o espaço dos vedute afecta ofundamento «pragmático» deste último. Já não é um príncipe-pintor,um eu, que oferece a sua glória (na obra de Duchamp, a miséria) paraque seja vista por um terceiro (incluindo ele próprio, obviamente), deacordo com Iii «estrutura comunicacional» que fundou o modernismoclássico. Duchamp trabalha esta disposição tanto quanto pode, nomeadamente através das suas pesquisas acerca de um espaço multidimensional e todos os géneros de «charneiras». Na sua globalidade, a obrainscreve-se na grande charneira temporal cedo demais/tarde demais.Trata-se sempre do demasiado, o qual é o índice da miséria, enquantoque a glória e «generosidade» cartesiana querem o como deve ser. Noentanto, este trabalho de Duchamp exerce-se sobre uma mensagem pictórica, plástica, que se transmite de um destinador, o pintor, a umdestinatário, o público, acerca de um referente, de uma diégese que opúblico tem dificuldade em ver, mas que é levado a tentar ver, commil astúcias e paradoxos previstos pelo pintor. O olho explora sob oregime do: Adivinha.
O espaço newmaniano já não é triádico, no sentido em que seriainstado sobre um destinador, um destinatário e um referente. A mensagem não «fala» de nada, não emana de ninguém. Não é Newmanquem «fala», quem faz ver, pelo meio da pintura. A mensagem (oquadro) é o mensageiro, «diz»: aqui estou, ou seja: pertenço-te, ou sêminha. Duas instâncias: eu, tu, insubstituíveis e que só ocorrem na urgência do aqui-agora. O referente (aquilo de que «fala» o quadro), odestinador (o seu «autor») não têm pertinência, mesmo negativa, mesmo como uma alusão a uma presença possível. A mensagem é a apre-
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sentação, a apresentação de nada, ou seja: da presença. Esta organização «pragmática» tem um parentesco muito maior com a ética do quecom a estética ou a poética. Trata-se, para Newman, de dar à cor, a linha, ao ritmo, a força da obrigação, uma relação de face a face, nasegunda pessoa, cujo modelo não pode ser: Vê isto (além), mas: vê-me, ou melhor: escuta-me. Isto porque a obrigação é mais um mododo tempo do que de espaço e o seu órgão é mais o ouvido do que oolho. Newman esgota assim a refutação do «distingue» introduzidopelo Laocoon de Lessing, refutação em que constitui sem dúvida aaposta principal das pesquisas das vanguardas desde, digamos, Delaunay ou Malévitch.
o «TEMA»
o tema da pintura não é propriamente eliminado. Num dos seus«monólogos» intitulado The Plasmic Image (1943-1945), Newman salienta «a importância do tema para a pintura». Sem tema esta torna-se, escreve Newman, «ornamental». É necessário conceder ao surrealismo, mesmo moribundo, a justiça de que mantendo a exigência dotema impediu a nova geração americana (Rothko, Gottlieb, Gorky,Pollock, Baziotes) de se deixar seduzir pela abstracção vazia à qual asescolas europeias sucumbiram, no fim dos anos 1910.
Depois de Thomas B. Hess, o «tema» da obra de Newman era, emsuma, a própria «criação artística», símbolo da Criação pura e simples, a criação relatada no Génesis. Podemos admiti-la como se admiteum mistério ou, pelo menos, um enigma. Newman escreve no mesmoMonólogo: «O tema da criação é o caos.» Muitos dos seus títulosorientam a interpretação para a ideia (paradoxal) de começo. O Verbo, como um raio nas trevas ou uma linha numa superfície deserta, separa, divide, institui uma diferença, provoca o sentimento com essa diferença por mais mínima que seja e, portanto, inaugura um mundosensível. Este início é uma antinomia. Tem lugar no mundo como asua diferença inicial, o início da sua história. Não pertence a essemundo porque pode engendrá-lo, surge de uma pré-história ou de umaan-história. Este paradoxo é o da performance ou da ocorrência.A ocorrência é o instante que «cai» ou «chega» de forma imprevisível,mas que, a partir do ,momento em que está aqui, toma o seu lugar na
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rede do que aconteceu. Qualquer instante, desde que seja apreendidosegundo o seu quod em vez do seu quid, é o início. Sem esse clarão,não haveria nada ou o caos . O clarão está «sempre» ali (como o instante), e nunca está lá. O mundo nunca pára de começar. Para Newman, a criação não é o acto de alguém, é o acontecer (isto) no meiodo indeterminado.
Se houver portanto um «tema», este será o tema «actual». Chegaagora e aqui. O que acontece (quid) chega logo depois. O início é quehá.. . (quod); o mundo, o que existe.
Duchamp tinha por tema a impossibilidade de apreender o instante, tema que tentava representar com artifícios especiais. A obra newmaniana, a partir de Onement I (1948) deixa de fazer referência, através de um ecrã , a uma história situada do outro lado, sendo esta história tão purificada e extraordinariamente simbólica como é, na obra deDuchamp, a descoberta ou a «invenção» ou a «visão» do outro (sexo).Se examinarmos os quadros do «início» (onde Newman se transformaem Newman), que seguem Onement I: Galaxy, Abraham, The Name I,Onement II, em 1949, Joshua, The Name II, Vir Heroicus Sublimis,em 1950-1951, ou a série dos cinco Untitled de 1950 terminados comThe Wild e dos quais cada peça tem de um a dois metros de altura sobre quatro a quinze centímetros de largura: veremos que estas obrasnão «contam» obviamente, um acontecimento, que não fazem referência de forma figurativa, a cenas extraídas de narrativas conhecidas pelo observador ou reconstituíveis por ele. Simbolizam, sem dúvida,acontecimentos, como é sugerido pelos seus títulos. Estes últimos autorizam , em certa medida, o comentário hebraizante de Hess , como opermite também o que sabemos do interesse de Newman para com aleitura da Tora e do Talmude. No entanto, o próprio Hess concordaque «Newman nunca se serviu da sua pintura para transmitir umamensagem ao espectador» e que «também nunca ilustrou uma ideia oupintou uma alegoria». A não-figuratividade das obras, mesmo simbólicas, deve servir de princípio regulador ao comentário.
Se portanto interrogamos a única apresentação plástica, o que seoferece ao olhar, sem o auxílio das conotações sugeridas pelos títulos,não só nos sentimos afastados de qualquer interpretação, como também a própria decifração do quadro: a sua identificação pelas linhas,as cores, o ritmo, o formato, a escala, o material (médium e pigmento), o suporte, parecem fáceis, quase imediatas. É obvio que não pos-
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sui nenhum segredo de fabricação, nenhuma habilidade capaz de atrasar a inteligência do olhar e, portanto, de excitar a curiosidade. Não ésedutor, nem equívoco, é claro, «directo», franco e «pobre».
É preciso admitir que cada tela, mesmo quando faz parte de umasérie (e será ainda e mais o caso das catorze Stations pintadas entre1958 e 1966), não tem outro objectivo senão ser por si própria, umacontecimento visual. O tempo do que é narrado (o raio do punhal levantado sobre Isaac), o tempo de narrar esse tempo (os versículos correspondentes do Génesis) deixam de ser dissociados. São condensadosno instante plástico (linear, cromático, rítmico) representado pelo quadro. Este último ergue-se, Hess diria: como o apelo do Senhor quesuspende a mão de Abraão e, podemos dizer, mais sobriamente: erguer-se como se ergue a ocorrência. O quadro representa a presença, oser oferece-se aqui e agora. Ninguém, e muito menos Newman, me fazvê-lo no sentido de: o narrar, o interpretar. Eu (o observador) souapenas um ouvido aberto ao som que chega do silêncio, o quadro é esse som, um acorde. Erguer-se, tema constante na obra de Newman,deve entender-se como: erguer o ouvido, escutar.
o SUBLIME
A obra de Newman pertence à estética do sublime que Boileau introduziu com a sua tradução de Longino, a qual se elaborou lentamente na Europa, desde o fim do século XVII, e da qual Kant e Burke foram os analistas mais escrupulosos e que o idealismo alemão, o deFichte e de Hegel nomeadamente, incluiu (e por isso mesmo não o percebeu realmente) no princípio de que o todo do pensamento e da realidade cria um sistema. Newman tinha lido Burke. Julgava-o demasiado«surrealista» (num «Monólogo» intitulado: The Sublime is Now). Noentanto Burke, à sua maneira, põe o dedo sobre o ponto essencial para o projecto newmaniano.
O delight, esse prazer negativo que caracteriza de modo contraditório, quase neur6tico , o sentimento sublime, vem da suspensão de umador ameaçadora. Esta ameaça, cujos «objectos» e situações são volumosos, que pesa sobre a conservação do ser, Burke dá-lhe o nome deterror: as trevas, a solidão, o silêncio, a aproximação da morte podemser «terríveis» ao anunciarem que o olhar, outra pessoa, a linguagem,
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a vida podem vir a falhar. Sentimos que pode já não acontecer nada.O que é sublime é que, no meio dessa iminência do nada, aconteça alguma coisa apesar de tudo, tenha «lugar» e anuncie que não está tudoacabado . Um simples eis, a minima ocorrência, é esse «lugar».
Ora, Burke atribui à poetry, a que chamariamos escrita, essa finalidade dupla e contrariada de espalhar o terror (diriamos: de ameaçar ofim da linguagem) e de aceitar o desafio dessa falha do verbo , ao suscitar ou ao receber o acontecimento de uma frase «incrível». Quanto àpintura, julga-a incapaz de levar a cabo, por ordem, essa tarefa sublime. A literatura é livre para combinar palavras e para experimentarfrases, tem em si própria um poder ilimitado, o qual é o da linguagemna sua suficiência, mas a arte de pintar permanece, aos olhos de Burke, julgada pelos constrangimentos da representação figurativa. Comuma simples expressão como «o Anjo do Senhor», escreve Burke, opoeta abre ao pensamento um infinito de associações; nenhuma imagem pode igualar esse tesouro, ela nunca pode exceder o que o olhopode reconhecer.
Sabemos como a pintura surrealista tentou ultrapassar essa insuficiência. Coloca o infinito na composição. Elementos figurativos , sempre reconheciveis ou pelo menos definidos, são reunidos de modo paradoxal (sobre o modelo do trabalho do sonho) . Esta «solução» ficano entanto passivel da objecção formulada por Burke contra a potência da pintura em sublimidade: apenas se juntam de forma diferente«restos» vindos da «realidade perceptiva» . E se Newman julga Burke«demasiado surrealista», é porque, como pintor, vê bem que esta condenação só pode ter razão numa arte que se obstina a representar e adar a conhecer.
Na Critlca da faculdade de julgar, Kant esboça, num rasgo de inspiração quase involuntário, uma outra solução para o problema dapintura sublime. Não se pode, escreve Kant, apresentar no espaço e notempo o infinito da potência ou o absoluto da grandeza, os quais sãoIdeias puras. Mas, podemos, pelo menos, «evocá-los», por meio daquilo a que dá o nome de «apresentação negativa». Deste paradoxo deuma apresentação que não apresentaria nada, Kant dá , por exemplo, ainterdição das imagens pela lei mosaica. É apenas uma indicação , masanuncia as saidas abstraccionistas e minimalistas pelas quais a pinturatentará escapar à prisão figurativa.
No caso de Newman, esta evasão não consiste em ultrapassar os li-
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mites fixados ao espaço figurativo, pelo Renascimento e o Barroco,mas sim trazer o tempo do acontecimento em que ocorria a «cena»lendária ou histórica, sobre a apresentação do {»'óprio objecto pictórico. A matéria cromática, a sua relação com o material (a tela, por vezes deixada por preparar) e a sua disposição (escala, formato, proporção), eis o que deve suscitar a surpresa admirável, a maravilha, que alguma coisa existe, em vez do nada. O caos ameaça, mas o clarão dotzimtsum, o zip, tem lugar: divide as trevas e decompõe, como umprisma, a luz em cores e coloca-as sobre a superfície, como num universo. Newman dizia que era antes de tudo um desenhador. Existeuma santidade do traço em si próprio.
«Os meus quadros não se prestam nem à manipulação do espaço,nem da imagem, mas a uma sensação de tempo», escreve Newmannum «Monólogo» inacabado de 1949 e que tem por nome: Prologuefor a New Esthetlc. Salienta que essa sensação não é o «sentido dotempo que foi o tema subjacente da pintura e que lhe juntou sentimentos de nostalgia e de grande drama, sempre feito de associações e dehistórias...» O manuscrito do Prologue interrompe-se aqui. Mas, as linhas que precedem esta interrupção permitem elaborar um pouco maiso tempo de que se trata.
Newman conta que no mês de Agosto de 1949, visita os túmulos(os «mounds») dos Índios Miami, no sudoeste do Ohio e a fortificaçãoindiana de Newark, Ohio. «De pé diante do tumulus de Miamisburg[...), fiquei confundido, escreve ele, pelo carácter absoluto da sensação, por essa simplicidade natural.» Numa conversa ulterior narradapor Hess, glosa este acontecimento do lugar sagrado. Olha-se o sítio epensa-se: «Eis-me, aqui. .. e além, lá longe (para além dos limites dosítio), é o caos, a natureza, as ribeiras, as paisagens... Mas, aqui, adquirimos o sentido da nossa própria presença... Veio-me a ideia detornar o espectador presente, a ideia de que «o homem está presente ... »
Hess aproxima esta declaração do texto que Newman escreveu em1963 para apresentar a maquete de uma sinagoga que concebeu e construiu com Robert Murray, para a exposição «Recent American Synagogue Architecture». A sinagoga é um «tema» ideal para o arquitecto,não fica constrangido a nenhuma organização do espaço a não seràquela que ele julga restituir melhor o mandamento: «Sabe diante dequem estás.» «É um lugar, Makom, onde qualquer homem pode ser
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levado a levantar-se e a ler o seu texto diante da Tora [... ]. O meupropósito é criar um lugar, não um meio ambiente; recusar a contemplação dos objectos rituais [.. .]. Aqui, nesta sinagoga, cada homem está sentado, isolado no seu «dugout», esperando que seja chamado,não para subir para um estrado, mas para escalar a colina onde, sob atensão do Tzimtzum que cria a luz e o universo, ele pode tomar consciência do sentido total da sua própria personalidade diante da Tora edo seu Nome.» A «colina» central onde se lê a Tora, está inscrita sobo nome de «mound», sobre os esboços e o plano.
Esta condensação do espaço índio e do espaço judaico tem a suaorigem e o seu fim, na tentativa de captar «a presença». A presença éo instante que interrompe o caos da história e lembra ou chama apenas, que «há» antes de qualquer significado daquilo que há. É umaideia que podemos qualificar de mística, já que se trata do mistério doser. Mas o ser não é o significado. Se acreditarmos em Newman, oser, ao revelar-se no instante, forneceria à «personalidade», o seu «significado total». A expressão é três vezes infeliz. Na ocorrência, nem osignificado, nem a totalidade, nem a pessoa estão em jogo . Estas instâncias vêm «depois» de alguma coisa acontecer, para que se habituema ela. Makom significa lugar mas, esse «lugar» é também o nome bíblico do Senhor. É necessário entendê-lo como a expressão francesa«avoir lieu», ou seja: advir .
A PAIXÃO
Em 1966, Newman expõe no Guggenheim as catorze Stations ofthe Cross, o Caminho da Cruz. Dá-lhes por subtítulo: Lamma Sabachtani, o grito de desespero que Jesus crucificado lança a Deus: porqueme abandonaste? «Esta pergunta sem resposta, escreve Newman naNota que acompanhou essa exposição, acompanha-nos há muito tempo - desde Jesus - desde Abraão - desde Adão - é a pergunta original.» Versão hebraica da Paixão: a reconciliação da existência (e,portanto, da morte) com o significado não acontece. O Messias, portador do significado, continua a ser esperado. A única «resposta» jamaisouvida para a pergunta do abandono não é: Sabe porquê, mas: Sê.Newman deu o título Be a um outro quadro, retomado em 1970, oano da sua morte, com o título Be I (Second Version). Uma outra te-
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la, a que o marchand que a expôs em Nova Iorque, em 1962, deu onome de Resurrection, foi apresentada no Guggenheim em 1966 comas Stations, com o título Be II (tinha sido começada em 1961). No livro de Hess, a reprodução desta obra tem por legenda: First Station.B II.
Percebe-se que não se trata de modo algum, com este Sê, da ressurreição do significado do mistério cristão, mas da purificação deuma prescrição emanando do silêncio ou do vazio e que perpetua apaixão ao reiterá -la pelo seu início. Convém que à peça a convicçãorepresentada pelo quadro não ofereça nada para decifrar, e menos ainda para interpretar. Daí, a utilização dos «aplats», das cores não moduladas e, mais tarde, das cores ditas «elementares», como nos Who 'sAfraid of Red, Yel/ow and B/ue? (1966-1967). Neste último título, oponto de interrogação é o de: ocorrerá? e o afraid deve, penso eu, serpercebido como uma alusão ao terror burkeano que envolve a «delícia» do acontecimento, o alívio de acontecer.
a ser anuncia-se no imperativo. A arte não é um género definidopor um fim (o prazer do destinatário), menos ainda um jogo, cujas regras deveriam ser descobertas; leva a cabo uma tarefa ontológica, ouseja: «cronológica». Cumpre-a sem a acabar. É necessário recomeçarsem fim o testemunho da ocorrência, deixando de ser a ocorrência.Nas primeiras esculturas de 1963-1966 intituladas Here I, Here II, Here III como na Broken Obelisk acabada em 1961, reconhecemos versões tridimensionais do zip que vêm marcar, sem parar, e nunca nomesmo sítio, todos os quadros com o seu risco rectilíneo. A verticalidade, no caso de Newman, não conota unicamente a ilação, o arrancar ao solo do abandono e do não-senso. Não se ergue somente, descee fulmina. A ponta virada do obelisco toca o cimo da pirâmide «comm), no tecto da Sistina, o dedo de Deus toca o de Adão. A obraergue-se no instante, mas o raio do instante descarrega sobre ela comoum comando minimal: Sê.
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o SUBLIME E A VANGUARDA
1.
Em 1950-51, Barnett Baruch Newman pinta uma tela de 2,42 mpor 5,42 m, a que dá o nome de Vir Heroicus Sublimis. No início dosanos 1960, as suas três primeiras esculturas intitulam-se Here I, Here II e Here III. Um dos seus quadros chama-se Now, dois outros têmpor título Be. Em Dezembro de 1948, Newman escreve um ensaio como título: The Sublime is Now.
Como entender que o sublime, digamos provisoriamente o objectodo sublime, exista aqui e agora? Não será necessário, quando se faladeste sentimento, fazer alusão a algo que não pode ser mostrado ou,como dizia Kant apresentado (dargestellt)? Num curto texto inacabadoe datado do fim de 1949, Prologue for a New Esthetic, Newman escreve que, nos seus quadros, não se dedica «à manipulação do espaço,nem à imagem, mas sim a uma sensação de tempo». Não se trata,acrescenta, do tempo repleto de sentimentos de nostalgia, de grandesdramas, de associações e de história, o qual foi o objecto constante dapintura. O texto é interrompido nesta denegação.
De que tempo se trataria? Qual seria o now que Newman tinha emvista? O seu amigo e comentador, Thomas B. Hess, pensa poder escrever que esse tempo era o Makom ou o Hamakom da tradição hebraica, o ali, o sítio, o lugar que representa um dos nomes dados pela Tora, ao Senhor o Inominável. Não sei o suficiente sobre o Makom paraafirmar que era nele que Newman pensava. Mas quem saberá o sufi-
Texto de uma conferência apresentado em francês na Kunsthochschule de Berlim emJaneiro de 1983. Heike Rutke leu primeiro a tradução alemã que tinha feito com Clemens Carl Hãrle e que foi publicada in Merkur (38 (2), Março de 1984). Texto francêsin Poesie, 34, 1985.
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ciente acerca do now? Newman não podia certamente estar a pensarno «instante presente» que tenta permanecer entre o futuro e o passado e que é, por eles, devorado. O agora é um dos «êxtases» da temporalidade, analisados desde Agostinho e Husserl, por um pensamentoque tentou constituir o tempo a partir da consciência. O now de Newman, now puro e simples, é desconhecido pela consciência, esta não opode constituir. O now desampara e destitui a consciência, representao que ela não consegue pensar, talvez mesmo o que esquece para elaprópria se constituir. O que não conseguimos pensar, é que algo ocorre. Ou, melhor dito e de forma mais simples: que ocorre.. . Não umgrande acontecimento, no sentido dos media. Nem mesmo um pequeno acontecimento. Mas sim uma ocorrência.
Não se trata de uma questão de sentido, nem de realidade, incidindo sobre o que ocorre, sobre o que isso significa. Antes de se-perguntar o que isso significa, antes do quid, é necessário que, por assim dizer, «ocorra» quod. Que ocorra «antecede» sempre, de algum modo, aquestão que incide sobre o que ocorre. Ou seja, a questão antecede-sea ela própria. «Que ocorra» é a questão enquanto acontecimento, «emseguida», a questão passa a tratar do acontecimento que acaba deocorrer. O acontecimento ocorre como um ponto de interrogação antes de «ocorrer» como interrogação. Ocorre é, de preferência, ocorrerá. existirá. será possfvel? Só «em seguida» será determinado o pontopela interrogação: ocorrerá isto ou aquilo, será isto ou aquilo, isto ouaquilo será possível?
Um acontecimento, uma ocorrência, o que Martin Heidegger chamava de ein Ereignis, é infinitamente simples; contudo, esta simplicidade só se pode tornar próxima na privação. O que chamamos pensamento deve ser desarmado. Existe uma tradição e uma instituição dafilosofia, da pintura, da política, da literatura. Estas «disciplinas»também possuem um futuro, sob a forma de Escolas, de programas,de projectos de pesquisa, de «tendências». Aqui, o pensamento exercita-se sobre o que é adquirido, tenta reflectir sobre ele e ultrapassá-lo.Tenta determinar o que já foi pensado, escrito, pintado, socializado,para determinar o que ainda o não foi. Estamos conscientes disso, é opão de cada dia. É pão de guerra, biscoito de soldado. Contudo, estaagitação, no seu sentido mais nobre (Agitação é a palavra pela qualKant designa a actividade do espírito que possui discernimento e que outiliza), esta agitação só é possível quando ainda existe algo por deter-
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minar. Podemos tentar determiná-lo ao construir um sistema, umateoria, um programa, um projecto, e é necessário fazê-lo. Antecipando-o. Podemos igualmente interrogar-nos sobre esse «resto», deixarchegar o indeterminado enquanto ponto de interrogação.
O que é pressuposto pelas disciplinas e as instituições do pensamento, é que não foi tudo dito, escrito, registado. As palavras ouvidas oupronunciadas não são as últimas palavras. «Depois» de uma frase ,«depois» de uma cor, vem mais uma frase, uma cor. Não sabemosqual, pensamos sabê-lo ao confiar nas regras que permitem encadearfrase após frase, cor após cor, as quais são conservadas, precisamente,nas instituições do passado e do futuro, por mim mencionadas. A Escola, o programa, o projecto declaram que , depois de uma frase determinada, tal frase ou tal género de frase é obrigatória, permitida ou interdita. O que é verdade para a pintura, também o é para as outras actividades do pensamento. Depois de uma obra pictórica, outra obra énecessária, permitida ou interdita. Depois desta cor, aquela cor; depoisdeste traço, aquele traço. Não existe grande diferença entre um manifesto vanguardista e um programa de estudos na Escola das Belas Artes, se os examinarmos sob esta relação com o tempo. São ambas opções relacionadas com o que será bom que aconteça ulteriormente.É porém verdade, que um e outro esquecem esta possibilidade: que nada aconteça, que a frase seja a última, que o pão não seja o de cadadia. Esta miséria é a miséria com a qual o pintor é confrontado, diante da superfície plástica, o músico diante da superfície sonora, o pensador diante da página branca, etc. Não só diante da tela ou da páginabranca, no início da obra, mas cada vez que algo demora em acontecer, que cria portanto uma questão, a cada ponto de interrogação, acada «e agora».
Associamos frequentemente ao sentimento de angústia a eventualidade de nada ocorrer. Confere um valor principalmente negativo à espera de que se trata, se se tratar realmente de uma espera. Contudo, osuspenso pode também ser acompanhado de prazer, o prazer de acolher o desconhecido, por exemplo, e até de felicidade, para falar comoBaruch Spinoza, a felicidade provocada pelo crescimento do sentimento de existir, trazido pelo acontecimento. Será mais provavelmente, umsentimento contraditório. Existe, pelo menos, um sinal, o próprio ponto de interrogação, a forma pela qual Ocorre permanece e se anuncia:Ocorrerá? A pergunta pode ser feita sob todos os tons, como diria
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,Derrida. Contudo, o ponto de interrogação é «agora», now, como osentimento de que pode não ocorrer nada: o nada, agora.
Este sentimento contradit6rio, prazer e dor, felicidade e angústia,exaltação e depressão, foi baptizado ou rebaptizado, entre o século XVII e o século XVIII europeus, com o nome de sublime . Foinesta palavra que se decidiu e perdeu a sorte da poética clássica, foicom este nome que a estética fez valer os seus direitos críticos sobre aarte, e que o romantismo, ou seja o modernismo, triunfou.
Compete ao historiador de arte explicar como o substantivo sublime regressa sob a pena de um pintor judeu e nova-iorquíno dos anos1940. A palavra sublime é hoje frequentemente utilizada pelo francêspopular para designar o que provoca espanto (pouco mais ou menoscomo o great Americano) e admiração. Contudo, a ideia por ela conotada, também pertence à mais rigorosa reflexão sobre a arte desde hápelo menos dois séculos. Newman não ignora a aposta estética e filos6fica ligada à palavra sublime. Leu o Inquiry de Edmund Burke. Critica a descrição demasiado «realista» de Burke, segundo ele, da obrasublime. Basta dizer que, ao contrário, Newman julga o surrealismocomo demasiado tributário de uma aproximação pré-romântica ou romântica do indeterminado. Assim, quando procura a sublimidade noaqui e agora, Newman rompe com a eloquência da arte romântica,mas não rejeita a sua tarefa fundamental, isto é, qU7 a expressão piet6rica, ou outra, seja a testemunha do inexprimível. O inexprimívelnão reside num além, num outro mundo , num outro tempo, mas nisto: que ocorra (alguma coisa). Na determinação da arte pictural, o indeterminado, o que Ocorre, é a cor, o quadro. A cor, o quadro, enquanto ocorrência, acontecimento, não é exprimível, e é isto que teráde testemunhar.
Para ser fiel a esta deslocação em que consiste talvez, toda a diferença entre o romantismo e o vanguardismo «moderno», seria necessário traduzir The Sublime is Now, não por: o sublime existe agora, maspor: Agora, tal é o sublime. Não existe noutro lugar, nem para cima,nem além, nem mais cedo, nem mais tarde, nem outrora. Aqui, agora,acontece que... , e eis o quadro. O que é sublime é que exista esse quadro, em vez do nada. O desapossar da inteligência que comove; o seudesarmamento, a confissão de que isso, essa ocorrência de pintura,não era necessária, nem mesmo previsível a privação diante do Ocorrerá?, a espera da ocorrência «antes» de qualquer defesa, ilustração ou
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comentário, a espera «antes» de se ter cuidado, e de se olhar, sob aégide do now, eis o rigor da vanguarda. Na determinação da arte literária, esta exigência para com o Ocorrerá? encontraria uma das suasmais rigorosas encenações em How to write, de Gertrude Stein. Continua a ser o sublime de Burke e de Kant e, ao mesmo tempo, deixa deo ser.
2.
Disse que o sentimento contraditório pelo qual se anuncia e se perde o indeterminado foi a aposta da reflexão sobre a arte, entre o fimdo século XVII e o fim do século XVIII. O sublime será talvez o modo da sensibilidade artistica que caracteriza o modernismo. Existe, todavia, um paradoxo no facto de ter sido apresentado durante a discussão dos letrados e defendido com energia pelo escritor francês que ahistória literária coloca entre os defensores mais empenhados do classicismo dos Antigos. Em 1674, Boileau publica a sua Art poétique, assim como a sua tradução, ou a sua transcrição do Péri tou hupsou,Du sublime. É um tratado, ou melhor, um ensaio, atribuido a um certo Longino cuja identidade permaneceu confusa durante muito tempoe que, hoje em dia, situamos pouco mais ou menos no fim do século Ida nossa era. O autor é um retórico. Ensina, em principio, os meiospostos à disposição do orador para persuadir ou comover (consoante ogénero) o seu auditório. Deste modo, a didáctica da arte oratória tornou-se tradicional desde Aristóteles, Cicero e Quintiliano. Esteve ligada à instituição republicana: é necessário saber falar perante as assembleias e os tribunais.
Poderiamos esperar que o texto de Longino retomasse as máximase os conselhos transmitidos por esta tradição, perpetuando, deste modo, a forma didáctica da tekhnê rhétorikê, Todavia, a economia dotexto é afectada por uma incerteza, como se o seu tema, o sublime, oindeterminado, desestabilizasse o seu projecto didáctico. Não possoaqui analisar a flutuação. Boileau, tal como vários comentadoresdebruçaram-se sobre ela e concluiram que só se pode tratar o sublimecom um estilo sublime. Longino bem tenta definir a sublimidade dodiscurso; é, diz ele, inesquecivel, irresistivel, e, sobretudo, dá muitoem que pensar; surgem «a partir dela, muitas reflexões», (hou pollê
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..anathéorêsis). Tenta ainda determinar as origens do sublime no éthos eno pathos do orador, nos processos do discurso: figuras, escolha daspalavras e do registo de enunciação, de composição. Tenta, deste modo, submeter-se aos cânones do género tratado (retórica, poética, política). O próprio género destina-se a fornecer um modelo aos práticos.
No entanto, quando se trata do sublime, grandes obstáculos seopõem à exposição regular de uma retórica ou de uma poética. Porexemplo, escreve Longino, existe um sublime de pensamento que senota, por vezes, no discurso, pela extrema simplicidade da apresentação ou pelo silêncio puro e simples do orador, no preciso momentoem que o seu carácter instruído deixava entrever maior solenidade.Aceito, mais uma vez, encarar este silêncio como uma figura. Não será, todavia, um erro dizer que esta figura é a mais indeterminada deentre todas. Mas, o que resta da retórica (e também da poética), quando, na tradução de Boileau, o retórico declara que «não existe melhorfigura do que a que está perfeitamente escondida e que não se reconhece enquanto figura», para atingir o efeito sublime? Ou então, haverá processos para esconder as figuras, figuras para apagar as figuras? Como distinguir uma figura escondida de uma não-figura? E oque será uma não-figura? Mais uma vez, este factor parece ser um rude golpe para a função didáctica: quando sublime, o discurso fica repleto de falhas, de erros de gosto, de imperfeições formais. O estilo dePlatão, por exemplo, está cheio de floreados e rococós, de comparações forçadas; em suma, Platão, é um maneirista ou um barroco comparado a um Lísias, ou Sófocles comparado a um Ion, ou ainda Píndaro comparado a um Basilides, sendo necessário não esquecer que osprimeiros nomeados são sublimes e os outros apenas perfeitos. Umafalha no ofício é, deste modo, venial, se for o preço de uma «verdadeira grandeza». A grandeza do discurso é verdadeira, quando testemunha da incomensurabilidade do pensamento com o mundo real.
