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ManuelPedroFerreiraTeresaCascudo

(coord.)

MÚSICAEHISTÓRIA:ESTUDOSEMHOMENAGEM

AMANUELCARLOSDEBRITO

EdiçõesColibri

•CentrodeEstudosdeSociologiaeEstéticaMusical

UniversidadeNovadeLisboa

BibliotecaNacionaldePortugal–CatalogaçãonaPublicaçãoMÚSICAEHISTÓRIAMúsicaehistória:estudosemhomenagemaManuelCarlosdeBrito/coord.ManuelPedroFerreira,TeresaCascudo.–(Estudosmusicológicos;18)ISBN978-989-689-662-1I–FERREIRA,ManuelPedro,1959-II–CASCUDO,Teresa,1968-CDU78

TítuloMúsicaehistória:estudosemhomenagemaManuelCarlosdeBritoCoordenaçãoManuelPedroFerreiraTeresaCascudoPaginaçãoLuísaGomesEdiçãoEdiçõesColibri/CentrodeEstudosdeSociologiaeEstéticaMusicalIlustraçãodacapa[Jovemcantoraacompanhadaporflautista],BibliotecaNacionaldePortugal,cotae-1129-vDepósitolegal424195/17Lisboa,Junhode2017

Índice

TabulaGratulatoria viiHistoriaravidamusicalportuguesa:Umpercursoexemplar xiPublicaçõesdeManuelCarlosdeBrito xviiEnsaios OcadernoBarbierieasCantigasdeSantaMaria:Umanotaderodapé ManuelPedroFerreira 3RelatingHistory:MusicandMeaningintheRelacionesoftheCanonizationofStRaymondPenyafort,Barcelona1601

TessKnighton 27PatternsforSixteenth-toEarly-Seventeenth-CenturyPortuguese

PolyphonicSettingsoftheRequiemMass JoãoPedrod’Alvarenga 53ApresençadoórgãonaliturgiaportuguesaentreoConcílio

TridentinoeaSecularização

GerhardDoderer 77Músicapolítica:Losembajadoresenlavidamusicaldelossiglos

XVIIyXVIII AnnaTedesco 143Música,cerimonialerepresentaçãopolítica:Sant’AntoniodeiPortoghesinocontextodasigrejasnacionaisemRomaduranteaépoca

barroca(1683-1728)

CristinaFernandes 155NaplesinOpera:PartenopebyDomenicoSarro(1722)andLeonardo

Vinci(1725)DinkoFabris 175ElFaccoqueseve AníbalEnriqueCetrangolo 201SobreosprimórdiosdacríticamusicalemPortugal PauloFerreiradeCastro 213GaietéetsensibilitédansSophieetMoncars,oul’intrigueportugaise(1797) MichelNoiray 229

x

FigaroandMusicalBarbersandHairStylistsintheTeatrodeCordel DavidCranmer 259OperaHousesinEighteenthCenturyPortugueseAmerica RosanaMarrecoBrescia 273OTeDeumeaobraconhecidadeLuísÁlvaresPinto:Atrajetóriadeumespóliodostrópicos–Cronologia(comentada)dasediçõese

registrosdiscográficosdisponíveis SérgioDias 283Elgranausente:ReflexionessobreelsigloXIXmusicalespañol JuanJoséCarreras 299Osprimeirospassosemdirecçãoàcríticamusical:Algumas

consideraçõessobreapresençadamúsicanaimprensadaLisboa

liberal(1822-1855)

FrancescoEsposito 309«Lesdeuxpigeons»easvicissitudesdoamor:Transferênciasculturais

eintertextualidadenoteatromusicaldeFranciscodeSáNoronha LuísaCymbron 331Política,risoecensura:OcasodaóperacómicaportuguesaAspenasdeumPavão(1868) IsabelNovaisGonçalves 357Tresóperas«montañesas»enlaprensa:Unestudiocomparativodela

recepcióncríticadeSerrana,LaFadayMendi-mendiyan TeresaCascudo 371OFadonacomposiçãoeruditadofinaldeoitocentos MariaJoséArtiaga 383«Contribuiractivamenteparaaeducaçãomusicaldosportuguezes»:

