Post on 28-Aug-2018
*Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Amazonas, IFAM. 1 Especialista em Gestão de Políticas Ambientais. 2 Mestre em Geografia.
Memória e resistência cultural no Alto Rio Negro: A História oral como instrumento de registro da cultura Baniwa da Comunidade Indígena Itacoatiara Mirim – Amazonas-Brasil.
LETICIA ALVES DA SILVA1
MARILENE ALVES DA SILVA2
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Introdução
A região do Alto Rio Negro está localizada no noroeste amazônico, pode ser caracterizada
como uma grande província etnográfica povoada por diversas comunidades indígenas em
diferentes graus de contato com a sociedade nacional, é habitada por 22 povos indígenas
pertencentes às famílias lingüísticas Tukano Oriental (Desana, Tukano, Pira-tapuia, Arapaso,
Wanano, Kubeu, Tuyuka, Miriti-tapuia, Makuna, Bará, Suriano, Yurutí e Karapanã), Aruak
(Tariana, Baniwa-Kuripako, Warekena e Baré), Maku (Hupda, Yuhupde, Nadêb e Dou e
Yanomami(Yanomami), representando 10% do total da população indígena do país. Pode-se
afirmar que a população indígena da referida região se mantém hegemônica, constituindo cerca de
90% do total.
Desta forma, verifica-se que essa diversidade étnica está distribuída no município de São
Gabriel da Cachoeira nas 750 comunidades indígenas, localizadas as margens dos principais rios
da região e nas cinco reservas indígenas demarcadas e homologadas em 1998: Terra Indígena Alto
Rio Negro, Terra Indígena Médio Rio Negro I, Terra Indígena Médio Rio Negro II, Terra Indígena
Apaporis, e Terra Indígena Rio Téa. Além dessas, a Terra Indígena Yanomami também possui
uma pequena extensão que faz parte do município( Figura1).
Figura 1:Terras Indígenas do Alto e Médio rio Negro
Fonte: ( AZEVEDO, 2006).
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O município de São Gabriel da Cachoeira está localizado na tríplice fronteira: Brasil,
Colômbia e a Venezuela. Sua extensão territorial é de 109.183,434 Km², representa quase 8% da
área total do Estado do Amazonas, com uma população de 37.896 habitantes (IBGE, 2010) sendo
que os habitantes de origem indígena correspondem a 40% da população indígena do Amazonas. É
o único município do Brasil que reconheceu através da lei municipal nº 145 de 22 de novembro de
2002, três línguas indígenas (Nheengatú, Tukano e Baniwa) como línguas co-oficiais ao lado do
português.
A cidade de São Gabriel da Cachoeira é a sede do município de mesmo nome, e tem sua
origem no século XVII com a chegada das Ordens religiosas e posteriormente com a entrada dos
militares portugueses em 1759, que tinham objetivo de promover um novo padrão de organização
social no rio Negro, formando aldeias e depois as vilas, para onde eram “descidas” as tribos
indígenas e submetidos à catequese, a cultura ocidental e ao trabalho forçado ocasionado pelas
expedições que buscavam as “drogas do sertão”.
As marcas das mudanças ocorridas na organização social do Alto Rio Negro no período de
colonial são verificadas no modo de vida dos grupos indígenas atuais que se deslocam
periodicamente de suas comunidades ribeirinhas para morar na sede do município, a procura de
trabalho, acesso à educação de nível médio e superior, gêneros alimentícios e atendimento
hospitalar, financeiro e seguridade social. Isso pressupõe não só a transformação nos hábitos
culturais indígenas, como também colabora para a descaracterização identitária do ser indígena.
Entretanto, alguns grupos indígenas que migram para a cidade de São Gabriel da Cachoeira
buscam manter viva sua cultura. Podemos observar este fato no histórico da fundação de uma
comunidade indígena chamada Itacoatiara Mirim, localizada na periferia urbana da referida cidade,
onde seus membros, que antes se localizavam nas cabeceiras dos rios do Alto Rio Negro,
mudaram-se geograficamente de lugar e levaram consigo não só seus parentes mais também a sua
comunidade em si e sua cultura material e imaterial.
Desta forma, o presente trabalho pretende evidenciar a importância da História Oral como
ferramenta essencial para o registro da memória e documentação da oralidade dos moradores
indígenas da comunidade pluriurbana de Itacoatiara Mirim, como também destacar as iniciativas
por parte dos moradores mais antigos no sentido de fortalecer, perpetuar e manter a memória
histórico-cultural viva do povo Baniwa da referida comunidade.