Será a transcrição dada por Boileau que leva a esta analogia, ou será a influência do jovem cristianismo sobre Longino? Que a grandezade espírito não pertença a este mundo, é um facto que não deixa delembrar a distinção pascaliana das ordens. A perfeição exigível datechnê não é, necessariamente, uma qualidade de sentimento sublime.Longino chega mesmo a dar, como exemplo de efeito sublime, perturbações na sintaxe considerada natural e razoável. No que diz respeitoa Boileau, no prefácio que escreve para o texto de Longino em 1674, e
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mais ainda, nas alterações acrescidas a esse mesmo texto em 1683 e1701, assim como na X Reflexão publicada, após a sua morte em 1710,consuma a ruptura indicada com a instituição clássica da techné: o sublime não se ensina, a didáctica é impotente diante dele; ele não estáligado a regras determináveis por uma poética; pede apenas que o leitor ou o auditor tenha alguma concepção, gosto, e que, «sinta o quetoda a gente sente primeiro». Boileau toma assim o mesmo partidoque o Pêre Bouhours em 1671, quando este declarava que o respeitopelas regras é insuficiente para obter uma bela obra, que é necessárioum «não sei quê», também chamado génio, «incompreensível e inexplicável», uma «dádiva do céu», essencialmente «escondida» e reconhecível pelos seus próprios «efeitos» sobre o destinatário. E, na polémica que o opõe a Huet, no que respeita a saber se o Fiat lux e luxfuit da Bíblia é sublime como o pensava Longino, Boileau pede a opinião dos Senhores de Port-Royal e particularmente de Lemaistre deSaci: os jansenistas são mestres em matéria de significados escondidos,de silêncios que falam, de sentimentos transcendentes de qualquer razão e, finalmente, da receptividade para com o Ocorrerá?
O que está em jogo nestas lutas teológico-poéticas, é o estatuto dasobras de arte. Serão elas as cópias de um modelo ideal? Poderá umareflexão sobre as mais perfeitas de entre elas, dar origem a regras deformação que as assegurem de atingir o seu objectivo, a persuasão, oprazer? Com esta reflexão, poderá o entendimento ser suficiente? Concentrando-se sobre este tema da sublimidade e da indeterminação, ameditação sobre as obras provoca uma grande mutação na technê enas instituições a ela ligadas, Academias, Escolas, professores e discípulos, gosto, público esclarecido formado pelos príncipes e cortesãos.É a própria destinação ou o destino das obras que está em causa.A predominância da ideia de technê colocava as obras sob uma regulamentação múltipla, a do modelo ensinado nos estúdios de artistas, nasEscolas, nas Academias, a do gosto partilhado pelos públicos aristocráticos e, por fim, a regulamentação de uma finalidade da arte queconsistia em ilustrar a glória de um nome, divino ou humano, ao qualestava ligada a perfeição de tal virtude cardeal. A noção de sublimedesregra esta harmonia.
Ampliemos agora os traços desse desregramento. A technê torna-se, com Diderot, «a pequena técnica». O artista deixa de ser guiadopor uma cultura que fazia dele o destinatário e o mestre de uma inspi-
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"-ração que o invadia e que vinha de um «não sei quê». O público jánão julga a partir de um gosto subordinado à tradição de um prazerpartilhado: indivíduos desconhecidos pelo artista (o «povo») lêem livros, percorrem as salas dos Salões, acorrem aos teatros e aos concertos públicos, são invadidos por sentimentos imprevisíveis, ficam chocados, admirados, desdenhosos, indiferentes. A questão não está emagradar-lhes, ao fazer com que se identifiquem com um nome e participem à glorificação da sua virtude, mas sim, de os surpreender.«O sublime, escreve Boileau, não é propriamente algo que se prova ese demonstra, mas é uma maravilha que comove, que choca e provocasentimentos». As próprias imperfeições, as alterações violentas do gosto, a fealdade, têm a sua parte no efeito de choque. A arte não imita anatureza, cria um mundo ao lado, eine Zwischenwelt, disse Paul Klee,poderíamos dizer eine Nebenwelt, onde o monstruoso e o disformetêm os seus direitos, já que podem ser sublimes.
Perdoar-me-ão por simplificar de tal modo a transformação queocorre com o desenvolvimento moderno da noção de sublime. Encontraríamos o seu rasto antes dos tempos modernos, na estética medieval, a dos Victorins, por exemplo. Ela explica, pelo menos, que a reflexão sobre a arte já não incide essencialmente sobre o destinador dasobras, os quais abandonamos à solidão do génio, mas sim sobre o seudestinatário. Doravante, convém analisar as maneiras de afectá-lo, asformas pelas quais recebe e sente as obras e como as julga. Deste modo, a estética, a análise dos sentimentos do amador, ultrapassam apoética e a retórica, as quais são didácticas destinadas ao artista.A questão já não é: como fazer arte, mas sim: o que é sentir a arte?Porém, a indeterminação continua presente, até na análise desta última questão.
3.
Em 1750, Baumgarten publica a Aesthetica, a primeira estética.Desta obra Kant dirá, brevemente, que se baseia num erro. Baumgarten confunde o julgamento, na sua utilização determinante, quando oentendimento organiza os fenómenos de acordo com as suas categoriase o julgamento na sua utilização reflexiva onde, sob a forma de senti-
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menta, incide sobre a relação indeterminada entre as faculdades do sujeito. A estética de Baumgarten fica tributária de uma relação determinada de modo conceptual, com a obra de arte. O sentimento do beloé, para Kant, um prazer provocado por uma harmonia livre entre afunção das imagens e a dos conceitos, diante de uma obra de arte ouda natureza. O sentimento do sublime ainda é mais indeterminado: umprazer misturado com tristeza, um prazer originado pela tristeza.Diante de um grande objecto, o deserto, uma montanha, uma pirâmide, ou um objecto muito poderoso, uma tempestade no oceano, umaerupção vulcânica, aparece a ideia de um absoluto que s6 pode serpensada e deve permanecer sem intuição sensível, como uma ideia darazão. A faculdade de apresentação, a imaginação, falha em forneceruma representação adequada desta ideia. Este insucesso na expressãosuscita uma tristeza, um género de fosso sentido pelo sujeito, entre oque ele pode conceber e o que pode imaginar. Mas, esta tristeza, porsua vez, dá origem a um prazer, um duplo prazer: a impotência daimaginação atesta a contrario que tenta fazer ver o que não pode sermostrado, e que, deste modo, tem por objectivo harmonizar o seu objecto com o da razão; e, por outro lado, a insuficiência das imagens éum sinal negativo da imensidão do poder das ideias. Este desregramento das faculdades entre elas dá origem à extrema tensão (a agitação,diz Kant) que caracteriza o pathos do sublime, sendo diferente do sentimento calmo do belo. No limite da ruptura, o infinito ou o absolutoda Ideia, pode ser reconhecido no que Kant chama apresentação negativa, ou mesmo, uma não-apresentação. Cita a lei judaica da interdição das imagens como um exemplo eminente de apresentação negativa:o prazer dos olhos reduzido a quase nada faz pensar infinitamente oinfinito. Antes mesmo que seja extraída a arte romântica da figuraclássica e barroca, abre-se assim a porta sobre uma pesquisa em direcção da arte abstracta e minimal. O vanguardismo germina, deste modo, na estética kantiana do sublime. No entanto, a arte, cujos efeitossão analisados por esta estética, consiste, no essencial, em representarsujeitos sublimes. A questão do tempo, do Ocorrerá, não faz parte,pelo menos de forma explícita, da problemática de Kant.
Quanto a mim, a questão do tempo está no centro do Philosophical Inquiry into the Origin of our Ideas of the Sublime and Beautifulescrito por Edmund Burke e publicado em 1757. Kant tenta, sem êxito, rejeitar a tese de Burke, atribuindo-lhe empirismo e fisiologismo e,
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apesar de utilizar a sua análise da contradição caraeteristica do sentimento sublime, Kant despoja a estética de Burke do que penso ser oseu maior desafio: mostrar que o sublime é provocado pela ameaça denada ocorrer. O belo dá um prazer positivo. Existe, porém, outro tipode prazer, ligado a uma paixão mais forte do que a satisfação , que é ador e a aproximação da morte. No entanto, a alma pode também afectar o corpo, como se este sentisse uma dor de origem externa, peloúnico meio de representações associadas inconscientemente a situaçõesdolorosas. No léxico de Burke, esta paixão extremamente espiritualchama-se terror. Ora, os terrores estão ligados a privações: privaçãoda luz, terror das trevas; privação do outro, terror da solidão ; privação da linguagem, terror do silêncio; privação dos objectos , terror dovazio; privação da vida, terror da morte. O que é assustador, é que oOcorrerá não ocorra, cesse de ocorrer.
Para que este terror se misture com o prazer e componha com ele osentimento sublime, é ainda necessário, escreve Burke, que a ameaçaque o engendra seja suspendida, mantida a uma certa distância, retida.Esta incerteza, esta diminuição de uma ameaça ou de um perigo, provoca uma espécie de prazer que não é, por certo, o de uma satisfaçãopositiva, mas sim, de um alívio. Continua a ser uma privação, mas dosegundo grau: a alma é privada da ameaça de ser privada de luz, delinguagem, de vida. Burke faz uma distinção entre este prazer de privação de segundo grau, e o prazer positivo: dá-lhe o nome de deligh,delícia.
Eis, deste modo, a maneira de analisar o sentimento sublime: umobjecto muito grande, muito poderoso, que ameaça privar a alma detoda e qualquer Ocorrência e que a «espanta» (em graus de intensidade menores, a alma sente admiração, veneração, respeito). Fica estúpida, imobilizada, como se estivesse morta. Ao afastar esta ameaça, aarte proporciona um prazer de alívio, de delícia. Graças a ele, a almaé devolvida à agitação entre a vida e a morte e esta agitação é a suasaúde e a sua vida. Para Burke, o sublime já não depende da elevação(a qual representa a categoria pela qual Aristóteles distinguia a tragédia), depende sim da intensificação.
Outra observação de Burke merece a nossa atenção porque anunciauma possível libertação das obras em relação à regra clássica da imitação . No longo debate sobre as vantagens respectivas da pintura e dapoesia, Burke toma o partido dessa libertação. A pintura está' conde-
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nada à imitação dos modelos e à sua representação figurativa. Mas, seo objectivo da arte for provocar sentimentos intensos ao destinatáriodas obras, a figuração , por meio de imagens, é um constrangimentoque limita as possibilidades da expressão emocional. Nas artes da linguagem, nomeadamente na poesia, e na poesia considerada por Burkecomo o domínio de certas pesquisas sobre a linguagem e não como umgénero possuindo as suas próprias regras, o poder de comover está liberto das verosimilhanças figurativas. «Que fazemos, quando queremos reproduzir um anjo num quadro? Pintamos um homem, jovem ebelo, com asas: mas, fornecerá a pintura algo maior do que a simplesadição destas palavras: O Anjo do Senhorl» E, de que forma pintar,com o mesmo poder de sentimento, o «A universe of death», com oqual acaba a viagem dos anjos depostos do Paraiso Perdido, de Milton?
As palavras desfrutam de vários privilégios, na expressão dos sentimentos: elas próprias estão repletas de associações passionais; podemevocar o que pertence à alma, sem consideração do que é visível; porfim, Burke acrescenta que: «está em nosso poder, fazer combinaçõescom as palavras, impossíveis de outra maneira» . Impelidos pela estética do sublime, em busca de efeitos intensos, as artes, qualquer que seja o seu material , podem, e devem, desprezar a imitação dos modelosapenas belos, e experimentar combinações surpreendentes, insólitas,chocantes. O choque supremo, é que Ocorra (algo) em vez do nada, aprivação suspensa.
Estas análises de Burke podem, sem dúvida, ser facilmente retomadas e comentadas numa problemática lacan-freudiana (o que foi feitopor Pierre Kaufman e Baldine Saint-Girons). Lembro estas análisescom um outro sentido: o sentido que comanda o meu tema; a Vanguarda. Desejei sugerir que, no despertar do romantismo, a elaboraçãoda estética do sublime por Burke e, num menor grau, por Kant, aponta para um mundo de possibilidades de experimentações artísticas, noqual os Vanguardistas vão traçar o seu rumo. Não se trata, em geral,de influências directas, observáveis do ponto de vista empírico. Manet,Cézanne, Braque e Picasso, não leram, por certo , nem Kant nem Burke. Trata-se, de preferência, de um destino irreversível na destinaçãodas obras, o qual afecta todas as valências da condição artística. O artista experimenta combinações que permitem o acontecimento.O amador não sente um prazer simples, não retira benefícios éticos,
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do seu contacto com as obras, espera delas uma intensificação dassuas capacidades de emoção e de concepção, um prazer ambivalente.A obra não depende de modelos, tenta apresentar o que não é apresentável; não imita a natureza, é um artefacto, um simulacro .A comunidade social não se reconhece nas obras, ignora-as, rejeita-ascomo algo que não percebe, e, em seguida, aceita que a vanguarda intelectual as conserve nos museus, como vestígios de tentativas que testemunham do poder do espírito e da sua miséria.
4.
Com a estética do sublime, a aposta das artes durante os séculos XIX e XX, é testemunhar do indeterminado existente. Para apintura, o paradoxo assinalado por Burke, nas suas observações sobreo poder das palavras, é que este testemunho só pode ser feito de mododeterminado. O suporte, o quadro, as linhas, as cores, o espaço, as figuras permanecem, no seu essencial e na arte Romântica, sob o poderescravizante do constrangimento representativo. Mas, as condições entre o fim e os meios têm como resultado, já com Manet e Cézanne,pôr de novo em questão certas regras que determinam, desde o Quattrocento, a representação das figuras no espaço e a disposição das cores e dos valores. Ao ler a correspondência de Cézanne, percebemosque a sua obra não é a de um pintor de talento que teria descoberto oseu «estilo», mas sim uma tentativa de resposta para a pergunta: o queé um quadro? O seu trabalho tem por objectivo inscrever no suporte,apenas as «sensações coloridas» , «as pequenas sensações», as quaisconstituem, por si só, na hipótese de Cézanne, toda a existência pictural de um objecto, frutas , montanha, rosto, flor, sem consideração pela história, pelo «tema», pela linha, pelo espaço ou pela luz. Estas sensações elementares são escondidas pela percepção vulgar, a qual permanece sob a hegemonia da maneira, habitual ou clássica, de olhar.Elas só são acessíveis ao pintor e restituíveis por ele, em troca de umaascese interior que liberta o campo perceptivo e mental dos preconceitos inscritos na própria visão. Se o observador, por sua vez, não sesubmeter a uma ascese complementar, o quadro permanecerá, paraele, um contra-senso impenetrável. O pintor não deve hesitar em correr o risco de passar por um borrador. «Pintamos por muito pouco.»
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o reconhecimento das instituições reguladoras da pintura; Academia,Salões, crítica, gosto, não tem muita importância para o julgamentodo pintor, e afins, sobre o sucesso obtido pela obra, em relação ao objectivo verdadeiro: fazer mostrar o que faz mostrar e não o que é visível.
Maurice Merleau-Ponty comentou o que chamou justamente de«dúvida de Cézanne», como se o objectivo do pintor fosse, de facto,agarrar e restituir a percepção no seu início, a percepção «antes» dapercepção, poderia dizer: a cor, na sua ocorrência, a maravilha sentidapelo facto de «ocorrer» (algo: a cor) , pelo menos a olho nu. Existepouca credulidade por parte do fenomenologista nesta confiança atribuída ao valor «originário» das pequenas sensações de Cézanne.O próprio pintor, que se queixa frequentemente da sua insuficiência,escreve sobre elas, dizendo que são «abstracções», que «não lhe permitem cobrir a sua tela» . Mas porque será necess ário cobrir a tela? Nãoserá permitido ser-se abstracto?
A dúvida que atormenta as vanguardas não pára com as «sensações coloridas» de Cézanne, como se elas fossem indubitáveis, e, aliás,tão pouco com as abstracções criadas por ela. A tarefa de ter que testemunhar do indeterminado, arrasta, um a seguir ao outro, os estorvosopostos à vaga das interrogações dos escritos dos teóricos e dos manifestos dos próprios pintores . Uma definição formalista do objecto pictórico, igual à que foi proposta por Clement Greenberg, em 1961,quando confrontado à abstracção «pós-plástica» americana, é rapidamente controlada pela corrente minimalista. Será pelo menos necessárío haver um suporte (para que a tela seja esticada)? Não. Cores?O quadrado preto sobre fundo branco de Malévitch já tinha respondido a esta pergunta, em 1915. Será necessário haver um objecto?A body art e o happening querem provar o contrário, Um lugar, pelomenos, para expor, como podia ser sugerido pela «fonte» de Duchamp? A obra de Daniel Buren é testemunha de que se pode duvidardesta necessidade.
Que pertençam, ou não , à corrente que a história da arte contemporânea chama de minimalismo ou Arte Povera, as pesquisas das vanguardas solicitam, uma após outra, os constituintes que poderíamosjulgar «elementares» ou «originários» da arte de píntar. Elas operamex minimis. Seria necessário confrontar a exigência de rigor que as anima com o princípio esboçado por Adorno, no fim da Dialéctica Negati-
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va e que preside à escrita da Teoria Estética: o pensamento que«acompanha a metafísica na sua queda» s6 pode processar-se pormeio de «micrologias». .'A micrologia não é a metafísica em migalhas, assim como o qua-dro de Newman não é um Delacroix em pedaços. A micrologia inscreve a ocorrência de um pensamento como o que permanece impensado,no declinio do grande pensamento filos6fico. O ensaio vanguardistainscreve a ocorrência de um now sensivel, como o que não pode serapresentado e que permanece por apresentar, no declinio da grandepintura representativa. Tal como a micrologia, a vanguarda não tratado que acontece ao «sujeito», mas sim ao: Ocorrerá", à privação.É desta maneira que a micrologia pertence à estética do sublime.
Ao interrogar o Ocorrerá que representa a obra, a arte da vanguarda abandona o papel de identificação desempenhado anteriormente pela obra em relação à comunidade dos destinatários. Mesmo concebidocomo o era por Kant, enquanto horizonte ou presunção de jure e nãorealidade de facto, um sensus communis (do qual Kant não fala em relação ao sublime, mas s6 acerca de belo) não consegue estabilizar-sediante das obras interrogativas. Forma-se apenas, e tarde demais,quando, expostas nos museus, estas obras são supostas pertencer à herança da comunidade e estarem disponiveis para sua cultura e seu prazer. Ainda seria necessário que fossem objectos ou que aguentassem aobjectivização, pela fotografia, por exemplo.
Nesta situação de isolamento e de falta de compreensão, a arte devanguarda é vulnerável e sujeita à repressão. Parece apenas piorar acrise de identidade atravessada pelas comunidades, aquando da longa«depressão» que começa nos anos 1930 e se prolonga até à «reconstrução», a meio dos anos 1950. É mesmo impossivel sugerir, aqui, a forma pela qual os Estados Unidos, nascidos do medo diante do: quemsomos n6s e da angústia do nada, tentarem reconverter estes sentimentos em 6dio contra as vanguardas. O estudo de Hildegard Brenner sobre a politica artistica do Nazismo ou os filmes de Hans Jürgen Syberberg, não analisam somente as manobras repressivas. Explicam também a maneira pela qual as formas neo-rornânticas e simb6licas impostas pelos comissários da cultura e os artistas colaboradores, na pintura e na música, deviam bloquear a dialéctica negativa movida pelo:Ocorrerá? I ao traduzir a questão da espera de um «tema» fabuloso: opovo puro chegará? O Führer chegará? Siegfried chegará? A estética
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do sublime assim neutralizada e convertida em politica do mito, pôdeedificar, sobre o Zeppelim Feld de Nuremberg, as suas arquitecturasde «formações» humanas.
Actuando em favor da «crise» da sobre-capitalização atravessadahoje pelas sociedades ditas mais desenvolvidas, aparece um outro ataque contra as vanguardas. A ameaça que pesa sobre a pesquisa vanguardista da obra-acontecimento e sobre o acolhimento que ela tentadar ao now, não necessita de Estados-partidos. Ela depende «directamente» da economia de mercado. A correlação entre esta última e acrítica do sublime é ambígua, mesmo perversa. A segunda foi, sem dúvida, e continua a ser, uma reacção contra o positivismo matter offac! e o cálculo realista, os quais governam a primeira, como o salientam escritores comentadores de arte (Stendhal, Baudelaire, Mallarmé,Apollinaire e Breton).
No entanto, existe uma conivência entre o capital e a vanguarda.A força do cepticismo ou até da destruição, levada a cabo pelo capitalismo, a qual Marx não parou de analisar e de reconhecer, alenta, decerto modo, nos escritores, a recusa de confiar nas regras estabelecidase a vontade de experimentar meios de expressão, estilos, materiaissempre novos. Existe algo de sublime na economia capitalista. Ela nãoé académica, nem fisiocrática; não admite nenhuma natureza. É , numcerto sentido, uma economia regulamentada a partir de uma ideia, ariqueza ou a potência infinita. Não consegue apresentar nenhum exemplo na realidade que verifica essa Ideia. Ao subordinar-se à ciência,por meio de tecnologias, sobretudo da linguagem, a economia capitalista torna, ao contrário, a realidade cada vez mais inapreensível, sujeita a questão, a enfraquecimento. Mais uma vez é necessário não confundir a Ideia com o conceito.
A experiência do sujeito humano, individual e colectivo, e a auraque o envolve, dissipam-se nos cálculos de rentabilidade, de satisfaçãodas necessidades, de auto-afirmação pelo sucesso. Mesmo se a profundidade quase teológica da condição operária e do trabalho que marcouo movimento socialista e sindical durante mais de um século, se desvaloriza, à medida que o trabalho se transforma no controlo e na manipulação de informações. Estas observações são banais, mas, o que merece a nossa atenção, é o desaparecimento do contínuo temporal, peloqual era transmitida a experiência das gerações. A disposição da informação torna-se o único critério da importância social. Ora, a informa-
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..ção é, por definição, um elemento de curta duração. A partir do momento em que ela é transmitida ou partilhada, deixa de ser uma informação, transforma-se num dado do meio ambiente, e «tudo está dito»: «sabe-se». É colocada numa memória máquina. A duração porela ocupada é, por assim dizer, instantânea, Entre duas informaçõesnão aconrece nada, isto por definição. A confusão torna-se assim possível, entre o que interessa à informação e ao dirigente, por um lado,e, por Outro, o que representa a questão das vanguardas: entre o queocorre, o novo, e o Ocorrerât , o now.
Concebemos que o mercado da arte, submetido, como qualquermercado, à regra da novidade, possa exercer sobre os artistas uma espécie de sedução. Esta atracção não é apenas devida à corrupção.Exerce-se graças à confusão entre a inovação e o Ereignis mantida pelatemporalidade própria ao capitalismo contemporâneo. Uma informação «forte», se assim a podemos chamar, tem uma causa inversa aodo significado que se lhe pode atribuir , no código ao dispor do receptor. Parece-se com «barulho». Para o público e os artistas aconselhados pelos intermediários, os difusores de mercadorias culturais, é fácilretirar desta observação o princípio de que uma obra é de vanguardaquanto maior for a sua privação de significado. Não será ela entãoigual a um acontecimento?
É ainda necessário que o seu absurdo não dissuada os compradorese que, do mesmo modo, a inovação introduzida na mercadoria se deixe aproximar, apreciar e adquirir pelos consumidores. O segredo paraum sucesso artístico, assim como para um sucesso comercial, está nodoseamento entre o que surpreende e «o que é bem conhecido», entrea informação e o código. Tal é a inovação no que diz respeito às artes:retomam-se fórmulas confirmadas por sucessos prévios, desequilibramo-las por meio de combinações com outras fórmulas, em principioincompatíveis, por meio de amálgamas de citações, de ornamentaçõese de imitações . Podemos também ir até ao kitch e ao barroco. Lisonjeamos o «gosto» e o ecletismo de uma sensibilidade enfraquecida pelamultiplicação das formas e dos objectos disponíveis. Pensamos assimexprimir o espírito do tempo e apenas reflectimos o do mercado. A sublimidade já não está na arte, está sim na especulação sobre a arte.
O enigma do Ocorrerá, não desaparece, tão pouco fica ultrapassada a tarefa de pintar algo que não é determinável: o próprio Existe.A ocorrência, o Ereignis, não tem nada a ver com o pequeno arrepio,
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com o pathos rentável que acompanha uma inovação. No cinismo dainovação, esconde-se, seguramente, o desespero de que já nada ocorre.Mas, inovar consiste em fazer como se ocorressem muitas coisas e emprovocar o seu acontecimento. A vontade afirma, com ela, a sua hegemonia sobre o tempo . Conforma-se deste modo à metafísica do capital, a qual é uma tecnologia do tempo. A inovação «avança». O pontode interrogação do Ocorrerá? pára. Com a ocorrência, a vontade édesfeita. A tarefa vanguardista continua a ser a de desfazer a presunção do espírito em relação ao tempo. O sentimento sublime é o nomedessa privação.
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ALGO COMO:«COMUNICAÇÃO... SEM COMUNICAÇÃO»
Para dramatizar o tema em causa: «Arte e comunicação», querialembrar o regime de comunicação que é próprio, ou que pensámos serpróprio, pelo menos desde Kant, à recepção estética. Para situar esseregime, citarei apenas duas frases à guisa de aforismos, as quais secontradizem perfeitamente, à primeira vista:
«Nenhuma obra de arte deve ser descrita nem explicada sob as categorias da comunicação.»
«Poderíamos mesmo definir o gosto pela faculdade de julgar o quetorna o nosso sentimento, vindo de uma determinada representação,universalmente comunicável, sem a mediação de um conceito.»
A primeira frase é de Theodor Adorno (Teoria Estética), a segunda, de Emmanuel Kant (Critica da Faculdade de Julgar, § 40).
Estes dois aforismos parecem antinómicos, um dizendo que a artenão tem nada a ver com a comunicação, e o outro, que a recepção daarte pressupõe e exige uma comunicabilidade universal sem conceito.O filósofo tem o hábito das teses contrárias. O trecho citado, pertencente a Adorno, inscreve-se nas objecções que ele opõe à redução hegeliana da obra à dialéctica do conceito. Adorno, não sem premonição, vislumbra, no pensamento hegeliano, algo parecido com uma cobertura filosófica para uma ideologia comunicacionalista, e isto provavelmente - aproximamo-nos então da fórmula de Kant -, devido aofacto de que, nessa filosofia especulativa de Hegel, existe uma hegemonia absoluta do conceito. Ora, está implícita, dentro daquilo queAdorno chama comunicação, a ideia de que, se existir uma comunicação na arte e pela arte, ela deve ser sem conceitos. Assim, apesar da
Texto de uma exposição feita no primeiro Colóquio «Art et cornmunication», realizado na Sorbonne em Outubro de 1985 por iniciativa de Robert AlIezaud. Publicado nocompêndio Art et Communication, edições Osiris, Paris, 1986.
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contradição aparente, Adorno inscreve-se aqui na tradição do pensamento da arte criada por Kant. Existe um pensamento da arte que nãoé um pensamento da não comunicação, mas da comunicação não-conceptual.
O tema que eu quero dramatizar é: o que acontece com uma comunicação sem conceito no preciso momento em que os «produtos» dastecnologias aplicadas à arte não podem ser feitos sem a intervençãomassiva e hegemónica do conceito? No conflito existente à volta dapalavra com unicação , entende-se que a obra, ou pelo menos tudo oque é visto como obra, induz um sentimento - antes de induzir umainteligência - sentimento este que é comunicável universalmente e,por princípio, de forma constitutiva e portanto imediata. Tal sentimento diferencia-se, por isso, de uma simples preferência subjectiva.Esta comunicabilidade, enquanto exigência e não enquanto facto, justamente porque é suposta ser originária, ontológica, escapa à actividade comunicacional, a qual não é uma receptibilidade, mas sim, algoque se manuseia, que se faz. Eis, a meu ver, o que orienta a nossaproblemática: «novas tecnologias e arte» ou, dito de outra maneira,«arte e pós-modernidade». Esta comunicabilidade, tal como é desenvolvida na análise kantiana do belo, é muito anterior à comunicaçãono sentido das teorias da comunicação, as quais incluem a pragmáticacomunicacional '(pragma é a mesma coisa que Handeln). Esta comunicabilidade de princípio, que actua imediatamente no sentimento do belo, é sempre pressuposta em qualquer comunicação conceptual.
Ao mostrar que o sentimento do belo difere dos outros afectos ouafeições com os quais somos tentados a confundi-lo, incluindo o sentimento do sublime, Kant quer dizer que ele deve ser transitivado im-mediatamente; se não o for, não será um sentimento do belo. A exigência de tal assentimento, em princípio universal, é constitutivo dojulgamento estético. Se, deste modo, nos atermos à uma descrição psicológica , social ou pragmática, geralmente antropológica, renunciamosà possibilidade de dar à arte, quando se trata da sua recepção, um estatuto específico e concluimos, no fundo , que a arte não existe. Seabandonarmos esta transitividade potencial, imediata, exigível para ojulgamento do gosto e, ao mesmo tempo, exigida para que haja arte,abandonamos também a noção de uma comunidade dependente daquilo que Kant chama de sensus communis, ou seja, de uma sentimentalidade comunicável imediatamente.
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Não podemos, de facto, dizer de um sentimento que este deva recebero assentimento de todos sem mediação, im-mediatamente, sem pressupora existência de um género de comunidade de sentimento, a qual tem o objectivo de fazer com que cada um dos outros indivíduos, colocados diante da mesma situação, a mesma obra, possa, pelo menos, dispor do mesmo julgamento, sem o elaborar conceptualmente. Na análise do sentimento estético está assim em jogo a análise sobre o que acontece, em geral, numa comunidade. O que está em jogo, na recepção das obras, é oestatuto de uma comunidade sentimental, estética, muito «anterior» aqualquer comunidade e a qualquer pragmática. A divisão da relaçãointer-subjectiva ainda não está realizada, e existiria um assentimento,uma possível unanimidade, numa ordem que «ainda» não pode ser a daargumentação entre subjectividades racionais e falantes.
A hipótese de um outro tipo de comunidade surge então, irredutível diante das teorias da comunicação. Se admitirmos que a comunicabilidade de princípio está incluída no sentimento estético singular, eque este último é o modo imediato, ou seja, sem dúvida o mais pobree mais puro, passivo em relação ao espaço e ao tempo, os quais representam as formas necessárias da aisthésis, poderá essa comunicabilidade persistir, quando as formas que deveriam ter um papel determinante no seu acontecimento são determinadas de maneira conceptual, querseja na sua própria geração, quer na sua transmissão. O que advém dosentimento estético, quando situações calculadas são propostas comoestéticas?
A oposição entre o sistema linear e o sistema figurativo indicadona argumentação do colóquio, sem falar da esperança investida naprodução calculada de figuras, não me parece pertinente em relação àoposição, que tento enunciar, entre passibilidade e actividade. A passibilidade enquanto possibilidade de sentir (pathos), supõe uma doação.Se somos passíveis, é que algo nos acontece, e, quando esta passibilidade possui um estatuto fundamental, a própria doação é algo de fundamental, de originário. O que nos acontece não é, de modo algum,algo que controlámos ou programámos anteriormente, algo apreendidoatravés de um conceito (Begrifj). Ou então, se o fenómeno ao qual estamos sujeitos tiver sido elaborado por conceitos, como poderá eleapreender-nos? Como poderá ele comover-nos se já sabemos, ou sepodemos saber, de quê, para quê, com quê e porquê foi feito? Ou então, se tal sentimento ocorrer, no sentido muito radical atribuído a es-
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se termo por Kant, é necessário admitir que o que nos acontece é, paranós, desconcertante. Quando Kant fala da matéria da sensação que eleopõe à sua forma, à sua formação, trata-se precisamente daquilo quenão podemos calcular. Não temos nada a dizer a propósito do que nosadministra, nos dá matéria. Não podemos conceptualizar este génerode Outro com O maiúsculo, ao qual Kant dá o nome de X. É necessário concordar que a doação é originada por um X, ao qual Heideggerdá o nome de ser. Esta doação que se sente antes (ou melhor dentro)de qualquer apreensão ou conceptualização dá matéria à reflexão, aoconceito, e é sobre, para ela, que vamos construir a nossa filosofia daestética e as nossas teorias comunicacionais. É necessário que algo sejadado previamente. O sentimento é o acolhimento imediato ao que édado. As obras produzidas pela nova tekhné possuem, necessariamente, em graus diversos e em vários locais de si próprias, as marcas reveladoras de que foram determinadas por um (ou vários) cálculo(s), querseja na sua constituição e/ou na sua restituição , quer somente na suadifusão. E, por «cálculo», não entendo apenas o que ocupa o tempodos engenheiros de informática, mas todos os cálculos até à contabilidade inevitável dos espaços e dos tempos, de todos os tempos, inclusivamente os tempos ditos «de trabalho», ocupados na produção dessasobras e na sua difusão.