AugustoMachadoeareformadavidamusicalemPortugal JoaquimCarmeloRosa 403VisãoeperspectivasdoprojectoGermInArte:Aqualificaçãoderecursoshumanoseprofissionaisnoscuidadosprestadosnainfância

comoalicerceparaodesenvolvimentosocialehumano

HelenaRodrigues,PauloMariaRodrigues,PauloFerreiraRodrigues 423Notasbiográficasdosautores 441

Índicesremissivos 449

Política,risoecensura:Ocasodaóperacómica

portuguesaAspenasdeumPavão(1868)

IsabelNovaisGonçalves

Adécadade1860foiumtempodecriseemPortugal.Apósumpe-

ríododeimportantesreformaspolíticas,administrativaseeconómicas

realizadasnadécadaanteriorporimpulsodeFontesPereiradeMelo,o

país,cadavezmaisdependentedas importações inglesasedorecurso

aoempréstimoestrangeiro,entravanadécadade sessenta fortemente

endividado. A instabilidade política também era notável. Lutas parti-

dárias, alianças e oposições internasmarcaramos sucessivos e breves

governosdependormaishistóricoouregenerador,desembocandofinal-mente,em1865,numministériodefusãoquenãolograria,aindaassim,

aestabilidadenecessáriaparacontinuaroprogramadedesenvolvimen-

todopaís.Aopiniãopúblicaerareativa,manifestando-senaimprensa

tanto sobre a dívida externa como, e sobretudo, contra uma reforma

fiscal,entretantoproposta,quepesavafortementenoscontribuintesda

classe média. Em consequência, a revolta popular da Janeirinha no

Portodavaa4dejaneirode1868aestocadafinalnogovernodefusão.

Asrédeasseriamtomadasemmarçoporumnovopartido,oReformista,

deprogramaideológicopoucoclaro—neleentravamhistóricos,rege-

neradoreserepublicanos—ecomoCondedeÁvila, seguidoapartir

dejulhopeloMarquêsdeSádaBandeira,àcabeçadeumexecutivoque

voltava a chamar para a governação figuras polémicas de outras

legislaturas1.

1JoséMATTOSO(coord.),HistóriadePortugal.XOLiberalismo,[Lisboa]:CírculodeLeitores,2006-2008,pp.95sq.

IsabelNovaisGonçalves

358

E era mergulhada neste frenesim que a vida teatral de Lisboa ia

mantendoasuaatividade.Apesardacriseedadesestabilização,oupor

causadelas,tudoindicaqueseassistiaaummomentoparticularmente

auspiciosonopanoramateatraldacidade.1868foioanoOffenbachem

Lisboa.OsucessofenomenaldeAGrã-duquesadeGérolsteinnoTeatrodoPríncipeReal(29defevereiro),deOBarba-AzulnoTrindade(13dejunho) e de As Georgianas no Ginásio (29 de outubro) superou asmelhoresexpetativasdascompanhiaseempresáriosteatrais.Masoim-

pactodestasoperetasfoisobretudosignificativonaformacomomexeu

com o público e os críticos, ao introduzir o gosto por um género de

comédiamusicalquealiavaavivacidadeefrescuradamúsicadeOffen-

bachaohumorsatíricodoslibretosdaduplaMeilhaceHalévy2.

Jámuitosedisseeescreveusobreareceçãodestasoperetasnomeio

lisboeta e as estratégias de comunicação nelas envolvidas3.Mas inte-

ressa tambémapurar sedealguma formaaspráticas teatraisautócto-

nessofreramalgumamudança.Ésintomáticoqueempoucassemanas,

as mesmas companhias que estreavam Offenbach punham em cena

novasparódiascomtítuloscomoFuiveraGrã-duqueza(T.Ginásio,12deabrilde1868),QuemnoslivradaGrã-duquesa(deAugustoGarraio,T.Variedades,agostode1868)eOBarba-Azul II (deAntónioMendes