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Material e Métodos
Para o desenvolvimento do trabalho, optou-se por adotar a pesquisa documental e de
campo, uma vez que se trata de um estudo que requer o levantamento de dados secundários sobre a
História da colonização imposta aos grupos indígenas do Alto Rio Negro, causas das ondas
migratórias e reflexos da cultura ocidental sobre as sociedades indígenas da região, visando assim
compreender o processo histórico anterior e atual, levantamentos de dados primários por meio da
observação direta, registro fotográfico e entrevistas semi-estruturadas com os moradores mais
antigos da comunidade Itacoatiara Mirim, para identificar e entender as causas de sua migração
para a sede do município, alteração nos aspectos socioculturais e como os comunitários tem se
organizado para fortalecer sua identidade cultural.
O método a ser adotado na referida pesquisa é a metodologia da História oral, onde as
estratégias para obtenção de dados inserem-se nas características desse tipo de investigação, nas
quais, a escolha dos entrevistados se orienta a partir da posição estratégica destes no grupo da qual
fazem parte, de sua vivência e atuação, ligadas ao tema de estudo com intuito de fornecerem
depoimentos significativos de sua experiência possibilitando a (re) construção da história, abrindo
espaço para a memória coletiva, visto que, as conversas com as pessoas por meio de entrevistas
temáticas nos permitem observar diretamente as questões subjetivas em seus testemunhos,
contribuindo para uma maior compreensão do que está sendo posto pelos indivíduos acerca dos
fatos históricos do mundo social que vivenciam. Desta forma, os depoimentos gravados e
processados na forma de registros escritos nos permitem uma compreensão esclarecedora do
objeto em estudo.
Com base nos estudos da pesquisa documental e de campo demonstraremos que a
metodologia da História oral, é inerente ao fortalecimento, perpetuação e manutenção da memória
histórico-cultural dos moradores da Comunidade Itacoatiara Mirim.
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RESULTADOS
História da colonização do Alto rio Negro
No Alto Rio Negro, os primeiros contatos deram-se no início do século XVII, onde o
colonialismo português se impôs na região, através da construção de missões e fortes objetivando
abrandar as entradas de outros exploradores europeus e controlar a mão de obra indígena.
Posteriormente verifica-se a entrada de missionários da Congregação Carmelita a partir de 1764,
seguida dos Capuchinhos italianos, uma subdivisão da congregação franciscana (1880) e a
Congregação salesiana em 1914 com intuito de conquistar as almas indígenas objetivando o
domínio de seus territórios.
Os primeiros contatos com os missionários no Alto Rio Negro influenciaram de maneira
significante a organização social indígena. A respeito deste processo, Silva (2004:116-120),
salienta que os missionários estruturaram um vasto programa de trabalho que incluía a
modificação dos hábitos culturais dos indígenas, iniciando desde o ensino da língua portuguesa,
preparo técnico nos ofícios mecânicos, agrupamentos das tribos em núcleos urbanos e modificação
do regime de trabalho dispersivo num trabalho disciplinado, de fundo agrícola.
Na metade do século XVIII no período pombalino, a região do Alto Rio Negro era vista
como um território de permanente preocupação diplomática, por localizar-se na faixa de fronteira
entre os impérios coloniais de Portugal e Espanha. Esta situação agravou ainda mais o estado das
populações indígenas da região, que foram subjugadas ao controle espiritual das ordens religiosas,
acrescido a repressão e exploração de sua mão de obra através da atuação dos militares
portugueses.
A colonização portuguesa no Alto Rio Negro desdobra-se no início do século XIX e
intensifica-se no final do mesmo século com a exploração do trabalho indígena nos seringais,
como relata Calbazar e Ricardo (2006:88):
Este processo levou, no século XIX, a um esvaziamento de muitas comunidades indígenas
dos rios Uaupés, Içana e Xié, cujas famílias eram levadas à força para o baixo e médio
rio Negro. Muitos índios foram envolvidos na exploração extrativa e submetidos a
trabalhos compulsórios. Isto deu início a uma migração forçada, sobretudo dos Tukano,
Desana e Tariana, que foram transportados pelos comerciantes desde o alto Uaupés,
para trabalharem nos seringais do rio Negro.