Qualquer reprodução industrial mostra-se fiel a esta problemáticaprofunda e fundamental da re-presentação e o sentimento estéticopressupõe algo que é necessariamente implicado .e esquecido na representação: a apresentação, o facto que algo exista aqui e agora. Todasas representações pressupõem o espaço e o tempo como o «porquê» eo «dentro de quê», algo que nos acontece e que está sempre aqui eagora: o lugar e o momento. Não se trata de conceitos, mas simplesmente das formas da apresentação. A partir do momento em que nossituamos nas artes da representação, a questão do aqui-agora é ocultada. Como poderá existir um sentimento estético resultante da única re-presentação calculada? Como poderiam as marcas da determinaçãopor conceitos das formas propostas pela nova tekhné, libertar o jogodo julgamento reflexivo constituído pelo prazer estético? De que modonão seria excluída a comunicabilidade constitutiva desse prazer quepermanece potencial, prometida e não efectuada pela determinaçãoconceptual, argumentativa e tecno-científica, «realista», do que é comunicado no produto dessas novas tecnologias?
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Ao alegar esta estranha problemática, do sentimento estético deKant, na sua im-mediatação e exigência de comunicabilidade universal,sem as quais não se pode falar de arte, quero apenas sugerir a seguintehipótese: o que é surpreendido em primeiro lugar e que dá sinal de si,é talvez o espaço e o tempo. O que é atingido, é o espaço e o tempo,enquanto formas da doação daquilo que acontece. A verdadeira «crisedos fundamentos» não era, sem dúvida, a dos fundamentos da razão,mas sim, de qualquer empreendimento científico incidindo sobre objectos ditos reais, ou seja, dados no espaço e tempo sensíveis.
Existem já, na obra de Kant, duas estéticas, dois significados dapalavra estética. Na primeira Estética (Crítica da Razão Pura), o temaem questão está limitado à elaboração do sensível (sua «síntese»), graças à qual este último é reconhecível por conceito. Como pode acontecer que conceitos possam encontrar aplicação na realidade? É necessário existirem previamente no sensível, tal como ele nos é dado, espéciesde sínteses de elementos, unidades sensíveis, que o preparem para asua apreensão inteligível sob o domínio dos conceitos. Existe uma afinidade entre o que se dá no sensível e o que o conceito vai fazer comessa dádiva. Por exemplo, na série temporal dos sons existe o suficiente para permitir a série numérica. É esta primeira síntese que Kantchama esquemas e que, no sensível, prepara a aplicação conceptual.Podemos reconhecer o sensível porque está em afinidade com a inteligência. Na terceira Crítica, a estética elabora a questão das formas.Então, o objectivo já não é o de perceber como é possível existir aciência, mas compreender como pode acontecer que, no aqui e agorada doação, se produza tal sentimento, o qual é apenas a transcriçãoafectiva das formas que flutuam livremente no espaço e no tempo.Kant atribui este sentimento à inscrição sobre o tema das formas devidas à imaginação produtora. As sínteses que ocorrem no sensível jánão são concebidas aqui, por Kant, como se preparassem a ciência,mas como se permitissem o sentimento, ele próprio preparatório paraqualquer conhecimento. É o modo pelo qual estas formas são recebidas por um tema que interessa Kant; chama-lhes tambémmonogramas.
Em primeiro lugar, existe portanto este problema esquemalforma,mas há também a divisão da apreensão das formas em dois sentimentos estéticos: o sentimento do belo e o sentimento do sublime. Ora, este último, cuja analítica Kant introduz sem qualquer justificação, o
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que não é hábito, possui a propriedade interessante de não ter uma comunicabilidade imediata. O sentimento do sublime manifesta-se quando falta a apresentação de formas livres. É compatível com O in-forme. É exactamente quando falta a imaginação que apresenta formas, que tal sentimento aparece. E este último deve passar pela mediação de uma ideia da razão, a qual é a Ideia de liberdade. Achamos sublimes espectáculos que excedem qualquer apresentação verdadeira deuma forma, ou seja, onde se significa a superioridade do nosso poderde liberdade em relação ao manifestado no próprio espectáculo. Aoisolar o sublime, Kant salienta algo que está em relação directa com oproblema da falência do espaço e do tempo. As formas livremente flutuantes que suscitavam o sentimento do belo passam a faltar. De certomodo, a questão do sublime está intimamente ligada ao que Heideggerchama de retirada do ser, retirada da doação. O acolhimento feito aosensível, ou seja, ao significado encarnado no aqui-agora, antes dequalquer conceito, já não teria lugar, nem momento. Esta retirada significaria a nossa situação actual.
Em O Princípio da Razão e A Época das Concepções do Mundo, aoposição está no seu máximo entre a poética, a receptividade inerentea esta sentimentalidade kantiana, e o Gestell (intraduzível: o a-raciocínio), o qual deve ser atribuído à tecno-ciência. Para Heidegger , atecno-ciência, no seu apogeu, era a ciência nuclear; hoje em dia avançámos muito mais no Gestell. É evidente que a in-stalação (craiz»igual à de ste/len) do conceito, até ao espaço-tempo, é infinitamentemais fina nas novas tecnologias do o que era no que Heidegger conhecia. A oposição entre duas formas de acolhimento: por um lado , aforma poética que atribui aos Gregos e, por outro lado, o acolhimentotecno-cien tífico (ainda é um acolhimento ontológico), o qual acontecesob o regime geral do princípio da razão e cuja nascença explícita Heidegger vê no pensamento leibniziano. É claro que a ideia da combinação , e portanto tudo o que comanda a informática e a comunicação,nasce aqui, como tantas outras, entre as quais a ideia do infinitesimal.
Esta problemática deve ser retomada, revista e corrigida; parece-mecentral, na questão «arte e comunicação». Nas Observações de H õlderlin sobre Édipo, sobre as quais deveríamos meditar, o poeta notaque a verdadeira tragédia de Édipo é que o deus afastou-se categoricamente do homem. A verdadeira tragédia não é Édipo Rei (a intriga, o
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assassínio, a incompreensão), é sim Édipo em Colónia, ou seja, quando cumprido o destino, já não acontece nada ao her6i e este deixa deter destino. A perda de destino marca o essencial do drama e, no factode «nada acontecer», está também o essencial da nossa problemática.É evidente que o que chamamos comunicação é, em todos os casos esempre, que não aconteça nada, ou seja que n6s não estamos destinados. Hôlderlin acrescenta, a este prop6sito, esta frase deveras notável:«No limite extremo do dilaceramento s6 permanecem, de facto, ascondições do tempo e do espaço .»
No horizonte do que chamamos «fim da arte», descoberto pelopensamento hegeliano, no início do século XIX, deparamos com a melancolia do «só permanecem as condições do tempo e do espaço », aqual cura e cicatriza, no pensamento dialéctico hegeliano, nessa imensatarefa de luto e imensa remissão. Não s6 vai ser necessário reabsorvero «só permanecem o espaço e o tempo» enquanto condições puras (oque foi feito desde o início da primeira grande obra, a Fenomenologiado Espirito, onde se demonstra que o espaço e o tempo não possuem asua verdade em si pr6prios, mas sim no conceito; que não existe oaqui-agora, nem a percepção, que o sensível é sempre mediatizado pelo entendimento), como também o tema do fim da arte revela , noutroplano, a persistência do tema da retirada da doação e da crise estética.Se não houver tempo, se o tempo for o conceito, a arte s6 existe porerro ou, melhor, o momento do fim da arte coincide com o da hegemonia do conceito. Seria necessário ligar esta problemática à problemática em que vivemos hoje em dia, o logocentrismo generalizado, emostrar que a indústria da arte pertence, indirectamente, a esta formade acabar a arte. A indústria da arte seria um acabamento da metafísica especulativa, uma forma de Hegel estar presente, de ter êxito emHollywood. A esclarecer com as observações de Paul Virilio sobre oproblema do espaço e do tempo a que chama de críticas num sentidoestratégico, o do Pentágono. Seria também necessário elaborar a posição de Husserl face à crise das ciências europeias.
Impõe-se fazer um estudo sobre as vanguardas. O seu movimentonão é devido apenas ao fim da arte. Se se situarem numa problemáticaanáloga àquela segundo a qual Hegel tematiza o fim da arte, elas terão«explorado», de um modo exemplar, esse «não resta mais ...», Se restam apenas as condições do espaço e do tempo, ou seja , no fundo , se
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a representação, a encenação das intrigas não são interessantes e se oque interessa é Édipo sem destino, elaboremos então uma pintura sem-destino. As vanguardas põem-se a trabalhar sobre estas condições doespaço e do tempo. Estas tentativas já vêm a ser feitas desde há um século sem por isso chegarem a alguma conclusão. Esta problemáticapermite restituir a verdadeira aposta das vanguardas, ao substituí-lasno seu próprio terreno. Foram testemunhas incontestáveis da crise destes fundamentos cujas teorias da comunicação ou novas tecnologias,representam outros aspectos, diferentes, menos lúcidos do que as vanguardas. Estas últimas tinham pelo menos o sentido da dramática e,nesse aspecto, são perfeitamente análogas, no seu campo, ao queacontece nas ciências.
Sob o título da crise das ciências, a partir do fim do século XIX,uma grande discussão incide sobre a ciência do número, ou seja aciência do tempo, sobre a geometria, a ciência do espaço e sobre a mecânica, ciência do movimento, ou seja, ciência do espaço e do tempo.É muito difícil acreditar que o que se discutiu entre sábios e filósofosdurante um século não deve interessar à pequena ideologia comunicacional. Os problemas que deram origem às geometrias não euclidianas,às aritméticas axiomáticas e às físicas não newtonianas, foram tambémos que geraram a teoria da comunicação e da informação.
Nesta crise que incide sobre as condições do espaço e do tempo(com as suas duas expressões: moderna - só permanecem o espaço eo tempo; e pós-modernas - já não permanece nem mesmo o espaço eo tempo), neste trabalho, que abordámos sob o aspecto da comunicação, haverá simplesmente a perda de algo (a doação ou a apresentação) sem que haja algum benefício? Perdemos a terra (Husserl), ou seja, o aqui-agora, mas teremos ganho algo? Se sim, de que modo o ganhámos? Poderá o desenraizamento, ligado à nova tecnologia, prometer-nos uma emancipação?
Como foi indicado no programa do colóquio, a questão do corpopõe-se aqui, mas não devemos confiar muito nessa palavra, já que,sendo o espaço e o tempo atacados pelas novas tecnologias, o corpotambém o é, e deve sê-lo. Talvez seja igualmente necessário vestir o luto do corpo.
A propósito da confusão entre passível e passivo. Estes dois problemas são distintos: a passividade opõe-se à actividade, a passibilida-
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de não . Mais ainda, esta oposição activo-passivo pressupõe a passibilidade, e não é, de modo algum, o que está em causa na recepção dasobras de arte. O requisito de uma actividade ou «inter-actividade»prova, ao contrário, que seria necessário uma maior intervenção, e queacabámos, portanto, com o sentimento estético. Não pediamos «intervenções» ao observador quando pintávamos, queríamos alegar umacomunidade. O que visamos hoje não é esse sentimentalismo que aindaencontramos no mais pequeno esboço de um Cézanne ou Degas, é, pelo contrário, que o sujeito que recebe não receba, que ele não se deixeperturbar, é a sua auto-constituição enquanto sujeito activo, em relação ao que lhe é dado: que se reconstitua imediatamente e se identifique como alguém que intervém. Aquilo pelo qual vivemos e julgamosé justamente essa vontade de acção. Se um computador nos convidaao jogo ou nos deixa jogar, a aposta generalizada é que aquele que recebe manifeste a sua capacidade de iniciativa, de actividade, etc.. . Ainda somos tributários do modelo cartesiano do «tornar-se dominador epossuidor. ..» Implica aretirada da passibilidade, após a qual somenteficamos aptos a receber e, por consequência, a modificar e a agir e talvez mesmo a sentir prazer. Esta passibilidade, enquanto prazer e pertença inerente a uma comunidade imediata , é contrariada na problemática geral da comunicação de hoje, e passa mesmo por vergonhosa.Mas agir no sentido desta actividade tão procurada é apenas, na verdade, reagir , repetir, conformar-se o mais febrilmente possível a umjogo já distribuído ou instalado (gestellt?)>>. Pelo contrário, a passibilidade tem por desafio uma comunidade sentimental imediata, exigidaatravés do sentimento estético singular , e o que é perdido é maior doque a simples capacidade, é a propriedade. A ideologia interacional é,sem dúvida, oposta a uma passividade, mas fica confinada a uma oposição totalmente secundária.
O que na verdade está em jogo é saber se se mantêm ou não a actualidade e a imediatidade de um sentimento que apela à co-pertença aum «solo», que o conceito e o cálculo, iludindo, supõem. Desde logoa obra não é recebida se não for desta comunidade imediata, mesmose, em seguida, for apresentada numa galeria, isoladamente. Trata-sede um problema de modalidade de presença, e não de conteúdo ou desimples forma. A questão da unanimidade sentimental não incide sobre o apresentado ou sobre as formas da apresentação, mas sobre a
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modalidade da recepção, enquanto exigência de unanimidade. Não setrata de situar a passibilidade como um momento, mesmo breve, numprocesso de apropriação da obra; trata-se de dizer que, (e é isto quesignifica critica transcendental na obra de Kant) sem essa dimensão,somos incapazes de reconhecer uma obra de arte. É uma condição apriori, mesmo se ela jamais se evidencia, de forma perceptível, no processo psico-social.
O que é absolutamente específico da arte? O que acontece com oespaço e o tempo? Qual o beneficio com a tecno-ciência? O que acontecerá com o nosso corpo? Não poderemos abordar estes problemasno discurso da tecno-ciência, que ocorre de facto e de jure, fora destasituação, no campo bem diferente da vontade de identificação.
Passibilidade: o contrário de «impassibilidade»? Algo não vos édestinado, não se pode sentir. Sois tocados, e só em seguida osabereis. (E, pensando sabê-lo, enganar-vos-eis acerca desse «toques.)Supõe-se que os espíritos estão angustiados por não intervirem na produção do produto. É porque pensamos a presença segundo a exclusivamodalidade da intervenção dominadora. Não ser contemplativo é umaespécie de ordem implícita, a contemplação é vista como uma passividade desvalorizada.
Na obra de Kant a passibilidade não desaparece com o sublimemas torna-se uma passibilidade à falta. São justamente as belas formascom a sua destinação, o nosso próprio destino, que faltam, e o sublime possui essa espécie de pena devida à finitude da «carne», essa melancolia ontológica.
A questão que nos é posta pelas novas tecnologias quanto à sua relação com a arte é a questão do aqui e agora. O que designa «aqui»,quando se está ao telefone , diante da televisão, do receptor de um telescópio electrónico? E o «agora»? A componente «tele-» não perturbará a presença, o «aqui-agora» das formas e a sua recepção «carnal»? O que é um lugar, um momento, que não estejam ancorados no«padecer» imediato do que sucede? Estará um computador, de algumaforma, aqui e agora? Poderá chegar algo através dele? Poderá acontecer-lhe alguma coisa?
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REPRESENTAÇÃO, APRESENTAÇÃO,NÃO APRESENTÁVEL
PINTURA E REPRESENTAÇÃO POLÍTICA
Não foi só a fotografia que tornou «impossível» a profissão depintar. Dir-se-ia o mesmo dizendo que a obra de Mallarmé ou a deJoyce ripostam aos progressos do jornalismo. A «impossibilidade»vem do mundo tecno-científico do capitalismo industrial e pós-industrial. Este mundo necessita da fotografia e quase nada da pintura, domesmo modo que precisa mais do jornalismo do que da literatura.Mas sobretudo ele não é possível senão com a supressão das profissões«nobres» que pertencem a outro mundo, e com a supressão desse mesmo mundo.
A pintura conquistou a sua nobreza, foi arrumada dentro das Belas-Artes, viu reconhecer os seus direitos, quase principescos, duranteo Quattrocento. Desde então, e durante séculos, contribuiu por suaparte no cumprimento do programa metafisico e político da organização do visual e do social. A geometria óptica, a ordenação dos valorese das cores de acordo com uma hierarquia de inspiração neo-platónica,as regras de fixação dos tempos fortes da lenda religiosa ou histórica,serviram para favorecer a identificação das novas comunidades políticas, a cidade, o Estado, a nação, atribuindo-lhes o destino de tudo vere de tornar o mundo transparente (claro e distinto) à apreensão monocular. Colocados na cena perspectivista, os componentes dessas comunidades, narrativos, urbanísticos, arquitecturais, religiosos, éticos, foram ordenados sob o olhar do pintor, graças à costruzione legittima.Por sua vez, o olhar do monarca recebe, no lugar indicado pelo ponto
Publicado em inglês in Artforun, 20 (8), Abril de 1982, numa tradução de LisaLiebman , a pedido de Ingrid Sischy. Texto aqui modificado.
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de fuga, este universo assim ordenado. Expostas nas salas dos paláciosdos senhores ou do povo e nas igrejas, estas representações oferecem atodos os membros da comunidade igual possibilidade de identificar asua pertença a esse universo, como se fossem o monarca ou o pintor.A noção moderna de cultura nasce neste acesso público, caracterizadopelos seus sinais da identidade histórico-política e pela sua decifraçãocolectiva. A República anuncia-se neste «como-se-príncipe», os museusperpetuam estas funções, mas, de modo recíproco, uma vista de olhossobre as salas da House ou do Senate em Washington, da Chambre deParis, atesta que esta organização do espaço não está confinada aosquadros do museu, estrutura a representação do próprio corpo político. Vemos aqui até que ponto a disposição grega e romana dos lugarespúblicos serve de paradigma do espaço sociopolítico, mesmo fantasmático, do mesmo modo que na pintura clássica.
A fotografia conduz ao cumprimento deste programa da ordenaçãometapolítica do visual e do social. Cumpre-o nos dois sentidos da palavra: cumpre-o e põe-lhe fim. A habilidade e o saber elaborados, levados a cabo e transmitidos pelo canal das oficinas e das escolas, sãoobjectivados na máquina fotográfica. Com um pequeno «clic», o cidadão mais modesto, na sua qualidade de amador e de turista, executa oseu quadro, organiza o seu espaço de identificação, enriquece a suamemória cultural, dá a partilhar as suas prospecções. O aperfeiçoamento das máquinas contemporâneas liberta-o das preocupações dostempos de exposição, da focagem, da abertura do diafragma, da revelação. As tarefas cuja aquisição pelo pintor aprendiz, na oficina ou naescola, exige uma larga experiência (destruir os maus hábitos, instruiro olhar, a mão, o corpo, o espírito e erguê-los até à nova ordem), sãoprogramadas na máquina fotográfica, graças às suas finas capacidadesópticas, químicas, mecânicas, electrónicas. Resta ao amador a escolhada regulação e do tema. Ainda aqui ele é guiado por hábitos e conotações, mas pode libertar-se delas e procurar o inesperado. O que faz.Mais do que um reconhecimento fastidioso, a fotografia de amadortransforma-se, ao longo dos séculos, num instrumento de prospecção,de descoberta, quase de inquérito etnológico. A antiga função políticadesmultiplica-se, o etnólogo é um pintor de pequenas etnias, a comunidade tem menor necessidade de se identificar com o seu príncipe, como seu centro, do que explorar os seus confins. Os fotógrafos amadoresfazem experiências ligeiras, produzem documentos.
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Os pintores já tinham empreendido o trabalho de documentação(Courbet e Manet por exemplo), mas depressa foram derrotados. Osseus processos não eram competit ivos: lentidão da formação profissional, custo dos materiais, extensão do tempo de fabricação, objectos demanutenção dificil, ou seja, um grande custo global em relação aocusto global bastante mínimo de uma fotografia . Com esta última, oready made industrial leva a melhor . Duchamp conclui que já ultrapassámos a época de pintar. Os que persistem vêem-se confrontadoscom o desafio da fotografia. Alinham na dialéctica das vanguardas.Esta dialéctica negativa tem por objecto a questão: o que é a pintura?e por competência a refutação do que foi feito ou acaba de ser feito:não , isto também não era indispensável para a pintura. Esta últimatransforma-se numa actividade filosófica: as regras da formação dasimagens pictóricas não estão já enunciadas e prontas para serem aplicadas. A pintura tem sobretudo por regra procurar essas regras de formação das imagens pictóricas, do mesmo modo que a filosofia procura as regras das frases filosóficas .
Deste modo as vanguardas separam-se do público. Este último manuseia aparelhos fotográficos bem regulados e folheia ilustrações «adequadas» (inclusivamente no cinema). Está convencido de que é necessário acabar o programa da perspectiva artificial e não percebe que seja preciso um ano para desenhar um quadrado branco, ou seja, nãorepresentar nada (se é que existe algo não representável).
FOTOGRAFIA E TECNO-CI~NCIA INDUSTRIAL
A fotografia ocupou deste modo o campo aberto pela estética clássica das imagens, a estética do belo. Ela recorre a ele como a pinturaclássica recorre a um gosto: uma espécie de sentido comum deve, emprincípio encontrar um acordo quanto ao prazer desinteressado produzido por uma imagem diante da qual a sensibilidade para com as formas e as cores por um lado, e a faculdade da organização racional (oentendimento) por outro, se encontram em livre harmonia. Todavia, anatureza deste acordo é modificada profundamente na fotografia, como em qualquer campo dos objectos estéticos do mundo tecno-científico capitalista. Kant insistia sobre o facto do acordo ter que permanecer livre, ou seja que não seja, a priori, regulamentado por leis. A in-
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trodução massiva das tecno-ciências industriais e pós-industriais, daqual a fotografia é apenas um aspecto, significa obviamente a programação minuciosa, por meio de processos ópticos, químicos, fotoelectrónicos, da fabricação de belas imagens. O indeterminado, porquenão permite a previsão , deverá ser o eliminado ou, pelo menos, confinado às capacidades do aparelho e com ele, o sentimento. O artista,obviamente e como sempre, joga com estes constrangimentos. No entanto, o destinatário comum das belas fotografias nem sempre é umsujeito sensível que inventa uma futura comunidade de gostos , é o destinatário de produtos acabados, nos quais deve reconhecer a perfeiçãodos processos que os determinam. A fotografia não recorre ao belo dosentimento, mas ao belo de entendimento e de conotação. Possui a infalibilidade do que é perfeitamente programado, a sua beleza é a doVoyager II.
A perda de aura é o aspecto negativo desta rigidez, do hardwareimplicado na fabricação do aparelho que produz a fotografia . Restaao amador a escolha do tema e das regulações, mas a maneira é a dofabricante, ou seja, um estado na tecno-ciência industrial. A experiência é constituída por esta massa de afecto, de projectos e de recordações que devem morrer e nascer para que um tema obtenha a expressão do que deveras é. A fotografia, enquanto obra, não tem quase nada a ver com esta experiência . Deve praticamente tudo à experiênciados laboratórios de pesquisa industrial. Enquanto resultado, não é bela, mas demasiado bela. No entanto, algo nos é indicado com este demasiado , um infinito, o qual não é o indeterminado de um sentimentomas a realização infinita das ciências, das técnicas e do capitalismo.A definição das realidades é adiada indefinidamente, pelo constanteatraso das análises e pela invenção das axiomáticas; a performatividade dos instrumentos é, por princípio, sujeita à obsolência, devido aosefeitos incessantes das pesquisas fundamentais sobre as tecnologias; arealização das mais-valias capitalistas exige a reformulação perpétuadas mercadorias e a abertura de novos mercados. A rigidez do belo industrial possui, nela própria, o infinito das razões tecno-científicas eeconómicas.
A destruição da experiência de que ela é sinal não é devida simplesmente à entrada do «bem concebido» no campo estético. Parar aquiseria dar crédito a uma epistemologia e sociologia positivistas. A ciência, a técnica e o capital, mesmo no seu estilo matter of fact, todos
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são modos de actualização do infinito dos conceitos. Saber tudo, poder tudo, são horizontes, e os horizontes estendem-se ao infinito.É este infinito que se apresenta, paradoxalmente, ready made nos saberes estabelecidos, nos aparelhos e nas armas em uso, nos capitais investidos e nas mercadorias, e nas fotografias . Apresenta-se como aquilo que nesses objectos os determina, ou seja o que lhes dá a sua perfeição e anuncia a sua destruição.
É assim que a fotografia de amador, a qual à primeira vista não émuito mais que a consumação das capacidades de imagens contidas noaparelho, é também, na dialéctica infinita dos conceitos em curso derealização, a consumação de um estado dos objectos e dos acontecimentos; e que recorre já a um novo estado . O amador está, deste modo, ao serviço das experimentações feitas pelos laboratórios e comandadas pelos bancos . O fim da experiência é, sem dúvida, o fim do infinito subjectivo, mas, enquanto momento negativo de dialéctica da pesquisa, ela é a concretização de um infinito anónimo que organiza e desorganiza o mundo sem parar, e cujo sujeito individual, independentemente do seu nível na hierarquia social, é o servo voluntário ou involuntário.
Segue-se que a a definição da boa imagem fotográfica , inicialmenteligada às regras da perspectiva artificial, está sujeita a revisão. A fotografia também entra no campo aberto pelas pesquisa infinitas. A suafunção inicial, herdada da tarefa de identificação atribuída à pinturapelo Quattrocento, cai em desuso, tal como a preocupação principalda identificação da comunidade por ela própria. No estado actual dastecno-ciências e do capital acumulado nos países desenvolvidos, a identificação da comunidade por ela própria não necessita da adesão dosespíritos, não depende de grandes ideologias partilhadas, acontece pelamediação do conjunto dos bens e dos serviços trocados a um ritmoprodigioso, do equivalente geral destas trocas representado pelo dinheiro e do pressuposto absoluto deste equivalente que é a linguagem.No alvor do século XXI a pesquisa de conhecimentos, de tecnologias ede investimentos, debruça-se também sobre as linguagens. A funçãotradicional da instituição política sofre um deslocamento. Tem menoso objectivo de encarnar a Ideia da comunidade, está mais virada paraa gestão das pesquisas infinitas de conhecimento, de habilidade e de riqueza. Neste movimento geral, a fotografia liberta-se das responsabilidades de identificação ideológica que tinha herdado da tradição pict ó-
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rica e passa ela também a dar lugar a pesquisas. A arte fotográficaaparece e é exercida conjuntamente por investigadores e artistas, comoas outras artes industriais. Já deixamos de lamentar a «reproductabilidade técnica» das obras, sabemos que a indústria não significa o fimdas artes, mas sim a sua mutação. A questão: «o que é a fotografia? »conduz estes ensaios para uma dialéctica comparável com aquela dasvanguardas pictóricas, que eu entendo negativa.
A APOSTA DAS VANGUARDAS PICTÓRICAS
Estas últimas, confrontadas com a inanidade (epomposa», «arteoficial») da profissão de pintor numa comunidade sem príncipe nempovo, viram-se para uma questão: «o que é a pintura?». Uma apósoutra, as pressuposições implicadas pelo exercício da profissão sãosubmetidas a ensaio e a contestação: o tom local, a perspectiva linear,o que é devolvido dos valores, o quadro, os formatos, a ocultação dosuporte pela cobertura completa da superfície, o médium, o instrumento, o lugar de exposição e muitos outros pressupostos ainda, são interrogados plasticamente pelas diversas vanguardas. Os «pintores modernos» descobrem que devem formar imagens que a fotografia não podeapresentar, pelo facto desses mesmos pressupostos interrogados e descobertos pela sua pesquisa serem os que regem a fabricação dos aparelhos fotográficos e que, na indústria fotográfica, servem para definir oresultado ideal, a «boa fotografia». Descobrem que devem apresentaralgo que não é apresentável, de acordo com a «construção legítima».Começam a subverter os pretensos «dados» visuais, de modo a tornarvisível o facto de o que o campo visual esconde e exige invisíveis, quenão depende apenas do olhar (do príncipe), mas do espírito (vagabundo).
Fazem deste modo entrar a pintura no campo aberto pela estéticado sublime . Esta não é regulada pelo gosto. Este gosto é um prazerdesinteressado, partilhável em princípio, procedente do livre acordoentre a faculdade de conceber um «objecto» e a de apresentar, no sensível, um exemplo desse objecto. A pintura de vanguarda escapa, porhipótese, à estética do belo, não recorre através das suas obras ao«senso comum» de um prazer partilhado. Estas obras parecem, ao público com gosto, como «monstros», objectos «disformes», entidades
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puramente «negativas» (utilizo conscientemente os termos de Kantquando este caracteriza as ocasiões que suscitam o sentimento sublime). Quando procuramos apresentar que existe algo que não é apresentável, é necessário martirizar a apresentação. Isto significa que ospintores e o público, entre outros, não dispõem de símbolos estabelecidos, de figuras ou de formas plásticas, os quais permitiriam significare perceber que se trata, na obra, de Ideias da razão ou da imaginação,como foi o caso na pintura cristã romana. Não pode haver, no mundotecno-científico e industrial, símbolos estáveis do bem, do justo, doverdadeiro, do infinito, etc. São estes «realismos», - os quais são, narealidade, academismos burgueses no fim do século XIX , socialistas enacional-socialistas durante o século XX - que tentam reconstituirsimbólicas, oferecer ao público obras que este poderá saborear e dian te das quais se poderá identificar com Imagens (raça, socialismo, nação, etc.), Sabemos que este esforço sempre exigiu a eliminação dasvanguardas. Estas levam a cabo um trabalho secreto de interrogaçãodos pressupostos «técnicos» da pintura, os quais as levam a desprezarcompletamente a função «cultural» de estabilização do gosto e deidentificação de uma comunidade, por meio de símbolos visíveis. Umpintor de vanguarda sente-se, em primeiro lugar, responsável diante dapergunta vinda da sua própria actividade: o que é a pintura? E o seutrabalho tem por objectivo essencial mostrar que existe o invisível novisual. A tarefa de «cultivar» o público vem depois.
O não apresentável é objecto de Ideia , não se pode mostrar (apresentar) um exemplo, um caso, nem mesmo um símbolo. O universonão é apresentável, a humanidade também não, tal como o fim da história, o instante, o espaço, o bem, etc. Kant fala do absoluto em geral. Porque apresentar, é relativizar, colocar em contextos e em condições de apresentação plástica, neste caso. Assim, não se pode apre sentar o absoluto. Mas podemos apresentar que existe absoluto . É uma«apresentação negativa», Kant diria também «abstracta». É nesta exigência de alusão indirecta, quase inapreensível, ao invisível no visível,que nasce, em 1912 a corrente da pintura «abstracta». O sublime é osentimento que é convocado por estas obras, e não o belo.
O sublime não é um prazer, é um prazer de dor: não conseguimosapresentar o absoluto, o que é um desprazer, sabemos no entanto quedevemos apresentá-lo, que a faculdade de sentir ou de imaginar deveprovocar o sensível (a imagem). Provocar o que a razão pode conce-
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ber, e mesmo se ela não o consegue e se por isso sofremos, sentimosum prazer puro aquando dessa tensão. Não ficamos surpreendidos porencontrar o termo sublime nos estudos de Apollinaire sobre os «pintores artistas», nos títulos de quadros e na obra de B. Newman, nos textos publicados por várias correntes vanguardistas dos anos 1960-1970.É, obviamente, uma palavra do vocabulário romântico.