Leal Júnior, T. Príncipe Real, 6 de agosto de 1868), apresentando um

conjuntodeapropriaçõeseleiturasdosoriginaisquesãomerecedoras

de umestudodetalhado.Mas justifica-se igualmente discutir se a re-

percussãodorisodeOffenbach—queressooufortenoambientepo-

líticaesocialmenteagitadoemqueLisboavivia—chegouacontami-

nardesátirasocialecríticaàs instituições,aprópriacomédiamusical

originalportuguesa.AóperacómicaAs penas de umPavão4, estreada

2Para compreender e contextualizar melhor a produção e consumo da ópera cómicaportuguesanosteatrosdeLisboanoperíodooitocentistaqueantecedeuareceçãodasopere-

tas deOffenbach, ler IsabelNovaisGONÇALVES, «Amúsica teatral da Lisboa de oitocentos:

Uma abordagem através da obra de Joaquim Casimiro Júnior» (diss. de doutoramento,UniversidadeNovadeLisboa,2012),teserealizadacomoincentivoeocontributofundamen-

taldoProfessorManuelCarlosdeBrito,meuorientador.3Sobre esse assunto ver Mário Vieira de CARVALHO, Eça de Queirós e Offenbach: A ácidagargalhada de Mefistófoles, Lisboa: Colibri, 1999 e José Francisco PINHO, «Offenbach emLisboa no ano de 1868: A recepção na imprensa lisboeta», Convergências: Revista deInvestigaçãoeEnsinodasArtes12(2008).4Augusto GARRAIO – EduardoMARTINS,As pennas d’um Pavão,Opera-Comica em 2 actos,musica da Flor de chá, Lisboa: Typographia Rua da Inveja, 1868. «Retirada do palco em anoutede23deAgostode1868,porprohibiçãodoEx.moGovernadorCivildeLisboa.Edição

completacomtodasasalluzõespoliticascomquesubiuáscenanaprimeiranoute».

Política,risoecensura:Ocasodaoperacómicaportuguesa

359

noCircoPricea22deagostode 1868pelacompanhiadoVariedades,

parece constituir um programa de aproximação à irreverência de

Offenbach.Essaaproximação,daautoriadeAugustoGarraioeEduardo

Martins, começa desde logo em ver-se aplicada a estratégia offenba-

chiana de citarmúsica familiar numnovo contexto, estendida a toda

umaoperetadeCharlesLecqoc,Flordechá,levadaàcenanoPríncipeRealenoTrindadenomesmomês(emportuguês).Aoexpulsarotexto

originaletodooseuenredo,aatençãocentra-seagorananovatrama

coladaàmúsica,equedePequimpassaparaLisboa,docabaretpassaparaohoteledaintrigaamorosapassaparaaintrigatoutcourt.

Pavão,animal lustrosoeemproado,é simultaneamentemetáforae

apelidodeumfalidoportuensefugidodeumaamanteimpetuosaedo

seuciumentomarido,queacorreaLisboaaosbraçoshospitaleirosde

Ernesto, um amigo pintor tão hedonista e oportunista quanto ele. É

estesimplesmoteetodaasucessãodepequenas intrigase incidentes

quedaíadvêmque,aparentemente,asseguraoespetáculomusicoteatral

emdoisactos.Masétambém,esobretudo,opretextoparanelesever

exercida,comtodasascoplasmassemnenhumassubtilezas,umacríti-

ca ostensiva à classe política portuguesa. Ernesto e seu criado galego

nãoprecisamdeenredopara, logode inícioeao fimdepoucas falas,

cantarememdueto:

ErnestoOjanotadeLisboaGosesempreemquantopossaDeixeoscãesandarátôa

Semreceardacarroça!

ManuelEsehouveroccasiãoÉmostrarserumtalento

Paraesfollaranação

Nasmesasdoorçamento.

Umconcelhodeamiguinho,

P’raalcançarempregoassim;

Bastaonomedopadrinho

Todotim,tim,portimtim.