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Com o deslocamento constante da população indígena do Alto Rio Negro em direção aos
seringais, somando os atritos entre missionários e comerciantes e militares, houve em 1914 a
atuação da Congregação Salesiana, com o objetivo de fundar centros missionários para congregar
as populações indígenas.
Por conseguinte, os centros missionários constituíram-se em pontos estratégicos, posição
que favoreceu as coordenadas do trabalho e das relações de poder na região. Além do controle
territorial, as ordens religiosas instalaram nas missões, internatos que mantinham um processo
educativo sobre os indígenas descidos de suas aldeias. A educação escolar nos internatos foi
marcada por rígidos códigos disciplinares e doutrina cristã. Este modelo educativo influenciou de
maneira crescente na organização social indígena, pois o mundo vivido do ser indígena passou a
ser negado constantemente, seja na proibição das manifestações culturais destes povos ou no uso
dos idiomas indígenas.
Com o fim do ciclo da borracha e a consequente decadência econômica que ocorreu no
Alto Rio Negro, a presença constante e a atuação dos missionários salesianos tiveram notável
importância entre as populações indígenas, que eram estimuladas a internar seus filhos nos centros
missionários em troca de uma educação profissional.
Esses propósitos foram bem aceitos pela população indígena, haja vista que seu padrão de
organização social estava desarticulado por conta do contato com o colonizador.
A busca pela educação escolar nos centros missionários pressupõe não só a modificação
nos hábitos culturais indígenas, como também a sua migração para os centros urbanos e
consequentemente o desaparecimento de comunidades e sítios indígenas, que se encontra em
processo contínuo.
Na década de 80, o crescimento dos conflitos socioambientais, ocasionado principalmente
com a exploração do ouro na Serra do Traíra. Esse episódio foi suficiente para promover o
deslocando de comunidades indígenas, garimpeiros de outras partes do país, militares e empresas
de mineração.
A História do lugar: origem da Comunidade Itacoatiara Mirim
A comunidade Itacoatiara-Mirim está localizada no município de São Gabriel da
Cachoeira a 10 km do centro da cidade de São Gabriel da Cachoeira – Amazonas (Figura 2).
A comunidade surgiu há 31 anos atrás, quando em 1983, a família do senhor Luiz
Laureano, indígena Baniwa do clã Hohoodene, migrou da comunidade Camarão, no Rio Ayari,
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rumo à cidade de São Gabriel da Cachoeira. Assim a comunidade Itacoatiara Mirim foi fundada
em 1992, sendo o primeiro líder, o senhor Lauriano Joaquim já falecido. O terreno da comunidade
foi doado pela prefeitura Municipal.
Nesse sentido, o filho do fundador da comunidade, senhor Luiz Laureano, lembra dos
motivos que levaram sua família a sair da comunidade Camarão em direção da cidade de São
Gabriel da Cachoeira:
“Lá em Camarão onde eu nasci a terra não é boa para plantar, era tudo areal, e não tem
muita caça e o peixe era pouco. A gente não tinha onde comprar fósforo, sabão, panelas.
Pra ir até São Gabriel ou Mitú e voltar para nossa comunidade era quase um mês a remo,
muito longe. Naquele tempo nós não tinha motor rabeta, gasolina e barco, era só no
remo. Não tinha escola para meus filhos e assim a situação ficou cada vez mais difícil. Aí
meus pais resolveram descer pra cá. A gente morou primeiro lá perto do aeroporto, mas
não dava pra fazer roça tinha muita piçarra. Então uns tempos depois recebemos na
gestão do prefeito Ribamar esse terreno onde hoje nós moramos”.
(Luiz Laureano da Silva, entrevista concedida em 06 de abril de 2012).
Figura 2: Mapa da região do Alto rio Negro, onde está localizada a comunidade Itacoatiara Mirim. Fonte: Prefeitura Municipal de São Gabriel da Cachoeira (2006).
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Segundo o líder comunitário, senhor Feliciano da Silva, a denominação Itacoatiara-
Mirim significa em nheengatú “pequena pedra pintada”. Assim, podemos resgatar esse momento
histórico no depoimento do senhor Luiz Laureano:
O nome da comunidade em Baniwa é Kapithinai, quer dizer quati. Um padre que
frequentava minha antiga comunidade(Camarão) lá no Ayari, me falava de uma cidade
que ficava abaixo de Manaus que se chamava Itacoatiara, e aquele nome ficou na minha
memória. Então eu disse pra mim mesmo, quando eu tiver um sítio vou chamá-lo de
Itacoatiara. Quando nos mudamos pra cá, eu batizei como Itacoatiara-Mirim. Mirim,
porque é uma pequena comunidade. Itacoatiara-Mirim significa em nhengatú "pequena
pedra pintada".(Luiz Laureano da Silva, entrevista concedida em 06 de abril de 2012).
