Post on 13-Aug-2015
Livro: Mccayres
Digitalização: Marina
Revisão: Marisa
ISBN 978-85-7665-477-3
9788576654773
"Sheila". Copyright © 1962 Sony/ATV Music Publishing LLC. Todos os
direitos administrados por Sony/ ATV Music Publishing LLC, 8 Music Square West,
Nashville, TN 37203. Todos os direitos reservados. Reproduzido com permissão.
"Glory days", de Bruce Springsteen. Copyright © 1984 Bruce Springsteen
(ASCAP). Reproduzido com permissão. Todos os direitos reservados.
"Magic Bus" reproduzida com a permissão de Pete Townshend.
Copyright © 2009 Michael J. Fox
Todos os direitos reservados
TÍTULO ORIGINAL Always looking up : the adventures of an incurable optimist
PREPARAÇÃO Adriane Gozzo
REVISÃO Bel Ribeiro
DIAGRAMAÇÃO S4 Editorial
CAPA adaptada a partir do projeto gráfico original de Phil Rose
FOTO DA CAPA Mark Seliger
DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP) (Câmara
Brasileira do Livro, SP Brasil)
Fox, Michael J.
Um otimista incorrigível / Michael J. Fox ; tradução Cassius Medauar.
- São Paulo : Editora Planeta do Brasil, 2009.
Título original: Always looking up: the adventures ofan incurable optimist.
ISBN 978-85-7665-477-3
1. Atores - Canadá - Autobiografia 2. Atores - Estados Unidos -Autobiografia
3. Doença de Parkinson - Pacientes - Biografia 4. Fox, Michael J., 1961-1. Título.
09-09440 CDD-790,4302
ÍNDICE PARA CATÁLOGO SISTEMÁTICO 1. Estados Unidos: Atores:
Autobiografia 790.4302
2009
Todos os direitos desta edição reservados à
EDITORA PLANETA DO BRASIL LTDA.
Avenida Francisco Matarazzo, 1500 - 3a andar - conj. 32B
Edifício New York
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Para Tracy, Sam, Aquinnah, Schuyler e Esmé.
E para Karen.
Com amor.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
PARTE UM
TRABALHO
PARTE DOIS
POLITICA
PARTE TRÊS
FÉ
PARTE QUATRO
FAMILIA
EPILOGO
AGRADECMENTOS
2
INTRODUÇÃO
Nas primeiras páginas de Lucky man*, descrevo uma manhã na
Flórida há dezenove anos, quando acordei com uma bela ressaca e meu
dedo mindinho tremendo. Nos anos seguintes, minha vida passou por
grandes mudanças. Na maioria das manhãs, por exemplo acordo e meu
dedo mindinho está totalmente imóvel; o problema é o restante do meu
corpo, que treme de forma incontrolável. Tecnicamente; meu corpo só fica
em paz
___*Um homem de sorte, primeiro livro de Michael J. Fox no qual descreve sobre
os estágios iniciais de sua doença, ainda inédito no Brasil (N.T.)
por completo quando minha mente está em repouso total - ou seja,
dormindo. Atividade cerebral baixa significa menos neurônios queimando
ou, no meu caso, pulando. Quando estou acordando, antes de a minha
consciência acordar e saber o que está acontecendo, meu corpo já recebeu
insistentes instruções neurais para que se mova, se torça e contorça. E
qualquer chance de voltar a dormir já era.
Nesta manhã, Tracy já se levantou, está preparando o café da
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manhã e aprontando as crianças para a escola. Tateio o criado-mudo à
procura de um frasco de plástico, engulo dois comprimidos e sigo
rapidamente para a primeira de uma série de atividades que, mesmo sendo
automáticas, demandam grande determinação. Levanto as pernas e as levo
até o lado da cama. No instante em que meus pés encostam no chão, os dois
começam a lutar. A distonia, uma doença complementar ao Parkinson, faz
meus pés doerem e se curvarem para dentro, pressionando meus tornozelos
contra o chão e fazendo as solas dos meus pés se encontrarem, como se
estivesse juntando as mãos em uma prece. Arrasto meu pé direito até a
ponta do tapete e pego com os dedos meu mocassim de couro. Forço o pé
para dentro dele e repito o processo com o esquerdo. Então, com cuidado,
me levanto. Confortados pela firmeza do couro, meus pés começam a se
comportar. Os espasmos pararam, mas as dores ainda vão durar uns vinte
minutos.
Primeira parada: banheiro. Vou poupar você dos detalhes iniciais da
minha visita. Digo apenas que, para quem tem Parkinson, é essencial deixar
o assento da privada levantado. Pegar a pasta dental não é nada comparado
ao esforço feito para coordenar o trabalho das duas mãos, uma segurando a
escova e a outra tentando colocar uma linha de pasta nas cerdas. Agora,
minha mão direita já está levantada e fazendo movimentos circulares com
meu punho, perfeito para o que farei em seguida. Minha mão esquerda guia
a direita até a boca e, quando a parte de trás da escova toca a gengiva atrás
do lábio superior, eu a solto. É como soltar o elástico de um estilingue e,
comparando, é tão poderoso quanto a melhor escova elétrica que existe no
mercado. Contudo, não há o botão "desligar". Então preciso parar meu
braço direito com a mão esquerda, forçando-o para baixo até a pia e
desarmando-o da escova, como se faz com alguém com uma faca em um
filme. Em geral, consigo saber se estou em um bom dia para fazer a barba
ou não, e, nesta manhã, como na maioria delas, decido que é cedo demais
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para arriscar uma carnificina. Resolvo passar apenas o barbeador elétrico
rapidinho. E viva Miami Vice!
Um banco no chuveiro dá uma força aos meus pés, e a água batendo
constantemente em minhas costas tem efeito terapêutico, mas, se ficar mui-
to tempo sentado aqui, posso não me levantar mais. Vestir-me já é mais
fácil, graças aos comprimidos, que começam a fazer efeito. Evito roupas
com muitos botões ou cordões, porém sou viciado em Levi’s 501, o que me
faz ser uma vítima da moda no estrito senso da palavra. Em vez de me
pentear de verdade, ergo os dedos tremulantes até a cabeça, passo a mão no
cabelo e torço para ter ficado bom. Viro-me devagar (minhas pernas ainda
não ganharam confiança hoje) e sigo em frente para ver minha família.
Na saída do meu quarto para o corredor, há um grande espelho
antigo com moldura de madeira. Não consigo evitar dar uma olhadela em
mim mesmo enquanto passo por ele. Virando-me totalmente para o
espelho, considero o que estou vendo. Essa versão refletida de mim,
molhada, tremendo, enrugada, embaraçada e um pouco curvada seria
alarmante, não fosse pela expressão de satisfação estampada em meu rosto.
Eu me faria a pergunta óbvia, "do que você está rindo?", mas já sei a
resposta: "a partir de agora o dia só melhora".
***
How to lese your brain without losingyour mind [Como perder seu
cérebro sem perder sua mente] era o título original das memórias que es-
crevi há oito anos. Na segunda ou terceira página do primeiro rascunho,
referi-me a mim mesmo como sendo um "homem de sorte". Depois de
algumas edições, eu sempre voltava a essas três palavras e, no fim, elas
acabaram dando um jeito de chegar à capa do livro. Combinavam com a
capa, e combinam até hoje.
Já o título deste novo livro* tem mais de um significado. Primeiro -
vamos falar disso de uma vez -, é uma piada de baixinho. Tendo pouco
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menos de 1,65 metro, a maior parte da minha interação com o mundo e
com as pessoas nele requereram que eu inclinasse um pouco a cabeça para
trás e olhasse para cima. Mas isso não é um manifesto sobre as dificuldades
dos menos favorecidos em termos de altura. Sinceramente, minha altura, ou
a falta dela, nunca me incomodou muito. Apesar de que não há dúvidas de
que contribuiu para o meu engrandecimento mental. Sempre saí na frente
por ser subestimado, e me aproveitei disso. E este é mais o espírito do
título: fazer alusão a uma perspectiva emocional, psicológica, intelectual e
espiritual que me serviu durante a vida e talvez tenha me salvado ao me
ajudar a viver a vida com Parkinson. Não que eu não sinta a grande dor da
perda. Força física, espontaneidade, balanço, destreza manual, liberdade de
fazer o trabalho que eu quiser, na hora em que e como quiser, e a confiança
de que sempre estarei presente quando minha família precisar de mim - se
todas essas coisas não se perderam por completo com o Parkinson, foram
pelo menos comprometidas de maneira drástica.
Os últimos dez anos da minha vida, que são o grande assunto deste
livro, começaram com uma grande perda: minha aposentadoria da série
Spin City. Tive de me esforçar para me adaptar a uma nova dinâmica, à
mudança das minhas personalidades pública e privada. Eu era Mike, o ator,
e depois Mike, o ator com Parkinson. E agora seria apenas Mike com DP?
A Doença de Parkinson tinha consumido minha carreira e, em certo
sentido, se tornado minha carreira. Mas onde tudo isso me deixava? Tinha
de construir uma nova vida quando ainda era muito feliz com a vida antiga.
Fui abençoado com uma carreira de vinte e cinco anos em um trabalho que
amava.
____
*O autor de refere ao titulo original, Alwais Looking up, “Sempre olhando pra cima”, que além de ser uma mensagem de otimismo, que no caso foi traduzida por Um otimista incorrigível, é uma bvrincadeira que se faz com as pessoas de baixa estatura
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Tinha uma esposa brilhante, linda, engraçada, que me apoiava
totalmente, e uma família em expansão de filhos irrepreensíveis. Se eu
tinha de abrir mão de parte disso tudo, como poderia me proteger para não
perder tudo?
A resposta tinha muito pouco a ver com "proteção" e tudo com
perspectiva. A única opção que eu não tinha era ter ou não ter Parkinson.
Todo o restante eu podia resolver. Podia me concentrar na perda e investir
em quaisquer medidas reparadoras que meu ego conseguisse criar. E podia
me apoiar na minha velha conhecida dos anos 1990, a negação. Ou então
podia simplesmente seguir em frente com minha vida e ver se os buracos
nela começariam a se preencher sozinhos. Nos últimos dez anos, isto
aconteceu mesmo, e das maneiras mais incríveis.
O que você vai ler a seguir são as memórias desta última década.
Mas, diferentemente de Lucky man, o livro é temático, e não cronológico.
Trabalho, Política, Fé e Família. Esses são os pilares da minha existência. E
a base da minha vida.
Juntos, formam uma proteção contra a destruição causada pela
Doença de Parkinson. Minha identidade tem tudo a ver cora minha
habilidade de me expressar, de mostrar minha criatividade e meu valor
produtivo (trabalho), de defender meus direitos e os de qualquer comu-
nidade da qual eu faça parte e, portanto, seja responsável (política), de ter
liberdade de procurar um propósito espiritual (fé) e poder explorar os laços
complexos que tenho com as pessoas que mais amo (família), sem os quais
eu já teria sucumbido há tempos diante das forças do lado negro.
Mesmo não sendo uma narrativa estrita, este Livro descreve uma
jornada de autoconhecimento e reinvenção. A história é um testamento das
coisas que me trouxeram até aqui e que deram sentido a todas as áreas da
minha vida.
Para tudo que a doença tomou de mim, algo de grande valor me
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Foi dado — às VEZES , foi apenas algo que me fez ir em uma nova
direção que jamais teria trilhado em outra situação. Claro que tudo isso
pode parecer um passo para a frente e dois para trás, mas depois de um
tempo com Parkinson aprendi que o que importa é fazer com que aquele
passo à frente valha a pena; sempre mirando as estrelas.
PARTE UM
TRABALHO
Into the great wide open*
Em vários sentidos, a vida diária é mais difícil agora que quando
Lucky man foi publicado. Eu pensava que estava em mau estado em 2000,
quando resolvi sair de Spin City. O peso de ter duas responsabilidades,
produzir e atuar em uns cem episódios durante quatro anos, me deixou
acabado. A cirurgia no cérebro feita dois anos antes reduziu os tremores
que eu tinha no lado esquerdo, mas não resolveu nada no direito nem nas
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pernas. Os medicamentos travavam uma batalha diária contra um inimigo
em mudança constante. As diferenças de quando estava com e sem
remédio, a transição de um estado para outro, em condições ideais, são
como uma conversa civilizada, mas isso se deteriorou em discussões
beligerantes e conversas paralelas. Em uma fútil tentativa de estar no modo
"ligado" nos momentos--chave, ou seja, quando estava atuando, tentava
fazer a parte da produção com o mínimo possível de levodopa (ou L-Dopa;
a dopamina sintética que os pacientes de Parkinson usam para controlar os
sintomas) no corpo, porque assim, quando tivesse de atuar, poderia
aumentar a dose e ficar parado diante das câmeras. Raramente, talvez
nunca, acertei a conta. E errando a dose — principalmente ao tomar muita
levodopa -, acabei tendo uma torrente de discinesias, movimentos
involuntários anormais que afetam, acima de tudo, as extremidades, o
tronco ou a mandíbula, como ondulações, tremores, balanços e pulinhos. A
ironia disso ê que eu praticamente não percebia nada até assistir à filmagem
na sala de edição.
_______*”Dentro da Imensidão”, música famosa da banda de rock norte-americana
Tom Petty and the Heartreakrs (N.T)
Tendo decidido na metade da quarta temporada que minha condição
física não me deixaria fazer uma quinta, comecei a pensar que talvez nem
conseguisse fazer os treze episódios que ainda faltavam. Meu regime diário
de medicamentos (que, por sinal, não tinham nenhum efeito psicotrópico,
nada de barato) afetava meus padrões de voz e às vezes fazia com que eu
falasse enrolado ou hesitasse antes de falar, uma droga quando se está
tentando fazer algo engraçado. E em relação à comédia física, na verdade,
eu só tentava evitar uma tragédia.
Mesmo todo mundo - elenco, equipe de produção e audiência -
sabendo que eu tinha Parkinson, eu ainda estava tentando interpretar ura
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personagem que não tinha a doença. Qualquer que fosse a complexidade
cômica ou dramática de uma cena, meu maior desafio era sempre atuar
como se eu não tivesse Parkinson. E, mesmo tendo continuado a usar os
mesmos truques que me serviram tão bem durante anos - segurar algo para
controlar o tremor das mãos, encostar em paredes, mesas e outros atores,
girar em uma cadeira ou sentar atrás de uma mesa para esconder os
movimentos incontroláveis das pernas e dos pés -, o avanço dos sintomas
começou a me forçar a aumentar meu repertório. Descobri que, por curtos
períodos de tempo, podia dirigir toda a energia ondulante do corpo para
uma extremidade particular - mão, perna ou pé. Então, ao organizar uma
cena, eu me colocava (e o restante do elenco também) em uma posição que
escondesse bem a parte do corpo na qual estivesse confinada a energia do
Parkinson. Como disse, é o mesmo tipo de coisa que fiz durante anos, e
pensei que, se explicasse para as pessoas por que estava fazendo aquilo,
todo o processo ficaria bem mais fácil.
Mas não ficou. A coisa continuou dura. As pessoas só passaram a
ter uma idéia de por que era tão duro. Meu amigo Michael Boatman fazia o
papel de Carter Heywood, um dos assistentes do prefeito. Ura dia, estáva-
mos ensaiando uma cena na qual nós dois devíamos passar pela porta do
escritório do prefeito . Um dia, estávamos ensaiando uma cena na qual nós
dois simultaneamente e em direções opostas. Roteiros nas mãos,
começamos a cena, mas, quando ambos chegamos na porta, em vez de
passar por Michel, congelei exatamente na frente dele.
__ Você tem de se mexer - eu disse, mais por impulso que por
querer dizer isto.
Michael é um dos caras mais legais do planeta, porém ficou confuso
e perplexo com o que falei.
- O quê? - ele disse.
- Você tem de se mexer. Não posso me mexer até que você se
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mova. Ele acabou atendendo ao meu pedido e, depois do ensaio, tentei ex-
plicar o que tinha acontecido.
As vezes, quando meu cérebro pede para o corpo fazer tarefas sim-
ples que envolvem algum grau de julgamento referente a relações de es-
paço, a mensagem acaba se perdendo no meio do caminho. É necessário
algum estímulo externo, como o movimento de algum obstáculo ou,
curiosamente, a introdução de um, para eu conseguir me mover para a
frente. Alguns parkinsonianos que param repentinamente ao andar con-
seguem continuar quando uma régua é colocada na frente dos pés deles e
eles são forçados a pisar nela. Claro que Michael aceitou minha explicação
e até riu comigo por causa da estranheza da situação.
Com o passar dos dias, das semanas, dos meses e dos anos, várias
situações que necessitavam do mesmo tipo de explicação surgiram e se
tornaram uma responsabilidade muito cansativa. As diferenças ao estilo o
Médico e o Monstro entre os remédios estarem funcionando ou não
confundiam as pessoas - e com razão. As pessoas à minha volta tinham
dificuldade de entender e separar o enérgico e expressivo Mike Flaherty
que viam diante das câmeras do confuso e mascarado Mike Fox que en-
contravam quando tinham de resolver seus problemas por trás das câmeras.