«Esfolaranaçãonasmesasdoorçamento»foraprecisamenteoque

empurraraarevoltapopulardaJaneirinha,nessemesmoano,contrao

governoeoaumentodeimpostosquepretendialançarsobreoscontri-

buintes. E o «conselho de amiguinhos» e padrinhos não era senão a

IsabelNovaisGonçalves

360

classepolíticabemposicionadaeprontaaestenderamãoaosda sua

entourage.Sedúvidaspersistissemnopúblico,odiálogoseguinteescla-

rece:

Manuel[…]comqueentãoosenhorErnestotemumamigoqueé

ministro?

ErnestoNegociodeocasião;tubemvezqueospartidos…,asrevoluções…

osgabinetestransacto’s?!percebes?

Manuel[…]Enaturalmente,oseuamigofazalgumacousaporseu

respeito!

ErnestoEstávistoquefaz?Amanhãtemosumaaudiencia…Eeu,o

primeirofilhoquetiver,levo-lhoparaeleserpadrinho!

ManuelParaque!ErnestoSempreébomserafilhadod’aquellagente!

ManuelDiga-me:seeufossepedir-lheumlogarsinho…ellenãome

despachava?Ernesto (comimportancia)Ah!sim…váeláepede-lheoquequizeres!...

naturalmentediz-tequenão,masdespacha-telogo!

Defacto,acusaçõesdecompadrioeramreferidastambémporesses

diasnojornalARevoluçãodeSetembroreferindo-seaoanteriorgover-no de que alguns, afinal, tinham transitado para o atual. Lia-se, por

exemplo, no dia quatro desse mês de agosto: «Os ministros que em

janeiro cahiram mandaram tirar da intendencia das obras publicas

umas celebres dobradiças que umministro nosso conhecido lá havia

mandadopôra fimde seacommodaremos seusafilhadosque jánão

cabiamnoquadro».Assim,ascoplaseodiálogocitadosvinculam-sea

umamesma estratégia do cómico, conseguida no retrato direto, sem

ambiguidades,deumarealidadequeopúblicoconheceecensuraatra-

vésdoriso.Masoexercíciodacríticadiversifica-senoutrosmecanismosdoriso,

como o da transposição—umadas formas de paródia diagnosticada

porBergson,emquesetransportamosrituaisprópriosdeumcontexto

solene para um outro familiar, por exemplo5. Umas cenas à frente,

Pavãoaproveitao empréstimogenerosodoamigopara esbanjarodi-

nheironoMercadodaFigueiracombonsvinhosecarnesfrias,quefaz

levaracasanaausênciadeErnestoparasebanquetearcomumaspou-

casamigas.Aceiaétodaelaarepresentaçãodeumasessãoparlamentar:

5Henri BERGSON,O riso: Ensaio sobre o significado do cómico, Lisboa:GuimarãesEditores,

1993,p.42sq.

Política,risoecensura:Ocasodaoperacómicaportuguesa

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PavãoAgoraojantar!Saioodonodacasa,nãohagoverno!(vãonovamenteparaamesa)

OlympiaComerebeber,eisonossoministerio!

TodosTemapresidenciaoPavão!

Pavão(senta-se)Cuidado…olhemqueseoPavãotemapresidencia

vocêsnãocomemnada!

OlympiaAssimnãovalle…énecessariocomer,masdemaneiraquenão

hajadeficit!TodosBravo,Bravo!Pavão(agitaumagarrafaemformadecampainha)Ordem,ordem!

Vouappresentarumorçamento,paraadivisãodospitéos!

Peçoapalavra,paraumaexplicação!

OlympiaNada…euquerofazerumspeech!HenriquetaTambemeu!querofallar…senãofaçoaquiumarevolução!

TodosOrdem,ordem!

PavãoLáduas,équenãopódeser…fallaremaospareséquenãovale.TodosEntãofallatu!Venhaoorador!