De acordo com Verena Alberti, o fascínio do vivido, torna-se um dos principais focos do
êxito acadêmico da história oral. Desta forma, as entrevistas de história oral “têm valor de
documento, e sua interpretação tem a função de descobrir o que documentam” (Alberti, 2004:19).
Assim, a história oral propicia aos indivíduos históricos, a recuperação do vivido a partir da
interpretação e reconstrução da memória experienciada pelo entrevistado. À medida que os relatos
do senhor Luiz Laureano, se revelam, é visível a (re) construção da memória a partir da história do
lugar, dos desafios que impeliram os sujeitos históricos presentes no depoimento a iniciar uma
nova vida na sede do município de São Gabriel da Cachoeira.
Nesse sentido, Paul Thompson (1992:41) ressalta que: “o gravador tem permitido que a
fala da gente comum – sua habilidade narrativa, por exemplo - seja, pela primeira vez, seriamente
compreendida”.
Posteriormente, vários outros grupos étnicos foram se agregando à comunidade que é
formada predominantemente por indígenas da etnia Baniwa. Podemos destacar indivíduos
pertencentes às etnias Desano, Tukano, Wanano, Kubeu e Tuyuca provenientes de comunidades
como do Lago Tucunaré, Jerusalém, Mawaca, Pana pana, Mauá Cachoeira, Miriti Igarapé e
Nazaré.
No Plano Diretor do Município de São Gabriel da Cachoeira a comunidade de
Itacoatiara Mirim (Figura 3) foi enquadrada em 2006, como Zona Comunitária Indígena. Esse
reconhecimento tem possibilitado aos moradores da comunidade Itacoatiara Mirim a permanência
das formas de uso e ocupação do solo segundo os seus costumes, a manifestação das suas tradições
e o direito de planejar o seu espaço de ocupação, junto ao poder público municipal.
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Por esta via, a caracterização da comunidade concebida como Zona Comunitária Indígena
visa contribuir grandemente para resgatar e fortalecer aspectos culturais até então vivenciados
pelos mesmos na sua comunidade de origem em contraposição a influência do modo de vida
urbano.
Figura 3: Vista periurbana da Comunidade de Itacoatiara Mirim Fonte: Pesquisa de campo (2012)
O senhor Luiz Laureano ressaltou que no início da comunidade foi difícil, pois a família
precisava se adaptar ao novo ambiente. Apesar de afastados da cidade, acabaram vivenciando uma
realidade que não era deles: "A minha maior preocupação era com as crianças que agora estavam
perto da cidade” (Luiz Laureano da Silva, entrevista 06/04/2012). Aos poucos os anciãos de
Itacoatiara Mirim observaram que crianças e jovens nascidos na comunidade Itacoatiara Mirim
não falavam e nem se interessavam em aprender a língua materna de seus antepassados. Sendo que
só os mais velhos é que utilizam a língua indígena para se comunicarem. E mediante esta
evidência existe uma preocupação da comunidade com os jovens e crianças, no sentido dos
mesmos perderem o vínculo com a língua indígena e posteriormente outros componentes da
cultura indígena devido à intensa utilização da língua portuguesa mantida principalmente através
da educação escolar, meios de comunicação de massa como a televisão e rádio que estão na
maioria das casas, somados a incidência do uso de bebidas alcoólicas, influência das festas na
cidade, entre outros elementos da vida urbana.
Para conter essa realidade que atinge a comunidade de Itaquatiara-Mirim, os
comunitários sob o comando do senhor Luiz Laureano, tem se preocupado em criar mecanismos
que visem criar atividades socioculturais objetivando a valorização, fortalecimento e reafirmação
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dos conhecimentos tradicionais da etnia Baniwa, que eram vivenciados pelos comunitários mais
antigos quando viviam na comunidade de Camarão, localizado no rio Ayari.