Minha parceira na produção, Nelle Fortenberry, lembra de muitas ocasiões
em que chefes de departamento ou outros membros do elenco ou da equipe
entravam em seu escritório, fechavam a porta e imploravam para que ela
dissesse por que eu estava bravo com eles.
-O que o faz pensar que Le está bravo com você?
- Acabei de passar por ele no corredor e ele não sorriu, não acenou,
e nem mesmo diminuiu o passo.
Nelle sempre repetia que um dos sintomas do Parkinson é a
escassez de movimentos faciais - a máscara de Parkinson. Além disso, uma
coisa simples como virar a cabeça e fazer um cumprimento é fisicamente
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impossível. Assim que começo a caminhar, a quantidade de energia re-
querida para parar e depois começar de novo é dez vezes maior que para
uma pessoa com o cérebro normal.
Longe do set de filmagens, Nelle é a pessoa com a qual eu mais in-
teragia no dia a dia, com os produtores executivos Bill Lawrence e David
Rosenthal e nosso diretor Andy CadifF. Era quando eu punha meu chapéu
de produtor e discutíamos sobre orçamento, tramas futuras, rascunhos de
roteiros, propostas de design para o cenário, questões de pós--produção,
problemas com o elenco e a equipe e todas as minúcias que aparecem ao
fazer um novo episódio da série a cada sete dias. Acredite se quiser, mas
pode ser bem divertido. Todavia, também pode ser fatigante. Os problemas
aparecem como pipoca; enquanto vamos resolvendo os que estão na tigela
à nossa frente, parece que temos uma grande panela do lado de fora do
escritório constantemente fazendo mais pipocas.
Às vezes eu ria quando Nelle explicava os desafios do dia. Eu a
lembrava de que, por maiores que fossem, não seriam meu maior desafio. E
não era uma reclamação, mas apenas uma nova perspectiva adquirida por
causa da minha condição.
Se pudesse voltar no tempo e falar comigo em 2000, em relação à
batalha diária travada contra o Parkinson, eu diria:
- Você ainda não viu nada!
Na verdade, com a experiência que adquiri desde lá, agora sei que
ficaria muito pior antes de ficar... bem, pior ainda. Mesmo assim, com o
que aprendi em todo esse tempo sobre controlar o estresse por meio de
programações criativas e a nova geração de remédios que está bem
próxima, provavelmente teria conseguido fazer umas boas sete temporadas.
Não estou querendo dizer que era o que gostaria de ter feito. Minha decisão
de deixar Spin Ciy foi a coisa certa a fazer na hora certa.
Naquela época, tomar a decisão de como comprometer meu tempo
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e minha energia se transformou em como eu me sentia em oposição ao que
pensava em relação às coisas. E com certeza a decisão de deixar a série, na
primavera de 2000 (nos Estados Unidos), foi toda "sentimento".
A decisão ocorreu no final da tarde do último dia do ano de 1999.
Estava com minha família mergulhando nas límpidas águas de St. John, nas
Ilhas Virgens americanas. Visitávamos essa praia havia anos e nunca
tínhamos visto uma tartaruga marinha. Quando por fim encontrei uma
deslizando pela água dentro da barreira de corais, nadei lentamente por trás
dela, mantendo uma distância respeitosa. Quando saí da água, chutei as
nadadeiras para longe, andei até onde Tracy secava as crianças, peguei uma
toalha e comuniquei que ia me aposentar da série. Talvez tenha sido por
estar exausto até os ossos de lutar com os sintomas todos os dias apenas
para fazer meu trabalho, ou talvez tenha sido somente a sublime
indiferença daquela tartaruga, mas houve um clique em mim e, dependendo
de como eu o aceitasse, uma luz estaria acendendo ou apagando em mim.
Se a descuidada natureza do meu anúncio assustou Tracy, ela disfarçou
bem. Era o momento de ela desabafar, se quisesse. Ela poderia ter rido
como se fosse uma piada sem graça ou fingir que ignorava o que disse,
oferecendo-me tacitamente a chance de reconsiderar. Ou ainda poderia ter
dito: "Você ficou louco?". Afinal, o que eu estava propondo de forma tão
casual traria grandes mudanças em nossa vida e também na das crianças. E
nem mencionei a tartaruga, com medo de ela achar que só a estava
consultando para pedir uma segunda opinião. Todos os momentos difíceis
do nosso casamento ocorreram quando um de nós - tá bom, eu - resolveu
agir de maneira unilateral. Para encurtar a história, ela poderia ter tido
várias reações diferentes. Mas o que Tracy fez foi me olhar nos olhos e
dizer uma só palavra: "Certo", e me dar um abraço molhado e cheio de
areia.
Nos últimos dias de férias não falamos sobre o assunto. Se eu
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estivesse esperando que ela me demovesse da idéia, isso não iria acontecer.
Mas a ruptura seria assim tão simples tão clara? Essa foi uma
decisão de momento; com certeza foi uma das mais importantes da minha
vida, e aconteceu abruptamente.
E, sim, seria, em certo sentido. Não duvidei nem uma vez, desde
meu encontro com a tartaruga, de ter feito a escolha certa, da coisa certa a
fazer na hora certa. Mas não foi fácil. Não foi difícil tomar essa decisão,
mas era uma decisão bem difícil de ser posta em prática. Como em
qualquer grande mudança, ou quando escolhemos um novo caminho e
esquecemos o antigo, vão haver conseqüências. Estávamos na noite do
último dia do ano, próximos do Ano-Novo, perto de um novo milênio, e eu
tinha decidido deixar para trás tudo que havia conquistado, buscado e
acumulado ao longo dos últimos vinte anos. Eu sabia que não estava
deixando apenas a série - estaria deixando de lado minha carreira de ator.
Enquanto sempre tive dificuldade de me ver como um astro, orgulhava--me
de ser um artista. Entendi que, embora sair oficialmente de Spin City não
significasse abandonar minha carreira, não poderia abandonar esse
compromisso, essa agenda e as condições de trabalho e esperar conseguir
outro papel principal na TV ou no cinema. Era o fim. Eu estava tirando o
fio da tomada. Adeus. Até mais.
John Gielgud, reverenciado por décadas atuando nos palcos
ingleses e famoso por ser o mordomo de Dudley Moore em Arthur, o
Milionário, certa vez descreveu o trabalho de sua vida desta forma: "Atuar
é meio vergonha, meio glória. Vergonha em exibir a si mesmo; glória
quando consegue esquecer de si mesmo". Quando eu tinha 16 anos e estava
embarcando na carreira, podia fazer essa relação. Arrisquei-me em outras
áreas, durante um tempo vislumbrei um futuro como escritor, ator de
comerciais ou talvez músico, mas foi atuar que pareceu para mim a coisa
mais natural do mundo. Em uma idade em que a maioria das pessoas
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impossível de ser amada, encontrei algo que me parecia fácil e natural
fazer. Eu podia ser qualquer um, qualquer coisa, de qualquer tamanho ou
forma, e me transportar para qualquer tempo ou lugar. E, se fizesse direito,
ainda haveria o bônus de receber a aprovação das pessoas que eu seria
pressionado a agradar se a situação fosse outra. Alguns papéis nas peças da
escola, pequenos filmes locais e na TV me encorajaram a testar meu
potencial, e logo fui percebendo que minha maior limitação era geográfica.
Eu precisava ir aonde o trabalho estava.
Ser ator deu-me uma vida além daquela que eu poderia imaginar - e
olha que tenho uma imaginação fervilhante. Aos 18 anos, minhas aspira-
ções me levaram a Los Angeles. Passei por audições humilhantes e sem
sentido e por rejeições rotineiras, com recompensas ocasionais, como um
pequeno papel na TV ou um comercial em rede nacional que pagavam meu
aluguel e mantinham meu espírito aceso. Então veio o sucesso e, com ele,
uma nova confiança em minha vida artística e a coragem de tentar coisas
novas - algumas com resultados positivos, outras nem tanto, mas nunca
com arrependimento.
Atuar era uma ocupação que exigia que eu fosse tanto observador
quanto participante do mundo. Durante todos os anos de comédia, sempre
me apoiei em uma habilidade intuitiva de achar graça em quase todos os
tipos de situação. Sempre há um "lado engraçado”. A paleta do ator é a
totalidade da experiência humana. Uma carreira tão longa e ocupada como
a minha me permitiu ter empatia e uma conexão com as pessoas de forma
que outras profissões não conseguiriam. E claro que tinha também os
benefícios mais tangíveis, como viagens, boa situação financeira e boa
vontade acima de qualquer merecimento. Talvez o maior presente de todos
tenha vindo graças a uma escolha fortuita de elenco: conhecer Tracy nas
gravações de Caras e Caretas.*
___
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*Family Ties, no original (N.T.)
Não fiz faculdade nem mesmo acabei o colegial. Ser ator era a
única carreira que eu conhecia e, agora, graças ao conselho de uma
tartaruga, estava pronto para abandonar tudo tão facilmente quanto secar a
água das minhas costas queimadas de sol?
No fundo eu sabia que meu grande amor pelo trabalho - aquele ar-
repio que passava pela minha espinha quando uma piada bem escrita era
encenada certinha e aceita pela público - ainda estava lá. Um conforto
conseguido a duras penas, desenvolvido após muitos anos de atuações. Não
indolência, mas uma confiança racional de que, independente da emoção,
da intenção ou da atitude que eu tivesse de tomar, essa flecha estaria na
minha aljava quando eu a procurasse. Quando era um jovem ator, às vezes
podia esconder minha insegurança em determinada cena usando um
movimento ágil e puramente físico: Alex Keaton colocando as mãos nos
bolsos e pulando para trás do balcão da cozinha; Marty McFly andando
agachado, fazendo piruetas e deslizando bastante ao cantar Johnny B.
Goode; Brantley Foster fazendo a pose do Hulk no elevador, usando
apenas samba-canção; ou mesmo Mike Flaherty tirando as calças em pleno
ar enquanto girava por cima da cama e de sua namorada, que o esperava.
Sempre pude contar com o físico. A triste ironia é que, quando senti que
possuía o controle total das dimensões emocionais e intelectuais da minha
identidade performática, não podia mais contar com meu corpo para apoiá-
la. Não quero, como ator, fazer escolhas baseadas em incapacidades em vez
de em habilidades.
Apesar de não poder afirmar que tenho memórias lúcidas daquela
noite, tenho certeza de que passei o Ano-Novo de 1979, meu primeiro
como jovem ator na Califórnia, bebendo até cair e fazendo promessas
loucas sobre tudo que ia conseguir nas décadas seguintes. Agora, vinte anos
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depois, aproveitando um Ano-Novo calmo e sóbrio com minha família e
refletindo a respeito de tudo que aquele jovem tinha conseguido realizar,
preparava-me para entrar em um futuro incerto.
ESTÚDIO D, CHELSEA PIERS
17 DE MARÇO DE 2000
Para uma série de televisão, em especial as comédias, atingir cem
episódios representa uma importante conquista. Tradicionalmente, a marca
dos cem é o mínimo exigido para um programa obter sucesso com a venda
dos direitos para emissoras independentes e para o exterior.* Ao entrar na
nossa quarta temporada e tendo programados vinte e dois episódios para
ela, esperávamos terminá-la chegando aos noventa e seis programas
gravados.
Nosso acordo de venda de direitos já estava fechado, então não era
crucial que fizéssemos mais quatro programas e chegássemos a cem. Mas,
mesmo estando em paz com minha decisão de deixar o programa, fiquei
obcecado em atingir aquele marco. E isso poderia significar adicionar mais
um mês de produção, porém, não tínhamos nem tempo nem dinheiro.
Então, em vez de facilitar as coisas e deixar o programa tranqüilamente,
criei um esquema logístico duro que às vezes fazia com que gravássemos
um programa e meio por semana e que nos permitia bancar seis episódios
em quatro semanas. O plano era fazer um final especial de uma hora,
editado como dois episódios por causa da venda dos direitos. Ele foi
filmado em duas semanas, a maior parte no estúdio e sem platéia, além de
um dia filmando em Washington, D.C. Depois, esse material foi editado,
organizado e exibido no nosso final de temporada, ao vivo de Nova York,
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com platéia e intercalado com cenas feitas na hora.
Tenho certeza de que foi um período difícil para o elenco e a equipe
técnica, apesar de já sabermos no último mês e meio da temporada que
minha saída não seria o fim de Spin City, mas apenas uma transição. O
programa continuaria. Charlie Sheen tinha aceitado ser o novo assistente do
prefeito, e a produção se mudaria para Los Angeles, onde Charlie e Gary
Goldberg, o cocriador do programa, moravam. (Gary iria reassumir o cargo
de produtor-executivo.)
___*É o que os norte-americanos chamam de syndication. (N. T.)
Claro que essa seria a temporada final para a equipe de Nova York. Para o
público, porém, não seria um adeus ao show, mas apenas para o
personagem Mike Flaherty.
O episódio final foi complicado de ser criado e executado porque a
trama era recheada de realidade. Mike Flaherty, por razões injustas, era
forçado a deixar prematuramente o trabalho que amava. E posso dizer que
todos os outros atores da série estavam tão preocupados comigo quanto
seus personagens estavam com Mike. Era tudo um grande (e o mesmo)
problema. E então era isso. Tinha mesmo acabado.
As perspectivas fictícias de Mike Flaherty eram melhores que as
minhas. Provavelmente ele trabalharia de novo. Mas eu trabalharia? Dificil-
mente. Pelo menos não dessa forma, gravando semana sim, semana não,
diante de uma platéia ao vivo.
Trabalhei com David Rosenthal, Bill Lawrence e o restante dos es-
critores para garantir que Mike tivesse pelo menos uma cena substancial
com cada um dos personagens fixos da série. Isto era para dar ao público a
sensação de que todos os relacionamentos que ele tivera haviam sido bem
resolvidos e também para que eu pudesse dividir o palco com cada um
daqueles artistas talentosos, dos quais vim a gostar muito nos quatro anos
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em que trabalhamos juntos. A coisa toda foi carregada de emoção; a carga
logística que havíamos criado só tinha agravado a exaustão, que era a razão
inicial que me fizera sair do programa. Fora dos palcos, meus planos de
deixar a série criaram uma onda de apoio e carinho comparável a dois anos
antes, quando eu havia anunciado que tinha a Doença de Parkinson. Houve
um enorme interesse da mídia nos meus últimos dias de mandato, com
repórteres aparecendo no estúdio e acompanhando nossa preparação para
meu último programa. Todos - elenco, equipe técnica, escritores e equipe
de produção - estavam, ao mesmo tempo, dando o máximo e meio
perdidos. Mas agarravam-se a algo que parecia estar fugindo de mim. Esse
episódio final marcava um momento de virada na minha vida, um abalo
tectônico. Eu olhei em volta, entendi o que havia sido colocado em
movimento e o que aconteceria em seguida e disse:
- Puta merda! O que foi que eu fiz?
Eu tinha navegado em águas estreitas e rasas demais para poder vi-
rar o barco. Não é como se estivesse totalmente por fora do que estava
acontecendo; fui dominado pela emoção como todos os outros. E também
me sentia culpado, sabendo que, ao escolher mudar a direção da minha
vida, havia tirado tantos outros de seus cursos naturais. Eu esperava que
não fosse algo irreversível, mas com certeza havia sido inesperado. Ou
talvez não tenha sido tão inesperado assim. Todos podiam ver minha
batalha fatigante. E o último esforço para fechar tudo de maneira correta, a
pressão para atingirmos a marca dos cem episódios, o sacrifício físico de
produzir e atuar simultaneamente apenas reforçaram que eu tinha tomado
uma decisão sábia. Todavia, a necessidade de eu conseguir essas últimas
risadas e desmaiar depois de cruzar a linha de chegada sobrepuseram-se a
qualquer pensamento a respeito do que eu enfrentaria ao cruzar aquela
linha invisível. Naquele momento, o que me manteve seguindo em frente
foi a necessidade de parar.
19
Mesmo que eu não tenha aparecido dizendo "Puta merda!", disse
por procuração. Para podermos fazer com que Mike Flaherty saísse do
emprego na Prefeitura (e eu saísse de Spin City), precisávamos criar o
momento certo para ele, e essa saída honrosa me deu certa perspectiva.
O conceito era o seguinte: apesar de ser inocente e de não ter feito
nada errado, o prefeito acaba envolvido em um escândalo e a prefeitura é
ligada ao crime organizado. Não vendo outro jeito de tirar o chefe dessa
enrascada, Mike decide assumir a culpa de tudo e resolve pedir demissão
do cargo. Os colegas de trabalho ficam chocados e ele também, fica aba-
lado, mas tem certeza de que esta é a coisa certa a fazer. Então ele começa
a costurar as pontas soltas de um trabalho que o definia. Depois de seu
último dia no emprego, já em casa e com a namorada e colega de trabalho
Caitlin, Mike expressa sua ansiedade. Que diabos vai fazer agora?