Estáaqui tudo:adenúnciadeumaclassepolíticaque seaproveita

docargoparabenefíciopróprio; adivisãoentre si eos seusdoerário

público; a disputa pelo protagonismo, reduzindo a ação política à in-

triga e ao discurso parlamentar. E a oratória que Pavão, em seguida,

encetaemcoplasnãoémaisdoqueumacacofoniaausentedesentido,

queexpõeaoridículoumacertaretóricaparlamentarvaziaeredonda

queconstituía,naopiniãodemuitos,odiscursodominantenaCâmara

dosParesoudosDeputados:

CÔRO

Venhaláefallebem,

Porqueemnós,nóstambem,

Discursotem,

Dêforçaávóz,

Porqueasós,

Logoapóz,fallamosnós.

Venhaláefallebem,etc.

COPLA

Ooradorvaefalar,

Muitobem.

Enquantoamim,

Sefallarbem

Oumenosmal,assim,assim,

IsabelNovaisGonçalves

362

TemnoPenim

Abellaceia

Queserárimevinhomeia.

CÔRO

Poissim

Éfallarmuibem

Enóstambém

Discursoassim

Bembembembem

Temtemtemtem.

PAVÃO

Onovoministerioondeestá?

CôroTá,tá,tá.

Feitosbensnãovejoumsó.

CôroTó.Tó,tó.

Porqueé?

CôroTé,té,té.

Queédeti.

CôroTi,ti,ti.

Seeuchegaraserministro,olé

Heidevêrtudonumpó,oló.

Heidedarlambada,até,olé.

Semteralma,nemterdó,oló,oló.

OlympiaSim,senhores,ooradormereceumabucha!

TodosAh!ah!ah!

Nessemomento,Zacarias—umabastadoburguêsquenegociaraca-

sarafilhafeiacomErnestoatrocodeumgenerosodote—rompepela

sala adentro e todos dançam, brindam e cantam, gozando com ele,

tirando-lheochapéuepassando-odemãoemmãoaoritmodeumcancan.Zacarias, chocado, comentapara si «Queorgia, santoDeus! e eu

que o julgava [Pavão] um rapaz bem comportado!».Na suspensãoda

música,entraManueleZacariasexclama:

ZacariasAmpara-me,meuqueridoManuel.Éumaverdadeirarevolução!

N’estacasanãohagoverno!OlympiaNãoha!EvivaaRepublica!PavãoDenadalhepodevaleroHespanhol!

Política,risoecensura:Ocasodaoperacómicaportuguesa

363

EOlímpia remata o quadro final doprimeiro acto colocandoopé

sobreoManuel,quecaiaochão,enquantoexclama«Ameuspés,cida-

dãodeTuy!».

«Viva a República!» fora a resposta pronta destamulher (em sin-

tonia com a representação icónica feminina que a revolução francesa

promoveu)— porta-voz de um grupo em alegre «orgia» numa «casa

sem governo»— a Zacarias— símbolo da burguesia conservadora e

alvo de troça— firmando no público uma ambiguidade interessante

entreaideiadaRepúblicaenquantonovaordem,novoscomportamen-

tos e maior liberdade, e uma ideia da República enquanto vazio de

governo, caos e degradaçãomoral. E comodiz Pavão a Zacarias, «De

nada lhe pode valer oHespanhol!», porque de facto de Espanha cor-

riamventosdemudançaeaameaçaeminentedeumarevoltarepubli-

cana — concretizada logo no mês seguinte em Cádiz, na Revolução

EspanholaquedepunhaarainhaIsabelII.Todoestefimdeactoapre-

senta,portanto,umaestratégia cómicamais complexa, comautiliza-

çãodaambiguidade,dasátiraedaalusão,tendocomoalvoogoverno

doPartidoReformistaemexercício.Defacto,entreosseusfundadores

constavaLatinoCoelho,ministrodaMarinhaeUltramar,queem1864

fora membro ativo da primeira associação de pendor quase republi-

cano,depreciativamenteconhecidapor«ClubedosLunáticos»6(eque

aliás,maistarde,fundouoPartidoRepublicanoPortuguês).