Desta forma, foi instituído aos poucos, parcerias entre a Associação dos moradores da
Comunidade Itacoatiara Mirim (ACICC) e Federação das Organizações Indígenas do rio Negro,
Agência Católica para o Desenvolvimento, ISA, UFAM, IFAM Campus São Gabriel da Cachoeira
e Prefeitura Municipal, onde a comunidade apresentou em 2007 à Petrobras e ao Ministério da
Cultura, o projeto Podáali com intuito de criar oportunidades para a valorização, registro e
transmissão de conhecimentos de músicas e danças tradicionais Baniwa. Assim, o projeto
conseguiu recursos para implementar as atividades previstas tais como a construção de um espaço
de transmissão de conhecimento de músicas e danças tradicionais e de intercâmbio cultural
denominado posteriormente como “Casa do Conhecimento”.
Figura 4: A maloca denominada “Casa do Conhecimento”, fruto do projeto Podáali Fonte: Pesquisa de campo(2012)
Nesse contexto foi realizada uma oficina em agosto de 2008 com a participação dos
comunitários e de alguns assessores do Instituto Sociambiental (ISA) para pensar como seria
concebida a maloca.
Desta oficina os moradores salientaram a importância da maloca como um espaço
importante para o povo Baniwa, via de transmissão e aprendizagem de sua cultura. Ressaltando a
necessidade do benzimento sobre o terreno e nos materiais utilizados na sua confecção como
palha, esteio, cipó, casca de pau, paxiuba, etc. também foi assinalado a necessidade da presença
iminente dentro da Casa do Conhecimento de utensílios, ferramentas e instrumentos rituais como
Japurutu, cariçu, colares para distribuição na hora do dabucuri ou cariçú. E nos anos seguintes o
ISA, FOIRN, IFAM realizaram várias oficinas de registro sobre conhecimentos tradicionais,
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produção de vídeos e demais ferramentas inerentes a documentação dos elementos culturais do
povo Baniwa inicialmente.
Isto posto, a iniciativa proposta pelos moradores mais antigos em instigar o conhecimento
de sua cultura material e imaterial e registro da memória dos seus antepassados nos moradores
mais jovens da comunidade Itacoatiara Mirim vem contribuir para a afirmação da identidade
cultural e fortalecimento dos elementos socioculturais de seu povo, com vias de perpetuar e
preservar sua memória, intrínseco a manutenção de sua história. Nesse sentido, LE GOFF
(1982:16) ressalta que:
A memória coletiva se aplica de forma funcional nas sociedades sem escrita, pois um dos
seus interesses através dessa memória é a identidade coletiva do grupo. A memória e a
identidade exercem grande ligação, sendo o primeiro elemento constituinte do sentimento
de identidade, e que essa identidade é um elo com a história passada e com a memória do
grupo, onde a identidade é fortalecida através da memória, sendo que esta última mantém
a coesão do grupo.
Assim, através do projeto Podaáli os comunitários conseguiram documentar na forma de
um documentário cinematográfico a trajetória da música e dança tradicional Baniwa dos últimos
séculos a partir da viagem dos moradores mais velhos e jovens de Itacoatiara Mirim à comunidade
Camarão, no rio Ayari, para desenterrar as flautas sagradas submersas no igarapé do rio Ayari ,
como também construir a “Casa do Conhecimento”, que hoje é um espaço de transmissão de
conhecimento de músicas, lendas, comidas típicas e de danças tradicionais Baniwa.
Por parte do IFAM Campus São Gabriel da Cachoeira, foram realizadas durante o ano de
2012 quatro visitas de campo junto com 63 alunos dos cursos técnicos do curso Agropecuária e
Administração, onde os mesmos participaram das entrevistas utilizando a metodologia da História
oral como ferramenta para conhecer os aspectos históricos e socioculturais, focada na História do
cotidiano dos moradores mais antigos, através da evocação de suas lembranças que foram
posteriormente gravadas, condensadas e registradas na forma de um encarte.
As narrativas provenientes das entrevistas possibilitaram o registro da história do povo
Baniwa da referida comunidade na forma escrita uma vez que tal documento era inexistente e que
posteriormente foi entregue ao líder da comunidade, Feliciano da Silva e ao tuxaua Luiz Laureano
contribuindo assim, para que crianças e jovens pudessem ter conhecimento de certos aspectos da
memória histórico-cultural dos que fundaram e constituíram a comunidade Itacoatiara Mirim,
como também de outros elementos essenciais à identidade étnica.