CAITLIN ESTÁ COLOCANDO A COMIDA NA MESA - JANTAR
PARA DOIS. MICHAEL ENTRA.
Caitlin
Oi.
Michael
Ei, você não apareceu no bar.
Caitlin
As coisas estavam meio confusas no escritório.
Michael
É, ouvi dizer que perderam um cara bem importante hoje..
Caitlin
Ele era só um rostinho bonito.
20
Sempre senti que Heather Locklear é subestimada como atriz,
provavelmente porque é muito natural e faz tudo sem esforço diante das
câmeras. E uma grande prova da sua habilidade ocorreu bem na minha
frente, enquanto trabalhávamos juntos no tal último episódio. Caitlin podia
ser uma rocha, mas Heather estava mal, chorando antes e depois de cada
cena. Ela foi ótima naquela semana, como já havia sido durante toda a
temporada. Afinal de contas, ela havia entrado para me ajudar quando o
trabalho começou a ficar pesado demais, e fez um trabalho espetacular,
assim como Carlin estava fazendo com o futuro ex-assessor do prefeito.
Mas a situação que fechava a semana era, na verdade, sobre mim e
Tracy, um reconhecimento de quão me sinto fortalecido por ela acreditar
em mim, na vida e na família que construímos juntos. Às vezes só tenho a
coragem das convicções dela, do seu apoio incondicional e da sua
segurança, quase como se eu devesse confiar sempre no meu coração, na
minha coragem e no amor dela. E, relembrando não apenas um momento
da nossa história recente juntos, as palavras e as emoções evocaram
lembranças de outros tempos, quando eu oferecia minhas dúvidas e medos
à minha esposa - a bebida, as crises da carreira, o Parkinson - e ela nunca
me julgava, apenas os dividia comigo. Quando tudo parecia perdido,
contava com Tracy para me ajudar a achar o caminho - ou, melhor que isso,
ficar ao meu lado até que algo novo aparecesse. E às vezes isso demorava.
MICHAEL SENTA-SE À MESA. PELA PRIMEIRA VEZ EM
MUITO TEMPO, ELE RESPIRA FUNDO.
Michael
Quer saber? Estou bem. Vou dar a volta por cima, não
vou?
21
Caitlin
Claro que vai, Mike.
Michael
Não é o fim, né?
Caitlin
Ainda está muito longe do fim.
Michael
Mas é estranho. Desde que me lembro, sempre tinha algum
lugar para ir todas as manhãs. 0 que vou fazer amanhã, quando o
despertador começar a tocar?
Caitlin
Vou deixar o despertador desligado.
Na noite do programa, o lugar ficou lotado. A imprensa estava lá, e
muita gente do estúdio e da rede de TV também; minha família tinha vindo
de Vancouver; todos os produtores e roteiristas que haviam trabalhado no
programa nos últimos quatro anos apareceram para se despedir. E, mesmo
tendo muitos convidados especiais, muitos ingressos foram reservados para
as pessoas comuns, aqueles leais espectadores que sempre vinham ver
nosso programa desde que fora criado. E claro que Tracy passou a maior
parte da noite nos bastidores, vendo o programa pelos monitores ao lado de
Gary, os dois chorando enquanto assistiam ao episódio e a esse capítulo de
nossa vida chegarem ao final.
No fim da noite, corri para juntar o elenco para o cumprimento ao
público que planejamos para ser incluído como parte do episódio. Eu usava
22
a jaqueta esportiva favorita de Mike Flaherty, da Universidade de l ;ordham,
e abracei cada membro do elenco e acenei minha despedida. Ao fundo
tocava Glory days, música que Bruce Springsteen gentilmente nos deu
permissão para usar. Foi uma escolha sentimental, mas também era para ser
irônica. O tempo passa e deixa você sem nada, cavalheiro; sobram apenas
histórias chatas dos dias de glória. Claro que meus dias de glória ainda não
tinham acabado. Eu ainda teria muitas histórias para contar.
Depois do programa, reunimo-nos em um restaurante próximo que
já tínhamos reservado para aquela noite. Dançamos e festejamos, rimos até
a barriga doer e fizemos nossas despedidas. Naquela noite, quando Tracy e
eu fomos para casa, deixei o despertador desligado.
Mexido, não batido
Quando fui diagnosticado com a doença, em 1991, estava
determinado a absorver o impacto, esquecer todo o medo, a confusão e as
dúvidas e ficar agradecido por ter um pequeno grupo de amigos e a família
me apoiando. Eu entendia que os sintomas indicavam um progresso lento
da doença, e isso me deu o tempo e a privacidade de que precisava para
processar a situação. Da mesma forma, quando anunciei o que estava acon-
tecendo, em 1998, após sete anos medindo o tamanho e o peso do fardo que
estava carregando, o que eu queria, em grande parte, era aliviar um pouco
esse fardo. Apesar de estar nervoso em relação a como as pessoas reagiriam
quando contasse a verdade, estava muito mais preocupado em como
reagiriam se eu continuasse a esconder a situação.
Sendo brutalmente honesto, na maior parte daquele tempo eu era a
única pessoa com Parkinson do mundo. Claro que digo isso no sentido
abstrato da coisa. Acabei ficando sensível em perceber pessoas à minha
23
volta que tinham sintomas da Doença de Parkinson, mas enquanto elas não
se identificassem comigo eu também não tinha pressa nenhuma de me
identificar com elas. Minha situação me permitia, senão uma negação
completa, pelo menos certo isolamento. Mas isso iria mudar.
Não saí do meu isolamento, e pronto. Ir a público foi uma decisão
difícil, e eu tinha muitas desconfianças. Minha experiência subjetiva era
agora um fato objetivo no mundo selvagem. Não pertencia mais apenas a
mim - apesar de eu logo aprender que nunca tinha pertencido apenas a mim
desde o início. Mais de um milhão de outros norte-americanos e suas
famílias estavam passando pelo mesmo que eu - alguns abertamente, outros
em segredo, com medo de ser incompreendidos e marginalizados. Eu
representava algo para eles e, tendo ou não planejado isso, agora também
os representava na mente das pessoas.
Eu reconhecia que tinha uma responsabilidade com essa nova co-
munidade e ao mesmo tempo a oportunidade de fazer algo positivo.
Podia me relacionar com os pacientes que me escreviam, em
especial os que estavam on-line, nas salas de bate-papo sobre Parkinson.
Em geral, eu fazia isso usando um pseudônimo, mas era sempre estranho
quando as pessoas me perguntavam o que eu achava de mim. Uma das
maiores revelações que tive foi que, apesar de termos o mesmo fardo,
nossas experiências podiam ser muito diferentes umas das outras. A
Doença de Parkinson pode se apresentar de muitas formas - e, por alguma
razão, cada um tem uma versão diferente. Uma terapia com medicamentos
ou uma cirurgia que funcionem para um podem não dar certo para outro.
Nossas reações - emocionais, psicológicas e físicas - variam muito, e isto
com certeza afeta nossa habilidade de reagir.
Minha interação com a grande população de portadores da Doença
de Parkinson levou-me a ver que tinha sorte, e isso me deu certo consolo.
Por alguma razão, eu tinha sido poupado da tortura da depressão. Não
24
quero dizer com isso que não tenha tido momentos de tristeza, medo ou
ansiedade acerca de minha condição, além de ter precisado passar por cima
do sentimento de negação para reconhecer tudo isso. Mas a depressão
clínica é um sintoma comum enfrentado por 40% dos pacientes com DP.
Igual à demência, ela pode estar presente desde o início, pode aparecer ao
longo do tempo ou de uma hora para outra nos últimos estágios da doença.
E, como eu disse, apesar dos altos e baixos já esperados em uma vida com
Parkinson, não tenho de lutar com o desequilíbrio químico que ativa uma
depressão severa.
Nunca saí de uma sala de bate-papo daquelas sem me sentir ura cara
de sorte. Minha família, minha relativa juventude, minha situação
financeira e também minha posição como homem público deram-me
tremenda vantagem para lidar com a doença. Apesar de o Parkinson ter
impacto direto em minha habilidade de fazer meu trabalho, eu era, para
todos os efeitos, meu próprio chefe. Então, para mim, decidir contar ou não
sobre minha doença não envolvia nenhum grande risco. O anonimato da
internet também me permitiu ver o impacto que minha revelação teve sobre
outros pacientes, suas famílias e as pessoas com as quais interagiam todos
os dias. E tenho certeza de que o efeito teria sido o mesmo com várias
outras pessoas conhecidas, mas o fato de alguém com a habilidade de atrair
tanto interesse público jogar uma luz no problema da categoria significou
mais do que eu poderia imaginar. Certo, pensei, e agora, o que faço com
isso?
Alguns meses depois do meu anúncio, comecei a me integrar na co-
munidade de pacientes com Parkinson e a me familiarizar com as diversas
organizações e fundações que haviam me procurado. Convidei alguns re-
presentantes a irem ao meu apartamento para discutirmos seus programas e
estudar como eu poderia me encaixar nos planos deles. Apesar de eles
serem muito profissionais, dedicados e comprometidos, eu ainda estava
25
procurando algo com foco mais agressivo em relação a pesquisas que
descobrissem uma cura. Em uma dessas ocasiões, um grupo chamado
Parkinson's Action Network (PAN), liderado por Joan Samuelson, uma
paciente jovem em estágio inicial e advogada ativista, tocou nessas ques-
tões logo de cara, falando também da disparidade dos financiamentos fe-
derais para as pesquisas com Parkinson em relação a outras doenças.
O Subcomitê de Verbas do Senado para Trabalho, Saúde e Serviços
Sociais tinha marcado uma audiência em Washington para algumas
semanas depois, e Joan apresentou seu caso dizendo que meu testemunho
poderia atrair atenção para a questão e fazer com que o Congresso nos
apoiasse. Vendo uma chance de fazer a diferença, aceitei dar meu
depoimento.
O que agora é um fato público e divulgado era pouco conhecido na
época: sou viciado em política. Quando era pré-adolescente, fui inspirado
pelo primeiro-ministro canadense Pierre Trudeau e assombrado pelo
presidente Richard Nixon. Virei adolescente e fui voluntário do Partido
Liberal da Colúmbia Britânica nas eleições locais, distribuindo propaganda
do meu candidato e redistribuindo as do adversário no lixo atrás da loja de
bebidas. (Mas não adiantou; meu favorito dançou na eleição.)
Ao longo dos anos, acompanhei a política com avidez e sempre ten-
tei me manter informado sobre os políticos e as políticas públicas. Todavia,
como deixei o Canadá quando fiz 18 anos, não tive moradia fixa em
nenhum lugar durante anos, e porque não tinha virado cidadão norte-
americano até o ano 2000 nunca tinha votado em nenhuma eleição. E, sem
ter meu próprio voto, não me sentia no direito de influenciar o voto dos
outros.
No entanto, na época da audiência do Senado, eu já estava com tudo
encaminhado para me tornar cidadão norte-americano. Minha papelada já
estava sendo processada, e com isso eu tinha a consciência limpa para
26
defender meu caso. Eu não era especialista em como andavam as pesquisas
científicas na área. Falaria sobre o efeito que a doença tem sobre os norte-
americanos, dividiria nossas esperanças e dificuldades, reivindicar nossos
direitos e expressaria nossas expectativas. Escrever meu testemunho ao
Congresso foi provavelmente meu primeiro esforço concentrado em
comunicar o que tinha vivido nos últimos oito anos. Não queria que as
pessoas saíssem do meu depoimento resmungando "Coitadinho dele!". Na
verdade, esperava que pensassem “Acho que podemos ajudar".
O otimismo que levei comigo nas audiências e a certeza de que
qualquer situação, com as circunstâncias certas, pode melhorar foram
validados pelo testemunho do Dr. Gerald Fischbach, diretor do Instituto
Nacional de Problemas Neurológicos e Derrames (parte do National
Institute of Health*). Ele afirmou que, com um bom investimento em
pesquisas, os cientistas poderiam descobrir a cura para a Doença de
Parkinson entre cinco e dez anos. Se uma das câmeras estivesse me fil-
mando em dose, tenho certeza de que teria sido uma das melhores per-
formances de surpresa da minha carreira. Esperava que ele mostrasse
confiança e lançasse um desafio para que outros pesquisadores o seguissem
e o Congresso os apoiasse da melhor maneira possível, mas não estava
preparado para ter uma idéia certa de tempo. O testemunho dele me deu
energia. Era algo manejável. Recebi o recado de que uma cura era possível,
e precisava agir de acordo com essa informação.
__*Trata-se da Agência nacional de Saúde dos Estados Unidos. (N.T.)
Comecei a perceber que eu era ridiculamente desqualificado para
contribuir com esses esforços de maneira substancial. Não tinha MBA nem
Ph.D., apesar de alguns anos antes ter conseguido meu GED.* Mas meu
otimismo havia se cristalizado em uma esperança definitiva. E ao longo do
27
ano seguinte a esperança virou a inspiração para uma fundação privada,
que poderia estimular a comunidade dos pacientes e criar uma estrutura de
arrecadação significativa de dinheiro, identificar cientistas sub financiados
e providenciar o suporte de que eles precisavam o mais rápido possível.
O irônico é que para fazer o trabalho da minha vida tive de me apo-
sentar do meu emprego do dia a dia.
__*É o equivalente ao ensino médio (N.T.)
Férias permanentes
PEYPIN D'AIGUES, PROVENCE, FRANÇA
JULHO DE 2000
Em um estacionamento de cascalho na vila provençal de Peypin
d'Aigues encontro uma árvore lisa e observo com a mesma fascinação
respeitosa algo tão atemporal quanto a tartaruga que vi na costa de St. John
no inverno anterior: dois senhores idosos franceses usando roupas brancas
amassadas e jogando uma partida de boules.**Parece mais uma dança que
um jogo, além de a conversa deles ter certa qualidade musical gutural.
Depois de uma pequena discussão, aparentemente ocorrida por causa do
ponto exato de lançamento das bolas, os senhores deram alguns passos até
um banco de madeira, pegaram duas taças de vinho e, no tempo que cada
um levou para dar um gole, já tinham se esquecido da briga. Tomei um
belo gole da garrafa de água que tinha trazido desde o aeroporto de
Marselha. Sam tinha ficado nos Estados Unidos (ele não queria perder o
acampamento de verão) e nossas gêmeas, Schuyler e Aquinnah, então com
28
5 anos, estavam dormindo no carro. Tracy tinha entrado na imobiliária para
se encontrar com nosso contato, enquanto nosso amigo Iwa pagava o
motorista de táxi que nos guiara até ali, a apenas um quilômetro da
propriedade que tínhamos alugado pelas duas semanas seguintes. O agent
de biens immobüiers nos levaria o restante do caminho.
__**Jogo tradicionalíssimo na França e no Brasil, aqui conhecido como bocha. (N.T.)
Tinha sido uma longa viagem e eu não fazia idéia do que esperar do
lugar. Mas, quando estávamos chegando à propriedade, minhas preocu-
pações desapareceram. Depois de uma última curva, pudemos ter uma
visão ampla do que nos esperava: espalhando-se pelo terreno e aumentando
enquanto nos aproximávamos estava um telhado colonial de cor creme,
feito de telhas de barro, grandes torres e um moinho flutuando em um mar
de lavanda. Não podia ter pedido por um lugar melhor para refletir sobre as
transformações ocorridas na primeira metade do ano e ponderar sobre as
possibilidades da segunda metade.
Meus últimos meses como Mike Flaherty foram emocionais, exaus-
tivos e agridoces. Mas, exceto por minhas preocupações com o elenco e a
equipe técnica, cujos trabalhos seriam afetados, pelo menos no curto prazo,
eu não tinha arrependimentos. Também não tinha nenhum plano real. A
caminhada até o último episódio coincidiu com um desejo rudimentar de
criar algo como uma fundação (apesar de não ter idéia do que isso
significava). O amor, apoio e encorajamento que recebia de amigos, da
família e de incontáveis pessoas mundo afora estavam, me impulsionando
durante essa transição. Ocorreu-me que esse poderia ser o momento certo
para uma autobiografia. O resultado, pensei, seria uma oportunidade de
reflexão e perspectiva, ao mesmo tempo que me daria o ensejo de mostrar
minha gratidão a tudo que aconteceu em minha vida - de bom e de mau. E
29
também pensei que, se o livro desse dinheiro, eu poderia doá-lo às
pesquisas sobre Parkinson.
Para ser sincero, minha vida antes da viagem à França era composta
de páginas em branco, iguais às do livro que eu pretendia escrever. Após
esse período de descanso, viria o restante da minha vida, que, por enquanto,
era formado de tempo e espaços ainda não dedicados a nada. Eu não estava
tirando férias. Estava embarcando em uma odisséia que, sem dúvida
nenhuma, duraria muito mais que essas duas semanas longe de Nova York.
Para minha família, estávamos de férias; para mim, era uma invocação. Eu
esperava um sinal ou presságio - e estava disposto a pagar em francos.