Aindanumaproveitamento cómicodeLatinoCoelho, SáCarneiro,Falcão da Fonseca, Lobo de Ávila, Rola, Coelho Magalhães e outros

nomespolíticosdomomento,nosegundoactoháumbailedemásca-

rasemcasadeZacariascujotemasão,precisamente,osanimais.Entre

váriosanimaismencionados,aliaparecetambémafamíliaCameloquecantaaosconvivas«umcorochinez,inventadoporumfulanodetal,o

Gallo»—numaalusãoaLecqoc,ocompositordaoperetaoriginal.Eali

finalmente,reentraPavão,quedepoisdeumaconversaedumascoplas

sobrepavõeseelefantes,anunciaaoamigo:

Pavão Ai! é verdade, com toda esta balburdia ia-me esquecendo o

dizertequerecebiumacartademeupae.Vaesficarabysmado!

Sou proposto deputado pelo circulo não sei quantos, nem é

para admirar, meu pae que tem loja de calçado como sabes,

arranjou para oministro tal par de botas, que pedio esta re-

compensa[…].

6AmadeuCarvalhoHOMEM,DaMonarquiaàRepública,Braga:Palimage,2001,pp.14-15.

IsabelNovaisGonçalves

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ErnestoSefallasserio,parabénspeloteubrilhantefuturo,esechegasaministrogovernarásbemparati,nãoéassim?

PavãoEparaomeupaiz!

ErnestoAh!ah!ah!Oteupaizserãoastuasalgibeiras.

Pavão Sim,sim,mascomestasdivagaçõespoliticas,nãoesqueçamos

asescamaçõesdeZacharias.Paraosocegarvoudizer-lhequete

empregareibem,etc.,etc.,depoisnósfallaremos.

Ernesto Oquê?

Pavão Umapequeninapercentagem.Éprecisoolharparaofuturo.

Orisocensórioquetaldiálogoteráprovocadonaplateianãoparte,

umavezmais,dediscretosmecanismosde críticamasdadenúncia e

ridicularizaçãopúblicadocaciquismogeneralizadoqueminavaasrela-

çõespolíticasdaépoca.Maseisque,logodeseguida,portrásdePavão

serevelaumapessoaconhecidadopúblico,aodizeraoamigo:

Pavão Agorareparo,estoucomfrioErnesto,nãotensahialgumtraste

quemesalved’umaconstipação.

Ernesto(puxandod’umcachenezembrulhadon’unspoucosdepapeis)Pavão Oquemesairád’alli,apostoqueéalgumacapaáespanhola.

Ernesto Eisaquiopreciosocachenez.

PavãoEstáaquiofuturodanação,porqueseeumeconstipassepodia

morrer,eentãoadeusfuturodopaiz[…].

Ocache-nezéexibidoàplateiaesubitamenteasátirageneralizadaà

classe governativa portuguesa reduz-se à paródia concreta e persona-

lizadanafiguradoCondedeÁvila.Ocache-nezdelãera,defacto,uma

peçaobrigatóriadoex-PresidentedoConselho,queousavadeverãoe

deinvernoenroladoàvoltadopescoço,parasegundoopróprio,preve-

nirconstipações(verFigura1).

Maspara algumpúblicomais informado, insinuações anteriores já

tinhampermitido fazer a colagemdopersonagemà pessoa real. Se o

paidePavãotinhaumalojadecalçadonoPorto,oCondedeÁvilaera

filhodeumsapateirodoFaial, factoquenãoescondia, fazendoantes

gala da sua origem humilde e plebeia. Também a conversa de Pavão

sobreoseuapreçopeloelefante,animalqueimpõe«ordem»erespeito,

nãoémaisdoqueumaalusãoàOrdemdoElefantecomqueAntónio

José deÁvila fora condecorado pelo reino dinamarquês.A própria fi-

gura de Pavão já tinha sido invocada uns bons anos atrás, durante o

períodoemqueÁvilaforaministrodafazendadogovernodeCabral

Política,risoecensura:Ocasodaoperacómicaportuguesa

365

Figura1.«Ocache-nezbarómetro»,caricaturadeAntónioJoséd’ÁvilaporBordaloPinheiro,OAntónioMaria(3defevereirode1881).

IsabelNovaisGonçalves

366

(1849-1851),comoSuplementoBurlescod’OPatriotaarepresentá-loem

fardadegalaecomumalongacaudadepenas(Figura2)7.