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Por conseguinte, torna-se conveniente mencionar que neste trabalho, a história oral
desempenha um papel de suma importância, no que diz respeito à valorização e reconhecimento
das pessoas que elucidam por meio de seus depoimentos aquilo que o discurso oficial não mostra.
Uma vez que a utilização das fontes orais objetiva extrair no seio da comunidade as contribuições
de quem realmente vivenciou o momento histórico. Isto posto, o contato com os testemunhos de
diversos sujeitos históricos torna-se mister a (re)construção da história da Comunidade Itacoatiara
Mirim, abrindo espaço para a memória coletiva, onde se podem encontrar lembranças de fatos
comuns aos indivíduos da comunidade supracitada.
Figura 5: Alunos do IFAM Campus São Gabriel da Cachoeira se preparando para as entrevistas Fonte: particular.
Foto 6: Moradores da comunidade Itacoatiara Miriam assistindo o documentário: Podáali Fonte:ISA/Adeilson Lopes da Silva.
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Considerações finais
A metodologia da História oral se tornou ferramenta primordial na salvaguarda da memória
histórico-cultural dos moradores da comunidade Itacoatiara Mirim, uma vez que contribuiu para
elucidar as trajetórias de vida de seus antepassados e descendentes, como também apresentar aos
investigadores orais a manifestação das práticas socioculturais e a determinação dos mais velhos
da referida comunidade na busca de parcerias com instituições governamentais e não
governamentais no intuito de documentar e perpetuar os elementos de sua cultura que estavam se
esvaindo na vida das novas gerações devido os constantes contatos com a cultura não indígena
proporcionado pelo modo de vida urbano.
Contudo, o fortalecimento cultural e identitário só está sendo viável devido à utilização de
registros escritos e visuais que foram documentados pelas parcerias institucionais com a
participação dos moradores da comunidade, e estão sendo trabalhados em reuniões que acontecem
todos os domingos, onde pais, filhos e convidados tem participado desses encontros, preparados
pelas lideranças, animadores, professores e tuxaua que dividem os temas como a história da
comunidade e de seus primeiros moradores, a vida na comunidade de origem entre outros aspectos
de sua história. O encontro sempre é finalizado com o compartilhamento e consumo dos alimentos
tradicionais provenientes da roça, pesca e coleta. Em datas festivas, como no aniversário da
comunidade, dia dos povos indígenas por exemplo, o senhor Luiz Laureano e demais anciãos de
cada família convocam crianças e jovens para ensinar os saberes milenares da cultura Baniwa na
maloca Casa do Conhecimento.
Em suma, a memória evoca os elementos do passado e faz com que possamos entender o
tempo presente, e nesse ponto, os povos indígenas têm muito a contribuir na busca de um mundo
melhor para a humanidade mais sustentável culturalmente e ambientalmente. Pois sua vida
sociocultural está alicerçada no contato com a natureza. Assim, a história oral contribui com a
construção da história de suas comunidades através do diálogo por meio da entrevista permitindo
que os sujeitos históricos sejam interlocutores, ajudando no fortalecimento, perpetuação e
manutenção do seu modo de vida milenar.
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REFERÊNCIAS
ALBERTI, Verena. Ouvir Contar: textos em História. Rio de Janeiro: FGV. , 2004.
AZEVEDO, Marta Maria do Amaral. Demografia dos povos indígenas do Alto Rio Negro/AM:
um estudo de caso de nupcialidade e reprodução. Campinas.São Paulo. Tese (Doutorado).
Universidade de Campinas, 2003.
CALBAZAR, Aloisio; RICARDO, Carlos Alberto. Povos Indígenas do Rio Negro: uma
introdução à socioambiental do noroeste da Amazônia brasileira. 3. ed. ISA, FOIRN: São Paulo,
São Gabriel da Cachoeira, 2006.
IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo demográfico 2010. [url:
http://www.ibge.gov.br/cidadesat/default.php, 27/06/2012].
LE GOFF, Jaques. História e memória. Lisboa: Edições 70, 1982. PREFEITURA MUNICIPAL DE SÃO GABRIEL DA CACHOEIRA. Plano Diretor Municipal.
São Gabriel da Cachoeira:ISA, 2006.
SILVA, Marilene Correa da. O paiz do Amazonas. Manaus: Editora Valer, 1996.
THOMPSON, Paul. A voz do passado. História oral. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.