Porém, eu mal sabia que, nessa quinzena na França, seria visitado por uma
musa, no exato sentido homérico da coisa, que tomaria a forma de um
corredor solitário descendo do topo de uma montanha - ou algo parecido
com isso.
Provence era um sonho. O momento e a paisagem inspiraram-me a
parar e apreciar quão abençoada era minha vida. Afinal, lá estava eu, o
moleque que veio do Canadá, passando duas semanas com a família em
uma propriedade francesa que existia havia séculos.
Fotos da família dos proprietários, a maioria dos filhos pequenos,
cobriam as paredes da casa. Genevieve, cozinheira e empregada, muito
simpática e graciosa, mas que não falava uma palavra em inglês, apontava
com orgulho os retratos das meninas e exclamava: "Princesse! Princesse!".
Tomamos isso como uma simples expressão de afeto dela pelas crianças,
até notarmos fotos de pessoas muito elegantes em cenários de realeza,
roupas de cama de linho com brasões elaborados e, finalmente,
encontrarmos um documento personalizado identificando o dono da
propriedade como o herdeiro do trono de um principado européia. Não
conseguia parar de rir. Tínhamos furado uma bela fila.
Enquanto as crianças se esbaldavam na piscina gelada, Jean-Luc,
30
marido de Genevieve, era meu guia em caminhadas diárias pelas redonde-
zas. Super naturalista, ele sempre andava olhando para o céu, procurando
as muitas jovens águias nascidas naquela primavera.
- Michel! - ele exclamava, apontando para o horizonte ou acima de
sua cabeça. - Regarde, regarde! Aigle, aigle!
Eu dava uma olhadela rápida, mas não sem certa trepidação. Na pri-
meira de nossas caminhadas, Jean-Luc alertou-me de que, além das águias,
a fauna local também tinha grande população de porcos selvagens - os
javalis - ou, como diria Jean-Luc, cochons sauvages. E um presunto peludo
e malvado de cem quilos que, sem aviso, pode atacar saindo de um arbusto
e eviscerar você com as longas presas. E nem precisam ter um motivo.
- Sim, já vi a águia, Jean-Luc... Não, não preciso de um binóculo,
merci.
Já Tracy descobriu uma coleção de bicicletas em um galpão atrás da
casa. Jean-Luc cuidava delas e disse que podíamos usá-las. Minha mulher
sempre foi uma entusiasta do ciclismo e ficou animada com a possibilidade
de pedalar para cima e para baixo pelos vales e cidadezinhas dos arredores
de nossa casa de campo. Ela até me convenceu a ir com ela, mas depois de
duas ou três subidas cruéis ser eviscerado por um javali não me pareceu
uma idéia tão má assim.
O pouco de TV que vimos desde que chegamos a Provence incluía
a cobertura da espetacular Volta da França. O evento anual e de maior tra-
dição esportiva do país vinha rodando pelas montanhas e cidadezinhas do
interior, e os heróicos atletas, em especial o norte-americano Lance
Armstrong, tinham inspirado Tracy. Eu também acompanhava o progresso
de Lance, mas por razões diferentes.
Em um dos nossos últimos dias em Provence, descobrimos que o
trecho seguinte da Volta da França passava por uma cidadezinha próxima
chamada Pertuis. Acordamos cedo, comemos uma baguete com queijo
31
delicioso no café da manhã no terraço e partimos para a cidadezinha.
Depois de mais ou menos uma hora esperando os ciclistas, durante
a qual nos embriagamos com o ambiente e as cores do local e deixamos as
crianças tomarem um sorvete atrás do outro de um vendedor próximo, um
burburinho começou a surgir na multidão. Podíamos sentir o chão sob
nossos pés começar a vibrar. Os espectadores espremiam-se para conseguir
uma vista melhor. Pelo que eu tinha visto desses eventos na televisão,
sempre pareceu que a multidão se aventurava perto demais dos ciclistas, e
me surpreendia não haver muitos acidentes por causa disso. Tracy e eu
pegamos uma gêmea cada uma pela mão e as seguramos firme enquanto o
pelotão passava zunindo por nós. Era difícil distinguir uma bicicleta da
outra; juntas, elas se tornavam um grande borrão metálico. O arco-íris de
cores das camisetas das equipes e o cromo brilhante das bicicletas atraíam
as pessoas como um grande ímã. Pensávamos que aquele dia em Pertuis
havia sido o melhor encontro pessoal que poderíamos ter com a Volta da
França. Mas não sabíamos o que nos esperava em Paris.
PARIS, FRANÇA -SÁBADO, 22 DE JULHO DE 2000
Apesar de um período particular e repugnante em sua história,
quando serviu de quartel-general para os nazistas durante a ocupação na
Segunda Guerra Mundial, amamos o Hotel de Crillon. As grandes janelas
do nosso quarto, que iam do chão ao teto, tinham vista para a Place de La
Concorde, oferecendo uma clara visão do Jardin des Tuileries, do Musée de
l'Orangerie e, do outro lado do Sena, do Palais Bourbon.
Pouco depois de nos registrarmos, liguei para nosso amigo Philippe
de Boeuf, o gerente do hotel. Perguntei-lhe porque havia uma bandeira do
Texas tremulando acima do hotel, coisa que reparei Logo que chegamos.
- É para Lance Armstrong - ele respondeu com. seu sotaque à. Ia
Charles Boyer. - Ele está na cidade por causa da Volta da França. Amanhã
32
é a última etapa, e o Crillon é a casa dele quando está em Paris.
Além de termos um grande apreço pelas conquistas que levaram
Lance a ser o maior ciclista competitivo da história, Tracy e eu também
fomos inspirados, como tantos outros no mundo todo, pela coragem e
perseverança dele em superar o desafio de um câncer de testículo, que
ameaçava não apenas sua carreira, mas também sua vida. Ele se tornou um
herói para muitas pessoas com câncer. Fiquei especialmente impressionado
pela força dele em enfrentar a própria provação e ainda reconhecer a
situação enfrentada pelos outros. A Fundação Lance Armstrong, mesmo
sendo relativamente nova, já conseguia cumprir a missão à qual se
propunha: "Inspirar e capacitar quem sofre com o câncer e seus familiares
sob o mote A união faz a força, o conhecimento traz poder e atitude é
tudo"'.
Eu considerava Lance e Christopher Reeve modelos a seguir para o
que eu queria realizar. Os dois eram homens que tinham enfrentado de-
safios que os havia transformado. Cada um deles pegou o problema e o
transformou em algo positivo. Eu não precisava deixar a doença me definir
- eu mesmo tinha de me definir. E talvez, no processo, conseguisse algo
melhor para mim e para todos os outros na mesma situação.
- Engraçado você mencionar a bandeira - continuou Philippe. - A
mulher de Lance, Kristin, viu você e sua família no saguão e gostaria de
convidá-los para uma recepção que teremos aqui no hotel hoje à tarde.
Não precisei pensar no assunto nem perguntar nada a Tracy.
Antes de desligar o telefone, ainda tinha um pedido a fazer a
Philippe. Um dia ou dois antes de sairmos de Provence, recebemos um
telefonema dos Estados Unidos informando que cada um de nós havia sido
indicado ao Emmy - eu pela última temporada de Spin City e Tracy pela
participação especial em um episódio de Law e Order SUV. Enquanto ela
estava no quarto das gêmeas ajudando-as a desfazer as malas, perguntei a
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Philippe se o chef do hotel poderia fazer um bolo com a forma de um
Emmy. Claro que precisei explicar que porcaria era um Emmy e com o que
ele se parecia. Mas tarde; menos por causa dos meus poderes descritivos e
mais pela capacidade artística e culinária do chef, o bolo de chocolate em
forma de Emmy mostrou-se incrivelmente acurado e delicioso.
Tão estranho quanto ver a bandeira do Texas sobre o Hotel de
Crillon foi estar em uma sala cheia de gente, em Paris, falando com sotaque
texano. Levou um tempo para eu me acostumar. Pelo menos duas pessoas
estavam conversando em francês - Tracy e a esposa de Lance, Kristin.
Tracy sempre fantasiou morar na França, imergindo na língua e na cultura
daquele país. E eu não achava a idéia ruim; não me importaria em morar
em Provence por um mês ou por quanto tempo precisasse para aprender a
dizer a seguinte frase em francês:
- Fui atacado por um javali. Ajude-me a encontrar meu baço!
Enquanto isso, Schuyler e Aquinnah estavam provando minha te-
oria de que, quando em uma sala cheia de adultos, crianças são instinti-
vamente atraídas para qualquer ser humano menor que elas; neste caso,
Luke, o filho de 1 ano de Lance e Kristin, foi o alvo delas.
Eu tinha tido uma surpresa boa ao encontrar um velho amigo no
meio dos texanos - Robin Williams. Ciclista fanático, rodando centenas de
quilômetros por semana nas ruas próximas à baía de São Francisco, Robin
tinha uma parceria de admiração mútua de longa data com Lance. Eles
sempre pedalavam, e Robin até trouxe uma de suas bicicletas a Paris para
poder treinar com Lance.
Lance fez uma aparição rápida. Nem poderia ser diferente; afinal,
ele ainda estava competindo. Nunca encontrei um ser humano tão em
forma - seu físico era tão bom que poderia cortar um papel. Suas famosas
belas feições, com olhos brilhantes e acolhedores, não exprimiam a fadiga
intensa que ele com certeza sentia, tendo chegado à última etapa de um dos
34
enduros mais cansativos do mundo. Eu lhe disse que desde nossa chegada à
França estivemos acompanhando seu progresso, mas tinha de pedir
desculpas, pois não iríamos ver o final da corrida - nossa volta a Nova York
seria no Concorde do domingo de manhã. Lance logo nos convenceu a
mudar nossos planos, não só nos convidando para ficar e ver a corrida com
a família dele da tribuna principal na Champs-Elysées como também para
participar da festa da vitória no domingo à noite, no Musée d'Orsay.
Por sorte, nosso agente de viagem conseguiu reservar passagens
para nós no vôo da segunda-feira. Durante um tempo, parecia que teríamos
de ficar até terça-feira. Tudo bem, pensamos, mesmo se não desse para ir
na segunda, pegar o Concorde da terça não seria a pior coisa do mundo. Na
verdade, do jeito que as coisas aconteceram, talvez tivesse sido a pior coisa
do mundo. Mas voltarei a esse assunto mais tarde.
PARIS, FRANÇA - DOMINGO, 23 DE JULHO DE 2000
Manhãs de verão ensolaradas em Paris são sempre um presente,
mas, nesse contexto, esse dia foi excepcional. O lugar no palanque
principal da Champs-Elysées reservado para a família de Lance ficava a
apenas alguns passos da Place de Ia Concorde. Estávamos posicionados
bem ao lado da linha de chegada, perto o bastante da ação para sentir um
friozinho pelo vento criado pelo pelotão de ciclistas que passava rugindo
por nós a cada volta. E naturalmente um coro de apoio partia do nosso
grupo quando a camisa amarela de Lance passava por nós. Mas então
parecia que toda Paris estava torcendo por aquele norte-americano
fenomenal. E, como se o borrão barulhento dos competidores passando por
nós não fosse suficiente, ainda éramos entretidos pelos comentários
histéricos de Robin Williams e de seu lendário amigo Eric Idle, do Monty
Python.
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Robin Williams está sempre ligado, metralhando rapidamente qual-
quer um que tenha sorte de estar ao alcance de sua voz ou até mesmo de
seu campo de visão. E você nem precisa "entendê-lo" para achá-lo
absurdamente hilário. As gêmeas, que tinham 5 anos, eram entretidas por
um "gigante" menino de 10 anos, que elas descreviam como engraçado e
assustador. Robin, fã fanático do ciclismo, estava especialmente excitado
por estar tão perto da ação ou, como descreveu a experiência mais tarde ao
The New Yorker, "bem no meio da grande mishpocha... ela lhe dá uma
chute no coração” E depois ficou ainda melhor.
Pouco antes de o pelotão passar zunindo para a penúltima volta da
corrida, Robin, Eric e eu recebemos uma daquelas chances únicas na vida.
Se queríamos ir no carro oficial da Renault quando ele fosse liderar os
ciclistas até a última volta pela Champs-Elysées? É provável que eu tenha
dito "Oui", ou talvez tenha sido "Oiieebbaa!", mas de qualquer forma
minha resposta foi afirmativa.
Sempre que sou abençoado com uma oportunidade como essa, meu
sentimento de gratidão me lembra de quantas oportunidades extraordinárias
tive na vida. Joguei hóquei com Bobby Orr no gelo do Boston Garden;
sentei-me ao lado da princesa Diana na estréia real londrina de De volta
para o futuro; toquei guitarra no palco, em ocasiões separadas e não muito
bem, com Bruce Springsteen, Elvis Costelo, Sting, Eltonjohn, Billy Joel,
James Taylor, Levon Helm, John Mayer e Aerosmith; também jantei na
Casa Branca e sentei-me ao lado de Nancy Pelosi, no escritório dela, nos
minutos que antecederam sua aparição como a primeira mulher da Câmara
dos Representantes dos Estados Unidos a presidir o State of the Union
Address. Tenho certeza de que há muitos outros momentos Forrest Gump
que estou esquecendo. Não digo isso para me gabar; apenas são evidências
de quão ridiculamente sortudo tenho sido em ter a vida que tenho. O que eu
ia fazer em seguida servia muito bem de metáfora da vida que tinha levado
36
e vivido até agora.
Além de ser uma das pessoas mais amáveis e divertidas que
conheço, Robin Williams também é (não estou sendo indiscreto; ele é até
famoso por isso) uma das mais suadas. Ele é um daqueles caras que é tão
peludo que, quando damos uns tapinhas nas costas dele, parece que
estamos afofando um edredom - e, se for um dia quente, um edredom
molhado. Segundos depois de entrarmos no carro da Renault, a temperatura
lá dentro subiu bastante, pois o ambiente absorveu o calor extra que
emanava de Robin Williams. Mas logo o carro andou, aumentou a ve-
locidade, e a brisa secou o suor de nossa testa e pescoço enquanto nos
posicionávamos para ver toda a ação.
Já é bem legal quando essa trovejante horda de homens e máquinas
passa voando por você, ali parado, a uma distância não tão segura ao lado
da pista, mas testemunhá-los vindo de frente para você, em velocidade
total, protegido por uma distância flutuante fora de seu controle, é uma
adrenalina pura. Era fácil distinguir Lance e os colegas de equipe dos ou-
tros competidores. Lance, é claro, usava a camiseta amarela de líder, mas
eu estava tão chocado e impressionado com o fato de ele e os companheiros
pedalarem e beberem ao mesmo tempo, não de suas garrafas de água, mas
de taças de cristal com champanhe. Lance explicou mais tarde que, na
última volta, a equipe vencedora dá champanhe aos adversários em sinal de
respeito, adicionando meio sem convicção que eles bebem de mentirinha.
Lance e sua equipe (U.S. Postal Team) chegaram ao último dia com
a vitória assegurada. Quando falei com ele no dia anterior, ele sabia que sua
segunda vitória consecutiva na Volta da França estava ãans le sac, mas
acrescentou:
- A última etapa também vale. Pode parecer bem cerimonial, mas,
se estiver liderando com sete minutos de vantagem e cair a trinta metros da
linha de chegada e não conseguir terminar a prova, você perdeu.
37
De onde Robin, Eric e eu estávamos sentados - e ninguém mais ti-
nha lugares tão bons -, podíamos ver que nem um balde de champanhe
poderia evitar que ele cruzasse a linha de chegada, nem que conseguisse a
vitória. E, só para constar, a visão da frente do carro também era bem
impressionante. O Renault acelerando em uma Champs-Elysées com-
pletamente vazia, ladeada por grandes massas de parisienses delirando,
deixou-nos sem palavras - bem, quase sem palavras. Durante um trecho da
nossa rota, quando nos aproximávamos de uma das marcas registradas mais
icônicas de Paris, Robin soltou a seguinte pérola:
- Desde Hitler, ninguém teve uma vista como esta do Arco do
Triunfo. Até hoje, todas as vezes que me encontro com Robin ou Eric, a
primeira coisa que dizemos é "Sempre teremos Paris". Por mais longa que
seja minha lista de Alice no país do espelho, tenho certeza de que, dadas a
vida e a carreira de meus companheiros, a lista deles deve ser maior e mais
sensacional. Mas nenhum de nós estava passado demais a ponto de não ter
outras aventuras. Esse dia foi especial, "como estar do lado de fora do está-
dio dos Yankees e por sorte encontrar Joe DiMaggio", segundo Robin.
Ao sair do carro e me juntar à família Armstrong (e com a minha,
inclusive com uma visivelmente enciumada Tracy) para a entrega dos
prêmios, pensei em voz alta, perguntando com quem teria de falar para que
todos dessem mais uma volta e eu pudesse tirar fotos dessa vez.
Naquela noite, no hotel, enquanto Tracy e eu nos vestíamos para ir
à festa da vitória no Musée d'Orsay, Schuyler me perguntou sobre o livro
que eu pretendia escrever.