Figura2.SuplementoBurlescoaonúmero1506doPatriota,1849.

7JoséMiguelSARDICA,«Umhomemparatodasascausas–PerfilpolíticodoDuquedeÁvilae

Bolama»,AnáliseSocial36/160(2001),pp.639-684.

Política,risoecensura:Ocasodaoperacómicaportuguesa

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Entretanto, umempregadodo telégrafo traz a confirmaçãodano-

meação de Pavão a deputado, o que leva Ernesto a comentar, já sem

rodeios: «DeputadoZé Pavão.Ai pobre paiz, se elle chega aministro

não faltarão empréstimos por causa das comissões e comissões por

causadosempréstimos».Pavãoporseu turno,apósperdermomenta-

neamenteossentidos,canta:

Eudesmaieicomtalnova,

Abater-mepelaproa

[…]

Poisaindanãoestouemmim,

Anovaémuitobôa.

JoséPavãoédeputado

Eabichougrossamelgueira,

Ninguemdecertomeacompanha

Emtãorapidacarreira.

De facto, António José de Ávila (1807-1881) foi uma das persona-

lidadescommaiorlongevidadenacarreirapolíticaegovernativa,tendo

integrado diversas faces do complexo polígono ideológico damonar-

quia constitucional: foi cartista, centrista, apoiante dos setembristas,

anti-cabralista,cabralista,regenerador,históricoereformista.Comon-

ze legislaturas entre 1834 e 1860, foi por diversas vezes ministro da

Fazenda e dosNegócios Estrangeiros. Pela sua capacidade de perma-

nenteauto-regeneraçãonomeiodasmudançaspolíticasepelaascen-

são social fulgurante que protagonizou — de plebeu ilhéu a par do

reino, conde, e mais tarde marquês e duque de Ávila e Bolama —

AntónioJosédeÁvilagranjeouumséquitodedetratoresqueoacusavam

de arrivista, vaidoso e vira-casaca8. Isso mesmo é invocado na cena

final,quandoumpolíciapretendelevarErnestoporotentarsubornare

Pavão,presoaoamigopelocache-nez,ordena:

Pavão Nemtocar-me,soudeputado.

Polícia Comduascaras.

Pavão Nunca vio? Pois então olhe para mim quando eu subir ao

poder,quehadevermais.

Hojevivaoprazer,amanhãsouumhomemserio.

8Ibidem.

IsabelNovaisGonçalves

368

Mas, em igualmedida, José de Ávila era elogiado e admirado nos

diversos quadrantes pela inteligência, o dote de oratória brilhante e,

sobretudo,acapacidademediadora,aseriedade,competênciaeentrega

aotrabalho9.Sóissoexplicaquenodiaseguinteàestreiadestaopereta,

ojornalaRevoluçãodeSetembro,assumidodesdesempreopositordas

políticasdeÁvilanossucessivosgovernos, tenhamanifestadorepúdio

pela forma achincalhante como o ex-governante fora parodiado pela

companhiadoVariedades:

Representou-se no sabbado no theatro do Circo Price uma comedia

hybrida,estupenda,incoomprehensiveleanomala,queosseusauctoresin-

titularamAs pennas de um pavão […].Acomedia tememalgumaspartes

referenciasclarissimasaosr.Conded’Ávila,referenciasqueforamcalorosa-

menteapplaudidaspelopublico,semqueumsótacãocontraellasprotes-

tasse.Nós,setivessemoscomonormamanifestaronossodesagradodetal

maneira só deixariamos de o dar a conhecer quando as pernas e os pós,

lassos de fadiga, se recuzassem a faze-lo. Somos neste ponto verdadeira-

menteinsuspeitos.Emvinteenoveannosdeexistenciaqueonossojornal

conta, nem uma só administração de que formasse parte o sr. conde

d’Avila, obteve o apoio da Revolução. Nenhum jornal ainda o guerreou

tanto e sempre comoo nosso, por que consideramos s. ex. ª amaior das

calamidades, depois do sr. Antonio, bispo, quando dirige os negocios do

estado. Parece pois que deveriamos apoiar o facto das allusões ao ex-

-presidente do conselho, e pelo contrario condemnamol-as todas as que

sejamescriptascomofirmepropositodedeprimirumhomempublico,seja

ellequem for.O theatro […] é, ouantesdeve ser, a escoladamoralidade

dospovos.Nãosãotantosnonossopaizoshomensestudiosos,honradose

conscienciososcomoo sr.Conded’Ávila,paraque se tentemapoucarem

detrimento do paiz que pode condemnar os seus actos de ministro, e

festejar os seus trabalhos nas outras variadas commissões de serviços

publicos.Eéistooqueaconteceaoultimopresidentedoconselho.Aem-

presadasVariedadesentendequedeviaespecularapresentandoemscena

oscaracterespoliticosquemenossymphatiasmerecemaopovo,efazmal;

porquenemaufereinteressepecuniarios,nemserveacausadamoralidade,

e só cria antiphatias e inimigos que hão de augmentar á medida que se

foremreproduzindo[…]asPennasd’umpavão10.

9Ibidem.

10RevoluçãodeSetembro(25deAgostode1868).

Política,risoecensura:Ocasodaoperacómicaportuguesa

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OimpactodaóperacómicaAspenasdeumPavãonessanoitede22de agostode 1868noCircoPriceditouo seu silenciamento imediato.

Nãohouvemaisdoqueumaúnica récita, pordecisãodogovernador

civildeLisboa.Talnãoimpediuaediçãocompletadolibreto,aocabo

deumassemanas,permitindoacirculaçãoportodososleitoreseama-

doresdramáticosdoconteúdointegral,«comtodasasalluzõespoliticas

comquesubiuáscenanaprimeiranoute»(comoselênafolhaderosto

impressa)11.

AreaçãodogovernadordeLisboa,emsintoniacomaopiniãodoARevolução de Setembro (que aliás louvou a proibição por si manda-

tada)12são sintomáticas de um facto que marca a distância, e não a

aproximação,entreestaóperacómicaeasoperetasdeOffenbach,onde

a censura não atuou: não há aqui verdadeira sátira social e crítica às

instituições.Osmecanismosdecomédia,seaoiníciopareciamconver-

girnesseobjetivo,embrevecanalizavam-separaumalvopersonaliza-

do, reduzindooprotagonista dopalco e daCâmara a umpalhaçode

que o público se desforra pelo riso. Ainda assim, a profanação, sem

cerimónia, de uma figura política com peso e autoridade num palco

públicodeLisboanãodeixademostrarcomoOffenbachimpregnouo

nossocontextoteatraldeumespíritode irreverênciaqueantesestava

confinadoàcrónicaesátiradosjornais.Nãohá,aparentemente,registo

de paródias personalizadas a este nível em comédias anteriores nos

teatros de Lisboa. E porém, durante décadas Ávila foi o «bombo-da-

festa»dealgumaimprensasatírica.Queameaçatraziaentãooteatro,

paraprecisardesercaladopelogovernocivil?Orisopúblico.Comodiz

Bergson,«Ocómicoexige[…]paraproduzirtodooseuefeito,qualquer

coisacomoumaanestesiamomentâneadocoração.Dirige-seà inteli-

gência pura. Simplesmente esta inteligência deve viver em contacto

comoutrasinteligências.[…]Dir-se-iaqueorisotemnecessidadedum

eco»13.Esecomorisosecastigamoscostumes,tantomaisnefastaéa

puniçãoemaioropoderdequempune,seofizercoletivamente.Não

se comparamos danos para a reputação e imagempública do poder,

entrealeituraíntimaeindividualdasátiraimpressaeorisopúblico,de

vivavoz,queumpalcoeumaplateiaprojetamemseu redor.Eraum

risodemolidorqueurgiasilenciar.

11A.GARRAIO–E.MARTINS,Aspennasd’umPavão,(v.n.4).

12RevoluçãodeSetembro(26deAgostode1868).

13H.BERGSON,Oriso(v.n.5),pp.19e26.