As vanguardas pictóricas cumprem o romantismo, ou seja, o modernismo, o qual representa, num sentido forte e purificador (o sentido que se antevê na obra de Petrónio e Santo Agostinho), a falha daregulação entre o sensível e o inteligível. Mas, ao mesmo tempo, representam uma saída para a nostalgia romântica porque não procuram onão apresentável no mais longínquo, como uma origem ou um fimperdidos, a apresentar no tema do quadro, mas perto, na própria matéria do trabalho artístico. Baudelaire continua a ser romântico, masJoyce é-o pouco, e Gertrude Stein ainda menos. F üssli ou Caspar Friedrich são românticos, Delacroix também, Cézanne é-o menos, Delaunay ou Mondrian, quase não. Os últimos citados obedecem à vocaçãoexperimentadora (por aquilo que fazem ou, pelo menos, sempre peloque escrevem), mas obedecem sobretudo à evocação do não apresentável. O seu sublime é um sublime pouco nostálgico, virado de preferência para o infinito dos ensaios plásticos por fazer, e não para a sua representação de um absoluto que estaria perdido . A sua obra está, neste aspecto, em acordo com o mundo contemporâneo das tecno-ciênciase, ao mesmo tempo, nega-o.
Quanto ao «trans-vanguardismo» de um Bonito Oliva e às correntes similares observadas nos Estados Unidos e na Alemanha (inclusivamente o «pós-modernismo» de Jencks, no campo da arquitectura, queo leitor me fará o favor de não confundir com o que chamei de «condição pós-moderna»), é óbvio que, com o pretexto de recolher a herança das vanguardas, representa um meio para destruí-la. Esta herança só pode ser transmitida na dialéctica negativa das refutações e dossuplementos de interrogação. Querer retirar daqui algum resultado, sobretudo por adição, é parar esta dialéctica, limitar o espírito das obrasvanguardistas ao museu, encorajar o eclectismo do consumo. Misturar, numa mesma superfície, os motivos neo- ou supra-realistas e osmotivos abstractos, líricos ou conceptuais, significa que tudo tem omesmo valor porque tudo é bom para consumir. É tentar estabelecer elegitimar um novo «gosto» . Este gosto não é um gosto. O que é solici-
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tado pelo eclectismo são os hábitos do leitor de revistas, as necessidades do consumidor das imagens industriais normalizadas, é o espíritodo cliente de supermercados. Este pós-modernismo, na medida em queexerce uma forte pressão sobre os artistas, por meio das críticas, dosconservadores, dos directores de galerias e dos coleccionadores, consiste em alinhar a pesquisa pictórica com o estado de facto da «cultura»e em desresponsabilizar os artistas em relação à questão do não apresentável. Ora, esta última é, a meu ver, a única que será digna dos objectivos da vida e do pensamento do século que virá. Fazer esqueceresta questão é uma ameaça que não devemos desprezar porque promete um relaxamento da tensão entre o acto de pintar e a essência dapintura, sendo que esta tensão não cessou de motivar um dos séculosmais admiráveis da pintura ocidental. Arrasta com ela a corrupção dahonra de pintar, permanecendo intacta, apesar das piores solicitaçõesdos Estados (produzir cultura!) e do mercado (produzir dinheiro!).
O mundo tecno-científico pós-industrial não tem por principio geral ser necessário apresentar algo que não é apresentável e portantorepresentá-lo. Obedece ao princípio contrário, ou seja, que o infinito éum jogo na própria dialéctica das pesquisas. Afastar-se deste princípioseria absurdo, impraticável e reaccionário. É necessário introduzir nelea evocação do absoluto. O papel dos artistas não é o de restauraruma pretensa «realidade» que a pesquisa dos conhecimentos das técnicas e das riquezas não pára de destruir, com o objectivo de construiroutra versão, a qual será vista como mais credível, durante um certotempo e que será, por sua vez abandonada. O espírito do tempo nãoé, de modo algum , agradável, a tarefa da arte permanece a do sublimeimanente, a de fazer alusão a algo não apresentável, o que não temnada de edificante mas que se inscreve no infinito da transformaçãodas «realidades». Que isto não é feito sem angústia, sabemo-lo bem.No entanto os pintores não são responsáveis perante a questão: comopodemos nós escapar à angústia? São sim responsáveis diante da questão: o que é pintar? Por outro lado, e apesar de serem responsáveis,enquanto membros da «classe intelectual», diante da questão: comofazer com que a nossa pintura seja percebida pelos que não são artistas, não devemos confundir as duas responsabilidades.
É como se o filósofo confundisse a sua responsabilidade para como pensamento com a sua responsabilidade para com o público.A questão: como fazer com que os outros percebam o que significa
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pensar? pertence ao intelectual. O filósofo pergunta-se «apenas»: oque é pensar? O público não é necessariamente o seu interlocutor, emrelação a esta questão. De facto, esta questão coloca-o, hoje em dia,ele também, em posição de vanguarda ignorada. Ousa, por isso, falardos pintores, seus irmãos na escrita.
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A PALAVRA, O INSTANTÂNEO
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aJ~CA ~
- Terão elas alma? Que quererão?- Perguntem-lhes.- Mas fazer uma pergunta a alguém é pressupor que esse alguém
a ouve e deseja responder, que deseja ajudá-lo a saber, que deseja saber consigo, cooperar num diálogo e que, portanto, possui uma alma edeseja o bem. Se elas ouvissem a nossa pergunta não teriamos que nosperguntar se possuem uma alma e o que querem, elas diriam-no, pelosimples facto de nos poder ouvir. Será que fazemos esta pergunta anosso respeito? A pergunta, incidindo sobre o facto de terem ou nãouma alma, não pode ser-lhe feita sem aporia: será que você pode ser odestinatário de uma pergunta que incide sobre a sua capacidade emser o destinatário de uma pergunta? Ora, o que representa a alma e avontade senão essa possibilidade de ser interrogado?
- No entanto, o meio mais simples de sabê-lo é perguntar-lhes. Seobtiver uma resposta, ficará provado que, apesar do tipo de resposta,podem, de facto, ser questionadas, que desejam o bem e que possuemuma alma. Se não responderem, a pergunta será problema seu, e teráque analisá-la sem elas.
- Elas não responderam, é um facto. Fazem caretas, torcem-se,tetanizam-se, extasiam-se, alucinam-se, catatonizam-se, sufocam-se,oferecem-se e furtam-se, numa luta corporal com algo ou alguém quenão conhecemos e que, asseguro-lhe, não somos nós. Daí o embaraçoe o facto de não podermos seguir-vos, na alternativa que sugere. Jáque não nos ouvem, é pelo menos necessário que isto tudo tenha um
Extraldo do catálogo da exposição «Photographies de la Salpêtriêre» organizada poriniciativa de Franco Cagnetta na Primavera de 1980 em Veneza. Texto publicado in Furor, 4 de Outubro de 1981 em Genêve,
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sentido e que, de certo modo, elas «respondam». Resta-nos descobrirem que linguagem e a quem respondem. Ora isto não pode ser feitointeiramente sem elas. Argumentamos a seu prop6sito, será ainda necessário que cedam, mesmo involuntariamente, os documentos e testemunhos que servirão de provas para as nossas argumentações. Que falemos delas, em vez de falar com elas, assim seja, aceitámo-lo, já queé necessário falar e, se possível, dizer tudo; elas contribuirão, todavia,mal ou bem, para o avanço da nossa pesquisa, arrancar-lhes-emos asnossas provas. Precisamos de pistas.
- Imagine você, portanto, o seguinte: talvez tenham alma, talvezouçam a pergunta: mas não é a sua pergunta e não ouve a resposta;em princípio, admite que os gritos, as contracções, os delírios, as alucinações observadas durante os ataques são, de certo modo, respostas;decide então construir três coisas: a linguagem falada pelo seu corpo,a pergunta à qual respondem os seus «ataques», a natureza do que asquestiona.
- É isso, é um problema de comunicação, ou seja, de tradução.Possuem, sem dúvida, uma alma, mas de um género diferente da nossa, falam uma língua, mas corporal (até as suas palavras são como objectos), ouvem alguém mas não somos esse alguém. Temos que estabelecer o que querem. Registamo-las de todas as maneiras, como se fossem extraterrestres. Fixamos os seus gestos. Verá que decifraremostambém o seu idioma e, por fim, falar-nos-ão. Quererão saber, tal como nós, Entrarão na nossa comunidade. Deixará de haver histéricas.
- Você quer dizer que esse idioma estranho, estrangeiro, seráreabsorvido, e que uma língua universal permitirá a circulação e o intercâmbio de todos os significados e que será o fim da obscenidade?
- Não deve atabalhoar assim o nosso processo. Deixar-lhes-emosa singularidade do seu dialéctico. Ainda é necessário mostrar que o estertor, as atrofias, as catatonias, toda essa demência vital, dizem alguma coisa, respondem a uma pergunta qualquer. É necessário mostrarque elas ouvem. O que faremos hipnotizando-as, obrigando-as a fazero que lhes sugerimos. Isto será a prova da sua receptividade para coma linguagem.
- É uma linguagem de prescrições, não de perguntas ... Dá-lhes ordens como a aut6matos, mas estes últimos são heteromatas, já que asua alma está fora deles. Executar uma ordem, não é responder a umapergunta.
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- Estamos de acordo. A via está, no entanto, traçada. Terá apenas que imaginar o seguinte: o encadeamento das posturas que constituem a mímica do ataque obedece a um guião. Este último é-lhes ditado, elas seguem-no. Percebem assim as ordens, e executam-nas, sobreo seu corpo.
- O que acaba de dizer continua a caracterizar um autómato, nãose aproxima da sua alma. Ou então, ouse reconhecer que esta execução é uma interpretação, tal como acontece no teatro ou no cinema, eque supõe não só o entendimento das ordens, mas também a escutasubtil do que é exigido pelo guião. Ouse dizer que a alma delas habitao seu corpo e que isto s6 é possível se o corpo tiver uma alma. Quepossuem o que chamamos de talento de expressão. Que tanto o senhorquanto eu não temos esse talento e que afastamos este tipo de ensaiosexpressivos para a cena efémera, confusa e inobservável dos sonhos,onde depressa os esquecemos. Enquanto que elas, trazem-nos, faustosamente, na cena da sua pele visível (o que vos dá a possibilidade defotografá-las), indiferentes, como se fossem os artistas destinatáriosdesses instantâneos extáticos, representando para um vasto público, oqual não é constituído pelos seus assistentes, caro Doutor, nem pelosseus estudantes, nem pelo pessoal de serviço, nem sequer pelo senhorou pelos seus fotógrafos, ignorando como se fossem erros o interessesuspeito do empregado e a curiosidade meticulosa do patrão, tentandoinventar um género mais cómico do que trágico, entre o comum doprimeiro e distinto do segundo.
Nós, observadores, isentos dos trabalhos da sala de hospital, doanfiteatro e do gabinete, examinamos a colecção destas provas numarevista, um século depois. As mulheres cujas fotografias observamos,não são doentes que estão a trair ou exibir os seus sintomas. Não sãoselvagens sujeitas aos transes do divino ou do exorcismo. Não são sequer comediantes surpreendidas no momento exacto, no auge da suaprestação.
Ensinam-nos um género de teatro dos elementos corporais: a pupila pela dilatação, a ruga naso-labial pela contracção, o punho pelablocagem em posição ortogonal no antebraço, a rede muscular da faceposterior pela cãibra em arco de círculo, na nuca e nos calcanhares.Pode ser abatimento, nas letargias, ou através de tónus optimal, nosêxtases.
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Fotografamo-las para constituir o dossier da histeria, com o objectivode decifrar qual o significado destas posturas. Isto implicava o seguinte:que esses estados de corpo eram elementos semânticos e que podíamosencadeá-los, uns com os outros, com uma sintaxe. Teríamos então frases,sequências reguladas, e com elas teríamos um significado. Ora, a fotografia que deveria fazê-las falar, produz, em nós, um efeito contrário. Fixa os estados, na sua instabilidade suspendida, isola-os uns dos outros,não restitui a sintaxe que os une. Mostra-nos êxtases tensoriais.
A importância destes êxtases tensoriais para com as sintaxes corporais (do teatro tradicional ou da dança) é igual à de pequenos elementos sonoros em relação à música de composição. John Cage dizque deseja deixar ser os sons. Estas fotografias mostram o que significa deixar ser os tónus.
Ilustram, de modo quase perfeito, o que Richard Foreman exige doteatro histérico-ontológico: «Make everything dumb enough to allowwhat is really happening to happen 1.» E quando Foreman declara:
«Most art iscreated bypeople trying tomake their idea,emotion, thingimagined, be-theremore. They reinforce. I wantmy imagined to be an
occasion wherein the not-imagined-by-me can be there 2.» É como sehoje em dia percebêssemos o que desejam as pacientes de Charcot.
I Richard Foreman, Ontological-hysteric: Manifesto I, Plays and Manifestos (KateDavy, ed.), New York University Press , New York, 1976, p. 77: «Tornar tudo suficientemente mudo, para permitir que o que está realmente a acontecer. aconteça. »
2 Ibid., p. 76:«A arte é frequentementecriada porpessoas que tentamfazer com que a sua ideia ,emoção, coisaimaginada, esteja maisaqui. In-sistem. Desejariaque o meu imaginado fosse umaocasião para o não-imaginado-por-mim, poder estar presente.»
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Elas são essas «personagens» (as aspas são de Foreman: «My"characters"», cuja tarefa é identificar-se com uma consciência.
«Which (... ) doesn't SUSTAIN objects in the mind (... )
but presents and representsin every tiny quanta of timethe content 3.»
Estas fotografias são representações de apresentações quânticas deconteúdo tónico.
- Acredita que salva esses doentes, ao criar obras de arte ou artistas? (Em troca de tão grande tortura infligida à arte!).
- Eles insistem. Querem que elas digam qualquer coisa, uma cenaprimitiva, uma hipnose, um fantasma, a castração dos que as observam, o amor impossível, fazer o homem. Se todavia tiverem alma, nãoserá ao fazer um discurso (mesmo desajeitado) sujeito a discussão, será ao murmurar-gritar com Rhoda:
«Oh I'm as clear as a muscle. Oh Eleanor PAINT me 4.»
A fotografia deixa de apoiar a argumentação dos sábios, suspendea dialéctica (um instante), quadro rapidamente liberto. Apreende-me,se puderes. Mas será, ou foi, demasiado cedo ou tarde. Será possívelapreender um sotaque (um sotaque do tónus), fora da sucessão? A histeria não seria. apenas uma doença, seria, antes do mais, um ensaioontológico sobre o tempo. Ou melhor: aquilo por causa disto. A fotografia revela-o, porque é tanto uma histeria do olhar como um meiode controlo.
3 R. Foreman, Ontological-hysteric: Manifesto II, ibid., p. 138: «que não mantém oobjecto no espirito, mas apresenta e representa a matéria em cada quantum minúsculode tempo.»
4 R. Foreman, Pain(t) (1974), ibid., p, 205.
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APÓS O SUBLIME, ESTADO DA ESTÉTICA
Gostaria de fazer incidir o exame deste «estado», sobre a questãoda matéria. Darei apenas um rápido esboço do argumento.
1. Parece-me indispensável voltar à Analítica do sublime da Críticada Faculdade de Julgar, de Kant, se quisermos ter uma ideia do queestá em jogo no modernismo, na vanguarda, na pintura ou na música.Cheguei aos princípios seguintes:
Desde há um século que as artes não encaram o belo como seu objecto principal mas sim como algo que diz respeito ao sublime. Nãome refiro às correntes actuais, as quais levam a pintura, a arquitecturaou a música para os valores tradicionais do gosto: ou seja, o transvanguardismo, o neo-impressionismo, o nova subjectividade, o pós-modernismo, etc.: os neo- e os pós-o Tenho-os como resultados de umasobreposição entre duas ordens que devem permanecer afastadas, a ordem das actividades culturais e a do trabalho artístico. Cada uma delas obedece a leis específicas. Pintores ou escritores (ou músicos, etc.)têm de responder à seguinte pergunta: o que é escrever, o que é pintar? Podem, por outro lado, deparar com a procura que emana do público, real ou virtual, e que se manifesta, hoje, no mercado e na indústria culturais. Ter de pensar não é, por exemplo, a mesma coisa doque ter de ensinar. Ensinar é (ou tornou-se) uma actividade cultural seestiver, pelo menos, subordinada a uma procura vinda de uma comunidade . Não sinto nenhum desprezo em relação às actividades culturais. Podem e devem também ser cumpridas correctamente. São so-
Texto reescrito em francês a partir de uma intervenção no Colóquio «The States ofTheory» realizado na Universidade de Califórnia, Irvine, em Abril de 1987, por iniciativa do Focused Research Program in Contemporary Criticai Theory, dirigido por MurrayKrieger.
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mente todas diferentes daquilo a que chamo aqui o trabalho artístico(o pensamento inclusivamente).
2. Um dos traços essenciais salientados pela análise kantiana doSublime baseia-se no desastre sofrido pela imaginação no sentimentosublime. A imaginação é, na arquitectónica kantiana das faculdades, opoder, a faculdade da apresentação. De apresentar não só sensoria,mas também, quando a imaginação trabalha em liberdade (sem seguiras condições requeridas pelo entendimento, pela faculdade dos conceitos), com o intuito de estabelecer um conhecimento da experiência.A imaginação é, na sua própria liberdade, a faculdade de apresentardados em geral, incluindo os dados «imaginativos», digamos mesmo«criados», como o escreve Kant.
Já que qualquer apresentação consiste no «acto de dar forma» àmatéria dos dados, o desastre sofrido pela imaginação pode ser vistocomo signo de que as formas não são pertinentes para o sentimentosublime. Mas o que será feito da matéria, daí em diante, se as formasjá não estiverem presentes para a tornar apresentável? O que é feito dapresença?
3. Com o intuito de resolver este paradoxo de uma estética semformas sensíveis ou imaginativas, o pensamento kantiano orienta-separa o princípio de que uma Ideia da razão se revela ao mesmo tempoque a imaginação se mostra impotente para formar os dados. Na «situação» sublime, algo parecido com um Absoluto, um absoluto degrandeza ou de potência, se torna quase perceptível (a palavra é deKant), graças à própria falência da faculdade de apresentação. Esteabsoluto é, de acordo com a nomenclatura de Kant, o objecto de umaIdeia da razão.
4. Podemos perguntar se este deslize ou esta reviravolta da imaginação para a razão pura (teórica ou prática), dá lugar a uma estética.O principal interesse que Kant vê no sentimento sublime, é que esteconstitui o signo «estético» (negativo) de uma transcendência própria àética, a da lei moral e da liberdade. De qualquer maneira, o sublimenão pode ser o facto de uma arte humana, nem mesmo de uma natureza que estaria «em inteligência» (pela sua «escrita cifrada» -, as belas formas que propõe ao espírito), com o nosso sentimento. Pelo con-
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trário, no sublime, a natureza deixa de se dirigir a nós nessa linguagemde formas, nessas «paisagens» visuais ou sonoras provocadas pelo prazer puro do belo e que inspiram o comentário enquanto tentativa dedecifração. A natureza já não é o destinador de mensagens secretas esensíveis, cuja imaginação é o destinatário. A natureza é «utilizada»,«explorada» pelo espírito de acordo com uma finalidade que não é asua (a da natureza) e que nem sequer é a finalidade sem fim implicadano prazer do belo.
Kant escreve que o sublime é um Geistesgefühl, um sentimento doespírito, enquanto que o belo é um sentimento originado por uma«concordância» entre a natureza e o espírito, ou seja, transcrito naeconomia kantiana das faculdades, entre a imaginação e o entendimento. Este casamento ou, pelo menos, este noivado próprio do belo, équebrado pelo sublime. A Ideia, nomeadamente a Ideia da razão purae prática, a Lei e liberdade, assinala-se numa quase percepção no próprio interior do quebrar da imaginação, e, portanto em favor de umafalta ou até de um desaparecimento da natureza assim entendida.O Getstesgefühl, o sentimento do espírito, significa que o espírito temfalta de natureza, que a natureza lhe faz falta. Apenas se sente a sipróprio. Assim, o sublime não é mais do que o anúncio sacrificial daética no campo estético. Sacrifício porque a natureza imaginativa (noespírito e fora dele) deve ser sacrificada no interesse da razão prática(o que não acontece sem problemas específicos, no que diz respeito àavaliação ética do sentimento sublime). Anuncia-se, deste modo, o fimda estética, o fim do belo, em nome da destinação final do espírito, ouseja a liberdade.
5. A partir destas breves considerações, coloca-se a seguinte questão: o que advém de uma arte, pintura ou música, de uma arte e nãode uma prática moral, no meio de tal desastre? O que poderá ser deuma arte que deve operar não só sem conceito determinante (como omostrou a Analítica do belo), mas também sem forma espontânea,sem forma livre, como acontece no caso do gosto? O que se joga, parao espírito, quando este é confrontado à apresentação (o que é o casode todas as artes), parecendo a própria apresentação impossível?
6. Temos, creio eu, uma vantagem sobre Kant (é apenas uma questão cronológica), ao dispormos das experiências e dos ensaios feitos
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pelos pintores e músicos ocidentais desde há dois séculos. Seria arrogante e estúpido pretender atribuir um só sentido ao desdobramentosuperabundante das tentativas realizadas durante esse espaço de tempo, no campo visual e sonoro. Desejo isolar, no entanto, um pontoque me parece grandemente pertinente e esclarecedor, na hipótese herdada da análise kantiana, a do sem-forma. Este ponto diz precisamente respeito à matéria, quero dizer: a matéria das artes, ou seja, também, a presença.
7. É uma pressuposição, mesmo um preconceito, uma atitude readymade, pelo menos no pensamento ocidental, há já dois milénios, pensarque o processo de arte deva ser cumprido segundo a realização de um relacionamento entre uma matéria e uma forma . Este preconceito permanece activo na própria análise de Kant. Assim, o que é garante da purezado gosto, o que subtrai o prazer estético à acção de interesses empíricos ,de preferências «patológicas», e à satisfação de motivações particularesé, segundo Kant, a consideração da forma única, a indiferença em relação à qualidade ou ao poder exclusivamente material dos dados sensíveisou mesmo imaginativos. Goste-se de uma flor por causa da sua cor ou deuma sonoridade pelo seu timbre, encontramo-nos numa situação similarà de escolher uma refeição em vez de outra: é uma questão de idiossincrasia. Este tipo de prazer empírico não pode vir a ser partilhado universalmente. Que, pelo contrário, tal gosto deva ser o de qualquer um, como oexige o prazer provocado pela beleza, é uma promessa que só pode basear-se na forma única do objecto que dá origem a esse prazer . A formarepresenta um caso, o caso mais simples e, talvez, o mais fundamentalentre aquilo que constitui, segundo Kant, a propriedade comum a qualquer espírito: a sua capacidade (o seu poder, a sua faculdade) para sintetizar dados, para juntar o diverso, a Mannigfaltigkeit, em geral. Ora, amatéria dos dados é representada como o que é, por excelência, diverso,instável e que se desvanece constantemente.
Tal é a base de uma estética do belo. Aquilo a que chamamos formalismo é, sem dúvida , a última tentativa levada a cabo no âmbitodesta estética e que todavia elabora as próprias condições de apresentação.
8. Mutatis mutandis, encontraríamos esta mesma oposição e estamesma hierarquia no tema aristotélico da natureza enquanto arte e da
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arte enquanto natureza. A matéria é posta do lado do poder, mas deum poder concebido enquanto potencial, enquanto estado indeterminado da realidade , ao mesmo tempo que a forma, segundo o seu própriomodo de causalidade, é pensada como o acto que figura o poder material. Existe aqui um género de «concordância» que é necessário ver como uma correspondência entre um empurrão obscuro e vago (um empurrão, um crescimento, a phusis como o poder de crescer do phuein),o empurrão que é o facto da matéria, por um lado e, por outro, umapelo específico, determinante, o qual surge da forma final cujo podermaterial está à espera. Este vasto dispositivo metafisico é colocado sobo regime do princípio de finalidade .
9. Já que a ideia de uma concordância natural entre a matéria e aforma está em declínio, declínio este já implícito na análise kantianado sublime (e que foi alternadamente escondido e revelado pela estética durante um século), a aposta das artes, sobretudo da pintura e damúsica, só pode ser a de aproximar a matéria: isto é, aproximar-se dapresença sem recorrer aos meios da apresentação. Podemos chegar àdeterminação de uma cor ou de um som, em termos de vibrações, consoante a altura, a duração ou a frequência . No entanto , o timbre e amatiz (e os dois termos aplicam-se, como sabemos, à qualidade das cores e das sonoridades), são precisamente o que se subtrai a esse génerode determinação .
Acontece o mesmo com as formas . Em geral, consideramos que ovalor de uma cor depende do espaço que ocupa entre as outras na superfície de um quadro. E que, deste modo, é independente da formarevestida por este último. É o problema dito da composição, trata-seportanto de um caso de comparação. Podemos dificilmente apreenderum matiz em si mesmo. Todavia, se suspendermos a actividade decomparação e de apreensão da agressividade, a mainmise (o maneipium) e a negociação, as quais são o regime do espírito , então, ao preço desta ascese (Adorno), talvez não seja impossível tornar-se disponível à invasão de matizes e passível ao timbre.
Matiz e timbre são diferenças pouco perceptíveis entre sons e cores,os quais são aliás idênticos, pela determinação dos seus parâmetros físicos. Esta diferença pode ser devida, por exemplo, ao modo pelo qualsão obtidas a mesma nota a partir de um violino, de um piano ou deuma flauta e a mesma cor, conforme for obtida com pastel, óleo ou
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aguarela. O matiz e o timbre são o que difere, nos dois sentidos dotermo, o que faz a diferença entre a nota do piano e a mesma nota tocada por uma flauta, o que portanto diferencia também a identificação dessa nota.
No interior do espaço muito reduzido ocupado por uma nota ouuma cor no contínuum sonoro ou cromático e que corresponde à fichade identificação da nota ou da cor, o timbre e o matiz introduzem umgénero de infinidade, a indeterminação das harmónicas, no seio doâmbito determinado por essa identidade. Matiz ou timbre são o quedesanima e desespera o recorte exacto e, por acréscimo, a composiçãoclara dos sons e das cores, de acordo com as escalas graduadas e ostemperamentos harmónicos.
Segundo este aspecto da matéria, é necessário dizer que ela deve serimaterial. Imaterial, se a encararmos sob o regime da receptividade ouda inteligência. Porque as formas e os conceitos são constituídos porobjectos que pro-duzem dados apreensíveis pela sensibilidade e inteligíveis pelo entendimento, encontros concordantes com as faculdades, ascapacidades do espírito. A matéria de que estou a falar é «imaterial»,an-objectável, já que só pode «acontecer» ou ocorrer pelo preço dasuspensão desses poderes activos do espírito. Diria que os suspende,pelo menos durante um «instante». No entanto, esse instante, por suavez, não pode ser contado, já que para contar esse tempo, mesmo sendo tempo de um instante, o espírito deve estar activo. É portanto necessário sugerir que poderia existir um estado de espírito sujeito à«presença» (uma presença que não está, de modo algum, presente nosentido do aqui e agora, ou seja o que é designado pelas deícticas daapresentação), num estado de espírito sem espírito, o qual é requisitado pelo espírito, não para que a matéria seja notada, concebida, dadaou apreendida, mas para que haja qualquer coisa. E, digo matéria para designar o que há, esse quod, porque essa presença, na ausência doespírito activo é e não é timbre, tom, matiz, numa ou noutra disposição da sensibilidade, num ou noutro dos sensoria, numa ou noutrapassibilidade, pela qual o espírito é acessível ao acontecimento material e se sente «tocado»: qualidade singular, incomparável - inesquecível e imediatamente esquecida - da textura de uma pele ou de umamadeira, da fragrância de um aroma, do sabor de uma secreção ou deuma carne e, obviamente, de um timbre ou de um matiz. Todos estestermos actuam em intercâmbio. Designam todos os acontecimentos de
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uma paixão, de um sofrimento para o qual o espírito não estava preparado, que o desampara e do qual apenas conserva o sentimento, aangústia e o júbilo de uma dívida obscura.
10. Numa das suas cartas, Cézanne escreve: «A forma é acabadaquando a cor chega à perfeição .» O que está assim em jogo, na tarefade pintar não é, de modo algum, cobrir (color tem a mesma raiz quece/are, ocultar, esconder) o suporte, ao preencher uma forma anteriormente desenhada com um material cromático. A aposta é, pelo contrário, começar ou tentar começar, aplicando um «primeiro» toque decor, deixar chegar outro e outro matiz, deixando-os associar-se segundo uma,exigência que é a sua e que deve ser sentida, não ser dominada . Encontramos uma apreciação análoga numa nota de Matisse acerca de uma grande peça de papel feita com aguarelas e colagens, chamada Mémoire d'Océanie, a qual se encontra no Museu de Arte Moderna, de Nova Iorque. É igualmente óbvio que, de Debussy a Boulez,Cage ou Nono, passando por Webern ou Varese, a atenção dos músicos modernos está virada para essa passibilidade secreta em relação aotimbre sonoro. É ela também que dá a sua importância ao jazz e àmúsica electrónica. Os músicos têm acesso a um contínuum infinito dematizes sonoros, com os gongs e, em geral , com todas as percussões eos sintetizadores . Além do mais, penso que seria necessário reconsiderar, sob este aspecto, o da matéria imaterial, algumas obras minimalistas ou «pobres» e certas obras ditas expressionistas, abstractas ou não(penso nalgumas peças do grupo Cobra).
11. Este interesse em relação à matéria comporta um paradoxo.A matéria, assim alegada, é algo não finalizado, sem destino. Não é,de modo algum, um material cuja função seria preencher uma forma eactualizá-la, Seria necessário dizer que, encarada deste modo, a matéria seria essencialmente o que não é dirigido, o que não se dirige ao espírito (o qual não entra, de modo algum, na pragmática da destinaçãocomunicacional e teleológica).
O paradoxo da arte «após o sublime», é que esta se vira para umacoisa que não se vira para o espírito, que deseja uma coisa ou que estácontra algo que não lhe quer nada. Após o sublime, encontramo-nosapós o querer. Sob o nome de matéria eu entendo a Coisa. A Coisanão espera ser destinada a algo, não espera nada, não recorre ao espí-
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rito. De que modo pode o espírito situar-se e estabelecer urna relaçãocom algo que se subtrai a qualquer ligação?
É o destino ou a destinação do espírito questionar (corno acabo defazer). E questionar, é tentar estabelecer a relação entre alguma coisa eoutra coisa. A matéria não questiona o espírito, não precisa dele, existe, ou melhor, insiste, existe «antes» da questão e da resposta, «fora»delas. Ela é a presença enquanto algo não apresentável ao espírito,sempre liberta da sua influência. Não se presta ao diálogo, nem à dialéctica.
12. Podemos encontrar algo análogo à matéria na própria ordemde pensamento? Haverá um matéria de pensamento, um matiz, urnacomplexão, um timbre que actua sobre o pensamento corno um acontecimento e que o desampara, analogicamente ao que descrevi na ordem sensorial? Talvez seja aqui necessário alegar as palavras. Talvezas próprias palavras sejam, no canto mais secreto do pensamento, oseu matéria, o seu timbre, o seu matiz, ou seja, o que ela não consegue pensar. As palavras «dizem», soam, tocam sempre antes do pensamento. As palavras «dizem» sempre algo diferente do que é significado pelo pensamento, do que este quer significar, dando-lhes forma . Aspalavras não querem nada. São o «não querer», o «não-senso» dopensamento, a sua massa. São inumeráveis tal corno os matizes de umcontínuo colorido ou sonoro. São sempre mais velhas do que ele. Podemos serniologizá-las, filologizá-las do mesmo modo que se cromatizam os matizes e que se gradualizam os timbres. Mas, tal corno ostimbres e os matizes, estão sempre a nascer. O pensamento tenta arrumá-las, acomodá-las, controlá-las e manipulá-las. Mas, corno são aomesmo tempo idosas e crianças, as palavras não são obedientes. Escrever, corno pensava Gertrude Stein, é respeitar a sua candura e a suavelhice, corno Cézanne ou Karel Appel respeitam as cores.