- É sobre o quê?
Boa pergunta.
- Bem, acho que é sobre mim - comecei.
- Mas sobre o que de você? - Aquinnah perguntou. - Sobre você ser
pai?
38
- Ah, é sobre você ser um "Pai que Treme" - Schuyler disse.
- Isso! - respondi, impressionado com sua percepção.
Aquinnah queria saber mais.
- Mas um Pai que Treme fazendo o quê? Andando de bicicleta?
Tracy, caindo na risada, olhou para mim querendo saber até onde eu iria
com aquilo.
- Sim, é isso mesmo - respondi. - Papai que Treme andando de bi-
cicleta, ou algo assim.
Mais tarde, quando chegamos ao Musée d'Otsay, a antiga estação
ferroviária e atual museu de arte estava banhada em um brilho de conto de
fadas. Mesmo na era da eletricidade, a noite de Paris parece iluminada
apenas por luzes a gás, manchas repletas de luminosidade, um milhão de
velas tremeluzindo de dentro de grandes jarros de vidro redondos. A
princípio, o museu parecia um lugar estranho para aquela festa; afinal,
teríamos atletas e esportistas que tinham acabado de ganhar a Copa do
Mundo das corridas de bicicleta. E não só ganharam, mas detonaram os
adversários. Não quero dizer que estivesse esperando um barril de chope ou
algo assim, porém aquilo me parecia refinado demais. Nos Estados Unidos,
imagino o time todo no Score, jogando champanhe barata nas dançarinas,
em vez do que ocorre na França, onde se comem canapés tomando
champanhe Cristal, com o belo quadro Whistler’s Mother de fundo. Essa
comemoração aumentou minha impressão de como os franceses vêem os
esportes de maneira diferente de nós. Obviamente eles não estão imunes à
mácula dos excessos comerciais, às grandes trapaças e aos egos inflados na
mesma proporção do salário, mas, mesmo que celebrem algum atleta, a
maior deferência que têm é com o esporte em si. Apesar de Lance e sua
equipe já terem vencido lá, e de ainda vencerem muitas outras vezes nos
anos seguintes, a elegância daquela noite mostrava com clareza que a
vitória na Volta da França era um momento a ser saboreado.
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Tracy e eu passamos boa parte da noite com a mãe de Lance, Linda.
Quando você pergunta a Lance de onde vem seu otimismo, a resposta é
sempre sobre a mãe:
- Não tínhamos o dinheiro ou as oportunidades que outros tinham.
Mas ela nunca reclamou. E, se eu reclamava de algo, minha mãe sempre
dizia: 'Amanhã será um novo dia. Otimismo sempre foi um estilo de vida
para nós.
A festa incluiu um grande número de pacientes com câncer, alguns
sobreviventes, outros ainda lutando contra a doença. Aprendi que a
presença deles era uma constante em eventos como aquele. Lance me
explicou:
- Este tem sido um grande fator de motivação para minha carreira.
Ver pessoas na mesma situação, que entendem que estou correndo não só
para ganhar uma corrida de bicicletas, mas por um monte de outras razões
também.
Tracy e eu ficamos muito tocados com a generosidade que ele mos-
trou ao dividir conosco aquela disposição. Um homem capaz de feitos
quase sobre-humanos era mais admirável ainda por causa da vulnerabili-
dade e da vontade de que isso fosse parte tanto de sua identidade quanto de
sua força.
Mais tarde, antes de voltarmos ao Crillon, Tracy e eu procuramos
Lance para agradecer-lhe não só por ter nos convencido a ficar e ver a
corrida, mas também por nos convidar para a comemoração. Eu tinha
muitas perguntas a respeito de pessoas que conheci aquela noite, em
especial sobre aquelas que tinham ligação com a Fundação dele. Como
Lance juntara essa fábrica de apoios? Quanto disso teve a participação
direta dele, de sua liderança? E como fizera para implantar e manter uma
cultura na Fundação que fosse tão fiel ao seu espírito de coragem, espe-
rança e realização? Fizemos planos de nos encontrar outra vez depois do
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verão, em Nova York, para podermos aprender mais sobre o trabalho dele
na Fundação.
Minha miniodisseia gaulesa - muito melhor que a versão épica,
porque pude levar a família junto - parecia ter servido a um propósito maior
que ser apenas duas semanas de descanso e recreação. Minha invocação
tinha sido respondida. Lance havia descido das montanhas com o que bem
poderia ser um mapa parcial para a próxima perna da minha jornada.
AEROPORTO CHARLES DE GAULLE, PARIS, FRANÇA
24 DE JULHO DE 2000
Não há experiência igual a voar em um Concorde. É ridiculamente
caro e, logo que se está a bordo, você percebe que o preço não é especial
para ter mais espaço para as pernas, a cabeça ou o corpo. Os lugares são tão
luxuosos quanto possível, dadas as restrições decorrentes do formato
tubular, como se fosse uma flecha. Claro que o grande atrativo e a razão do
preço alto são o tempo que se economiza com ele - de Paris a Nova York
em três horas. Alguns anos antes, acordei um dia em Londres, tomei o café
da manhã, peguei o Concorde para Nova York, de lá peguei um vôo da
American Airlines para Los Angeles e já estava filmando Caras e Caretas
no estúdio à uma da tarde. Mesmo com a diferença de fuso horário, ainda é
um bom exemplo do milagre que é o Concorde.
Pelo menos a área de espera do aeroporto Charles de Gaulle tinha
bastante espaço para nos espalharmos. Naquela segunda-feira de manhã,
após a Volta da França, minha família estava se aproveitando de cada
espaço oferecido. As gêmeas corriam freneticamente, o que aos 5 anos é
quase a descrição do trabalho delas. Nosso amigo Iwa ficava de olho nas
crianças e checava novamente com a atendente se nossas bagagens haviam
sido processadas de forma correta. Eu estava ocupado conversando com
Tracy, e ela estava ocupada preocupando-se com o avião - não que alguém
41
tenha notado, mas sei quando ela está perturbada assim como ela percebe
quando estou falando abobrinha. Desde que a conheço, Tracy já melhorou
muito era relação ao medo de voar. O que foi bom, pois no começo de
nossa família viajávamos constantemente, a trabalho e também por
diversão. Talvez pareça meio insensato e frágil viajar uma distância tão
longa em tão pouco tempo, mas tinha algo em relação ao Concorde que
deixava Tracy nervosa. E hoje não era diferente. Eu estava fazendo o
máximo possível para ser paciente. Voar nunca havia me incomodado, mas
no Concorde eu me sentia particularmente seguro, em especial no
Concorde da Air France. Não que tivesse alguma evidência que embasasse
minha sensação. Apenas me parecia que os franceses tinham uma operação
muito eficiente, por isso naturalmente deviam manter as aeronaves sempre
em ordem. Contei essa teoria a Tracy, mas ela não ficou impressionada. Em
um último esforço, recomendei um Valium.
- Ah, claro - ela disse -, faz sentido.
- Eu prometo então, Tracy - eu disse, dando-lhe um copo-d'água
para tomar o comprimido -, que, se isto lhe dá tanto medo assim, esta será a
última vez que voaremos em um Concorde.
A viagem foi tranqüila, sem nenhum susto, e, como previsto, durou
aproximadamente três horas entre a decolagem e o pouso no aeroporto
JFK. Mais ou menos no mesmo horário no dia seguinte, terça-feira, 25 de
julho, sentei em meu escritório em Manhattan com a televisão ligada e
comecei a separar a correspondência que se havia acumulado no tempo em
que ficamos fora. Uma chamada na tela da TV anunciava uma notícia de
última hora. Quando apareceram as imagens, o que quer que eu estivesse
segurando caiu no chão. O vídeo, tão gráfico, tão assustador, foi a única
informação sensorial que consegui processar. Eu estava surdo para o som
que acompanhava as imagens. O Concorde da Air France, ao tentar pousar
ou abortar uma decolagem - eu não conseguia discernir -, despencou no
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chão, desintegrando-se em um redemoinho de chamas vermelhas e fumaça
preta. O vídeo foi passado novamente, e desta vez prestei atenção aos
detalhes.
- Aproximadamente às cinco da tarde, horário local, um Concorde
com destino a Nova York explodiu em uma bola de fogo logo depois de
decolar, matando 113 pessoas.
Às vezes, quando se está sozinho, vários minutos se passam até que
você perceba que está chorando.
CIDADE DE NOVA YORK - SETEMBRO DE 2000
Lance cumpriu a promessa e, ao chegar setembro, encontramo-nos
no escritório da minha produtora em Nova York para discutir a criação de
uma fundação. Acompanhando Lance estavam Howard Chalmers, presi-
dente da Fundação Lance Armstrong, e Jeffrey Garvey, diretor. Conheci os
dois em Paris. Lance relembrou que, em 1997, sentou à mesa de um
restaurante mexicano com alguns amigos e sócios e começou a sonhar com
o que sua Fundação poderia realizar. Admiravelmente, Lance estava
começando algo que talvez não chegasse a ver concluído. Naquela época,
seu câncer de testículo havia se espalhado para o abdômen, os pulmões e o
cérebro, e os tratamentos não garantiam que iria se recuperar ou até mesmo
sobreviver. Agora, em 2000, com a doença em remissão, ele tinha duas
camisetas amarelas da Volta da França no armário e arrecadado milhões
para os esforços contra o câncer.
Lance dera à Fundação mais que um nome e uma cara. Ele a imbuiu
com sua atitude e paixão pela vitória.
- Olha, não é como se a gente recebesse boas notícias todos os dias
durante nossa luta. Mas continuamos nela, motivados, e sempre pensamos
que podemos fazer a diferença.
43
Além do básico - os aspectos do negócio no dia a dia ao se gerir
uma empresa 501(c)(3)* -, Lance explicou o que significava ter seu nome
na porta da Fundação, esboçando as maneiras pelas quais seu perfil pôde
influenciar aqueles que sua Fundação queria ajudar. Também falamos dos
estigmas ligados ao Parkinson e ao câncer e de quão importante foi para as
pessoas que puderam e conseguiram falar a respeito disso.
- Eu era jovem e tinha câncer de testículo. Você pode imaginar
quantas abobrinhas as pessoas falaram sobre isso. E ainda falam até hoje.
Eu não ligo. Não deixo esse tipo de coisa me afetar.
Eu já estava motivado, mas Lance deu um jeito de me deixar ainda
mais aceso.
Pensando de forma prática, perguntei-lhe qual era o ingrediente es-
sencial para uma Fundação bem-sucedida.
- Depende das pessoas que estarão ao seu lado - ele disse. - Você
não tem como fazer isso sozinho.
______*501© é o código dado pelo governo dos Estados Unidos a organizações sem
fins lucrativos, e o número que vem a seguir as separa por ramos de atividade (N.T.)
Estranhamente familiar
Em junho de 1989, alguns dias depois do nascimento de Sam, meus
pais vieram lá do Canadá para conhecê-lo. Talvez meu pai soubesse que
seria uma das poucas chances que teria de embalar o neto em seus braços
de urso - em janeiro ele se foi -, porque não queria soltar o menino. Minha
mãe teve de arrancar o nenê dele.
Estávamos sentados na beira da piscina em uma manhã e minha
mãe fazia Sam dormir em seu colo, sob o sol da Califórnia, quando fez a
seguinte previsão:
-Alguns dos melhores amigos que vocês terão na vida serão feitos
através de seus filhos: pais e mães dos amigos deles, pais da escola deles.
44
Vocês vão ver. Foi assim para mim e Bill. É uma das muitas dádivas de ter
filhos.
À medida que Sam foi crescendo, ele nos apresentou, de uma
maneira ou de outra, a muitos novos amigos, vários dos quais estão entre
nossos mais chegados atualmente. Quando as gêmeas Aquinnah e Schuyler
nasceram, nosso círculo de amizades cresceu muito. Eu já aceitara fazia
tempo a previsão de minha mãe como a mais pura forma de sabedoria,
mas mesmo ela não poderia ter previsto o fenômeno que encontrei quando
as garotas foram para a pré-escola.
Depois das primeiras vezes que me encontrei com Curtis Schenker,
meu desejo não era convidá-lo para fazer parte de nosso círculo de
amizades, mas pedir uma medida cautelar contra ele.
Durante a vida, estabeleci algumas metas grandiosas para mim
mesmo. Em cada caso e em vários níveis, minha busca pelo objetivo
desejado foi cheia de ambição, esperança, arrogância e imaturidade juvenil
(e, as vezes, não tão mais juvenil). Cada insucesso eu considerava uma
falha minha, mas cada vitória era dividida. Sempre posso citar uma Lista de
pessoas que tiveram algo a ver com coisas que deram certo. Foi assim com
minha carreira - Gary Goldberg, Bob Zemeckis, Steven Spielberg, os atores
com quem trabalhei e, claro, o público que me manteve no negócio - e
também com minha família - Tracv. Tracv e Tracv Por outro lado, é
impossível imaginar como a história da Fundação teria se desenrolado se
não fossem as contribuições precoces, constantes e irrepreensivelmente
otimistas de um coordenador de um fundo de investimento que nunca havia
tido contato prévio com a Doença de Parkinson.
Desde o momento em que a vimos, amamos a filha de Curtis
Schenker, Ally. Ela era uma máquina de sorrisos muito esperta e adorável,
e seu temperamento, interesses e aparência física eram tão similares aos das
45
nossas filhas que Tracy e eu a apelidamos de "A terceira gêmea". As três
eram super unidas. Carolyn, mulher de Curtis e mãe de Ally, parecia ser a
antítese do clichê que são as mães socialites que moram no Upper East
Side. Seu humor gracioso, o senso de perspectiva e a natureza doce logo
atraíram Tracy, e a amizade delas cresceu e tornou-se muito mais que só
aqueles papos na hora de deixar e pegar as crianças na escola.
Enquanto isso, Ally tinha se tornado a amiguinha fixa que ia em
casa sempre depois do colégio e nos finais de semana, e falei com Carolyn
nas poucas vezes em que dei uma escapada da agenda de Spin City e fiz o
trabalho de "leva e traz". E estive em algumas visitas dos pais à escola, em
excursões da classe e em jantares improvisados antes de associar Carolyn
ou Ally a esse raivo de olhos selvagens chamado Curtis. Eu sabia que ele
era o pai de uma das crianças, mas podia jurar que estava me seguindo.
Empoleirado em uma dessas pequenas cadeiras vermelhas da pré-escola,
mexendo nos pedacinhos que haviam no meu suco de maçã, viro-me e lá
está ele ao meu lado, em uma pequena cadeira também. Eu sempre sentia
que ele tinha começado a falar um ou dois minutos antes de eu prestar
atenção e continuado por pelo menos mais dois depois de eu já ter perdido
minha atenção.
E então teve a figuração. E foi onde ele me ganhou. Era a festa
anual de arrecadação de fundos da pré-escola 92nd Street Y, que pediu aos
pais e amigos que doassem produtos de alto valor, serviços e experiências
para serem leiloados. Figurações - papéis pequenos em filmes ou séries
sem nenhuma fala - são itens muito valorizados nesses leilões. Não sei se
fico
chocado ou acho engraçado que nova-iorquinos bem de vida, sofisticados e
bem resolvidos cheguem a doar milhares de dólares pelo privilégio de
passar o dia como figurante ou, na nossa linguagem, um "artista periférico".
Esse é o nono círculo do inferno da indústria do entretenimento, porém
46
com lanche grátis. Mas tudo bem. Se servisse para arrecadar dinheiro para
uma boa causa, eu sempre estava disposto a oferecer uma vaga em Spin
City. Foi o que fiz. E adivinha quem comprou o papel?
Chamei minha mulher ao meu camarim em nosso estúdio em
Chelsea Piers.
- Tracy, você não vai acreditar em quem está aqui - sussurrei com
urgência. Muitas paredes finas e uns cem metros separavam-me de qual-
quer um que pudesse ouvir o papo, mas minha voz baixa tinha mais a ver
com falta de ar que discrição. - Acabei de ir ao ensaio de gravação e o ruivo
louco lá da Y está no estúdio.
- É Curtis Schenker - Tracy disse. - O pai de Ally. Lembra-se de
minha amiga Carolyn?
- Curtis. Certo. Curtis, o louco.
- Ele não é louco - Tracy disse, contrariada. - Ele só é amigável.
Você vai gostar dele. E inteligente, engraçado e muito generoso. Você não
vai acreditar em quanto ele deu de lance para estar aqui hoje. Seja legal
com ele.
De volta ao estúdio, estávamos arrumando o fundo de cena, ou seja,
a posição das pessoas que não falam nada e preenchem o fundo dos
programas que assistimos. Determinado a ser um bom anfitrião, apesar de
minhas desconfianças, coloquei um sorriso no rosto e fui até o sortudo
vencedor do papel.
- Curtis - eu disse -, esta cena abre com uma câmera em
movimento-me filmando. Ela vem me acompanhando, vai indo para trás
enquanto desço pelo corredor e dou a volta na mesa, e me deixa na porta do
escritório. Vamos garantir para que você fique enquadrado todo esse
tempo, participando assim da cena.
Achei interessante ele estar se esforçando bastante - e não se cansar
de jeito nenhum. Na verdade, ele até possuía certo charme. Coloquei-o na
47
frente e bem centralizado na cena de abertura do episódio durante quarenta
segundos de filmagem ininterruptos. E ele fez um bom trabalho - ficou
relaxado, natural, não se moveu e não ficou olhando direto para a câmera.
Quando o encontrei em outro dia, disse que ele iria amar o episódio.
Ele ligou para uns dez amigos e falou para eles assistirem. Todavia, quando
fomos fazer a edição final do episódio, tínhamos oito minutos sobrando.
Algo precisava ser feito. E esse algo acabou sendo a cena de abertura, e,
com isso, a parte em que Curtis aparecia. Eu já tinha ouvido histórias
verídicas sobre pessoas que haviam pago muito dinheiro em um leilão para
participar de um filme ou de uma série, mas porque tinham sido cortadas
entraram com um processo na justiça. Por sorte, Curtis não fez isso. Além
de aceitar minhas explicações e desculpas com muita calma e senso de
humor, ele disse que doaria o dinheiro para a Y de qualquer forma. E que
adorara o dia, de qualquer forma. Curtis, no final das contas, não era um
louco que me perseguia, mas um cara bem legal.
Aparentemente, nós dois não tínhamos muita coisa em comum, a
não ser a idade. Curtis era produto do sistema privado de ensino de Nova
York, graduou-se pela Penn, foi bem em Wall Street e então criou um
fundo de investimentos de muito sucesso, e isso antes dos 30 anos. Já eu,
passei por várias escolas públicas canadenses, larguei os estudos no ensino
médio e me dei bem interpretando um cara que queria trabalhar em Wall
Street e mexer com fundos de investimentos. Mas logo as coisas em
comum foram aparecendo. Nós dois éramos pessoas que adorariam ser
estrelas do rock e que podiam identificar quaiquer músicas antes que o
rádio mostrasse na telinha o nome delas. Nós dois não merecíamos de jeito
nenhum as mulheres maravilhosas que conseguimos convencer a se casar
conosco. E nós dois éramos otimistas incuráveis.
CIDADE DE NOVA YORK • 31 DE MAIO DE 2000
48
Em maio de 2000, Curtis e Carolyn convidaram Tracy e eu para o
baile e leilão Robin Hood, em Nova York. Esse evento anual definia um
"quem é quem" na comunidade financeira da cidade. Gerentes de fundos de
investimentos, investidores de ações, investidores de capitais de risco,
banqueiros, diretores de empresas, investidores de imóveis e de todos os
outros tipos de investimentos. O evento reunia em uma sala, em uma só
noite, os pesos pesados pesadíssimos de Wall Street. E também eram
convidadas celebridades do esporte e do showbiz, como Gwyneth Paltrow e
o técnico de basquete Pat Riley. Robin Williams era o mestre de
cerimônias, e a música ficou por conta do The Who. Com boa parte da
fortuna privada mundial em apenas um salão, os titãs de Wall Street eram
as grandes estrelas. Não dava para lançar um milionário sem acertar um
bilionário. Tenho certeza de que, com a crise econômica atual, muitos
gostariam de fazer isso. Como todos sabemos agora, algumas dessas
supernovas iriam, não num futuro muito distante, espatifar-se na terra.
Mas não resta nenhuma dúvida quanto à generosidade daquela noite
(e, além do que você vai ver, independentemente do que pense da co-
munidade financeira, posso atestar que a generosidade deles é contínua,
com senso de responsabilidade social). Os beneficiários da muito bem
nomeada Fundação Robin Hood incluíam uma grande variedade de grupos
e agências privadas que ajudavam os mais necessitados da cidade. Tracy e
eu ficamos assombrados com os números que ouvimos durante o leilão -
mais de 1 milhão de dólares em um dos itens mais disputados, algo como
um pacote de viagem em classe executiva para o Egito, com direito a
descer o Nilo em um iate privativo. Ao escrever sobre esta noite em Lucky
man, mencionei os riscos de ser um paciente com Parkinson em um leilão
como este. Um espasmo de braço na hora errada acabaria com o dinheiro
da faculdade das crianças, Então, para me garantir, sentei em cima das
mãos e tentei evitar movimentos bruscos.
49
Havia algo diferente no ar filantrópico naquela noite. Não era ape-
nas um patrocínio, era uma participação; não apenas caridade, mas um
investimento futuro. No dias que se seguiram, Curtis e eu discutimos a
possibilidade de criar em Nova York um fundo de arrecadação para as
pesquisas com Parkinson. Curtis tinha certeza de que, quando fosse o
momento certo, ele poderia falar com amigos e associados e ter uma boa
margem de sucesso.
Nossa srta. Brooks
Quase inconscientemente, fui pegando os conselhos de Lance,
juntando as partes e montando uma máquina capaz de organizar, processar
e converter esperança em uma resposta para o Parkinson. O que eu mais
precisava era de um parceiro, um diretor executivo que pudesse imple-
mentar minha visão.
- Encontre alguém de Wall Street - foi o conselho de Curtis. - O
modelo de negócio que você procura é inovador, agressivo e empresarial;
um bom começo.
Contatamos uma empresa de RH que encontrava executivos e era
especializada no setor de organizações sem fins lucrativos.
- Mas não procurem apenas candidatos de organizações filantrópi-
cas tradicionais - instruímos. - Procurem no setor privado.
Eles pensaram que éramos malucos. Como iríamos tirar um exe-
cutivo de seu salário milionário de Wall Street? No início de outubro,
minha parceira de Spin City, Nelle Fortenberry, e alguns amigos da co-
munidade advocatícia do Parkinson tinham reduzido a lista de muitas
dezenas de candidatos a apenas três finalistas.
Quando as portas da sala de conferência se abriram, Debi Brooks
50
entrou a passos largos para a entrevista, com ar bem confiante, como se
soubesse que tinha o que precisávamos, mas era amável e humilde o
bastante para nos dar o tempo de que necessitássemos para descobrir isto
por nós mesmos. Ela nos atraiu de imediato. E logo ficou claro que seu
maior recurso era a mente, com o coração ficando bem perto, em segundo
lugar - precisamente a combinação requerida para capitanear uma
organização sem fins lucrativos e competitiva. Virei-me para Nelle e
perguntei:
- Quando você pretendia me falar dela?
Tendo sido vice-presidente do banco Goldman Sachs, Debi não via
minha afirmação de que era possível encontrar uma cura para o Parkinson
como o simples desejo de alguém aflito pela doença. Eu já podia ver,
durante aqueles primeiros minutos de um relacionamento que se tornaria
um dos mais duradouros da minha vida, que, para Debi, otimismo e
pragmatismo não eram como óleo e água. Enquanto os outros candidatos
também eram muito qualificados e com certeza teriam trazido seus talentos
únicos para nossa missão, era óbvio que Debi era um "gol de placa"'. No
final desse dia, ela recebeu nossa oferta de trabalho e aceitou; três dias
depois estava no escritório - e saímos de lá.
REUNIÃO DE PLANEJAMENTO DA FUNDAÇÃO MJF
CIDADE DE NOVA YORK • 23 DE OUTUBRO DE 2000
Tão cedo quanto dei as boas-vindas a Debi, também expliquei o que
me levaria a demiti-la.
- A última coisa que quero é que eu e você cheguemos ao ponto de
discutir a respeito de nosso vigésimo evento anual de arrecadação de
fundos. Na verdade, se isso acontecer, você será demitida.
Ela riu, mas eu sabia que Debi entendia a urgência da situação.
Nossa meta era simplesmente conseguir que fôssemos esquecidos. E foi
51
mais ou menos isso que disse para um grupo de apoiadores que se reuniram
na sede da Dreamworks em Nova York:
- Quero que me ajudem a me aposentar desse negócio.
Sentados em volta da mesa estavam CEOs, empresários e donos de
companhias enormes - titãs do mais alto nível. E lá estava eu, pedindo a
eles que me ajudassem a montar um negócio que não era feito para durar:
- Se encontrarmos uma cura para o Parkinson, nosso trabalho estará
completo.
Poderia ter sido uma cena do filme O segredo do meu sucesso ou
um dos sonhos melados de Alex Keaton - o jovem executivo falando com
os subordinados em sala de reuniões chique. E, na realidade, em minha
vida até ali, eu só tinha usado terno e gravata em meus personagens - Alex
P. Keaton, Mike Flaherty ou algum outro jovem sonhador. Nunca fizera
esse esforço por executivos do estúdio ou em entrevistas para a mídia. Mas
ali estava eu, de terno azul, gravata vermelha e camisa azul.
Explicando melhor o tema "criando um negócio feito para acabar",
que foi minha abertura, contei que o que queria era construir uma
organização fundamentalmente diferente de todas as que já existiam.
- Não estamos criando um banco - falei. - Quando entrar dinheiro,
ele sairá imediatamente.
E Debi completou assim:
- Não estamos criando um fundo. Estamos dispostos a gastar cada
centavo do que arrecadarmos.
Essa filosofia envolvia riscos, coisa que a maioria das organizações
filantrópicas também experimentava. Para mim, risco é igual oportunidade.
Quase todos naquela sala tinham uma relação diária com o risco. Além de
gerentes de fundos e outras pessoas do meio econômico, também havia
executivos de publicações e da indústria do entretenimento - e todos
entendiam que não há como vencer se você não apostar. Ou, como Debi
52
colocou:
- Não estamos aqui para fazer o básico, mas tudo o que for necessá-
rio para achar a cura do Parkinson.
Agora sei como Ray Kinsella, de Campo dos sonhos, se sentiu
quando entrou no campo de beisebol que construíra em seu milharal, em
Iowa, e encontrou Shoeless Joe e o time de 1919 do White Sox fazendo
aquecimento. Como Ray, eu também tinha ouvido uma voz interior que
dizia: "Se você construir, eles virão".
Eu sabia que não precisava chegar para esse grupo e perguntar:
- Podemos construir?
Em vez disso, eu perguntaria:
- Como construiremos isso?
Em duas semanas, a Fundação Michael J. Fox para pesquisas de
Parkin-son recebeu seu certificado oficial de criação e nosso número de
identidade provisório como empresa 501(c)(3). Havia menos de um ano eu
tinha abandonado minha carreira de ator sem saber ainda para onde ia. E
agora estava começando uma nova carreira, com uma direção bem
definida.
Subindo a bordo
CIDADE DE NOVA YORK • 13 DE NOVEMBRO DE 2000
Dois colegas de fundos de investimentos de Curtis, John Griíiin e
Glenn Dubin, que esperávamos recrutar para nossa diretoria,
recomendaram um "evento" - ao estilo de Wall Street - para apresentarmos
nossa recém--criada empresa a possíveis apoiadores. Curtis e Carolyn
ofereceram-se para fazer a reunião no seu apartamento na Park Avenue e
fizeram uma lista de amigos e associados. Muito ricas e generosas, essas
pessoas eram abordadas todos os dias por gente com uma história para
53
contar e uma sacolinha pedindo ajuda. Não vou a muitas festas e, como a
maioria das pessoas, sinto-me desconfortável em pedir algo a alguém, mas
Curtis me disse para eu não me preocupar.
- Provavelmente vamos precisar das duas mãos de tanta ajuda que
devemos receber. Mas não faria mal nenhum convidar algumas pessoas do
meio artístico - ele sugeriu.
Então chamei alguns amigos de Nova York que já tinham demons-
trado seu amor por nós: Alan e Arlene Alda, Kevin Kline e Phoebe Cates,
Billy Baldwin, Amy Irving e Diane Sawyer.
Curtis passou a primeira hora da festa apresentando-me aos convi-
dados e, enquanto andávamos entre potenciais "fazedores de diferença", ele
inclinava-se e sussurrava para mim um breve e detalhado currículo da
pessoa. Com a reunião marcada para as 18h30, alguns convidados vieram
direto do trabalho e estavam contentes em tirar as gravatas Prada, tomar um
aperitivo e bater um papo sobre uma doença neurodegenerativa. Ah, e
comer enroladinhos de salsicha.
Em se tratando desse tipo de festas, eu já tinha percebido fazia
tempo que não ligava muito para os assuntos sem importância. Mas esta
noite, no meio dessa turma, como eu não iria me divertir com conversas
como esta:
Encostei no batente de uma porta, embalando minha Coca Diet,
quando um cavalheiro usando um blazer escuro e calça jeans veio cami-
nhando do outro lado da sala.
- Deixe-me lhe perguntar uma coisa - ele disse. - Quanto vocês
acham que vão arrecadar este ano?
- Bem, estamos imaginando uns 6 milhões de dólares - chutei. Era
um número bem otimista, mas que já havia sido discutido entre nós.
- Seis milhões? - um sorriso formou-se no rosto do homem que fora
apresentado por Curtis como Stevie. - Aposto que minha mulher, Alex, e eu
54
podemos arrecadar este valor em uma noite.
E o que aconteceu foi que Steven Cohen, bilionário de fundos de in-
vestimentos e lendário colecionador de arte (um pequeno passeio pela casa
de Alex e Steven é como visitar de uma só vez o Tate, o Met, o MoMA e o
Guggenheim - e isto apenas na sala de estar), manteve a palavra. Ele foi um
dos primeiros membros da nossa diretoria, e era tão empolgado pela ciência
que ia às nossas reuniões acompanhado de um especialista em biologia.
A parte de negócios da nossa festa começou com uma explanação
básica feita pelo Dr. Bill Langston, fundador e CEO do Instituto Parkinson
e nosso novo conselheiro científico chefe. Um discurso científico sobre as
causas e os efeitos da morte das células na substantia nigra é um jeito
estranho de começar uma festa na Park Avenue, mas Dr. Bill fez uma
apresentação atraente.
Quando chegou a hora de eu falar com a platéia, Alan Alda me
apresentou. Bom amigo há anos, Alan não é apenas engraçado - é
inteligente, incrivelmente bem informado em assuntos científicos e sincero
na animação com as perspectivas de pesquisa. Para poder sentir melhor a
sala e ver todas as pessoas, subi na lareira de mármore. Meu plano era me
ater ao assunto em pauta e não falar de política, mas estávamos em
novembro de 2000, uma semana depois da eleição presidencial, e ainda não
sabíamos quem seria o próximo presidente: George W Bush ou Al Gore. E
o resultado teria enorme impacto nas pesquisas científicas.
Comecei minha exposição com uma piada idiota sobre pedaços de
papel não arrancados e então passei aos negócios: financiamento privado
para pesquisas de Parkinson e o que poderíamos fazer para ajudar o
otimismo científico em relação a ser possível alcançar uma potencial cura.
Enfatizando que, em se tratando de cura, não falávamos em "se", mas em
"quando", pedi o apoio de todos. Eu não estava interessado em apenas uma
versão filantrópica usual do tipo "faça um cheque e torça por nós"; queria
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um investimento em um novo tipo de empreendimento - promessa de uma
ação rápida, responsabilidade, inovação e resultado positivo do qual eles
poderiam se dizer responsáveis também.
Além de vários CEOs de nosso primeiro encontro de planejamento
e de muitos colegas meus da televisão, mais dez pessoas que foram à festa
se juntaram ao nosso conselho diretor. Todos seriam instrumentos no
trabalho que teríamos pela frente. Debi logo começou a reunir uma equipe
para a Fundação, e, em duas semanas, o conselho aprovou o orçamento da
nossa primeira aplicação em pesquisas científicas.
Dos resultados das vendas de Lucky man e de algumas doações
generosas, separamos 1 milhão de dólares para essa iniciativa inaugural
em
pesquisas. As inscrições para pesquisadores interessados iam até 1º de
fevereiro de 2001, um incrível prazo de seis semanas se comparado ao
NIH,* que levava até um ano revisando os pedidos. Por isso apelidamos
nossa primeira doação à pesquisa como "O Atalho". Debi Brooks e Dr.
Langston pareciam um pouco ousados ao preverem que teríamos em torno
de cinqüenta inscrições, mas, quando o prazo acabou, tínhamos recebido
duzentas inscrições de pesquisadores baseados em vinte países: o valor
total com tantos pedidos passava de 20 milhões de dólares.
Havia mais cientistas que dinheiro, mas estávamos oficialmente no
jogo.
___
* NIH: national Institute of Health (Instituto Nacional de Saude).(N.T.)
Rope-a-Doparnine:**
56
"Gostaria que as pessoas amassem tanto as outras pessoas
quanto me amam. Seria um mundo bem melhor."
- MUHAMMAD ALI
Tinha me esquecido completamente da música Black superman, de
Johnny Wakelin, com seu ritmo de reggae e balanço monótono, antes do
padrão rap e hip-hop. Mas ouvindo de novo em pequenos fones de ouvido
que nem existiam quando a música foi gravada acabei me lembrando do
passado. Tendo vivido a infância nos anos 1960 e 1970, eu sabia que tinha
dividido a terra com gigantes. Alguns eram figuras importantes na política
ou na sociedade - John F. Kennedy, Martin Luther King e Robert F.