13. Deste ponto de vista , a teoria, a teoria estética, parece ou pareceu ser a tentativa pela qual o espírito tenta livrar-se das palavras, damatéria que representam e, por fim, da matéria pura e simples. Felizmente, esta tentativa não pode ter êxito. Da Coisa não nos desembaraçamos. Sempre esquecida, é inesquecível.
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CONSERVAÇÃO E COR
Falarei apenas do museu de pintura, do que chamamos pintura. Isto é, dos pigmenta enquanto pieta . Da cor, posta , disposta, proposta,exposta . E, no museu, re-posta, ou colocada de uma vez por todas, jáe ainda colocada e por colocar, diz-se: conservada. Com esta conotação do servare latino, de conservar, manter, permanecer e fazer permanecer . A conservação enquanto manutenção infinita.
Manter e conservar a cor representa uma estranha obstinação oudestinação. Isto tem a ver com o tempo. A cor posta não «passará»,pertencerá sempre ao agora. Eis o princípio.
Podemos pensar que esta condição, mais exigência do que situação,é comum a qualquer empreendimento de conservação é a presunção,não de qualquer memória (a qual transborda largamente e insidiosamente, sabemo-lo, quero dizer por fora, mas também por dentro, a intensão de recordar) - mas podemos acreditar que esta exigência é pelo menos comum a qualquer memorização, voluntária ou intencional.Esta não existindo sem a inscrição da coisa a manter fora do esquecimento.
«Inscrição» significa que a coisa pode passar, não pode não passar,permanecendo ali todavia os sinais que mostram que existiu . E, quando dizemos que «permanecem ali», pressupomos com este «ali» a salvação que qualquer memorização espera do espaço. Eis o argumentoem que se baseia a pretensa «Refutação» que Kant opõe ao idealismo,na primeira Critica. Pressupomos esse servare, esse salvare da inscrição ou subentendê-mo-lo. A grafia, a gravura, quaisquer que sejam,são provas de que a coisa existiu. O quadro no museu já não é por
Texto de uma intervenção no Colóquio «Musêe/ Mêmorial» organizado pela Bibliothêque publique d'information e pelo College international de philosophie, por iniciativade Jean-Louis Déotte em Outubro de 1986 no Centro Georges-Pompidou,
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certo o «mesmo quadro», como dizemos, a «mesma coisa» , assim pensamos nós, nós todos, inimigos e amigos do museu. É a marca da suapresença passada, é signo, signo mnésico no sentido do seu estado supostamente inicial, digamos, o seu estado de aparição.
Todo o espaço de exposição se torna o resto de um tempo; todosos lugares, aqui, dos indíces de outras vezes para o outrora; o olhar,agora, do observador, do visitante, sobre a cor, transforma esta últimano sinal da cor que j á foi, na sua posição ou na sua colocação no início da obra, aquando da operação do opus. E parece-nos que isto sepode dizer de qualquer obra, uma casa, uma vila, uma paisagem ouum livro. A exposição, diz J .-L. Déotte, submerge qualquer posição.O espaço trabalhado é um memorando, inclusivamente o espaço colorido .
É neste pressuposto ou subentendido, segundo o qual o espaçoconserva (conservação que apenas se faz ao converter a coisa em sinalou substituindo pelo seu arquivo), que se apoia, devem recordá-lo, acondenação pronunciada por Platão contra a escrita, na Fedra. A grafia é uma mnemotécnica. Transcreve-nos o que então foi dito e pensado. Mantém e conserva o diálogo consigo própria, diálogo este que é opensamento, fá-lo chegar à posteridade e, no entanto, desarma-o, enfraquece a sua vivacidade . A escrita entrega aos leitores, aos seus espíritos, um pensamento privado da faculdade, ou melhor, da sua actualidade de retornar, de re-começar, de interrogar de novo, de acolher aquestão nua e crua, de deixar lugar ao vazio que ainda não foi pensado. A tradição, pela inscrição, trai o que conserva. O tempo da transmissão é um tempo morto, o de uma repetição do mesmo, através dosmomentos, que não distingue o acontecimento . Na obra de Bergson, éainda esta pressuposição, apenas deslocada, que regula a oposição dotempo espacializado com a duração viva.
Muitas outras acusações feitas contra o museu encontram a suaorigem nesta pressuposição. Diz-se que é apenas um aparelho mnemotécnico. As obras ali expostas mudam, estão desafectadas, exangues .Já não valem por si próprias, na sua presença, valem enquanto sinaisde uma vida perdida e, ainda, talvez sobretudo, enquanto testemunhosdo poder de conservar, o qual está muito actual e presente . Do poderdos conservadores. No fim, e de acordo com esta lógica, o museuexpõe-se a si próprio como uma obra de conservação. Obra de conservação das obras. A «cor» do museu de arte, o seu timbre, o seu tom,
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o seu clima, exercem a sua hegemonia sobre as cores postas e compostas nas obras pintadas. A primeira obtém-se pela composição das segundas. Os artistas passam a estar ao serviço dos conservadores. Precisamente aqui, na nossa reunião de trabalho, a ausência dos artistas,como Buren mo assinalou após ter lido o nosso programa, testemunhaa favor desta necrose. A morte agarra o vivo.
Poderíamos pensar que se trata «simplesmente», por assim dizer,de uma mudança de enquadramento ou de escala, o que Buren também criticou desde há quinze anos (penso num dos seus primeiros textos, Limites Critiques, datado de 1970). O museu de pintura é, ele próprio, uma obra plástica. Não é, no entanto, um simples aumento doenquadramento ou da escala, é também uma transformação decisivada destinação da obra, pelo menos aos olhos de Buren. Isto porque aobra do museu tem por finalidade a conservação, a manutenção e oaspecto, a mnemotécnica portanto. Se seguirmos a hipótese inicial deBuren, da obra pintada, isso não se verifica . A obra é viva, pontual,isto é, momentânea e situada. De acordo com esta aproximação, diriaque ela é essencialmente gasto em vez de reserva, que se ela se expõe émais à incerteza do seu futuro que à sua concessão perpétua no património cultural.
Há ou houve, na polémica de Buren em relação à conservação, adepuração do motivo propriamente platónico da vida das obras .O termo de conservação, que se encara no sentido de manutenção,mnemotécnica, significa também o seu contrário, uma atitude do sentido exposto sem fim ao acontecimento, à questão, à repetição, à recomposição da manutenção do tema, como no Entretien Infini, deBlanchot.
E, se avançarmos um pouco mais nesta direcção, não poderemoscontentar-nos com o princípio da obra dita «aberta», é a própria noção de obra, enquanto colecção e atitude, do quadro pintado enquantoposição e composição acabada de cores, por exemplo, que devemosquestionar. Dentro de tal problemática, baseada, digo, repito e insisto,na pressuposição de que o primeiro gesto, o live ou a «presença», sópode gastar-se e «passar», como uma cor «passa», quando é retido,reservado e conservado - e, por causa dessa mesma reserva - nestaproblemática, a instituição do museu parece ter de ser condenada semapelo. Simplesmente porque é, por excelência, a obra inacabada, aobra na qual as obras se consomem.
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Para nos assegurarmos de que esta problemática platónica e completamente metafísica está sempre activa e viva, basta-nos ler a refiexão suscitada pela arte fotográfica (guarda a coisa viva, mas mata-a)ou observar a preferência dada pelos media à difusão «em directo» e àgravação Iive (os nomes falam), em relação aos records, ou seja ao diferido.
Nós, filósofos, adquirimos o hábito, há vários anos, de esqueceresse preconceito. De fazer a crítica do «primeiro rebento», da origem,da vida, a qual é também a crítica do acto, da actualidade e do agora ... Ao mostrar que estamos sempre e em todo o lado, diante de algodiferido. Esta crítica chama-se «gramatologia», quando salienta quenada existe a não ser o que está inscrito, «escrito», no sentido dadopor Derrida à escrita. Por outro lado e utilizando a teoria de Deleuze,não existe diferença que não pressuponha a repetição. Uma ontologiado diferido possui, necessariamente, a confissão da inscrição sempreexistente da pré-inscrição revelada em seguida e do luto da presença.
Qualquer voz, VOX, é, desde a Bíblia, o nome dado à actualidadepura do acontecimento, chega até nós gravada, fenomenalizada, formada e informada, nem que seja apenas no tecido das instâncias espacio-temporais, nas «formas da sensibilidade», aqui e além, ainda não ejá não, etc. Sem falar dos significados pré-inscritos na «língua» faladapela voz.
Platão escreveu os seus diálogos no sentido trivial da escrita. Mas,se uma obra de linguagem tivesse permanecido por escrever, teria sido,pelo menos, inscrita na própria tradição oral dos jograis, dos contadores, tradição que não possui menos técnica do que a grafia, apesar dediferente. A universalização da ideia de escrita proíbe a separação entre o acto e a sua passagem à reserva, o vivo e o morto, a obra e a suaconservação, o génio e a técnica. Nas suas pesquisas, no Colégio Internacional de Filosofia, sobre o que chamamos de novas tecnologias e assuas relações com o que chamamos de cultura, Bernard Stiegler revêde trás para a frente a crítica do preconceito hostil à arquivologia.A cultura (mesmo arcaica) não existe se não for apoiada por uma técnica, sendo a cultura sempre transmissão (quer opere pela tradição,pela escola ou pelos media), a transmissão que exige sempre a inscrição. Uma coisa é cultural porque é exposta, ou seja, inscrita ou «escrita». Stiegler quer mostrar que, pelo contrário, qualquer técnica, enquanto inscrição, representa uma memorização ou uma conservação e
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que está bem longe de ser um meio acrescentado para assegurar atransmissão e a conservação de obras espontâneas. E, obviamente, nãopensa deste modo confundir todos os géneros de tecnologias. Mas exige, pelo menos, que os novos géneros ou «novas tecnologias», deixemde ser consideradas, como o são frequentemente, como novos meiosaplicados a obras inalteradas na sua essência.
Creio poder dizer em seu nome que, pelo contrário, é a própria relação do espírito com o tempo e o espaço que fica deslocada e istodesde a operação, desde o opus. Para seguir esta orientação devemosaceitar, sem repugnância, instituição museu, já que a conservação nosentido de manutenção já não deve ser atribuída unicamente à memorização voluntária. Não devemos temer que tenha lugar (e momento) oarquivo das obras, das obras pintadas em particular, isto se for verdade que qualquer obra já é necessariamente um arquivo, uma organização espaço-temporal, de algum modo «bloqueada», para permitir a repetição e a transmissão. Deleuze diz «territorializada». Sabe, no entanto, que a territorialidade pode «provocar um movimento de desterritorialização absoluta» e «deixar de ser terrestre para se tornar cósmica»(Mille Plateaux, pp. 341-433).
O que podemos temer é que o museu despreze os modos de inscrição e de organização do espaço e do tempo representados pelas novastecnologias, no preciso momento em que estas estão a substituir a «velha» tecnologia de escrita-gráfica, na humanidade de hoje .
E o que podemos também temer é que, seja qual for o modo técnicoque satisfaz o museu, o aspecto de arquivo e de blocagem, aquilo que euchamava «dispositivo», na exposição das obras, ultrapasse, na sua recepção ou percepção, o aspecto do diferido, de repetição, de «retorno», como diz Buren. Falaria de recepção feita ao acontecimento e, no nosso caso, deste acontecimento ontológico que a cor pode ser.
Que haja necessariamente inscrição espacial, um vestígio e uma conservação, não significa que o espírito esteja destinado à repetição e que jánão haja nada para escrever que ainda não o tenha sido. Um desesperoque reveste frequentemente, hoje em dia, o título de «novo» ou de«nêo», Não vou desenvolver mais este medo e a exigência que lhe é inerente, na concepção da função de um museu. Não se trata de depreciá-los, através do preconceito já citado, do subentendido que veicula a supremacia do tive ou, como dizem os poderes públicos, a «criação».
Para acabar, quero dizer duas palavras acerca do ponto que, a meu
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ver, é o mais importante. Parecerá talvez contradizer o que acabo dedizer. Não creio, no entanto, que isso aconteça.
Recordam-se de que, ao tentar mostrar ao leitor do Salon, de 1767as paisagens pintadas por Vernet, Diderot simula, pela sua escrita, quepasseia nessas paisagens com o seu amigo «Abade». Abre, por escrito,as superfícies dos quadros como se fossem as portas de uma exposição. Tal como no museu, já não são apenas os olhos, mas também oscorpos inteiros que se movem e isto já não acontece diante da disposição das cores, mas no meio delas. Cada paisagem, assim percorrida(de modo fictício), é a exposição da natureza e da cultura (a naturezaé um museu de cores), da realidade e da imagem, do volume e da superfície.
Ainda teríamos muito para dizer sobre o processo. Quero apenasutilizá-lo como testemunho do que creio ser a aposta da pintura e, talvez mais hoje em dia do que antes e outrora. Ao dizer que as paisagens são exposições, Diderot sugere também o inverso: que as exposições são paisagens. Será talvez necessário encarar a situação museológica das obras em si mesma e para si mesma, sem a trazer de volta àsituação, supostamente inicial, das obras nas oficinas dos artistas,aquando do «primeiro esboço» ou até da «primeira» imaginação sentida pelo artista. Apenas devemos convencer-nos de que não existe umafrescura originária, mas sim tantos estados de frescura quantos olharesdesarmados. Tanta presença quanto alma (Kant utiliza a palavra naterceira Crítica).
Foi para apoiar esta ideia assaz trivial, demasiado trivial, que comecei pela cor. Ao contrário das formas , e mais ainda das figuras, acor parece subtrair-se às circunstâncias do contexto, à conjuntura e,em geral, a qualquer intriga, isto pelo seu «efeito» , pelo seu poder deafectar o sentimento. Por isso, classificamo-la habitualmente na teoriaestética, ao lado da matéria ou do material. A forma (ou a figura) pode sempre, de perto ou de longe, ser apresentada numa disposição inteligível e ser, deste modo, dominada em princípio pelo espírito .A cor, no entanto, pelo facto de estar ali, parece desafiar qualquer dedução . Tal como o timbre da música, parece desafiar o espírito, desfazendo-o. É a esta defecção da capacidade de intriga que gostaria dedar o nome de alma. Longe de ser mística, é, de preferência, material.Dá lugar a uma estética de «antes» das formas. Uma estética da presença material, que é imponderável.
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Bem sei que a cor muda de acordo com a luz, as iluminações, o estado do tempo e o tempo que passa. Isto acontece porque lhe demosum nome, um lugar na matização e que este designador cria o princípio de que a cor é e deve permanecer sempre a mesma . Ora, é a suaprópria mutabilidade que a torna propicia ao desarmamento do olhar.Mudamos completamente o seu timbre, para utilizar a metáfora musical, ou a sua fragrância (como diz o inglês), em termos olfactivos, seabrimos os reposteiros do coro de San Francesco d'Arezzo, cujas paredes suportam os frescos de Piero, ou se, pelo contrário, apontamossunlights sobre estes. Não é todavia demonstrável que isto seja menos«belo», digamos menos «presente» do que a primeira hipótese.
Vi, em Montreal, pequenas paisagens de Vernet iluminadas comnéons e colocadas por detrás de vitrinas, cuja lividez assim obtida tinha imediatamente uma força de interrupção ou de interdição do espírito.
O pintor sente-se preso ou liberto por uma tonalidade. Cézannediante da sua montanha. Tenta transpô-la para o seu suporte. Fiel, sabe que não o será. Mas, o que tenta ele afinal? Tenta fazer com queesta libertação seja também sentida pelo observador (dizemos sentida àfalta de melhor), diante da cor posta e composta no quadro. Não setrata de autenticidade, a qual representa um valor mercantil.
Parece-me que a aposta de pintura, para além e no meio de todasas intrigas, as quais são as suas armas, entre as quais encontramos omuseu, é devolver a presença e exigir o desarmamento do espirito .E isto não tem nada a ver com a representação. A representação, apintura, multiplicam as intrigas, as técnicas, as teorias para frustrá-laou utilizá-la. Pertence à memória voluntária, à inteligência, ao espirito, ao que questiona e conclui. Acontece, no entanto, que um amarelo, o do Delft de Vermeer, suspenda a vontade e a int riga de um amarelo de Marcel. É a esta suspensão que gostaria de dar o nome de alma: quando o espirito é quebrado em mil pedaços (libertação) sob o«efeito» de uma cor (será verdadeiramente um efeito?) . Escreve-se, emseguida, trinta ou cem páginas, para recolher os pedaços e recomeçarassim a intriga.
Ora não vejo porque esta aposta, a única aposta da pintura, umapresença material, deveria necessariamente falhar, pelo facto do amarelo da parede estar pendurado num museu em vez de estar noutro lugar, se for verdade que a matéria cromática não deve nada ao lugar
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que pode ter (e, num certo sentid o, nunca tem) no intricado das posições sensíveis e dos significados inteligíveis. Eis a razão pela qual o caso do museu é diferente dos outros, de muitos outros; ' pelo facto deexpor a matéria cromática, a qual recorre à presença, para além da representação. Tudo o que dele esperamos é que não impeça o estado delibertação fazendo-se demasiado importante.
Por fim, para evitar a confusão, quero salientar que, quando digocor, falo de qualquer matéria pictórica, a começar pela linha. Nas velhas caligrafias japonesas, o traço feito com o pincel não produz umalinha, no sentido do desenho acabado . E, que diríamos nós das marcasde Yves Klein?
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DEUS E A MARIONETA
Eis a história que gostaria de ter contado: que a repetição se liberta
da repe!~ç.ã.º,..P.ar.a".I.e1le1iI::.§.~,~...QJ!~_ª.Q.J.entar..J.azer:...se...,esauecerIJ!~ seué.i9it~Ç.!!!J&!.1.!.?, repetindo a_s.~i~,~_~~~~ºçi!l......, -
A repetição é um problema de tempo A mÚsica também é um pro-blema de pã. ~ãmbém é um problema de matéria sonora. ôrZ--se que"'temQo music a organizacão ou o conjunto das form~
«im rimidas» (que téria sonora, no som. Ora,..e...
q'!.e.~~~~~~lz~ç~~.9.u._~.19?:rform~,.espaci~ou temporal. tem a sua rePsticão•...a.çtu,aI o.!:1,l?~~Isto porque é a fixação de um estado dematéria, através da duração e que essa fixação exige a depuraçao dá organização dos elementõs-iiiãfeiiáIs:" Diz:Sê··fâiil.õ'ém que o SOIIi.-a
própria matérià, são iii1àliSãvêis'Iióif');;eus parâmetros, na sua amplitud;, frequência, duração e ressonância. Além do mais, e tratando-se domovimento vibratório de um gás (o ar), a natureza deste movimento, e
da sua pr?pagaçãõ-impJkmnJIDDbW uI1Ja :r::'.a da oscilação ~.apeça (o bisel de uma flauta, por exemplo), [)~m a esse mQI-mento ,e; por acréscjmo...A rigidez do dispositivo de reSSlJDância..Aquia.orgaaízeçãc farma1,._mes.mo conceptual, «desce» ao coração dama---........ --_...."_.,.-téria sonora. -
Far-se-ão duas observações acerca deste ponto. Em primeiro lugar,as propriedades características de um som são, em princípio, mensuráveis, sendo tarefa da acústica e da física das vibrações determiná-lasquantitativamente. A identificação cognitiva do som exige, no entanto,que a oscilação da peça móvel que determina a amplitude, o período ea frequência do som permaneçam inalteradas durante a observação.
Texto de uma comunicação no Colóquio «Musique et répêtition» organizado emLyon, em Janeiro de 1987 pelo College international de philosophie, por iniciativa deMarie-Louise Mallet.
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o mesmo deverá acontecer com os dispositivos de ressonância, quaisquer que sejam, os quais asseguram a propagação do som . Qualquermodificação do dispositivo transforma as interferências que contribuem para a definição do som fundamental e das harmonias. A determinação das propriedades de um som exige assim uma depuração igualà das condições da sua produção.
Pelo contrário, a organização dos conjuntos de sons (assim determinados pela sua identidade), ou seja, a sua composição em formasmusicais, não obedece ao único princípio da identidade quantitativa e,portanto, da repetição idêntica. Admite e provavelmente exige a variação ou a transposição dessas formas, por intermédio de mudançasaplicadas aos elementos sonoros. Exige-o porque o prazer musical 12arece estar SlISpenso no momento da percepç~o G@ssas diferenças' o ~s
pírito desfruta do mesmo através do outro e deleita-se com a diversidade que aceita a identidade. A acústica é finalizada com o conhecimento, a mÚSica com uma certa forma de prazer. São dois «géneros»de discursos ou duas «faculdades» diferentes. Em termos kantianos,diria que a identificação exacta do som pertence ao entendimento dasua finalidade"c:og-nitiv~ que a variação da sua criação depende, -noentanto, da lmagmação, obedecendo à hnahdade, ~conceito inerente ao prarefdesinteressado que, segundo Kant, caracteriza o sentimento estético do belo. Será portanto sempre necessário distinguir a repetição determinada e determinante, que fixa a matéria sonora em propriedades distintivas para o conhecimento acústico e a repetição, digamos «livre» (o termo é kantiano) das formas de composição musicaldos sons, uns com os outros. É óbvio que ~primeira repetição é guiada por uma ideia (no sentido platónico) de um som, de aconlQ.~asuaidentídade exclusiva, en uanto nda, ao aceitar a variação e "a transposlç o, é feita «apenas» de analogias. O que origem,entre-·outras coisas, à indeterminação, neste segundo caso, d~ identida~ que é repetido, e ao facto des1à ser apenas indicada como o objecto de uma alusão feita pelas diversas ocorrências do acorde ou dafrase, e ao facto dessas ocorrências acrescentarem às outras Jluénero~uplemento d$vido à sua própria diferença, não sendo esse suplemento outra coisa a não ser a arte ou a techné (e isto é mais Aristóteles que Platão), pressupõe sempre a ausência ou a retirada da mes.J!1acoisa, isto é, do acorde ou da frase aos quais as ocorrências~. alu-são- O que quero dizer é que nenhuma destas ocorrências tem valor,
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e~tQ ~igmas, em relação às outras. ~se «àá>Ul tema deum movimento smfómco do mesmo modo que se «dá» o láde um concer o uan o se trata e a mar os instrumentos . A primeirarepetição, que é cognitiva, in uz uma metafísica das ideias, a segunda
,que é estética, induz uma ontologia do ser enquanto não-ser.
~A segunda observação é de outra ordem. ~ distinção que acabo de
fazer apoia-se, ao que parece, na oposicão entre a matéria musical (os~ submetida a condições temporais Ce espaciais) e a sua composiçãoem formas, a qual também nece . to, diferente todavia,,do tempo. Ora, esta o osi ão entre a matéria e a fo mponde a oposição entre um tempo mensurável e uma duração flexivel,é posta em causa, de acordo com o que creio saber, pela cõilSiaeraçãe.do timbre ou, melhor, do matiz de um som ou de um conjunto desons. Esta matéria parece escapar à determina ão . , istoporque filgorosamente e n o exactamente) singular: a sua qualidadedepende talvez de uma constelação de parâmetros concebiveis, mas esta constelação, a que acontece agora, não é antecipável ou previsivel.É por exemplo esta singularidade que distingue, pelo menos em parte,as diversas execuções de uma mesma obra. E, deste modo, sentimos atentação de pensar que escapa a qualquer repetição, não s6 a da constituição da identidade sonora, mas também a da possibilidade da variação formal exigida pela música. Mesmo aquilo a que chamamos(justamente) «repetição» de uma obra por um executante ou um conjunto de executantes, não consegue controlar o timbre ou a matiz que«ocorrerá», singularmente, na noite do concerto. Com o matiz. parece-.!!os que o ouvido está destinado ao incomparállel (ao que, portanto,não é repetivel) inerente ao que chamamos performance, ou seja, aoaqui e agora do som, na sua singularidade, na sua pontualidade e nofacto de !Ião se submeter, por posição, a3ualquer transferência espacio-temporal. Esta transferência s6 pode cÕnsistir Da manutenção do«mesmo» som, pela mem6ria, no---CU;;o da dura ão, mesmo que seja
.~ n o impe e que transforme Imediatamente o aqui em além, oagora em então . ~ssim, o matiz actual transforma-se num matiz acrescentado, retido, diferido, de tal modo que se transforma noutro matiz.
Sei que ~tas ideias de uma presenca pura, pontual, que faria ... emsuma, oJ?jecção à repetição tanto quantitativa (eidética) quanto alusiva{estética} - esta idei~~esença conbnua altamente problemática;
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acrescentaria, no entanto, que não é concebível, nem experimentável,impossível de se sentir, p$lo menos de acordo com asform~s~e. Por outras palavr~não eXIste sUjeIto para acrescentar asi próprio, porque o si próprio, o E , não pára de reiterar o seu poderem sintetizar os dados sensíveis aqui~ os sons), atraves do cUíSO dotempo. De que modo poderIa o que se repete de modQc~apreender o que não é repetíyel,~ng!:1ant.QJalLO matiz de uma execução niusícãl:por exemplo, pode ser sem dúvida acrescentado e, de cer-to modo, circunscrito pela sua comparação com outras execuções. Noentanto, esta comparação faz-se em seguida, num género de amostragem de matizes, bem conhecida pelo cromatologista: é a matização .O engenheiro de som conhece-a como sendo a série de registos. A tribuna das críticas de discos, habituou-nos, durante decénios, a estascomparações. Todas exigem (a matização, a colecção dos registos numa fita magnética, os discos), a inscrição do matiz num suporte espacial e a sua arquivação, Mas, o que a comparação não pode estabelecer é que tal matiz, na sua actualidade e no seu «aqui e agora» de então, possa exercer sobre tal espírito (e não sobre qualquer outro), nãosó o efeito de prazer formal, o qual é uma coisa muito diferente, mastambém o império de uma perda. Porque, se a matéria do som, o seumatiz, consegue chegar ao sujeito, é ao preço de ultrapassar ou de«sub-passar» a sua capacidade de actividade sintética. Seria uma defin~b'yiamente neiativa) da matéria: o que quebraões~ro dizer que esta matéria tão ténue que é como se fosse imaterial, senão é repetível, é porque está submetida à sua apria e, destemo o, o espírito fica despojado. privado da sua faculdade, tão estética quanto inteligente, de ligá-la, associá-la, gostaria de dize0ntrigar acerca dela e, portanto, de repeti-la de uma maneira ou deo.!!tra (metafísica ou ontológica). Q matiz, enquanto matéria não formalizada, escapa às sínteses, tanto às da a reensão como às da repro-d o almente a possi .. -- » Ji
mat~ria sensível para fins de prazer, por meio das formas, ou de conhecimento. por meio de esquemas ou de concenos. Se fiao existem S!!- _ jeitos que possam acrescentar a si próprios, isto é, aos seus poderes de_síntese, as formas sensíveis e os operadores conceptuaIS, - para lhesacrescentar este matiz, é porque a matéria sonora que esse matiz é s6está ali porQue o sujeito D!lO está ali e entao. Recordam-se que este é ; modo pelo qual Epjcuro circunscreve a morte: se ela estiver ali, eu não
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esto lá; en uanto eu estiver ali, ela não está lá. Podemos perceber esta alternativa como a eterminação de um limite. Não seria todaviasuficiente. O facto é que não representa um limite para o espírito, seria necessário que ali estivesse quando já não estivesse e que permanecesse, diferente sem dúvida, mas repetido além desse limite, para quepudesse ser um limite do espírito. O limite é ultrapassável ou franqueável. Mas, para mim, a palavra matiz significa uma transposição.Ao relembrar o texto de Epicuro, não quero dramatizar as coisas, asquais não precisam disso. Quero, pelo menos, dar a entender que, porentre as «coisas»,' apenas uma é capaz de suportar a repetição, a qualé a morte, é a matéria. A extinção do sujeito, do espelho do sujeito,da sua reflexibilidade, no sentido habitual, da sua capacidade sintéticª,mais elementar, não ocorr como um intervalo no seio da sua tempor m ue esteja destinado à sua erda. O intervalo eejS!l temporalidade são aqui eles mesmos suspensos. Digo suspensospara significar que não existe marca dessa perda, no curso activamentereflexjyo do sujeito.
Se não exist;repetição possível desse matiz, é porque não foi inscrit;;:-Aôossa decepçào ao escutar a gravação liga-se à smgulandadenão encontrável. O espírito, através das suas sínteses, não tem acesso aela. Q\@ndo digo: se ela ali estjyer O sujeito não está. quero dizer que. _
, P~ falta do sujeito, º"ª,o devemos tentar pensar a «percepção» (quepalavra!) desse matiz , como uma inscrição sobre um su or u, seencararmos este conceito e trás para a frente, que é necessário tentarpeUiar uma marca que, em vez de marcar, de «tipar» (Lacoue-Labarthe) uma superfície passível, a anulana. Nem mesmo marcaria asua ausência, como um branco; uma página branca pode assinalar umtempo morto, uma pausa, um silêncio num caderno de escritas, istoindependentemente do tipo das escritas.
Dir-se-á que, nestas condições, a própria lembrança desse «traço»não inscrito deve ser impossível e que nem existe um meio para falardele. Tal não é a minha opinião. Tal não era a de Ernst Bloch, qüãndo contava, em pequenos escritos, osSpuren, Os traços através dosquais o que não pode ser inscrito, a presença, abandona o espírito. Nasu~ tradição, todavia. não é a matéria Que cria esse abandono. m~oInominável. De modo ue osta do ensamento da presença não é,p ra Bloch, estética, mas ética ou «espmtua Não é no entantopor acaso, que esta aposta repugna utilizar o género argumentativo pa-
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ra expor - se o extrai da mais fina pena de Bloch, a escrita lacónicadaquilo que o latim popular chamava narratiunculae. A escrita , e amúsica também, procuram o que não se inscreve. Quanto à es~
gõ'Siã'na de Pcnseal o valor do rrrerixõ e para lhe dar um significado parecido com o de «garatuja» - é o velho significado da raiz scri-, -forade,~ra de qualquer suporte, qualquer dispositivo de ressonância e dereiteração, de qualquer conceito e forma pré-inscrita, mas principalmente de qualquer suporte. A matéria de gue falo, o matiz (cor-timbre), s,eria necessário imaginá-la - mas agora seria demais, seria demasiado pesado - como se fosse, ao mesmo tempo o acontecimento eaquilo ao qual acontece algo. Em primeiro Iug~haveria uma su-
- netncie (tedll ã tl8:ài~ãg, o pàtr1mónio, a mem6ria) e, em segui<:ra:em............ :---
traco que vem marcá-la. Esta marca será apenas, se for o caso , obser-vação. E, bem sei que sempre é assim, para o espirito que liga os temposa si próprios e a si-própria--tornando-se suporte de qualquer inscrição. Nãõ1'Sêria de preferência a chama. o enjgma da própria chama. Ela indica o seu suporte, destruindo-ojDesmente a sua forma. Es-capa à semelhança consigo própria. .-
Tento agora, de novo, argumentar esta evasão fora da repetiç,ã0l.tal como um professor de filosofia o faria. Em primeiro lugar, retomoo c~inho aberto por Kant, a uma fenomenologia do tempo, e portanto da música , arte do tempo. A fenomenologia é uma designaçãOexperimentada por Kant, para o que -chamará de Estética na primeiraCritica, isto . mente, a reflexão sobre o tempo . rata-se; ·nesse raciocinio, de encontrar (isto é repetitivo) a quantidade de repetição ue entra na d'escn ão da retenção mais elementar daquilo a u~Kant chama fenómeno. A este acto, ant á o nome de apreensão dofenómeno . Diz-se que ele está ali, presente, agora, .2. maintenant francês. lembra duramente o que existe de já e de ainda, de manutencão,no mais .pequeno instante. Sem a menor manutenção apreensiva, pergunta-se o que aconte~erTã:'ÃContecerta O que aconteceria simplesmente. O «diverso» do que e a~- e Kant quer sempre diz;;;um«diverso puro» quando fala da matéria, «antes» de qualquer ordenação, de qualquer forma - se este diverso não fosse retido ou mantidode alguma maneira, se não tivesse nenhum limite, por assim dizer, escaparia, elemento por elemento, s.em que enquadramento algum pudesse apree.ndê-Io em .simultâneo, nem que ,fosse para um só instante.A constituição do instante presente exige, pelo contrário, uma reten-
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~ que seja mínima, de diversos elementos em conjunto, .,g,u sej~ eXig~~nstitUiçãO». ~ta síntese microscópica já é necessâriaà meÕ&JlDarição. Pelo facto de mergulhar nó putO dIverso e de se-deixar levar, nada aparece à consciência e, aliás , nada desaparece, oacto de aparecer não tem «lugar». Este lugar é devido a uma síntese, ada apre~o que ajeita os liIJilieB de fltixe fluro e faz com que o contínuo puro do fluxo permaneça descontínuo e, ao mesmo tempo, comquea descontinuidade pura dos seus supostos elementos continue. Emsuma, é necessário existir uma margem no rio, para que este possacorrer e um observatório imóvel, para tornar o movimento aparente(veja-se que estamos na área da fenomenologia).