Kennedy. Outros eram ícones culturais como Elvis, os Beatles, Dylan e os
Rolling Stones. Também havia heróis do mundo esportivo e, sendo um
canadense rato de gelo, a maioria dos meus jogava hóquei: Gordie Howe,
Bobby Hull e o melhor dos melhores antes de qualquer um ouvir falar de
Wayne Gretzky, Bobby Orr. Todavia, durante minha vida, uma figura
impactava todas essas realidades - o homem mais famoso do planeta.
Atleta, ativista, advogado - alguns diriam que era artista; para outros,
anarquista -, ele havia sido um menino afro-americano nascido no
Kentucky que, ao ter a bicicleta roubada por outro menino, ficou louco de
raiva e passou a treinar boxe. Ele seguiria em frente mudando o esporte,
mudando sua religião e seu nome, e, ao mudar a cabeça de muitas pessoas
em relação à guerra, mudou o mundo. Quando ele se declarou "O Maior",
não afirmou se era maior de todos os boxeadores, atletas ou bundas-moles.
Ele não ligava. Apenas forneceu parte da frase; decidir o restante era
problema seu. Ele disse apenas "O Maior de Todos os Tempos". E eu
concordava com ele.
___
* O titulo deste capítulo faz trocadilho com Rope a Dope, estilo de lutar boxe
57
inventado por Muhamad Ali que consiste em deixar o adversário bater bastante, ficar
cansado e assim vencê-lo, e Dopamina, substância neurotransmissora do corpo humano
associada à Doença de Parkinson. (N.T.)
ARIZONA BILTMORE, PHOENIX 18 DE MARÇO DE 2001
Eu vinha escutando Black superman em um novo MP3 que
pertencia a Howard Bingham, o fotógrafo pessoal de Muhammad Ali
durante mais de quarenta anos. Em qualquer lugar que o campeão vá, lá
está Howard, documentando o momento em filme ou apenas melhorando o
clima com uma de suas tiradas pronunciada com sua gagueíra controlada e
distinta. Sentado à mesa com Howard em uma suíte de hotel no Arizona,
podia ver Ali sentado no sofá, com sua silhueta contra a claridade da janela.
E não conseguia acreditar naquilo.
Ele estava na cidade por causa da "Noite da Luta", evento anual que
levantava fundos para o Centro de Parkinson Muhammad Ali, e
esperávamos em meu quarto a chegada de Debi e de um voluntário do
Centro Ali, que nos levaria à sala de conferências do hotel, onde faríamos
juntos um anúncio da Fundação Michael J. Fox. Já naquela época, oito anos
atrás, era. difícil para Muhammad manter uma conversa longa. Mas ele era
esperto, sedutor, e um brilho em seus olhos fazia você rir de algo que não
tinha dito.
E havia aquele truque de mágica - mostrava uma mão vazia, então
fechava o punho, uma mexida com a outra mão e abracadabra: um lenço
que não estava ali aparecia do nada. No pouco tempo em que fiquei com
ele naquele dia, Ali me entreteve com esse truque de prestidigitação uma
dúzia de vezes. Se na quarta ou quinta vez você não perceber que ele usa
um dedão de mentira e esconde o lenço dentro, ele mesmo conta o segredo.
A mulher de Ali, Lonnie, me explicou depois:
58
- No final, ele sempre acaba contando para as pessoas como faz. Ali
não gosta de enganar ninguém.
Como em toda sua vida, ele dá um jeito de transformar toda essa
repetição em algo como várias reinvenções. De alguma forma, é diferente a
cada vez que ele apresenta, e você se sente um privilegiado por poder ser
sua platéia.
Alguém bateu à nossa porta. Bingham pegou as câmeras e tirou al-
gumas fotos enquanto Ali e eu saíamos do prédio e entravamos em um
carrinho de golfe. O motorista ainda nem tinha ligado o motor quando as
pessoas no estacionamento começaram a reparar que o gigante pesa-dão,
que estava perto o bastante para fazer sombra em seus sapatos de golfe, era
Muhammad Ali. Enquanto nosso carro ia embora, podíamos ouvir pregos
batendo no asfalto repetidamente enquanto as pessoas corriam atrás de nós.
Cruzamos uma área mais cheia de gente, e ficou claro que o campeão
estava entre eles. Ura sorriso de reconhecimento aparecia de face a face.
Não sei como as pessoas tinham tido tempo de reagir e contar à pessoa ao
lado. Todos simplesmente sabiam - era o inconsciente coletivo trabalhando.
E então fomos tragados. Mas não me senti ameaçado em nenhum
momento. Além de ser uma grande manifestação de amor, também não
tinha absolutamente nada a ver comigo.
Em companhia de Muhammad Ali, você não era apenas um anôni-
mo - era invisível; mas eu não ligaria para isso, pois estava presenciando
algo extraordinário.
Graças ao YouTube, posso voltar oito anos atrás e assistir ao vídeo
que Muhammad e eu gravamos naquele dia. Artisticamente feito em preto e
branco e também em cores com uma câmera portátil, o tom foi
descontraído, sociável e até mesmo (e deve ter sido a primeira vez em um
comercial de TV sobre uma doença neurodegenerativa) engraçado.
Michael
59
Eu tenho 1,65 metro e peso 58 quilos. Ele tem 1,88
metro e pesa 115 quilos. Podemos parecer um pouco
diferentes. Mas na verdade somos bem parecidos. Nós
dois somos determinados. Nós dois somos teimosos. E nós
dois temos Parkinson. Tem um monte de gente por aí na
mesma situação e elas precisam de sua ajuda. Então ligue
para o número abaixo e entre no nosso ringue. Juntos,
podemos vencer essa luta.
0 VÍDEO CORTA PARA UMA TELA COM AS
INFORMAÇÕES DE CONTATO DA FUNDAÇÃO, QUE
TAMBÉM SÃO OUVIDAS NA VOZ DE MEREDITH
BAXTER (minha mãe na série Caras & Caretas) . E
CORTA NOVAMENTE PARA MIM E MUHAMMAD, LADO
A LADO.
Muhammad
1,65 metro? Bem que você gostaria de ter tudo isso.
Ao assistir ao vídeo na internet, Nelle entrou em minha sala para
vê-lo comigo. Ela se lembrava do dia, era óbvio, porque ajudara a criar o
conceito e produzir a campanha publicitária com nossos amigos da
McCann-Erickson.
- Uau! - ela disse, logo após Muhammad ter dito sua fala. - Ele não
fala tão claro assim há muito tempo.
- E faz muito tempo que não fico assim sem tremer diante de uma
60
câmera - completei. E nenhum de nós está ficando mais jovem, então a luta
continua.
FILADÉLFIA • 2 DE AGOSTO DE 2000
Alguns meses depois do lançamento da Fundação, tivemos duas
adições importantes ao nosso conselho. A primeira foi Donna Shalala,
reitora da Universidade de Miami e antiga secretária de Saúde do governo
Clinton. Apesar de não ter nenhuma ligação pessoal com Parkinson, Donna
tinha muito conhecimento em várias das questões que iríamos enfrentar
sendo uma fundação voltada para as ciências.
A segunda a se alistar também era mulher e igualmente formidável.
Lonnie Ali aceitar participar do nosso conselho causou grande excitação.
Independentemente da atenção que eu trouxe à Doença de Parkinson,
Muhammad Ali era de longe o paciente mais famoso do mundo - o Papa
João Paulo II vinha em seguida, Billy Graham era o terceiro e eu, no má-
ximo, ficava em um distante quarto lugar. Claro que ficamos contentes com
o endosso que o comprometimento de Lonnie representava. Valorizávamos
a compreensão que ela possuía da doença e sua experiência como
companheira de um paciente - alguém que tinha especial sensibilidade ao
impacto que a DP pode ter na família e a urgência que precisávamos ter em
procurar uma cura.
A primeira vez que falei com Ali foi em 1998:
- Muhammad ficou chocado quando você fez o anúncio público -
Lonnie me disse. - Ele não acreditava que você tivesse tido tamanha
coragem. Lonnie estava com ele quando ambos viram meu anúncio. -Dava
para ver pela expressão que ele estava pensando: Uau!
Ali me ligou e deixou um recado, mas fiquei tão agitado e nervoso
61
com a perspectiva de falar com um dos meus heróis de verdade que levei
alguns dias para reunir coragem e ligar para a fazenda dele em Michigan.
Para garantir privacidade e tranqüilidade em relação a qualquer interrupção
de algum dos meus três (naquela época) barulhentos filhos, usei o telefone
do banheiro. Foi uma conversa rápida. Balbuciei algo sobre estar honrado
em ter a oportunidade de falar com ele. A princípio, sua única resposta foi
respirar e algumas tentativas de vocalizar algo. Fechando os olhos, não era
difícil visualizar uma imagem de Ali do outro lado da linha. Então ouvi um
sussurro falho, mas firme:
- É uma pena que você tenha isso, mas com nós dois juntos nesta
luta agora vamos vencer.
Quase dois anos se passaram antes que nos encontrássemos cara a
cara, ou, como Ali diria, cara a peito. Em agosto de 2000, viajei para a Fi-
ladélfia para a Convenção Nacional Republicana, pois estava preocupado
com a posição do candidato George W Bush em relação ao financiamento
federal a pesquisas científicas, em especial ao uso de células-tronco
embrionárias. Já com planos em andamento para participar da Convenção
Democrata em Los Angeles, vimos a Filadélfia como uma chance de tentar
convencer não só os mais conservadores, que poderiam atrapalhar nosso
progresso, mas também o substancial número de republicanos, como Arlen
Specter, Orrin Hatch e John McCain, que apoiavam nossa causa. Andrew
Card, chefe da campanha de Bush que logo seria o chefe de pessoal dele,
concordou com um encontro, da mesma forma que alguns outros
legisladores conservadores. Levando-se tudo em conta, isso foi apenas
como colocar o dedo na correnteza política. Nos anos seguintes, eu entraria
nela até o pescoço.
A garantia de conseguir atenção em uma convenção política é igual
a dar uma festa - quanto maior, mais espalhafatosa e cheia de pessoas
importantes, melhor. Kenneth Cole e a Revista George copatrocinaram um
62
evento em homenagem à Fundação Michael J. Fox, que, para todos os
efeitos, foi a festa das festas daquela semana. Apesar de celebridades de
direita serem raras, elas estavam bem representadas aquela noite, em
especial por Arnold Schwarzenegger, antigo Exterminador do Futuro e
futuro governador da Califórnia.
Tendo um estilo meio progressivo em nossas políticas, nosso grupo,
incluindo Tracy, sentia-se um pouco como um pato no deserto. Mas es-
távamos prontos para aproveitar a noite - qualquer que fosse a política na
festa, festejar era apolítico. O que eu mais esperava naquela noite era a
aparição de um convidado especial.
E ele quase não conseguiu ir. Tempestades de verão atravessavam o
Meio-Oeste e atingiam partes da costa Leste, fazendo com que Muhammad
e seu grupo tivessem de alterar seus vôos em cima da hora. Ficamos
esperando no hotel por informações de que ele estaria vindo, enquanto do
outro lado de Rittenhouse Square a festa já havia começado. Querendo ter
um ou dois minutos de sossego antes de irmos para a festa, conformamo-
nos era chegar atrasados. Quando os Ali chegaram, passaram em nosso
quarto para dar um "oi". Minha lembrança mais forte não é do nosso aperto
de mão ou de um abraço, mas da descida de elevador até o saguão, quando
aquele gigante simpático fez surgir um lenço vermelho de cetim de uma
mão fechada e cheia de ar.
Como já disse, precisei de quatro ou cinco performances daquela
em nosso próximo encontro para entender "como" ele fazia o truque, mas
imediatamente senti o "porquê". Aqueles punhos enormes não tinham mais
o poder de derrubar um George Foreman no auge, mas ainda eram capazes
de um truque manual simples. O rosto que outrora transmitia uma gama de
emoções, de olhos arregalados, boca meio aberta admirando a própria
"beleza", a máscara de um bravo guerreiro, agora estava congelada e sem
nenhum sentimento, a não ser por uma ocasional e sutil piscadela que
63
sinalizava o final do truque de mágica. E aquela voz que um dia cantou e
gritou, oferecendo tanto poesia quanto protesto, agora estava silenciosa,
mas conseguia ainda sussurrar:
-Mais uma vez. Observe com atenção.
- Eu ainda sou mágico - era o que parecia que Ali estava querendo
dizer. - Não preste atenção às cortinas em frente do homem. Ainda estou
aqui. E ainda sou o Maior do mundo.
Quando me encontro com pessoas que têm Parkinson, raramente
tenho conhecimento de quem eram ou do que faziam antes do diagnóstico.
Relaciono-me com elas sobre termos as mesmas dificuldades no aqui e
agora e em nosso otimismo em relação a um futuro melhor. Não sei quanto
perderam ou como foram as mudanças que marcaram o processo de
desenvolvimento do Parkinson nelas - mas elas, é claro, sabem das minhas
mudanças. As pessoas sabiam bem quem eu era antes de ter DP e de
saberem que eu tinha. E o que achavam disso seria tão subjetivo quanto o
que eu achava. Logo que anunciei que tinha DP, lembro-me de ter ficado
incomodado com o fato de as pessoas pensarem em alugar meus filmes
antigos e assistirem às reprises de Spin City para observar os efeitos
cumulativos da doença em mim, e tenho certeza de que muita gente fez
isso.
Quando vejo vídeos antigos de meu novo amigo lutando, dançando
e fazendo palhaçadas, sinto-me triste e irritado por ele. E imaginava se ele
sentia o mesmo. Será que era difícil para ele ver uma versão jovem,
saudável e forte de Ali? Quando falei sobre isso com Lonnie, ela riu.
- As melhores tardes de Muhammad são quando ele assiste a si
mesmo, pode acreditar - ela afirmou. - Ele impressiona até a si mesmo.
Quando assiste a uma velha luta ou entrevista, ele diz: "Eu era louco,
não?". E agradece a Deus por sua vida ter sido filmada, pois assim pode
revê-la. Ele adora. E fica feliz de isso existir.
64
Às vezes, quando estou mudando os canais, sou emboscado por
uma imagem jovem e saudável de mim. Em geral, apenas sigo mudando de
canal, não pensando nisso mais do que pensaria sobre um comercial Mas,
algumas vezes, tenho de confessar, paro e ponho o controle remoto na
mesinha por um minuto ou dois - e às vezes mais que isso.
PARTE DOIS
POLITICA
“Não desista, não perca a esperança,
Não se venda”
-CHRISTOPHER REEVE
“ Até mesmo um pequeno cão pode fazer xixi em um grande prédio
-JIM HIGHTOWER
Faça o que eu faço, mas não faça o que eu digo
COLUMBUS, OHIO • 30 DE OUTUBRO DE
65
2006
Se é segunda-feira, devo estar em Iowa. Não, espere, Iowa é só hoje
à tarde; se é segunda de manhã, devo estar em Ohio. Uma sensação
estranha me invade quando penso que estou retornando a um lugar em que
nunca estive - Columbus, a cidade natal do ficcional Alex P. Keaton.
Nosso voo foi arranjado pelo ávido e bem organizado grupo do
congressista Sherrod Brown, que estava em campanha para que o
republicano Mike DeWine conseguisse uma cadeira no Senado. Um sujeito
grande, agradável, com cara de ex-policial e membro do comitê de boas-
vindas apresentou-se como nosso motorista e mostrou a minivan alugada
como prova. Durante a última semana, apertei a mão de muitos voluntários
simpáticos em campanhas para o Senado, a Câmara e o governo por todo
país e troquei histórias com eles; por isso, já cheguei predisposto a gostar
da equipe de Sherrod por aproximação. Com menos pessoal que o
necessário e mais trabalho do que pode dar conta, uma equipe leal lutará
sem descanso pelo candidato, por acreditar que ele representa um futuro
promissor - e que tenha chance de vencer. Os que acreditam de verdade me
parecem trabalhar mais horas e se esforçar muito mais em uma campanha
do que em seus trabalhos ou carreiras. Estou convencido de que voluntários
de equipes de campanha são um paradigma para a atual teoria encampada e
abraçada pelas caríssimas consultorias corporativas, na qual o otimismo é
uma forca multiplicadora . Logo nosso motorista e ex-policial nos deixa no
campus da Universidade Estadual de Ohio às 10h47, bem a tempo do nosso
evento que vai começar as llhl5. Provavelmente vou precisar de cada um
dos 1.680 segundos que temos livres.