A apreensão re uer então, um em reendimento tem oralizador mí~. ste mínimo não é, por certo, mensurável. Na Crítica da Faculdade de Julgar, Kant diz que não é uma grandeza quantitativa que éobjecto de uma «apreensão imediata numa instituição» , que não podeser avaliada de forma matemática, já que qualquer avaliação matemática pressupõe uma «mediação fundamental», a qual é avaliada «absolutamente» e «esteticamente» (entenda-se antes de tudo, conceito denúmero). Assim, por mais magra que seja a parcela de diverso captadap a enomenolo ia ara ue ossahaver apreensão e aparição. Hyss r introduzia um tema parecido coma ideia de Retenção. (É muito difícil distinguir desta síntese apreensivaaquela a ~ama re rod . . . .. ,~
r~ que já eX1S reprodução dos elementOs do diverso para tornarpossível a sua apreensão actual. Mas não irei aqui discutir este pontoe$pinhoso da fenomenologia do tempo)
Agora, arrastados pelo demónio dos limites, perguntam-se sobre oque poderá acontecer ao seguinte paradoxo: uJ!1a pequena apreensãode diverso cujo ambitus..J.Q.rnaria a sua JIOjdade imperceptível para aconsciência, inexperimentáyel portanto (no sentido do Erfahrung fenomenológico), e que por isso faria com Que essa unidade muito pequenaficasse invisível e não aparecesse à consciência. Em suma, tempos muitQ..breves e, como tranquilamente o dizemos, muito abaixo do limiteperceptível
Por hipótese,es~ser se~uida, mas não pode ser elaborada de acordo com os pressvpostos de lima fenomenologia. HusserlQ.U Kant diriam dela que é metafísica, isto é, aporétiça. A monadologia de Leibniz é, de facto, uma maneira metafísica de a encarar.
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o que Leibniz chama de mónade não é, de certo modo, mais do queiüiia potêncía merente a uma pequena conquista de sinte~stem, mónades poderosas e outras miseráveis, Leibniz diz: «ricas» e- ---«nuas», Esta hierarquia é função da sua capacidade em sintetizar oQUe"['div~rso. Serão ricas se puderem «possuir em conjunto)) e reunir ~mlli!Qukm~nlº!L~Jsrão pobres se puderem (e, ao fim e -ao cabü-:e-sempre o que acontece) recebê-los apenas um por um. ~----
-A inscrição do «um por um» nem chega a fornecer uma paisagem.Situa-se, se assim posso dizer, no fio de uma hipótese de um puro diverso, que exclui o presente no sentido fenomenológico, assim como aaparição. E, obviamente, exclui também a paisagem. Do outro lado dahierarquia, podemos e devemos conceber uma mónade que, ao contrário, sintetiza numa intuição, como diz Kant, a totalidade dos elementos susceptiveis de serem registados (informações, se assim quiserem).
Pod~E.::~~~-á~d""iz,,":e~r7q~u::e::,:ex:.::i:.:::s:;.te:..,::te::m::p~0..:.n::a7m;:a::i:-s.;::n::;:u:;:a:...d=:e;=:-=e.:,:n.:.:tr:.:e:....e:;l;:a:.s?:.... ..:.N.:.:ã:::o~.. Istop0-Lcausa da falta do minimo de retencão do diverso. E para a ml!i~
~otada? Nem mesmo para essa, já que tudo é retido de uma vez só.Num ou noutro caso, a repetição que «faz» o tempo, de acordo com asua diferença ou o seu diferido, não está obviamente presente. O tempo do átomo, o tempo de Deus, não são os que nós (o espiritõ quesintetiza, mas não tudo) experimentamos como temporalidade. .são,um e outro, na ordem da temporalidade, dois limites inú ralidade pode pensar, e que não .ao(a9-lDesmo tempo, se assim posso dizer) nem temporais, nem tempor}llizantes. Mutatis mutandis, são como a tautologia (p é pj e a contradi-ção (p é não p), para o campo lógico: proposições que são proposi-çõe-s, mas que excluem qualquer cálculo de verdade. (É uma observa-ção de Wittgenstein).
Num espirito um pouco diferente da monadologia leibniziana, mascom alguns traços comuns, Bergson (o qual cita por vezes Leibniz enquanto testemunha) explica que se não tivermos a capacidade suficiente para reter de uma;<> vez os qu a f tpCemos mIl mIlhoes de vibrl;!&~es
po!-segundo do campo electro-magnético Que definem (aproximadamente) a banda cromática do vermelho (mas poderiamos utilizar tam--bém o caso de uma vibração sonora, apesar deste caso ser mais ou me-nos considerável pelo número de frequência, sendo assim menos pedagógico), se assim estivermos condenados a captar apenas uma vibracã.o..,....----.de cada vez, ser!..o necessáríos.cerca de vinte e cinco m~~~~para re-
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i r vermelho. Além do mais, é 6bvio que isso não fabricaria «vermelho», m quatrocentos mil milhões de abalos simples. Tal é o caso,éscreve Bergson, do ponto de vista material «puro», que Lelbmz cha~va «m6nade nua». Apesar de tudo, f~ta ao pensamento qe Bergson, salvo erro, o outro limite, uma descrjçao do tempo ou do nãcL::""-- ,---t~mpo, em que todas as cores vibram ao mesmo tempo, numa s6 fase l
s~b o olhar da m6nade riquíssima, a cor do deus.Tentemos-Triiil-iil - - -- - -------- - --5 ois limite elemento
Ill_ªterial o «diverso» de K o som. A questão é a do batlme to , _ou da OSCI ação geradora do que chamamos som. ~ara a mônadenua que s6 recebe uma impulsão de cada vez, não há síntese de suces- .são e, portanto, nenhum batimento. Apenas ouve uma s6 onda e nã; sãbe que é apenas uma onda. Diremos que esquece as ondas que jápassaram? De modo algum, tal como a bola de bilhar não esquece oschoques que recebe ao bater contra outras bolas, apesar de poder apenas restituir (segundo a lei do choque dos corpos) o choque ao qualfoi submetida em determinado instante. O que lhe faz falta para poderesquecer é a capacidade de sintetizar dois, pelo menos dois choques sucessivos, numa única conquista ou apreensão (ou intuição, para falarcomo Kant). O seu aspecto duro e polido foi concebido e realizadoprecisamente para impedir que seja marcada por uma impressão e queesta possa permanecer.
Esta impassibilidade mecânica «pura» transcrever-se-ia na ordemdas,sOOQridades, ria"'ÕCOIílU uma surdez, mas como uma impassibilkiade musical, se pelo menos aceitarmos que a música exige queOõis sonssejam e permaneçam associados ara formar--Uma figura sonora; .nã.~._
uma figura qualquer, mas sim um acor e ou uII!J?ed-ªçp _de frase. Privada do poder de compararã~~~i~e-ªas, privada do plurale, por anta, a repetição, a bola de bilhar sonora que tomaria o lugardo sujeito sintetizador perceberia apenas, podemos imaginá-lo, a matéria do som. Poderíamos diz r o seu tim re, o seu ma IZ . namossim, mas com a condição de imaginar o matiz como uma nuvem sonoraabsoluta, sem rela outra qualquer. É apenas o espírito, umam nade dotada de poderes sintéticos sup que poderia em seguida fazer uma amostragem dos matizes recebidos pela bola e reconstituir a história dos abalos sonoros.
No que diz respeito ao deus leibniziano, na outra extremidade do~~~"';'~:T:"~=7:-:;:::-:-::-==--:i::-=~---~'--'~~mpo sonoro, ele ouve todos os sons do mundo, do mundo dl~~reªl,._
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Se ele é intemporal não é por falta de retenção, mas por excesso de~íntese. O que aparece sucesSívaiTiente ao esplrIto (ao cru;ido) dos humanos Erecebido de uma só vez pelo ouvido divino . A distinção entreo horizontal e o vertical da escrita musical, a qual é impossível para amónade por falta de suporte inscritível, é impertinente para a mónadedivina por falta de espaço. Todos os batimentos pertencentes ao quechamaríamos história sonora do mundo, são recebidos como num sóacorde, o qual não tem início, nem fim, visto não estar delimitado porqualquer outro som possível. Será talvez aquilo a que chamamos músi-ca das esferas. '
Seria assim do meu agrado ouvir o Primeiro Motor aristotélico, to- l
das as fases possíveis captadas numa só fase, a qual é perpétua ou au- ~"..,••".Jtomática. A melodia é aqui excluída. Esta música celeste deverá talvezser imaginada de acordo com o modelo do ruído branco. Ou, melhorainda, de acordo com o modelo desse elemento extraordinário da ma-téria, ele próprio retido por uma atracção ou uma interacção horren - jda, imaginada, hoje em dia, pelo astrofísico, «antes» da sua explosão !num mundo e num tempo diacrónico. A música (será uma música?)ouvida por Deus é esse som no qual todas as características dos sonssão esmagadas umas contra as outras, por uma atracção, não menoshorrenda para os nossos ouvidos humanos. E, da mesma forma que onúcleo material se desdobra ao explodir, de acordo com o quadro periódico (inscrição eminentemente repetitiva), em elementos classifica-dos por número atómico, a multiplicidade dos aglomerados possíveis,isto é, os corpos - o som inicial apenas pode fazer ouvir o que chamamos música, ao explodir e ao distribuir os sons, de acordo com asalturas, de modo a que, com esses rebentos da sonoridade originária,possam ser avistadas melodias e que melodias possam ser combinadas,ou seja, objectos musicais. E, nas duas explosões, é o tempo que nas-ce, abrindo, ao mesmo tempo, a possibilidade de sínteses e de hIstó-rias.
Talvez seja delírio puro e simples. Pelo menos este delírio encontraum género de precedente numa observação feita ao narrador do Teatro das Marionetas de Kleist, pelo fabricante de bonecas automáticas.Nada está mais próximo, explica este último, da graça infinita, do quea mecânica à qual obedecem as marionetas. Justamente privadas dequalquer intenção (diria portanto, de qualquer capacidade de síntesetemporal), as bonecas apenas colocam os seus membros como lhes é
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ordenado, de acordo com a lei da gravidade. Percebemos o quanto esta observação consona (se assim posso dizer) com a imaginação dabola de bilhar, e o quanto o automatismo, entendido como restituiçãoimediata de um movimento (de uma vibração, se se tratar de um som)está aparentado comº-ª:!!!omatismo divino no sentido de Aristóteles,0-9ual é a própria suficiência dó Mesmo .~ ~raça (Anmut, mas também Grazie) de Kleist, seria como a li
be~ão do espírito de Qualquer diacronia, de qualquer tarefa.desínte.se. Ela é a graciosidade devida à suficiência do todo no um, se~undo- -Deus, ou do um em todos c:J2Q[ tudo, segundo a mecânica Fal~~
é~ acto puro, énergéia e isso exigia o enfraquecimento das potências!a começar pela temporali~ão, a suspensão da tarrla de actualiza~ _e _
de fê-actualizar os passados e os f Eis a razão porque deus e aboneca não possuem «qualidade» visto ue ualida e e o ncia,
Qllalauer músic~, creio eu, aspira a essa graça. Qualquer músicaverdadeira aspira à Isenção das sínteses mas, do ue ode Yi!._aacontecer e, por 1m, a repetição.
Aspira a essa única retencão ou ª essa «retenção» do Único, onde a_diferenciação do um e do múlti lo não teria I
ue esteja todavia condenada a ressoar ou a consonar, não seráuma novidade para vós. Mas, podemos estabelecer a diferença entredois géneros de música: por um lado aquela em que a necessidade deressonância e de consonância (no sentido filosófico, é claro) dá origemao desdobramento (não digo à exibição, mas ao magnífico desdobramento) do poder de sintetizar; por outro lado, aquela música em queessa mesma necessidade, ou mesmo esse poder, são, ao contrário, sentidos como uma impotência e como uma dor. A impotência de ficarpelo instante material, a dor de uma santidade impossível. Estamoslonge do deus, o deus explodiu, as galáxias de ressonâncias fogem asete pés do templum sanctum (onde soa o som inicial). Cantam, semdúvida, encadeando as frequências , as alturas, as durações tão diversas. No entanto, o inigualável ou o irrepetível, não reside nos encadeamentos. Talvez se esconda e se ofereça em cada átomo sonoro .
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A OBEDI~NCIA
Quando, na Filosofia da Nova Música, Adorno escreve que «com alibertação do material, a possibilidade de dominá-lo aumentou», percebemos que essa libertação aumenta a eventualidade de uma maior'êapacidade em relação ao material musical. No entanto, a frase deAdorno não diz que essa capacidade aumentada seja permitida e/oudesejável. Esta é uma questão sobre a qual devemos debruçar-nos.A questão, incidindo sobre o que é possível na área musical, graças àsnovas tecnologias, prescreve também a consideração e o exame dos direitos e dos votos (dos desejos) que podem ser declarados pelas novastecnologias no mundo dos sons. Direitos e votos que não são necessariamente os dos parceiros humanos, o compositor, o executante, o auditor, os quais também poderiam ser os direitos e os votos do materialou do som. Na frase de Adorno, parece-me que a expressão «libertação do material» dá a entender o seguinte: o material musical tinha etem o direito e o desejo de se emancipar de algumas tutelas que lheeram infligidas anteriormente. E o paradoxo (dialéctica negativa?) introduzido pela frase de Adorno é que esse direito e esse desejo sejamimediatamente declarados e reconhecidos, sendo o material, deste modo, também «libertado», o som (se for mesmo dele que se trata) podeassim, e melhor ainda, cair sob o domínio da técnica.
No entanto, Adorno insiste que a «técnica», na Teoria Estética, éum aspecto constitutivo da arte.
Texto de uma comunicação no Colóqu io «De I'écriture musical» organizado na Sorbonne em Junho de 1986 pelo College internacional de philosophie et L'Itinéraire, poriniciativa de Christine Buci-Glucksmann e Michael Levinas. Publicado ln Harmoniques,I, 1987.
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Faz com que, escreve Adorno, a obra de arte seja mais do que umaglomerado constituído pelo que existe de facto, e esse mais constitui o seu conteúdo (T.E., p, 287).
A obra é, e deve permanecer, um enigma; todavia oferece tambémuma «figura determinável», «ao mesmo tempo racional e abs,tracta».De que factor foi, ou é, liberto o material, aqui o som, para que setorne «possível», em todos os sentidos da palavra, um maior domíniopor parte da técnica, sobre esse mesmo material? Além disso, será queessa «libertação» precede, segue ou acompanha esse mais de controlosobre o som que seria dado pelas novas tecnologias? Significará oprincípio sugerido por Adorno, que o desejo e o direito de soltar omaterial musical, ou o desejo e o direito que o material tem de se soltar, se cumprem à medida que aumenta a capacidade de determinar racionalmente esse mesmo material? Por outras palavras, será que as novas tecnologias, ao permitirem a análise (eracional, abstracta») muitominuciosa do material musical, permitem também a sua libertação?
Questão reversível. A dupla permissão deve ser lida nos dois sentidos. Primeiro sentido: quanto maior for a possibilidade de determinaro material, maior será a sua libertação. Este aspecto concebe-se e pratica-se com bastante facilidade. A multiplicidade das escolhas que têmde ser feitas, a «liberdade», aumenta com a multiplicação das variáveis, sobre as quais convém agir com o determinismo. Segundo sentido: quanto maior for a libertação do material, maior será a possibilidade de determiná-lo e de dominá-lo. Este segundo ponto parece sermais difícil de analisar. Excepto no significado exposto por RenêThom, quando este diz que qualquer explicação ou elaboração necessita de uma causalidade e que qualquer determinação implica uma «ruptura de causalidade», no próprio acto de explicação. Quando o físicoexpõe e verifica uma «lei» ou um «efeito» (é a palavra utilizada maisfrequentemente), põe o cronómetro a zero e coloca as variáveis, quejulga pertinentes, nos limites supostamente inultrapassáveis de um sistema isolado ou seja, onde as outras variáveis não são consideradaspertinentes. Neste sentido, a determinação do efeito exige a sua libertação. E, na medida em que a obtenção regulada e repetível deste efeito se realiza numa montagem experimental e, finalmente, num aparelho, num dispositivo «técnico», podemos então dizer que o seu domínio prático pressupõe o seu isolamento fora do «contexto) da sua li-
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bertação e, principalmente, da percepção e do pensamento do sábio edo engenheiro.
Diríamos portanto o seguinte: do mesmo modo que o som se podelibertar, a técnica pode dominá-lo. E vice-versa. Em princípio, esta reciprocidade eufórica constituiria a primeira abertura possível para oencontro entre a música e a tecnologia contemporânea.
No entanto, após ter cumprido este pequeno exercício escolar, queria orientar as breves reflexões que se seguem, para dois pólos. Umchama-se Tonkunst, a arte do som e/ou do tom, o velho nome germânico para a música, e o outro, ainda alemão, o Gehorsam, o qual setraduz por submissão, perdendo no entanto o hõren , o escutar quecontém, e que seria, talvez preferível traduzir por obediência, no qualse ouvem mais nitidâmente o audire latim, qualquer coisa como dar
\ouvidos a e também ter ouvido para, uma audiência incidindo ou atri-buída a algo que soa, cria um som ou um tom, tônt e que obriga, sefaz obedecer .
Tudo o que mostrei é bastante simples: em primeiro lugar, o quechamamos música não pára de se transformar ou de voltar a ser denovo, uma arte do som, uma competência para o sonoro Uá queKunst não era a arte do sentido oficial das Belas Artes) e a música nãopára de se tornar, ou de voltar a ser, o destino do som, o som dirigidoe destro, e que é sob este aspecto que o seu casamento (porque não éconcubinato) com a tecnociência (não é apenas uma «técnica» no sentido de um meio) deve ser estudado, sobretudo no que diz respeito às«possibilidades» que dele resultam; e em segundo lugar que, ao tornar-se ou ao voltar a ser essa competência e esse destino dos sons, peloseu casamento com a tecnociência dos sons, a música revela uma destinação (digo destinação para retomar um termo que cobre a área da reflexão dita estética deste Kant até Heidegger), uma destinação da escuta para a escuta, uma «obediência» que deveríamos talvez qualificarde absoluta, um ouvido dado ao outro ouvido: uma destinação que excede, em todo o caso, o alcance das pesquisas tecnocientíficas imaginadas do ponto de vista técnico, graças às quais esta obediência é, no entanto, revelada.
Debrucemo-nos, em primeiro lugar sobre a Tonkunst, a arte dosom ou do tom. Para falar depressa e por alto e sem verdadeira competência, repito-o, mas na qualidade de amador apressado, diria que
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se tornou um lugar comum descrever os últimos séculos de música ocidental como uma história da «libertação» do material, o som , dos vários constrangimentos que teve de respeitar, em simultâneo ou uma decada vez, para se tornar «apresentável» musicalmente.
Deixo aos mais sábios a tarefa de descrever e explicar estes constrangimentos, a sua interrogação e transformação. Tudo aconteceu como se a tarefa dos compositores fosse proceder a uma anamnesie doque lhes era dado sob o nome de música. Talvez como se o som, através de más pesquisas e invenções, procedesse à sua própria anamneseatravés dos estratos do seu passado musical sempre vivo. Os timbresimpostos pela instrumentação clássica, barroca, moderna, as duraçõese os ritmos regulados pela medida e o contraponto; as alturas definidas pelos modos e pelas gamas; as próprias intensidades: essas regrastransmitidas pelas escolas e pelos conservatórios, não pareciam necessariamente caducas, longe disso, mas não eram certamente necessárias .A sua análise faz aparecer um material elementar, a vibração do ar,com os seus próprios componentes analisáveis: frequência, amplitude,duração; e outras mais finas: a cor e o ataque. A meditação artísticaconverge sobre o som, do mesmo modo que a pesquisa acústica, físicae psico-fisiológica. Esta atracção preparou as bodas da música contemporânea com as chamadas novas tecnologias. Apenas a um espíritoempenhado nesse trabalho de anamnese podem os hábi tos musicais deque se alimenta aparecer, apesar de tudo, como constrangimentos permanecendo ao mesmo tempo o que são, ou seja, formas que lhe sãodadas para exercer a sua capacidade sobre o universo sonoro e desfrutá-lo.
Eis um exemplo muito simples dessa inquietação em relação aosom: a discriminação das durações, na notação clássica pela semibreve, mínima, semínima, colcheia, semicolcheia, etc... , implica uma metronomia do tempo sonoro. Este último é dividido em unidades iguaisde medida, graças ao movimento do pêndulo. Dentro de cada medida,coloca-se um número infinito de sons, sons estes que são dotados, pormeio de divisão, da sua própria duração. O ritmo da frase obtém-sepela marcação de um grupo de medidas de dois tempos, de três tempos, etc.. . Contra-exemplo. A partitura de Mureau de John Cagee David Tudor (banda magnética, sintetizador e voz) comporta páginasrectangulares de várias dimensões; as vocalizações, os fonemas porproferir são indicados pelas letras de tamanho diverso, de acordo com
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a intensidade que lhes deve ser dada. Estas letras são agrupadas sobreos rectângulos, como se fossem cachos (c1usters); o tempo utilizadopara executar o conteúdo do rectângulo é indicado no cimo da página;o executante liga o cronómetro quando começa e termina a execuçãoquando acaba o tempo indicado; pode acontecer que a execução dosfonemas do rectângulo não seja terminada a tempo ou, pelo contrário,que uma execução mais rápida deixe tempo inocupado, um «silêncio»(devemos encontrar características semelhantes em certas partituras deJean-Charles François).
Um processo deste género modifica em muito a sensibilidade doouvido (quero dizer do espírito) em relação ao ritmo. Para apressar ascoisas, poderíamos dizer que não se trata de uma música «dançável».O pêndulo do metrônomo desaparece. O seu movimento regular ésubstituído pela corrida\pontínua do cronómetro. Esta é lançada e interrompida arbitrariamente (é a ruptura da causalidade). Daí o interesse das coreografias de Merce Cunningham, sobre ou ao lado das músicas de Cage. O ritmo sonoro não se inscreve nas capacidades rítmicas«naturais» ou «culturais» do corpo. O domínio deste último sobre o«seu» espaço (ou o inverso), por meio de movimentos, é desconcertado. O ritmo é devolvido à única escuta imóvel que podemos entãoqualificar de interior. Como a aparição e a desaparição das protuberâncias solares sobre a cromosfera ou, se assim preferirem, como aparagem-padrão de Duchamps, este ritmo não medido exige a espera:o que acontecerá?
Eis um exemplo do que se pode perceber por «libertação» do tempo sonoro, em relação ao constrangimento metronómico. Alarguemoso registo rítmico. Edgar Varêse que foi, em suma, o fundador e o primeiro militante do movimento de «libertação do som», particularmente através da utilização das novas tecnologias explica o seguinte:
Nas minhas obras, o ritmo vem dos efeitos recíprocos e simultâneosde elementos independentes, os quais intervêm em lapsos de temposprevistos mas irregulares (Écrits, p. 158).
Trata-se aqui do ritmo de toda a obra, de uma polifonia, se assimquisermos, e já não de um elemento monódico. Na tradição ocidental,é regulado pelo contraponto. Varêse opõe a este último a ideia de uma«projecção» dos planos ou das massas sonoras, umas sobre as outras.
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Projecção, no sentido de desenho geométrico ou expressivo, uma ideiamuito próxima da paragem-padrão:
Quando novos instrumentos me permitirem escrever a música tal como a concebo, o movimento das massas sonoras e das deslocaçõesde planos será nitidamente perceptível na minha obra e tomará o lugar do contraponto linear. Quando essas massas sonoras chocaremumas contra as outras, teremos a impressão de que se manifestamfenómenos de penetração e de repulsão. Certas transmutações tomarão o seu lugar num plano e parecerão ser projectadas noutros planos. Deslocar-se-ão com grande velocidade, segundo ângulos variados. A antiga concepção da melodia ou da polifonia já não existirá.Escoar-se-á como se escoa um rio. (Écrits, p. 91).
Poderia ser uma descrição de Répons de Pierre Boulez, apresentado em Paris, dois anos atrás. Acerca de Intégrales, criada em NovaIorque, em 1925, Varese precisa o que entende por projecção:
No nosso sistema musical, estamos confrontados com quantidadescujos valores são fixos. Na obra que sonhei, os valores mudavamconstantemente, em relação a uma constante. Por outras palavras:imaginem séries de variações onde as transformações viriam de umaligeira alteração da forma de uma função, ou então da transposiçãode uma função numa outra função. (Écrits, p. 128).
Tratando-se da altura do som, uma análise comparável impor-se-ia.Varese introduzia sirenes de fábricas e cantos de pássaros nas suascomposições. Encontram-se as primeiras sirenes em Amériques, peçacriada em 1926 e em Ionisation (1934).
Escrevem-se como trajectórias de sons parabólicos e hiperbólicos,comenta (Écrits, p. 150).
Usa o continuum sonoro sem se preocupar em respeitar uma divisão desse continuum, pelo modo e pela gama. Deste modo, lança denovo a questão incidente sobre os constrangimentos que afectam a altura do som: a pesquisa de novos modos já aparente na obra de Debussy, a exploração das músicas extra-europeias, os ensaios de atonalismo, a atenção dada aos sons de percussão (cuja frequência não é retida devido à falta de um volume de ressonância).
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Na pintura, após a exploração dos constrangimentos que incidemsobre a organização cromática das superficies, só a cor permanece (asprimeiras fenêtres de Delaunay datam de 1911). Do mesmo modo, namúsica, a análise das regras da altura só deixa subsistir do material(como o que dele resta), a enigmática presença do vibrar. Num textomelancólico e irritado, Pierre Schaeffer escreve:
Quando já não há nenhuma regra, chega a hora da regra do atonalismo. Daquilo que a antecede, não resta nada. Todavia, permaneceo som (... ). Ora o som prodigaliza restos inumerá veis «a arte deacomodar os restos», Silenees, I (Set. 85), p. 194).
o princípio dos objectos musicais encontra a sua origem nessa purga. Encontra-se em estreita correlação com a pesquisa acústica. E, noque diz respeito à altura, Varêse escreve também em 1936:
O novo disPOS~O musical que imagino será capaz de emitir sonsnuma frequência qualquer e alargará os limites das gravações maisgraves e mais agudas, das quais irão nascer novas organizações deresultantes verticais: os acordes, os seus arranjos, os seus espaços ou seja, a sua oxigenação. Não s6 as possibilidades das harm6nicasserão reveladas em todo o seu esplendor mas também a utilização decertas interferências criadas pelas parciais, será uma contribuiçãoapreciável. Poder-se- à também esperar utilizar o radical impensadodas resultantes inferiores e dos sons diferenciais e adicionais. Um leque inteiramente novo de sons! (Éerits, p. 92).
Este «impensado radical» é um impensado do ouvido, um inaudivel.
O novo instrumento musical de hoje tem um maior alcance: atinge epode ultrapassar o limite de audibilidade. (Éerits, p. 144).
A partir daqui, surge a ideia (consoante a sua necessidade) de um«ouvido interior». Esta «interioridade», que já surgiu a propósito doritmo, tem a ver com aquela que anunciei sob o nome de obediência .
Encontraríamos ainda aspectos mais interessantes para estudar: aquestão do timbre ou da forma da obra. E mais ainda, a relação entrea forma e o timbre. Gostaria apenas de dizer umas palavras a este propósito. Cézanne dizia que a forma se dá por acabada quando a cor
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atinge a sua perfeição. Rejeitava, deste modo, o princípio ou o preconceito clássico da oposição entre a forma (a construção pelo desenho) e a matéria (as cores aplicadas em seguida, sobre as figuras desenhadas), e, por acréscimo, também a prioridade da primeira em relação à segunda. A matéria cromática deve dispor «dela própria». Nãorecebe uma forma , cria uma. Os valores cromáticos dispõem-se semserem organizados por um conceito, nem que este seja um conceito director. A beleza, se ouso utilizar esse termo, obtém-se a partir dessaautofinalidade sem fim. Problemática a relacionar com as sábias pesquisas sobre a morfogénese. Varêse faz uma observação similar a propósito da cor sonora, do timbre:
Mas os timbres tomados um a um, do mesmo modo que a sua combinação, são os ingredientes necessários para a mistura sonora coloram e diferenciam os diversos planos e volumes - e, longe deserem o fruto do acaso, fazem corpo com a forma. Não utilizo ossons a partir de impressões subjectivas, como o faziam os impressionistas, quando escolhiam as suas cores. Nas minhas obras musicaisos sons são parte intrínseca da estrutura. (Écrits, p. 124).
Esta auto-estruturação das cores (Varese metaforiza-a expressamente como uma «cristalização) significa nomeadamente, a libertação emrelação às grandes formas musicais acreditadas pela tradição, nomeadamente a forma sonata. A música contemporânea desfaz a intrigamelódica onde a matéria sonora é subordinada à exposição de umanarração sentimental, a uma odisseia. A dialéctica da epopeia queaprisiona o tempo da obra num início, um desenvolvimento e um fim,com o seu fiador harmónico, a resolução, deixa de organizar a temporalidade musical. O que é exposto, é uma temporalidade de acontecimentos sonoros, aceitando de preferência, a anacronia ou a panacronia, em vez da diacronia. Era o objectivo de Varêse, quando falavaem «espaço sonoro», o qual foi experimentado em 1958 no PavillonPhilips construído por Le Corbusier, em Bruxelas. Primeira exposiçãode imateriais.
Num texto intitulado «Anos 80: sem utopia» (Silences, I, 1985),Ivanka Stoíanova cita Gérard Grisey:
o conceito de desenvolvimento dá lugar ao de processo (.. .). O ponto de fixação do processo já não está no início da partitura: é
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transmitido em cada escolha instantânea e é medido através do graude pré-audibilidade (...).
Não continuarei. As novas tecnologias podem (capacidade, eventualidade) favorecer este trabalho de anamnese sobre os estratos demúsicas que separam o som do ouvido. A música, enquanto Tonkunsttenta desfazer-se da música enquanto Musik, Do mesmo modo que apsicanálise, quando é verdadeira, tenta desfazer-se das ciências psicológicas. Ou a filosofia, quando consegue ser pensamento, deve desfazer-se da filosofia. Ora uma afinidade profunda liga a tecnociência dosom a este trabalho, esta Durcharbeitung, Porque esta tecnociência,procede, por seu lado, de uma anamnese que, sob os aspectos de umacrise fundamental, não atingiu menos as ciências do que as artes. Desde há um século a geometria, a aritmética e a mecânica consagraram-se à interrogação e àélaboração obstinada dos seus objectos ditos«próprios», respectivamente; o espaço e o tempo, (a série ordenadados números) e o movimento. Deste modo, as ciências fizeram e continuaram a fazer, a sua «perlaboração», a sua travessia de estratos de«evidências» deixadas pela tradição matemática e fisica. Esta cura chama-se, erradamente, de «crise dos fundamentos». Poderá a razão«construir» - como dizia o Círculo de Viena, isto é testemunhar de- a totalidade das proposições admitidas nos sistemas do espaço e donúmero, ou se assim não puder, escolher enquanto axiomas, proposições que não são, por certo, demonstráveis, mas que são fecundas nomeadamente para o espírito e o conhecimento? Ou então será o pensamento científico obrigado a introduzir (até na exposição de axiomas,aparentemente decididos) intuições de propriedade espacio-temporaisque não pode eliminar ou deduzir sem as pressupor? Isto é, introduzirdados, num sentido forte. Quanto ao nosso tema, a questão é, semdúvida, a seguinte: poder-se-á construir o tempo por inteiro, sem fazerreferência à escuta? Nesta última, está em jogo a memória, próximaou longínqua, a presença, a espera, a flutuação, a realização, ela própria flutuante, em suma, o tempo interior, o sentido íntimo.
Não há mais do que uma analogia, mas há uma analogia pensávelentre a «crise dos fundamentos» da geometria, da aritmética e da mecânica, por um lado e, por outro, o pôr em causa as evidências recebidas pela maior parte das artes, há mais de um século, a qual é designada por outra expressão infeliz: o movimento das vanguardas. Os ob-
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jectivos são diferentes: tentar conhecer as propriedades do som não é amesma coisa do que tentar engendrar um sentimento através do som.Não é a mesma coisa, dizia Kant, julgar de forma determinante e julgar de forma reflectora. Mas se a natureza deste sentimento deixa deser preconceito, sob o nome de prazer natural ou de gosto, por exemplo, e se, por sua vez, a ciência questionar estes conceitos, então nadase oporá ao facto de a pesquisa dos sábios vir ajudar a pesquisa dosartistas, para encontrar sentimentos diferentes, «inaudíveis». Vareselutou contra a separação entre as artes e as ciências.
Evoca o lugar que era ocupado pela música, na divisão medieval dasartes liberais:
Os filósofos da Idade Média dividiam as artes liberais em duas categorias: o trivium , ou artes da razão aplicada à linguagem - gramática, retórica e dialéctica - e o quadrivium, ou artes da razão pura ... à qual daríamos hoje o nome de ciência. A música entrava nesta última categoria, ao lado da matemática, da geometria e da astronomia.
Nos nossos dias, sentiriamos a necessidade de classificar a música nas artes do trivium , Pare ce-me, pelo menos , que acentuamos demasiado o que poderíamos chamar de gramática da música.
Em várias épocas e lugares a música foi considerada ou comoarte ou como uma ciência. Na realidade, a música depende deuma ou de outra. No fim do século passado , Jean Wronsky e Camille Durutte tiveram que inventar novos termo s no seu Traitéd'Harmoniee qualificar a música de «arte-ciência»; definiram-nacomo a «encarnação da inteligência que se encontra nos sons»(Écrits, p. 102-103).
Varese dá O exemplo preciso desta conivência entre o conceito ea carne. A utilização do som (gravado) de sirenes em várias obras e,em seguida desse som sintetizado no Poéme électronique (1958), foi-lhe sugerida pela leitura da Théorie physiologuique du son deHelmholtz, onde as experiências sobre as sirenes servem para estabelecer a teoria harmónica do timbre . Vemos como o estudo de umaderivada de uma função da altura do som, tomada como variávelpode, ao mesmo tempo, contribuir para a critica da representaçãoaritmética do som e para alargar o campo sonoro oferecido e abertoao compositor .
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A este propósito, e na mesma linha de raciocínio, gostaria de dlulpar um conflito que pôde manifestar-se nas artes, principalmente cmrelação à utilização das novas tecnologias. As ciências do espaço e dotempo estão divididas acerca da questão dos seus fundamentos, entredefensores da intuição última e partidários da construção axiomática.Um fosso similar talvez tenha desestabilizado as artes do espaço e dotempo . Pode ter-se afirmado que a alternativa está sempre presente para os artistas modernos e contemporâneos, mesmo se nem sempre édecisiva, nem decidida, nem, sobretudo, levantada entre uma estratégia de empobrecimento (infratecnológica) e uma estratégia de enriquecimento (hipertécnica) diante do espaço-tempo. Nos dois casos, trata-se de fazer sentir (posso dizer: através do sentimento) o insensível docampo sensorial, espacial e/ou temporal, o invisível, o inaudível. Podemos no entanto, alcançá-lo ou pensar alcançá-lo, quer por defeito,quer por excesso, dirigindo-nos para o que é mais elementar ou que éreputado como tal, ou então para o que há de mais complexo (ou oque tem tal reputação).
Esta oposição é diferente, pelo menos, da dicotomia proposta porWorringer, entre as artes do Einfühlung; amigas do mundo e as artesda abstracção, hostis ao mundo. Mas sobretudo não tem utilização setentarmos classificar as «escolas» principais ou as grandes correntesque partilharam as vanguardas. Por exemplo, seria inoperante colocarno lado «pobre», o minimalismo, a arte povera, o happening, a performance, a música de Cage, de Morton Feldman ou de Jean-CharlesFrançois e, no lado «ricosc-colocar a abstracção, o conceptualismo, amúsica de Nono, Boulez,/Xenakis, Stockhausen, ou Grisey. A hesitação, o paradoxo ou a tentação deixam-se ver e ouvir, de preferência,em cada obra, como o vimos claramente no trabalho de Maurizio Kagel.
Que paradoxo? Se as artes de hoje ainda se podem considerar como artes é porque se inscrevem no campo da «apresentação», a qualse chama «estética», desde de Baumgarten e Kant , ou seja o campo da«apresentação», hic et nunc. Aqui, agora, um som soa, desdobrando,no instante inapreensível, a sua fuga e uma espera . Não há música, sobretudo como Tonkunst, sem o enigma desta Darste//ung imediatamente transcrita em sentimentos antes de qualquer objectivização e,portanto, num certo sentido, antes de qualquer «audição», num sentimento sonoro que é talvez a presença mais elementar do tempo ou ao
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tempo, o grau mais «pobre» ou o estado mais pobre (apesar de nãoser um estado) do ser-tempo: o Durchlaufen,
Mas precisamente este ser-agora (em vez de ser-ali), esta doação, édepressa esquecido quando é apanhado na trama apertada das retóricas (digamos retóricas em vez de gramáticas) musicais, as quais regulamentam ou determinam, a sua ocorrência: de harmonia, de melodia,de instrumentação, etc...
A partir deste sentimento de ocorrência, o qual é comum a todasas músicas contemporâneas, duas vias podem parecer, em princípio,abertas: a via «intuicionista» (para falar como os filósofos da geometria e da aritmética) e a via «axiomática». Desfazemos ou pensamosque desfazemos a trama que entorpece a escuta ao deixar os «sonsexistirem», como diz Cage , ou frustrando-a com tramas mais complexas, menos retóricas do que cognitivas, frequentemente chamadas «estruturas», onde as várias dimensões do som são experimentadas parase tornarem «presentes» em relação ao sentimento sonoro. TendênciaBoulez , digamos assim.
Ora, esta oposição não é provavelmente útil para a descriptagemdas obras. Existe um minimalismo do muito complexo: todas as mediações tecnológicas nos levam de novo à doação sonora «agora».Além do mais, existe um conceptualismo inevitável, até na escrita deobras «pobres», feitas de ruídos obtidos a partir da percussão dequaisquer objectos: o «qualunquismo» sonoro exige a maior reflexãoe, por vezes, uma verdadeira axiomática. Se é verdade que o objectivocomum é devolver o ouvido à escuta, seríamos muito crédulos se acreditássemos que basta fazer soar qualquer coisa, num momento qualquer, para obter o sentimento sonoro. Além do mais, seria perigoso eirresponsável privilegiar a tecnologia cuja finalidade é testar hipótesescognitivas incidindo sobre o som e a sua respectiva audição, o perigoconsistindo então na tentação de uma experimentação pura das acústi cas possíveis, onde, por princípio (um princípio que, desta vez, não éretórico, mas científico), a anamnese do entendimento sonoro é esquecida.
Em resumo, a obediência, se for efectivamente dela que se trata,não nos é dada, é sim desvendada durante a audição. O facto de adestruir não significa de modo algum, voltar a um estado natural daescuta, o qual teria sido perdido pela cultura musical. Mas, o facto deconstruir uma cultura sábia da audição, só pode ter um valor «rnusi-
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cal» (no sentido da Tonkunst) se as máquinas da criação do som e asestruturações exactas que exigem destinarem enfim a obra à maravilhaúnica do acontecimento sonoro.
Chegou o momento de dizer algumas palavras acerca da obediência. Não me parece que a libertação do som esteja em jogo na Tonkunst, o que está em jogo é a libertação da obediência ou, de preferência, o respeito pela obediência.
Não sei nada do Emmanuel Swedenborg, o teósofo do século XVIII, fundador da Igreja da Nova Jerusalém, a não ser queKant criticava vivamente o seu iluminismo e profetismo. Foi um poucopor sorte que encontrei as frases seguintes, extraídas do seu Tratadodas representações e das correspondências (c. 1750):
Os Espíritos que correspondem ao Ouvído ou que constituem a província da Orelha, são aqueles que se situam na Obediência simples:isto é, os que não raciocinam para saber se tal coisa será assim, masque acreditam que ela seja assim porque outros assim o dizem: porisso, podem ser qualificados de Obediências. Se esses espíritos sãodesse género é porque o relacionamento da audição com a linguagem é igual ao do passivo com o activo e à relação que existe entreaquele que ouve falar e concorda e aquele que fala, daí que se possadizer que, na linguagem normal, escutar alguém é ser-se obediente eescutar a voz é obedecer; de facto , os interiores da linguagem do homem; na sua máÍoria, tiraram a sua origem da Correspondência, pelo facto do espírito do homem se situar nos espíritos pertencentes aoutra vida e é ali que ele pensa; o homem ignora completamente esteaspecto e o homem corporal nem sequer quer saber dele (... ).
Auf jemanden hõren, escutar alguém, dar ouvido a alguém; das istgehorsam zu sein significa ser obediente (invento o alemão, este Tratado foi escrito em latim). Obedecer é gehorchen. Gehõren não está longe, depender de, depender de uma instância, de um domínio, de umaautoridade, de um dominus. E, zuhõren significa dar ouvido a. A redeque liga a escuta à pertença, no sentido da obrigação, de uma passividade que gostaria de traduzir por passibilidade, não tem fim.
O que é mais notável neste texto, é, em primeiro lugar, que estaobediência se efectua de espírito para espírito, é uma convocação deoutra voz e pertence ao que Swedenborg chama «correspondência en-
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tre os espíritos», a qual é uma mensagem espiritual; e, em segundo lugar, que o homem não sabe e não quer saber dessa importância do ouvido para o espírito, e do facto de a audição se ter tornado uma refém, para além do corpo.
Podemos ler este texto e provavelmente ler a obra de Swedenborgem geral, rindo-nos de um homem que «ouve vozes», subentendendoque ninguém fala. Pelo contrário, podemos perceber que designa aquio essencial do que se deve «libertar» no som, o essencial, em particu.lar, do que as músicas, auxiliadas pelas tecnologias contemporâneas,tentam libertar, no som: a sua autoridade, a pertença do espírito aoblowing up temporal, inerente ao «ser-agora» do som escutado.
Menti um pouco, ao dizer que tinha encontrado o texto de Swedenborg por sorte. Fui guiado por uma observação de Giacinto Scelsi, extraída de um curto texto inacabado do seu livro Son et musique.(Olhar da noite: Swedenborg escrevia: «Os que têm uma visão do Ouvido interior pertencem (gehtJren) aos interiores da Orelha». Eis oolhar nocturno, o olhar que escuta).
Essa observação é a seguinte:
Sim, é verdade que também existe uma música diferente de caráctertranscendental que escapa a qualquer análise de organização, domesmo modo que escapa a qualquer compreensão humana. Certosseres privilegiados ouviram sons, melodias ou harmonias que podemos qualificar como sendo «fora deste mundo», como acontecealiás com as cores pertencendo a um mesmo plano . Existe, nos Santos, histórias muito numerosas e toda uma literatura e uma iconografia que dela resulta ; anjos músicos com trombetas, liras ou flautas; os escritos de Swedenborg ou de Jacob Boehm acerca de músicas maravilhosas ouvidas por eles e, por vezes, por multidões, emvários lugares (... ) (Silences, II , 1985, P. 84).
Esta observação inscreve-se numa crítica da atenção, concedidaprincipalmente pela música clássica ocidental, ao «quadro musical»,ao que chamamos «forma musical»: Scelsi responde que esse quadropode, mesmo no caso dos maiores, Bach, Beethoven, Mozart, perma- !~
necer vazio no seu interior. Por fim, conclui:
Deseja que eu diga que a música de Bach ou de Mozart não poderiater deitado abaixo as paredes de Jericó? Sim, é um pouco isso.
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Na mesma linha de raciocínio ou, pelo menos, numa linha análoga,está o pedido formulado por Jean-Claude Eloy, na sua conversa comAimée-Catherine Deloche, que consiste no facto de a música não serfeita com «notas numa relação de intervalos» (como é, diz ele, a música de Boulez), mas com «sons bastante complexos, muito condensados(... ), c1usters dotados de uma vida interior, de uma mobilidade; debatimentos de harmónicas, de abrandamentos» e, para exemplificar esses sons, faz referência a várias músicas indianas, a de Ravi Shankar,de Ram Narayan (estes sons podem ser obtidos electronicamente) e,por fim, dá-lhes o nome de «sons de meditação». Toda a sua riquezaestá formulada num ideal minimalista, ao que parece, no Laconismodo «som japonês»: «um pouco de água num jardim.»
Vou parar aqui, apesar de ainda ficar tudo por dizer. Já que essapouca água não pára de chegar, de acorrer, ou melhor, de ocorrer. Teria gostado de encarar este problema sob um prisma energético e teriasido necessário fazê-lo, visto tratar-se das novas tecnologias musicais,as quais não são nada mais (num certo sentido) do que transformadoras da energia informacional (ou seja, electrónica), em energia mecânica, aqui, em vibrações do ar e do tímpano, transformadas de novo eminfluxo nervoso. A meditação escrupulosa exige que este influxo nãose gaste ao reanimar a mecânica corporal. François Bayle indica-o comprecisão, quando fala da pesquisa musical:
Por fim, a questão do corpo excluído (atenção, excluído do campo,mas ainda mais presente pelo facto de estar ausente: na realidade, ocorpo à margem, omnipresente, reencontrado) (cPro-positions», Silences, I, p, 103).
É a este preço, o preço desta ascese, que a Tonkunst pode deitarabaixo as paredes de Jericó, as quais são as paredes do nosso corpo,com os seus pedidos acreditados pelo costume e pela sua pressa em relação a satisfações próximas.
Com estas paredes, cai toda uma antropologia do som. A obediência que se revela por um instante na Tonkunst (com ou sem nova tecnologia) significa que nós (quem? nós?) estamos prometidos à doaçãodo acontecimento. O pedido é ontológico, por assim dizer, ninguémnos pede nada.
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SCAPELAND
Deitar abaixo as paredes. Quebra e brisa. Uma inalação. O SOPRO, fora e dentro. Uma coisa de tórax. As paredes musculadas dacaixa, da defesa toráxica, em plena derrocada. O sopro não é interrompido, é liberto. Um boca-a-boca com o longínquo. É dizer pouco:o longínquo entrando na intimidade, como um infinito feito de ar.E as paredes caídas, não nos sentimos inchar.
A loucura «sistemática», a vesania: «que vê todos os objectos demaneira diferente e que está deslocada, fora do sensorium comum requisitado pela unidade da vida (animal), em direcção a um ponto muito afastado (daí o termo alienação), como acontece com uma paisagemmontanhosa cujo desenho efectuado à vol d'oiseau, permite um julgamento da região muito diferente daquele que se conseguiria se visto daplanície» (Kant, Antropologia, 52,4). Mas, o que não joga em favordo pássaro é que um rato da planície também deve ser um louco sistemático, um paisagista. Outro alienado, outro estranho. Então, o soproe o quebrar da caixa de ar não são o essencial. O longínquo para opássaro, a paisagem que aboliria os seus próprios limites, seria a galeria míope da toupeira. A toca sem vista, irrespirável. Não privilégio deum elemento (a aura, a brisa) ,sobre outros. Haveria uma paisagem, decada vez que o espírito se deslocasse de uma matéria sensível para outra, conservando nesta última a organização sensorial conveniente ou,pelo menos, a sua lembrança. A terra vista da lua por um terráquio.O campo visto pelo citadino, a vila, pelo agricultor. A DESORIENTAÇÃO seria uma condição da paisagem.
Esse pedaço de estrada debaixo dos choupos, colocados à esquerdae à direita, ao meio dia, desorientado pela lua cheia, há alguns anos,
Publicado in Revue de sciences Humaines, 1, 1988; número consagrado a «Escrevera paisagem» por iniciativa de Jean-Marc Besse.
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por volta das 23 horas, quando Marte estava em conjunção com Vénus. Baruchello telefona-me de Roma para me perguntar se vi o céu,milagroso. Os técnicos de iluminação de teatro conhecem esta funçãopaisagista da LUZ. E os Impressiosnistas. Ou Rembrandt, do lado dasombra.
Desorientar-se num mundo sonoro. O ouvido quebra as defesas daescuta harmónica, melódica e abre-se unicamente aos TIMBRES. Então, a paisagem dos últimos quartetos de Beethoven.
O infinito, a reserva inesgotável exigida por uma paisagem. Lampedusa escreve: «um palácio do qual conhecemos todas as divisões nãomerece ser habitado». A toca é esse palácio, habitável porque INABITÁVEL.
O contrário de um lugar. Se o olhar estiver ligado à destinação.Veja-se Aristóteles. A paisagem enquanto lugar INDESTINADO. Fazer de novo a demonstração de J .-L. Déotte sobre as obras, acerca doobjecto paisagem: suspensas num museu, as obras ficam frustradas dasua destinação (mítica, religiosa, política). Expõem-se de acordo com asua presença visível, aqui, agora. Uma enseada marítima, um lago numa serra, um canal numa metrópole, podem assim ser suspensasaquém de qualquer destinação humana ou divina e ser ali abandonados. A «condição» desta pose é impalpável, imparável. Por exemplo,um cinzento que se arrasta no mar em desolação. Nós não nos perdemos; são os significados que se perdem. Capitais estrangeiras, primeiras vezes. A noite de todos os Rembrandt do Metropolitan Museum deNova Iorque cega-vos, a partir do momento em que passais a soleirada porta. Há muito tempo, carris e agulhas muito pequenas incrustadas na calçada de um cais, porto de Amsterdão, neblina irradiada desol levante, através da gaze, pela qual vejo ruminar, no estábulo dasmil docas, os paquetes e os cargueiros elefantescos.
Privilégios de desertos, serras, planícies, ruínas, oceanos, céus nopaisagismo: a partida, sem destino. Desorientadores portanto. Masdesconfiemos desta exclusividade. O significado depressa re-destina osseus órfãos (nem que seja com o amor das paisagens). Não, a paisagem não tem o seu lugar eleito nestes não-lugares. Mas o não-lugarestende-se sobre eles, como sobre qualquer lugar, sem incómodo. Doceviolência exercida pela indeterminação sobre o determinado, para queeste largue o QUOD. E este não-lugar não sou eu quem o engendra,nem eu nem ninguém.
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A rampa sumptuosa do ébano , com a sua palma lisa, ornamentadade flores Jugendstil, namorando-se continuamente, sem junção sensível, até ao quarto andar de um prédio de Berlim. Este, situado numaavenida com quatro filas de árvores nuas e pretas, estamos em Janeiro, um prédio no meio de tantos outros, uma noite mal dissipada pelos revérberos, deserto, à margem, aposentado, onde se vai visitar umcolega e levar-lhe livros proibidos. Nada faltava a esta rampa para quecriasse um não-lugar na nossa ascensão. E, à volta do café e dos bolos, no apartamento verde garrafa, com candeeiros baixos, a desorientação persiste, com vozes cobertas e violentas. Irrealismo das paisagens, ao que se diz. Num instante se desmascaram como se fossemCLANDESTINOS. No fundo, não os iremos ver novamente. Bem podemos trabalhar. É sempre o mesmo quarto desconhecido do palácio.O corredor do Si te grain ne meurt ou da toca.
O rosto não , mas a FACE é uma paisagem, paisagens. O retrato-fotografia de Beckett aos 80 anos. Numa terra quebrada pela aridez,um desafio à carne. E nas rugas, debaixo das pregas onde as meninasdo olho se exasperam, a incredulidade feliz. Assim, a múmia ainda vive. Um pouco. A rede das fendas, das rídulas, são tantas fraquezas.A miséria entrou ali, infiltrada, acolhida. Terá esperado pela chuva.
Vantagem do MÍOPE. Existem sempre duas distâncias possíveis,com ou sem óculos, como se, para uma ver uma paisagem sonora, fossem sempre possíveis duas filtragens de ouvido. A face de Albertine ,quando me aproximo para a beijar. A complexão lisa da praia proibida transubstancia-se em granulado untuoso. Ao tocar a pele, os cristalinos muito convexos, fazem ressoar o seu timbre estereognósico ecromático. Estas paisagens da carne esgotam a vossa reserva em relação ao passeio. Nunca mais param. Recuem. «Julgamento muito diferente daquele que se tinha a partir da planície».
Com os dentes, é a mesma coisa. Classificaríamos as paisagens deacordo com o mordiscável, de acordo com o seu MORDISCÁVEL. Oslagos do grande frio do Minnesota, a margem de Rimouski no Inverno, exigem uma dentição de carbureto de tungsténio , para apalpar acarne gelada . Como não a temos, teremos outro julgamento, recuamos. Mas, pelo menos, foi evocada esta tarefa impraticável.
As paredes nunca serão totalmente deitadas abaixo . É a MELANCOLIA de todas as paisagens. Estamos em dívida para com elas. Pedem imediatamente a deflagração do espírito e obtém-no imediatamen-
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te. Sem ela, não seriam paisagens, seriam lugares. No entanto o espírito nunca terá ardido o suficiente.
É um problema de MATÉRIA. A matéria é o que não é destinadonaquilo que é dado. As formas domesticam-na, tornam-na consumível.As perspectivas visuais, nomeadamente, os modos e as gamas sonoras.Sensibilidades passadas sem problema sob o controlo do entendimento. É menos nítido no caso das suas congénitas inferiores, as quaissorvem , lambem e tacteiam. Para uma bela paisagem visual , o vaguear, o passeio, a vontade de divagar, dão somente direito a umatransferência de poderes materiais, para os odores, a qualidade táctildo solo , das paredes, dos vegetais. O seu pé apalpa a morbidez dasterras de urze musgosa nos bosques que limitam o caminho acerado desílex. Em Nova Iorque, os carros que descem rapidamente a 43~ ruaem direcção a Soho, ao passar sobre os rasgões que estriam a calçadaem todos os lados, mexem a sua popa, como se fossem embarcaçõesde goma mal atracadas. Provocam, no solo, um som surdo de percussão, os pneus estalam como se fossem ventosas arrancadas. Todos estados de matéria, indomesticáveis.
Paisagens, pagus, confins onde as matérias se oferecem virgens, antes de serem domesticadas, podemos dizer selvagens porque, na Europa do norte, eram sempre florestas. FORIS, fora. Fora da vedação docultivado, do formado. Este exterior, o desenraizamento fornece-o nointerior, através do exotismo intimista. Nas cidades, nos espíritos. Osestados de alma são estados de matéria espiritual. Suspensos entreduas intrigas do espírito. Veja-se Rimbaud. Fora dele.
Não é importante que se «goste» ou não da paisagem. Esta não pede a vossa opinião. Se ali estiver, a vossa opinião não está lá. A paisagem DESOLA o nosso espírito. Faz jorrar a linfa, a qual é a alma,em vez do seu sangue. Nada se encadeia. Fica para mais tarde. Pedimos ao céu. Que acuda à miséria . Do espírito desfeito pela vaga dematéria.
Passeante solitário, viajante solitário. Não basta impor o silêncio àconversa (mesmo interior), à intriga dos desejos e das inteligências.Como num templo, um TEMPLUM, este espaço-tempo neutralizadoonde é certo que alguma coisa venha a acontecer, sabe-se lá o quê.(Quero dízer que mesmo na cacofonia da praça Republique, às 17h30,no Inverno, repleta de milhares de veículos empilhados, se se pode falar de uma paisagem é graças a essa «templação»), Não é apenas essa
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solidão, é também um desconcerto de poderes, e assim de defesas doespirito. Não s6 connosco mas também depois de n6s. O «nós» postopara trás, espoliado, decididamente demasiado combinado, demasiadoseguro de si e arrogante na sua colocação em escala. Gostaria de dizer,pela centésima vez: as «pequenas sensações» segundo Cézanne.A desolação do interior.
Mil maneiras de obter esta. Uma orgia alimentar ou o jejum, o tabaco, a erva, o 'farniente' e o excesso de trabalho. Mas ela quer sempre um DEMAIS (o demasiado pouco incluido). Para ser passivei dapaisagem, é necessário tornar-se impassível em relação ao lugar. O lugar é natural, encruzilhada dos reinados e de Homo-sapiens. Minerais,vegetais, animais ordenam-se ao saber e, este último dá-se a eles deforma espontânea. São feitos, seleccionados um para o outro. Mas apaisagem significa demasiada presença. O meu saber-viver não é suficiente, uma vista de olhos sobre o inumano e/ou o imundo. Será umaordenação, pelo menos, uma outra ordenação, como é sugerido porKant na sua vesania? Uma deslocação do ponto de fuga? Talvez maisa fuga do seu ponto de poiso.
Seria necessário descrever, conseguir descrever. Pesquisa do ritmodas frases, escolher as palavras, de acordo com o seu afastamento singular, em relação ao hábito fonético, trabalhar de novo as sintaxesacordadas. Aproximamo-nos da singularidade e do efémero. - Mastalvez seja impossivel descrever com exactidão espiritual de alma (nemsequer falo de sentimento), sem contar como aconteceu ou quandoaconteceu: sem enquadramento. Porque, então, poderemos acreditarque a força dissolvente da paisagem é melhor sentida pelo facto de interromper as narrações. A oposição deveria então ser procurada, nãotanto no léxico, na sintaxe, na fonia, mas entre dois géneros, o de narrar e o de mostrar, os quais representam dois tempos. - Mas estaoposição não é cínica. O espirito pousa, repousa também, se põe e torna a por-se, na actividade narrativa. Quero dizer que estabelece, mesmo com os mais intrigantes artificios, a sua persistência, a sua postura e uma segurança do tempo. Fá-lo correr e apressa-o, mas retém-notambém, fá-lo regressar, enrolar-se em volutas, escapar e alcançar-se asi pr6prio(. Enquanto que a paisagem simplesmente o apanha. O quechamamos,descrição não é mais do que um processo literário que coloca a actividade do espirito ao mesmo nivel da sua postura narrativa,reduzindo-se então a diferença a alguns shiftings, sobre os indicadores
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temporais (pronomes, tempos verbais, advérbios, etc...). Redução operacionalista daquilo que é, «na realidade», um abismo ontológico.Não digo que não tenha algum pertinência: de que forma apontar demaneira diferente, que a textura da escrita, o sopro que aspira o espírito para o abismo, quando chega a paisagem? Devemos no entanto eapesar desta aproximação conscienciosa, ou com ela, conservar a ideiade que narrar e «mostrar» não são duas posições do espírito ou apenaso são após pagar o preço do esquecimento da incomensurabilidade entre um e outro, a ideia de que mostrar (a paisagem) já depende da reposição ou da rendição, que já o espírito ali se ergue, ao erguer essapaisagem, mas que a paisagem ergueu-se «primeiro» diante do espíritoe que, então, essa destreza quebrou-o, «desapossou-o» (como se desapossa um soberano) , fê-lo vomitar-se em direcção ao nada do ser-ali.Na descrição, a escrita tenta aceitar o desafio, igualar-se à sua ausência de então. Não só é sempre tarde demais (nostalgia), como tambémas próprias palavras parecem ser empecilhos no meio desse estado devazio (melancolia, permanecemos sempre em dívida com a paisagem,luta impossível). A poesia é engendrada pela compreensão dessa miséria; se assim não for, apenas é a encenação e a produção dos poderesda linguagem. Ela é a escrita da descrição impossível, a DESCRITA.E, não devemos confundir esta diferença entre descrever e contar como diferir, a qual é a sorte atribuída ao espírito quando tenta apreender-se, quer seja pela lógica, pela teoria do conhecimento ou da literatura, pela narração ou pelo ensaio. O que está em jogo na «descrita»poética, é a matéria enquanto paisagem e não as formas pelas quais sepode inscrever. A poesia tenta não domesticar as formas que foram alinguagem, não oferecer a inscrição que retém o acontecimento (dapaisagem). Tenta passar antes do recuo.
Assim, temos que nos corrigir mais uma vez, sem cessar: não é adesorientação que fornece a paisagem, mas o inverso. E a desorientação que a paisagem engendra não depende da deportação de uma organização sensorial, num sensorium diferente, por exemplo, da fragrância dos perfumes para a fragrância das cores ou para as luzes dostimbres. Esta desorientação é absoluta, a implosão das próprias formas, as quais são o espírito. É necessário imaginar a marca representada pela paisagem (e que ele faz e abandona), não como uma inscriçãomas como o apagar do suporte . Se dele sobrar alguma coisa, será estaausência que vale como um sinal para uma presença pavorosa onde o
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espírito FALTOU. Faltou, não porque se procurava e não se encontrou, mas (temos que comparar) como quando se diz que um pé faltae que por isso se cai ou que nos faltam as pernas e que permanecemosimóveis, sentados num banco, olhando para uma janela iluminada evazia.
Para um bebé, a face da sua MÃE deve ser uma paisagen. Nãoporque nela passeiam a sua boca, os seus dedos, o seu olhar , agarrando ou chupando de tudo um pouco, cegamente, extasiando-se, chorando e por vezes aborrecendo-se. Não será também porque está «em simbiose» com ela, como se diz. Demasiada actividade, por um lado e demasiada conivência por outro, de preferência, será necessário pensarno indescritível dessa face, em relação à criança. Tê-la-á esquecido pornão ter sido inscrita. Se houver excesso, será um excesso de marca, umdemasiado pouco de suporte. O «primeiro» acto da «posteridade» queFreud tentava elaborar de um ponto de vista demasiado psicológico.Esta mãe seria o timbre, «antes» de soar, «antes» das coordenadas dosom, antes do destino .
Se me perguntarem: mas, ao fim e ao cabo, onde ocorre a sua paisagem? É-me prescrita uma topologia e uma cronografia da marca querepresenta essa mesma paisagem. É no entanto verdade que as paisagens não formam, no seu conjunto, uma história e uma geografia.Não formam nada, não se juntam. Como afirmar que têm um aspectofamiliar, se os seus limites são indefiníveis (onde pára o parentesco? ainstituição decide), localiza-se (os seus membros vivem «debaixo domesmo tecto»), articula-se (de acordo com as categorias; pai, filha,primo materno, etc... ), hierarquiza-se eventualmente (árvore genealógica), a partir de um centro escolhido de forma arbitrária (ego). Nãoacontece nada semelhante com as paisagens: podem não ter nenhumassemelhanças, datar de épocas estranhas umas às outras, etc... Dizemosque dependem de um espaço-tempo imaginário. Penso que não têmnada a ver com a imaginação, no sentido visual da palavra (na obra deLacan também), com uma síntese de formas, mesmo livres. Onde equando ocorreu, não é um facto assinalado. São vislumbres ou pequenos toques que cegam e anestesiam. Uma QUEIXA da matéria (ou seja, da alma) acerca dos limites dentro dos quais é aprisionada pelo espírito.
É somente depois, «após» ter sido paisagem, mas também quandoainda o é, que a face se cobre com o rosto, descobre o rosto. Esquece-
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-se a INOC~NCIA do vaguear nele. Vão e vêm prescrições entre tu eeu. A lei agarra o olhar, as asas do nariz, o beicinho e os parietais, oapoio da caixa craniana sobre os cervicais. É necessário decifrar, ler eperceber tanto os traços como os ideogramas. Já não há cabelo, a luzirradia da pele, a qual escapa à disciplina. Através da paisagem antiga,entre os seus restos, a lei faz um sinal de indignação, de súplica, deangústia, de desgosto, de abandono. Diz: Vem, Espera, Não podes,Escuta, Suplico-te, Toma, Vai e sai. Quando a tragédia cria a cena daspaixões e das dívidas, evacua a paisagem. - E, no entanto, se ficaremapaixonados, realmente apaixonados, a fuga da face continua a sugar-vos enquanto se inclinam perante a lei que emana do rosto. E é assimque deixam de saber quem são. Demasiado inocentes para o amor sesentem apenas a derrota devida ao excesso de presença, demasiado espertos se tentam apenas obedecer ao peremptório. O que vem do outro, no amor, não é um pedido simples, sob o imperativo da dependência e sem que o amado (a) o saiba, o nada da paisagem representado pela sua face, exerce sobre o vosso espírito uma desolação muitodiferente . Não sois apenas o seu refém, sois também o seu viajanteperdido.
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DOMUS E A MEGALÓPOLE
A representação de uma fachada. Bastante larga , não necessariamente alta. Muitas janelas e portas, contudo cega. Como ela não olhapara o visitante , não espera o seu olhar. Para quê estará ela virada?Pouca actividade. Suponhamos que está bastante calor lá fora. O pátio está cercado por paredes e construções . Uma árvore alta, qualquerárvore : salgueiro, castanheiro, tília, um tufo de pinheiros. Pombas,andorinhas. A criança levanta o olhar. Suponhamos que são sete horasda tarde. Na mesa da cozinha está o leite, o cesto com ovos, o coelhoesfolado . Em seguida, cada fruges segue o seu destino, cremes, «souillarde» muito fresca, marmita, estante. Os homens regressam. Coposde vinho fresco. 'Desenha-se uma cruz no ventre do pão gordo. Janta-se. Quem se levanta para servir? Tempo comum, senso comum, lugarcomum. O da domus, o da representação, o meu aqui.
Existem variantes para o lugar comum, a choupana, o solar. A ostentação das fachadas . Os comuns deslocam-se, afastados da residência dos patrões. Em vez das pradarias e das sementeiras, os parques,os jardins de lazer oferecem-se à fachada . Lazer e trabalho partilhamo espaço-tempo e os corpos . Esta partilha é uma questão séria, de sociólogo. Mas, no fundo, vasta ou não, dividida ou não, na exploração, o fundo permanece doméstico. É o movimento do domínio, umamónade. Um modo do espaço, do tempo e do corpo, sob o regime danatureza. Um estado do espírito, da percepção, da memória limitadanos seus confins, mas onde o universo se representa . É o segredo dasfachadas. Acontece o mesmo com o «actuar». Os fruges são obtidos
Texto de uma comunicação no Colóquio «Le non sens cornrnun» organizado emUrbino em Julho de 1987 pelo Centro Internazionale di Semiotica e di Linguistica e peloCollege internacional de philosophie, por iniciativa de Paolo Fabbri, Maurizio Ferraris,Jean-François Lyotard e Pino Paioni. Publicado in Poesie, 44, 1988.
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naturalmente da natureza. Produzem-se, destroem-se, reproduzem-secom obstinação e de acordo com a ordem das coisas. De acordo com aatenção da natureza para com ela pr6pria, a que chamamos frugalidade. Alia domenica, domus dá graças ao que tem lugar e momento esuplica pelo que terá lugar e momento. O regime temporal da domus éo ritmo ou a rima.
A linguagem doméstica obedece ao ritmo. Contam-se: as gerações,os meios ambientes, as estações, o juízo e a loucura. A narração fazrimar o início e fim, cicatriza as interrupções. Cada um na casa, encontra o seu lugar e o seu nome, e os episódios anexos. O seu nascimento e morte também se inscrevem, irão inscrever-se no círculo dascoisas e das almas consigo próprias. Somos tributários do deus, a natureza. Apenas servimos o desejo, desconhecido e bem conhecido, daphusis, que se põe ao serviço do seu empurrão, do phuein que empurra as matérias vivas para o crescimento, a diminuição e para o crescimento, de novo. Este serviço chama-se labor. (Com a estranha vontade, por vezes, de beneficiar também, e que o domicílio beneficie também, do crescimento? Podemos perguntar-nos isso. A sabedoria ritmada guarda-se contra a pléonexia, o delírio de um crescimento sem regresso, de uma narrativa sem respiração.)
Ancilla, a serva. De ambi e colere, ambi-cilla, aquela que roda àvolta, velho significado de colere, cultivar, administrar cuidados.A cultura tem um significado duplo: culto dos deuses, mas os deusestambém colunt domum, cultivam a casa, têm cuidado com ela , cultivam-na com a sua circunspecção. A serva protege a ama, já que serviré cuidar. Quando se levanta para servir à mesa, é o deus natureza quecultiva a casa, que se sente bem e se circunstancia nela. O espaço doméstico enlaça-se e entrelaçam-se com as circunvoluções, com as ida s evindas da conversação. O serviço dá-se e devolve-se sem nenhum contrato. Dever e direito naturais. Tenho dificuldades em acreditar que esta vida orgânica tenha sido a «forma primitiva do intercâmbio», comodizia Mauss .
É uma comunidade que pôs a mão à obra. Não pára de obrar. Elapr6pria obra as suas obras. Estas operam e distribuem-se por si, através do costume. A criança é uma delas, a primeira, o primeiro fruto,the offspring, Dará frutos. No ritmo doméstico, é o momento, o suspenso da retomada, o germe. É o que terá sido. É a surpresa, a narrativa que recomeça. Não falante, infans, ele balbuciará, falará, terá
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narrado, será narrado, terá sido narrado. A obra comum é a própriadomus, ou seja: a comunidade. É a obra de uma domesticação repetida. O costume domestica o tempo, o tempo dos incidentes e dos acidentes, e o espaço, mesmo de paragens incertas. A memória não seinscreve somente nas narrativas, mas também nos gestos, nas atitudesdo corpo. E as narrativas são como gestos, relacionados com gestos,com lugares comuns, nomes próprios. As histórias falam-se sozinhas.São a linguagem a honrar a casa e a casa a servir a linguagem. Os corpos fazem uma pausa e a palavra continua a sua obra nas salas, noscampos, no meio dos bosques. Muito ricas horas, mesmo as pobres.O passado reitera-se na obra. Fixa-se, ou seja: retém-se e esquece-se,em legendas. A domus é o espaço-tempo dessa reiteração.
A mónade doméstica não tem necessariamente a obrigação de excluir. O pobre vagabundo, o viajante solitário tem o seu lugar à mesa.Que mostre os seus sentimentos, o seu talento, que conte a sua história. Também nos levantamos por causa dele. Silêncio breve, um anjopassa. Prudência. Se fosse um mensageiro? Depois, preocupar-nos-emos com a sua memorização e domesticação.
Quadro bucólico. Boukolein não quer dizer unicamente que guardamos o rebanho. Mas humanos também, é o cuidado, o serviço. Noentanto, a domus só tem um aspecto bucólico vista do exterior, delonge, da cidade. A cidade leva séculos, milénios para terminar a domus e a sua comunidade. A cidade política, imperial ou republicana, acidade que se torna um centro de negócios económicos, hoje, a megatopole estendida pelos campos situados em redor. Coloca os res domesticae num retiro, num sufoco, para o turismo, em férias. Não conhecesenão o domicílio. Dá uma casa aos chefes de família, os domini, submete-os à cidadania igualitarista, ao assalariado e a uma outra memória; o arquivo público escrito, mecanográfico, electrónico. Cadastra osdomínios e dispersa a sua ordem. Quebra o deus-natureza, os seus regressos, o seu tempo de oferenda e de benefício. Criando-se uma outraregulação do espaço-tempo, é a partir dele que o regime bucólico sevislumbra como uma sobrevivência melancólica. Tristes trópicos vistosdo Norte.
Um sabor dos sons. Vindos do próximo longínquo, fundo dos estábulos, tagarelices, silêncio cavado à volta do apelo dos corujões quando Vénus brilha no pôr do Sol, crepitação do braçado de folhas deamieiro lançado no lume, socas nos patamares, conversas na colina em
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frente, abelhas à volta do melão, encorajamentos gritados aos bois doOutono, gaivões embriagados de se perseguirem no crepúsculo dos telhados. Os sons timbram-se segundo o acre-doce, o fumado, a sensaboria do feijão fervido, a vinhaça acre , o fermento das palhas quentes.Os timbres comem-se. Os sentidos menores eram honrados, na domusfísica.
O que penso da comunidade doméstica só se ouve do sítio em queestou a falar, do mundo humano que se tornou megalópole. O mundoapós a morte de Virgílio. Após o fim das casas. No fim dos Buddenbrock. Agora, é necessário ganhar tempo e espaço, ganhar sobre eles econtra eles, ganhar a vida. Enquanto que a regulação das coisas, doshumanos e das potências se faz exclusivamente entre humanos, semnatureza para servir, segundo o princípio de um intercâmbio generalizado para obter mais .. . Na azáfama «pragmática» que dispersa as antigas mónades domésticas e atribui a tarefa de memorizar ao arquivoanónimo. Memória de ninguém, sem costume, sem história nem ritmo.Memória dirigida pelo princípio da razão, que esquece a tradição, onde cada um procura e encontrará como puder a informação que lhe énecessária para fazer a sua vida, a qual não leva a nada. Nascimentodas individualidades na dispersão, dizia Marx, das singularidades na liberdade segundo Nancy. As fachadas dominiais ainda de pé, porqueas conservamos, atestam o velho éthos ausente. Rachadas pelas radiações da telecomunicação. Empreendidas pelas interfaces.
Hoje em dia conhecemos isto tudo de cor, até à exaustão. Esta lenta retirada da vida doméstica, neolítica, conhecemos o que devemoschamar, aqui, a revolução do regime espacio-temporal do estar-conjunto. Não é muito difícil, sem dúvida, mostrar que o Gestell, segundoHeidegger só se pensa, no regresso, a partir da conservação domésticade uma ideia do serviço. A qual não induz somente, em grande parte,o motivo da sua Dichtung filtrada em H õlderlin, mas Dienst divididoem três (em serviço de pensamento, de guerra e de trabalho, como nocaso de Dumézil) apresentado pelo Discours de rectorat. Assim, sabemos o quanto a nossa melancolia em relação à domus está relacionadacom a sua perda. Mesmo a tragédia grega, esse enigma, sabemos que énecessário decifrá-la por meio da grelha da de-dominação, de-domesticação. A nova lei, a da polis e do seu direito, Thêmis, ignora a regulação ancestral e doméstica do génos. Mas, não estamos pagos destaconta histórico-sociológica, com a tragédia. A nossa distância, a nossa
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violência antidoméstica provoca o discernimento, no quadro das casas,de uma outra cena.
Nesta cena, a serva de grande coração é impura. O serviço é suspeito, irónico. A obra comum é assombrada pelo desastre. O respeitoé fingido, a hospitalidade despótica, o senso comum obcecado pelodesterro do insensato, a sua dissimulação no interior. Alguma coisapermanece indomável na dominação que pode interromper os ciclos.A mónade doméstica está dilacerada, farta de histórias, de cenas, assombrada por segredos. Violências esquartelam-na até que se rompa,injustiças inexplicáveis, afeições recusadas, mentiras, seduções aceites,insuportáveis, roubos , concupiscências. Freud faz-nos ler de novo,através de Sófocles e Shakespeare, a tragédia das casas gregas nessaobscuridade do furor. A generosa finalidade do deus-natureza, que osfilósofos trataram com amor, a reconciliação, o ser-conjunto como umtodo, cada um no seu lugar, cuja domus é a figura sábia , o nascimento esperado e a bela morta, tudo isto é quebrado pelo mal. Um malque nem mesmo é feito. Um mal de antes do mal, uma dor mais antiga e mais nova do que os sofrimentos sentidos. Uma dor sempre fresca. Bem no fundo da domus, rumor da antinatureza, ameaça da statis,da seditio. Pai, mãe, criança, serva com o coração de oiro, sobrinha,velho empregado doméstico, pastor e agricultor, jardineiro, cozinheira,todas as figuras tranquilas, o canto do parque debaixo da figueira , opequeno corredor para as confidências, o sótão e os seus cofres, - tudo está sujeito a crimes obscenos. Alguma coisa na domus não queirao bucólico.
Algo não quer esta inscrição, recorrente, e não sou eu. Do seu lugar na hegemonia doméstica, pelo contrário, o «eu» quer a sua partede memória, fazer e refazer o seu lugar no espaço-tempo e na narrativa. O filho quer ser o dominus por sua vez. A filha, a domina. E odoméstico, claro, o patrão, aqui ou noutro sítio. Os negócios e as azáfamas do eu, as ambivalências , as hesitações e as contradições, as pequenas manhas e estratégias, a natureza doméstica permanecem intocadas. Perseguem os seus fins através da intriga que pode consertar, consertará. Inscreverá isso na sua memória , um episódio na circunspecção, na conservação. Mas o resto? O que não se resolve no sacrifício,na oferta, no acolhimento? O pródigo, o dissipado, a fúria? Isto nãopertence, organismo doméstico, isto é banido nas suas entranhas.
Mais ainda do que a cidade, a república ou mesmo a fraca associa-
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ção permissiva de interesses e de opiniões dita sociedade contemporânea, - é estranho que, mais do que qualquer desses estados de reunião do diverso, a domus se pareça com o indomável. Como se o deus-natureza que a cultiva se desdobrasse num antideus numa antinatureza, atarefado em fazer mentir o bucolismo. A violência de que falo excede a guerra vulgar e a crise económica e social. Ao inverso, e apesarda sua generalidade ou por causa dela, a crise e a guerra só se encarniçam quando lhes é insuflada a respiração e a asfixia doméstica.As próprias casas já estão arruinadas há muito tempo, basta activar amemória de um domínio ou de uma fábula perdida (um espaço vitalcomum, o mito de uma origem pura comum) para que a comunidadepolítica, económica, desfile e se parodie em gens, em domus ultrajada.Então, o conflito, a crise movem-se em statis, em seditio, como seacreditassem num habitus doméstico que pensávamos estar em desuso.O indominado, o indomável, outrora escondido na domus, desencadeia-se no homo politicus e economicus, mas sob a antiga égide doserviço, do Dienst. Dir-se-á que é necessário que a matéria participávelse densifique à escala estreita da domesticidade para que a antimatérialiberte o seu ódio de todo o seu corpo. O homo re-domesticus no poder, mata nas ruas com o grito: não pertences à minha casa. Faz dohóspede o seu refém. Segue tudo o que migra. Coloca-o em segredonas caves, redu-lo a cinzas nos fundos. Não é a guerra, ele devasta.A hybris acaba com o modus doméstico. E a remodelação domésticaterá servido para desencadear a hybris.
A ruína da domus torna possível esta fúria, que continha e que seexerce em seu nome. Mas tirando este caso, o caso do mal, é-me difícilpensar que, em geral, a libertação das singularidades fora do espaço-tempo doméstico favoreça, por si própria, a libertação do pensamento. Pode ser que o pensamento só tenha por tarefa testemunhar o resto, o indomável, o que lhe é incomensurável. Mas, quem diz testemunho diz rasto, e quem diz rasto diz inscrição, Retenção, permanência.Ora qualquer memória faz obra. De modo que, no próprio momentoem que o pensamento testemunha que a domus se tornou impossível eque a fachada está, de facto, cega, faz apelo à casa, à obra, na qualinscreve esse testemunho. E o facto de haver muitas casas na megalópole de hoje, não significa que já não haja obras, nem que se deixe deobrar. Significa que as obras são destinadas à ociosidade, privadas defachada, apagadas por causa do seu amontoamento. Bibliotecas, mu-
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seus: a sua riqueza é a pr6pria miséria dos grandes conjuntos de habitações de baixo aluguer. A domus permanece, permanece como impossível. O meu lugar comum. Mas impossível não é somente o contráriode possível, é um dos seus casos , o caso zero.
Acordamos e não estamos felizes. Nem pensamos em refazer umacasa nova e verdadeira. Mas também não queremos abafar a velha infância que resmoneia o nosso acordar. O pensamento acorda no meio,no meio de palavras muito velhas, carregadas de mil domesticidades.Os nossos servidores, os nossos donos. Pensar, que é escrever, significa acordar neles uma infância que esses velhos ainda não tiveram. Istonão existe sem desrespeito, seguramente, mas com respeito também.Bem forçado. Avançamos, mas o passado nas palavras espera láadiante. Faz pouco de n6s. E isto não significa que avançamos às arrecuas, como o anjo de Benjamin. De qualquer forma, é apenas ao último dos homens, ao nihilista, que o desastre da domus e a subida paraos astros da megal6pole podem provocar alguma felicidade (negativa).
"-Não só ao engenhoso que se lança à frente do que advém para contro-lá-lo, mas ao seu primo, o fil6sofo de boa vontade que faz virtude daociosidade. Não podemos pensar e escrever sem que pelo menos umafachada da casa se erga, fantasma, para receber e fazer obra das nossas peregrinações. Perdida atrás dos nossos pensamentos , a domus étambém uma miragem em frente, a permanência impossível. Filhospródigos, engendramos a sua frugalidade patriarcal.
Assim, o tempo perdido busca-se à frente . O início, o acordar, dá-se apenas no fim, como a sua inscrição, pela escrita da pesquisa, emobra. A qual deve sempre ser relida e recomeçada. E, a residência daobra só é construída a partir desta passagem do despertar para a inscrição do despertar . Esta passagem, também ela, não cessa de passar.E não há um tecto onde, por fim, o despertar acabará, onde seremosacordados e onde a inscrição terá acabado de se inscrever. Não há domus como rima do tempo, é verdade. Mas, a nostalgia da domus perdida é o que desperta e o nosso dominio é hoje a inscrição desse despertar. Assim, apenas um trânsito, uma transferência, uma translaçãoe uma diferença. Não é a casa que passa, como um mobile home ou acasa do pastor, é passando que ficamos.
O único pensamento, mas abjectivo, objectivo, rejectivo, capaz depensar o fim da domus, talvez seja o que é sugerido pela tecno-ciência,A m6nade doméstica ainda estava quase nua, como dizia Leibniz, um
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meio muito pequeno para memorizar, praticar e inscrever. Decompõe-se à medida que se forma a grande m6nade, mais complexa, à queHeidegger dá o nome de Gestell, isto a partir de um pensamento muitodiferente que se decide de forma muito diferente. Muito mais completo, muito mais capaz de programar, de neutralizar o acontecimento ede armazená-lo, de mediatizar o que acontece, de conservar o queaconteceu. Incluindo 6b via e principalmente o indomável, o resto doméstico incontrolado. Fim da tragédia, flexibilidade, permissividade.O controlo já não é territorizado nem historicizado. É computadorizado. É um processo de complexificação, dizem eles, que ninguém, nenhum «eu», nem o da humanidade, move ou deseja. Zona c6smica,outrora chamada terra, agora minúsculo planeta de um sistema estelar pequeno, numa galáxia assaz modesta - mas zona onde actua anég-entropia. A domus era simples demais, deixava demasiados restosque não conseguia domar. A grande m6nade tecno-científica não precisa dos nossos corpos terrestres, das paixões, das escritas, guardadasoutrora na domus. Necessita dos «nossos» cérebros maravilhosos.Quando evacuar o sistema solar moribundo, a grande mónade, a qualé cosmicamente competitiva, não irá levar com ela o indomável. Antesde sofrer a implosão, como os outros corpos celestes, com o seu sol, apequena terra terá legado à grande m6nade megalopolitana espacial, amem6ria deixada, durante um momento, ao cuidado da mais inteligente das espécies da terra. Mas, a única memória útil para a navegaçãoda m6nade no cosmos. Dizem eles.
A metafísica é realizada na física , num sentido amplo, e, hoje emdia, actua na tecno-ciêncía. Reclama-nos, por certo, um luto diferentedaquele exigido pela filosofia do desastre e da ociosidade. O partidoque é tomado não é o do indomável, mas sim o da sua negligência. Defazer física (quase leibniziana) do inconsciente, assim o poderíamos dizer. Não é preciso escrever, infância, dor . Pensar consiste em contribuir para a melhoria da grande m6nade. É isto que nos é pedido obsessivamente. É necessário pensar de forma comunicável. Fazer cultura. Não para pensar segundo o acolhimento do que vem singularmente. De preferência para prevê-lo. To success is to processo Melhorar asperformances. É uma domesticação, se assim o queremos, mas semdomus. Uma física sem deus-natureza. Uma economia onde tudo éapreendido e nada recebido. E, obviamente, um analfabetismo. O respeito e o desrespeito da leitura severa e serena em relação ao texto , da
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escrita para com a língua, essa enorme casa sempre inexplorada, a idae vinda indispensável no labirinto desses quadros vazios, sempre desertos - a grande mónade não tem cura para isso. Apenas vai e constrói.Promoção. É o que exige dos humanos. Com o nome de «actuaçãocomunicacional», de «conversação» e de relegação da filosofia, de performatividade, é-nos pedido que pensemos de forma útil. Útil para acomposição da megalópole. Ainda hoje fico surpreendido que essa exigência consensualista possa ser entendida como se emanasse da ideiadas Luzes. Enquanto que ela resulta da cornplexificação dos conjuntosmateriais, dizem os engenhosos. ( .
Ainda havia a domus na metrópole, polis-métêr, cidade mãe, matere património. A megalópole refere-se apenas a uma grandeza que ultrapassa a escala doméstica . A filiação, a preocupação do passado nãosão o seu forte, Ela não é cidade, mas sim urbs. E urbs torna-se orbspor si própria. Esperávamos um cosmopolitês, não é preciso um mégapolitês. São necessários engenhosos. É preciso combinar todos os mundos possiveis permitidos pela enorme memória da megalópole. Osseus circuitos electrónicos são depositários de uma potência de que oshumanos não necessitam, nem têm ideia: energia armazenada e capaci- .dade dos possiveis. Com a ideia antiga de dunamis, o mundo era esquematizado como uma natureza, e a natureza como uma domus. Osacontecimentos domesticados com uma finalidade única, sensivel.A megalópole por seu lado, concebe cenários de exilio cósmico ao juntar particulas.
Baudelaire, Benjamin, Adorno. Como viver na megalópole? Testemunhando da obra impossivel, alegando a domus perdida. Apenas aqualidade do sofrimento merece ser testemunhada. Incluindo obviamente o sofrimento devido à linguagem. Só vivemos na megalópole sea designarmos como inabitável. Se não, apenas lá temos um domicilio.No limite do tempo descontado (a segurança), esperar a catástrofe doinstante, escreve Benjamin. Na transformação inevitável das obras emmercadorias culturais, manter o testemunho esmagador de que a obraé impossivel, escreve Adorno. Habitar o inabitável, é a condição dogheto. O gheto é a impossibilidade da domus. O pensamento não estáno gheto. Cada obra à qual o pensamento pródigo se resolve escondeo muro do seu gheto e serve para neutralizar o pensamento. Pode apenas deixar a sua marca no tijolo. Fazer graffiti nos média, última prodigalidade, última homenagem à frugalidade perdida.
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o que a domesticidade regulava era exigido pela selvajaria. Precisava do seu fora de cena no seu interior. As histórias que conta só falamdisso, da seditio que repousa no seu seio. A solidão é seditio. O amoré seditio, Qualquer amor é criminoso. Não tem cuidado com a regulação dos serviços, dos lugares, dos momentos. E , a solidão do adolescente na domus é sediciosa porque possui, no suspense da sua melancolia, toda a ordem da natureza e da cultura. No segredo do seu quarto, inscreve sobre nada, na intimidade do seu jornal, a ideia de umaoutra casa, da vontade de qualquer casa. Como o Winston de Orwell,inscreve o drama da sua incapacidade diante da lei. Como Kafka. E osamantes não têm nada para contar um ao outro. São destinados à deixis: isto, agora, ontem, tu. Destinados à presença, vazios de representação. Mas, a domus fazia legenda e representação desses silêncios edessas inscrições. Ao contrário, a megalópole exibe-os e torna-os comunicáveis. Chama à melancolia autismo e ao amor sexo. Do mesmo modo que os fruges são chamados produtos agro-alimentares. Os segredos devem ser postos em circuitos, as escritas em programas, as tragédias transcritas em informações. Protocolos de transparência, cenáriosde operacionalidade. Apesar de tudo aceito a vossa domus, é vendável,a vossa nostalgia, o vosso amor, deixe isso comigo. Pode ter algumautilidade. Capitaliza-se o segredo depressa e bem. Mas a megalópolenão sabe que o segredo não é segredo de nada, que é inculto, insensato, já na domus. Ou, de preferência, só tem uma ideia desse facto.Enquanto que o segredo, porque consiste no único timbre de uma matéria sensível, sentimental, só é acessível para a estupefacção.
Apenas queria dizer isto, ao que parece. Não que a domus é a figura de comunidade que pode ser uma alternativa para a rnegalópole.Acabou a domesticidade e, sem dúvida, nunca existiu, a não ser comourt} sonho da criança de..outrora que acorda e que a destrói ao acordar. Surge com a criança cujo despertar a desloca para o horizonte futuro dos seus pensamentos e da sua escrita, numa vinda que deverásempre ser atrasada. É assim, não como uma superfície de inscriçãoque estaria verdadeiramente ali, mas como um corpo astral desconhecido que exerce de longe a sua atracção sobre a escrita e o pensamento, de preferência como uma miragem 'que requer como uma condiçãonecessária - é assim que o mundo doméstico não pára de se exercersobre a nossa passibilidade em relação à escrita, até ao desastre das casas. Hoje, o pensamento não requer, não pode requerer, a memória
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representada pela tradição, a phusis bucólica, o tempo que rima, a beleza justa. Ao recorrer aos seus fantasmas, ela tem a certeza de errar,quero dizer: fará fortuna no retro distribuído também pela megapolis(pode ser útil). O pensamento não pode querer a sua casa. Mas a casaassombra-o.
A casa não assombra o pensamento de hoje como prendia o indomável ontem, obr igando-o ao tráfico. O indomável era trágico porqueestava situado no regaço da domus. O esquema doméstico resistia àviolência de um timbre que era, no entanto, irresistível. O cursus trágico põe em cena esta incomensurabilidade entre o belo ordenamento deum espaço-tempo rimado e o extravio provocado pelo encontro com osublime de uma matéria não preparada, o sotaque de uma voz, o matiz de uma íris, de uma pétala, a fragrância de um odor. Um interditono sempre já dito, a estupefacção. Uma paixão estúpida levanta-se namassa doméstica. Como se o deus deixasse cair a parte que lhe cabiana tarefa comum. Deixasse tocar a cru a matéria do tempo e do espaço. Todavia este abandono, esta falência, a domus ainda pode levantá-los, representa-os na tragédia. Indomável dominado, sublime respeitodas regras do belo, fora de lei redestinado. - Eis porque a megalópole não permite que se escreva, que se inscreva, que se «viva» não só asbucólicas mas também as tragédias. Tendo dispersado os esquemas domésticos. Assim, o indomável não é aqui representável. O timbre éatribuído por ela ao gheto. E, não é o «bom e velho» gheto que tolerava a domus, esse que era um pouco doméstico e domesticado. É ogheto de Varsóvia, administrativamente destinado à Vernichtung, afrente «afastada» da megalópole. É necessário exterminá-lo porqueconstitui uma opacidade vã no programa da mobilização total para atransparência.
Onde o indomável encontra algo para atacar é na carne doméstica.Onde a devasta, onde a reduz, a amansa, a elimina. Vão juntos, noseu diferendo insolúvel. Com o nazismo, a grande mónade em formação mimou a domus. Daí a obstinação excepcional, que procedia dareconstituição (artificial) da carne. Será que isto continua a ser umatentação constante mesmo após o nazismo? É de qualquer modo necessário poder controlar o indomável, se a grande mónade tiver de sercompetente e competitiva. Tudo deve ser possível, sem resto, com aengenhosidade. Mas, justamente, a domus não é suficientemente engenhosa, a exterminação faz aparecer demasiados hubris, é necessário
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operar de forma mais racional e mais aberta. Mais operacional, menosreactivamente terráquea. O segredo não deve envolver a destruição dosegredo. A comunicação e a cultura levam a cabo essa destruição, e deuma forma mais perfeita. Analisaremos o timbre, poderá ser útil.O importante não é que o resultado seja um simulacro, a tragédiatambém o era. O importante é dominar, nem isso: tratar, tanto quantose pode, tudo o que se rebela contra a domus. Quanto ao resto, estádestinado à extinção, desmentido, vernichtet,
E também queria dizer o seguinte. - Bem, dizemo-nos (quem,n6s?), pois bem, pelo menos, continuaremos no gheto. Tanto quantopossível. Pensar, escrever, é, no que nos diz respeito, portar testemunho do selo secreto. Que este testemunho faça obra, em alguns casos,possa, pagando o preço do engano e do pior desprezo, ser colocadanos circuitos da megal6pole mediática, é inevitável, mas ó que tambémnão se pode evitar, é que a obra assim promovida seja desfeita, desconstruída, ociosa, desterritorializada, pelo trabalho de ainda pensar epelo encontro desestabilizador de uma matéria (com a ajuda, não dedeus, nem do diabo, mas da sorte). Testemunhemos pelo menos e ainda, e para ninguém, sobre o pensamento enquanto desastre, nomadismo, diferença e ociosidade. Façamos os nossos graffiti, à falta de gravar. - Isto parece de uma verdadeira gravidade. No entanto, digo-me:aquele que continua a testemunhar, e a testemunhar sobre o que écondenado, é porque não está condenado e sobrevive à exterminaçãodo sofrimento. Que não tenha sofrido o suficiente, enquanto que o sofrimento de ter de inscrever o que não pode ser inscrito sem resto, épor si mesmo o único testemunho grave. A testemunha da culpa e dosofrimento engendrada pelo diferendo do pensamento para com o quenão consegue pensar, essa testemunha, o escritor, a megalópole aceita-a de bom grado, o seu depoimento poderá servir. É como se o sofrimento e o indomável, atestados, já tivessem sido destruídos. Quero dizer: ao testemunhar, também se extermina. A testemunha é um traidor.
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Novos RumoS
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Volumes publicados:
1 - LEIS PLANETÁRIAS EM ELEIÇÕES GERAIS / Francisco Limpode Faria Queiroz
2 - O JOGO DA ATENÇÃO / Marl y Kuenerz
3 - OS EXTRATERRESTRES / Manfred Cassirer
4 - PROGRAMAÇÃO NEUROLINGUÍSTICA / Gustavo Bertolotto Valiés
5 - A TÉCNICA DO TAl-CHI / Ángcl Fern ándcz de Cast ro
6 - O CARI SMA / Stephanie Barrat-God cfroy
7 - VAMPIROS / Konstantin os
8 - NA COMPANHIA DAS VOZES / Rommc, Eschcr, Cardoso e Oliveira
9 - O INUM ANO / Jean-Fr ançois Lyotard