O clima de Ohio é o mesmo de Nova York neste mês de outubro,
um calor fora de época; um complemento perfeito para uma nova série de
66
tremores que estou tentando subjugar antes da maratona em Brown. Esse
suadouro e os tremores podem confirmar as impressões que as pessoas têm
de mim como um político novato e ingênuo, mas não causa nenhuma
reação no passageiro ao meu lado no carro. John Rogers não está ignorando
meus sintomas de Parkinson; ele apenas já está acostumado a eles. A
primeira vez que encontrei esse "resolvedor" de casos políticos de DC ele
já tinha uma longa e memorável carreira defendendo a luta contra o
Parkinson, ocupação dedicada ao pai e à avó que perderam a luta contra a
doença. Com 40 e poucos anos, John é cauteloso, mas entusiasmado, com
um senso perfeito do momento certo de cada coisa e um tipo de inteligência
que o mantém acordado à noite. Cabelo ruivo bem aparado, cavanhaque
recente, óculos, um celular RAZR colado ao ouvido e a mão livre
pressionando a outra formam sua acolhedora face "não conheço você da
escola?". Fechando seu Motorola, ele se vira e abre um sorriso
tranqüilizador. John Rogers é o guia de nossa jornada pelo labirinto.
- Certo, cara, arranjei um esquema legal aqui em Columbus. David
Gregory da NBC vai fazer uma matéria para o The Today Show. Ele e a
equipe vão nos encontrar no estacionamento. Sei que combinamos uma
entrevista formal depois do evento, mas ele também quer bater um papo
enquanto vocês caminham até o auditório. Assim que você chegar aos
bastidores, ele para e você terá tempo de se preparar.
Conversar enquanto caminhamos? Não sei se consigo fazer nem
uma nem outra coisa decentemente, e as duas ao mesmo tempo podem
provocar um colapso sináptico. Gotas de suor caem sobre o discurso que
finjo decorar, mas que na verdade está apenas chacoalhando preso nas
minhas mãos. Os comprimidos ainda não fizeram efeito. Faço um apelo ao
ex-policial:
- Podemos dar mais umas duas voltas no quarteirão, no campus? Ou
no Estado, talvez?
67
Depois de mais cinco minutos rodando pela Universidade, fica evi-
dente que uma vida melhor não será alcançada pela química nos próximos
minutos, e é melhor eu levar logo meu corpo trêmulo ao compromisso.
Ao mandar David Gregory, o correspondente principal da NBC
para a Casa Branca, a Ohio para fazer esta matéria, o The Today Show
acrescentava seu peso editorial e aumentava nossa afirmação na mídia de
que nossa campanha para eleger candidatos a favor das células-tronco era
uma grande notícia política, e não apenas algo da área de entretenimento. A
grande imprensa é responsável e vem moderando imparcialmente essa
inesperada discussão nacional. É importante, já tinha passado da hora e
agora estava presente não só em noticiários e debates políticos, mas
também nas casas, nos bares, nos escritórios, nas fábricas e até mesmo nas
arquibancadas dos jogos de futebol das crianças. As celebridades podem ter
sido as responsáveis por atrair a atenção das câmeras e dos repórteres,
porém, o que continuou nos carregando para além da mera curiosidade
passageira, para usar o termo político, foi nossa habilidade de manter a
mensagem atual. Sabemos que o contexto é complexo e que carrega
considerações cuidadosas, mas, do nosso ponto de vista, o direito à
esperança é simples.
***
David Gregory é um homem alto - não gigante, apenas alto. Eu sou
um cara baixo, e nem preciso falar em baixinho para mostrar o contraste,
pois vocês me conhecem. No entanto, mesmo sem o tal contraste, David
Gregory é desnecessariamente alto. E isto acaba com o nosso "conversar
enquanto caminhamos". Para conseguir nos enquadrar ao mesmo tempo
enquanto andamos, o câmera tem de ficar uns dez passos à nossa frente,
arrastando um perigoso monte de cabos, apenas esperando alguém tropeçar
ou enroscar o tornozelo neles. E, quanto à conversa, não sei como o
operador de áudio pode gravar nosso som com a mesma qualidade sem
68
acertar o microfone na cabeça de Gregory. Há um velho ditado em
Hollywood que diz: "Um ator baixinho sobe em uma caixa, mas um astro
baixinho faz todos os outros atuarem em um buraco". Contudo, não havia
tempo para cavar buracos, porque havia outros problemas além da
diferença de altura. O fato é que meu passo parkinsoniano e toda minha
marcha deselegante são piores ainda para o horário nobre. A levodopa que
tomei ainda precisava atravessar a barreira sangüínea do meu cérebro,
então eu caminhava arrastando os pés, rígido, braços retos para baixo e
meio balançando. É como se uma corda amarrada em minha cabeça me
puxasse a uma velocidade fora do meu controle. Às vezes, parecia que eu
estava tentando evitar um tropeço, mas sem o mínimo de bom-senso e sem
usar os braços para melhorar o equilíbrio. Os neurologistas chamam essa
desordem de movimento causada pelo Parkinson de bradicinesia. Os
sintomas também fazem com que seja difícil levantar os olhos, que não
piscam, ou dar uma olhada periférica no meu interlocutor. E, com o rosto
semicongelado sob a máscara de Parkinson, responder de forma audível,
articulada ou com qualquer modulação é um desafio. Nada disso tem a ver
com David Gregory, mas ele não ia morrer se tivesse relaxado um pouco.
Odeio misturar jornalismo com entrevistas. Quanto a misturar política com
Parkinson, se vou ficar resmungando e reclamando, tenho de fazer do meu
jeito.
No Today da manhã seguinte, a voz de Gregory falava em off.
- E segunda de manhã, Columbus, Ohio, segunda semana do fogo
cruzado político de Michel J. Fox.
Não concordo com o "fogo cruzado" - do meu ponto de vista, todos
os tiros parecem ir em apenas uma direção, e, além disso, "fogo cruzado"
implicaria eu ser pego vagando meio perdido e sem convite no meio da luta
de outras pessoas. No debate sobre as células-tronco, algumas pessoas do
outro lado, em especial aquelas que se posicionam mais politicamente que
69
por causa de uma consistente preocupação ética bem demonstrada,
adorariam que a gente sumisse. Éramos intrusos esquerdistas roubando
tempo de TV espaço nos jornais e a fugaz atenção do público durante todos
os momentos decisivos da campanha.
Nos bastidores da faculdade de Direito, sou apresentado ao congres-
sista Sherrod Brown e à sua mulher, Connie Schultz, a colunista ganhadora
do prêmio Pulitzer. Mal tínhamos trocado cumprimentos quando Gregory
apareceu fazendo perguntas - um lembrete de que ele não fora indicado ao
Emmy à toa. Brown, sem se abalar com a intromissão em nosso momento
de privacidade, repetiu o que tinha acabado de me falar: que trabalharia
duro no Senado para ajudar a corrigir a atual política governamental, não
apenas em relação às células-tronco embrionárias, mas em todos os campos
de estudos científicos. Já eu estava feliz de conseguir ficar de pé e
conversar. Mais algumas perguntas e era a hora de começar.
Educadamente, alguns assessores arrancam o candidato de lá; a sala se
esvazia, e sou levado ao andar do auditório.
O programa está em andamento. Brown e a esposa sentam-se em
uma fileira com dignitários, médicos, pesquisadores, pacientes e advo-
gados. Também estão presentes várias crianças em idade escolar e seus
pais. Um desses garotos, Tanner Barton, de 11 anos, é convidado a falar em
um pódio que ele mal alcança. Com encantadora presença de espírito, ele
começa a descrever a dolorosa rotina de um diabético: as agulhas, o
isolamento dos outros garotos, as horas na diálise e o estigma de ser
diferente.
Pesquisadores do diabetes estão trabalhando com células-tronco
para desenvolver uma fonte alternativa de células beta (que produzem
insulina). O objetivo é transformar células-tronco embrionárias em células
pancreáticas reais e funcionais e um dia poder transplantai essas células nos
pacientes. Muito tempo e energia preciosos têm sido desperdiçados com
70
manobras e desviando-se das restrições de procedimentos impostas pelo
governo a essas pesquisas promissoras.
Tanner não entra no mérito científico; apenas conta como é sua vida
com a doença e como espera ficar melhor um dia. Imagino que Tanner não
tenha muitas oportunidades de falar sobre sua condição, muito menos para
um auditório lotado, diante de microfones e câmeras de TV E ele está
aproveitando ao máximo a oportunidade. Quando põe tudo para fora, fica
claro que é um moleque durão, mas também é fácil ver sua hesitação por
baixo das bravatas pueris.
Agora, não me engano quanto ao contexto no qual isso tudo está
acontecendo. Sherrod Brown é um candidato democrata concorrendo a uma
cadeira no Senado ocupada pelos republicanos no campo de batalha do
Estado de Ohio durante os últimos dias antes da eleição. Não estamos em
um terreno neutro de maneira alguma. Não há um debate de verdade hoje
aqui em Columbus. Mas acho que é um ponto positivo poder ver a men-
sagem de Tanner, ou mesmo a minha, em meio a uma discussão estrita-
mente partidária ou política. Esta é uma questão delicada, as preocupações
cora a ética levantadas pelos opositores das pesquisas com células-tronco
são pertinentes e, falando por mim, profundamente respeitadas. Tenho
conhecimento de que meus pontos de vista são subjetivos. Tenho uma re-
lação com esta discussão que leva muitos a dizerem, com justiça, que isto
me desqualifica a considerar os argumentos dos dois lados da discussão de
maneira igual. Você mesmo pode ter pensado bastante no assunto e
chegado à conclusão de que a pesquisa com células-troco embrionárias é
errada e que, pelo menos, não é algo que você gostaria que seu governo
apoiasse. Tão frustrados quanto nós, pacientes, estamos com os impedi-
mentos das pesquisas criados por George W Bush, estão vocês, que acham
que nós simplesmente não entendemos o que querem, que não vemos o
quadro geral da discussão. Pensando assim, podemos nos simpatizar uns
71
com os outros, mesmo sem concordarmos uns com os outros. Foi por isso
que trouxe para o cenário político minhas preocupações e esperanças de
que este trabalho produza tratamentos e curas, não para envergonhar ou
ridicularizar aqueles que discordam de mim, nem para usar a vantagem de
ser uma celebridade para calar a voz das outras pessoas. A oposição é
sincera. O que queremos é conversar. A única maneira de o governo
expressar os desejos e as necessidades dos norte-americanos é se os
cidadãos falarem e se envolverem. Por mais que eu queira falar dos meus
pontos de vista, dos meus desejos e das minhas necessidades, sei que é
crucial que opiniões diferentes tenham a mesma oportunidade de serem
ouvidas.
As pesquisas indicavam, entretanto, que aqueles que se opunham
eram a minoria. E, da perspectiva política, o que vale são os números, c,
quando digo números, quero dizer votos, é claro. Por que, então, me
perguntam as pessoas, se a maioria dos norte-americanos é a favor de
pesquisas com células-tronco financiadas pelo governo federal, não temos
os números necessários para conseguirmos isto? Boa pergunta. O que
parece ser matemática básica é, na verdade, um exercício complicado de
matemática eleitoral. Cada voto representa grande variedade de crenças,
preocupações éticas, reclamações, medos, desejos e necessidades, segundo
a ordem de importância pessoal de cada eleitor. O cálculo que o candidato
e seus estrategistas têm de fazer é descobrir que questões cada cidadão,
sendo parte de uma matriz maior, está disposto a abandonar ou deixar de
lado até a próxima eleição e, em contrapartida, que combinação mágica o
inspiraria a comparecer às urnas e votar no candidato desejado. Vamos
supor que o cidadão A é um liberal moderado, a favor das pesquisas com
células-tronco, que, em uma lista de dez coisas importantes, coloca este
assunto em oitavo lugar. Já o cidadão B é um conservador religioso,
contrário às pesquisas com células-tronco, e PROvavelmente põe este
72
assunto em terceiro lugar em sua lista de prioridades. Em uma competição
apertada, uma pesquisa imparcial e cautelosa, sem nenhuma ligação com
um dos lados, faz as contas e conclui por um medo da perspectiva de
clonagem. E isto não ajuda nenhum dos lados.
Mas essa é a manipulação sutil que temos em jogo. E opor-se a isso
quer dizer que temos de pegar nossa mensagem e nossos números e leva-
los à esfera política. Precisamos ter uma margem de votos à prova de veto
nas duas Casas para conseguir aprovar o Ato de Aumento de Pesquisas
com Células-Tronco. E não há nada de secreto em relação ao nosso
objetivo: alcançar eleitores que associem de forma positiva a ciência e as
pesquisas com possíveis curas de doenças e contrastar essa disposição com
o histórico dos candidatos locais. Também examinamos como a postura dos
candidatos em relação às células-tronco se encaixa em suas posições e
preocupações éticas. É especialmente relevante saber se o candidato se
opõe à destruição de embriões, mas é a favor da fertilização in vitro. Esse
tipo de fertilização cria um excedente de embriões que são descartados em
números muito maiores que aqueles que são e serão usados em pesquisas.
Muitos de nossos amigos são pais de belas crianças que, sem a fertilização
in vitro, não existiriam - e não tenho nenhum problema com isso. Mas
favorecer um e esquecer o outro é fundamentalmente inconsistente ou
obviamente injusto.
Uma eleição equilibrada entre um candidato a favor e outro contra
as pesquisas com células-tronco é nossa melhor oportunidade para lembrar
as pessoas de que não estamos falando de coisas abstratas. Esta questão as
afeta da mesma forma que outros cem milhões de norte-americanos, para
os quais é uma questão de vida ou morte. Não estamos dizendo, de maneira
alguma, que os que estão do outro lado da questão tenham menos
compaixão, empatia ou preocupação por aqueles que estão doentes ou
sofrendo. Sei que muitos dos que se opõem às pesquisas com células-
73
tronco embrionárias acham sinceramente que têm a verdadeira posição
compassiva. Já os políticos, no entanto, ao explorarem a pesquisa médica
como uma questão polêmica, põem o futuro em risco. Por isso vim a
Columbus esta manhã, vou a Iowa à tarde, amanhã estarei em Maryland e
durante a semana também estarei na Virgínia, em Wisconsin e no Arizona.
Uma doença incurável é um problema apartidário que precisará de uma
solução bipartidária. O desejo de aliviar o sofrimento e salvar vidas não
toca nossa fidelidade partidária ou ideológica, mas sim nosso lado
humanitário.
Os aplausos ao final do discurso do jovem Tanner seguem até ele
chegar a seu assento, quando o pai o recebe com um abraço apertado. Um
pai não pode blindar o filho contra a dor ou uma doença; pode apenas amá-
lo, como claramente acontece com o pai de Tanner, e lutar o máximo
possível em favor dele. Pensar que esse garoto de 11 anos, seu pai ou
qualquer um dos outros pacientes aqui presentes e suas famílias estão sendo
manipulados ou manipulando alguém é um absurdo. Nenhuma palavra dita
por Tanner aqui hoje foi passada a ele ou programada. Mas as palavras a
seguir, para não haver confusão, são minhas: Tanner quer que a tirania do
diabetes juvenil acabe durante a vida dele. É isso aí, garoto. Sic semper
tyrannus!
Em um pequeno corredor, na verdade um pequeno lance de escadas
perto do palco, espero minha vez. Infelizmente minha falta de movimento
me deixa meio saltitante. Pode ser o estresse da viagem e do tempo com a
imprensa, mas meus "desligados" - ou seja, os períodos de tempo nos quais
os remédios não fazem efeito - estão durando tanto que preciso dar um jeito
me entupindo de medicamentos. Isto leva a uma discinesia total. É uma
falta de controle de movimentos, mas com a escolha de balançar para os
lados, para cima e para baixo e na diagonal, como na discinesia, ou tremer,
arrastar-me e murmurar as palavras em voz baixa e desarticulada por causa
74
da bradicinesia. Balançar é, por incrível que pareça, a opção mais
confortável, mas ganha das outras opções por um fio de cabelo.
Agrupados comigo nas escadas estão vários membros e voluntários
da equipe de campanha Brown, jornalistas e minha humilde equipe de
conselheiros e assessores -John Rogers, é claro, mais Tricia Brooks e Alan
McCleod, da equipe dele, e minha assistente, Jackie Hamada. Instruções de
última hora e pequenos pedaços de informações são sussurrados em meus
ouvidos e passam direto, perdendo-se no espaço. Meus instintos
performáticos assumem o controle e minha atenção volta-se paia o público.
Olhando as divisórias ao redor, acho um espaço com boa vista.
Uma energia palpável percorre todo o auditório, evidente nos cartazes que
ondulavam: "RETIREM AS CÉLULAS-TROCO", "QUEREMOS NOSSA
CURA", FAÇAM A ESCOLHA PRÓ-VIDA", e para dar certo humor,
imagino, "MJF PARA PRESIDENTE". Eu continuava paralisado e um
pouco confuso com o que via. E então fazia sentido - alguma coisa
diferenciava este grupo dos outros em outras campanhas às quais eu tinha
ido. Havia muitas pessoas de todas as idades e etnias em cadeiras de rodas,
os mais novos provavelmente vítimas de lesão medular. Alguns vieram
com andadores ou bengalas. Meus colegas com Parkinson também
compareceram em bom número. Não tenho problema para reconhecê-los,
não só pelos tremores, mas também pela mesma postura levemente
inclinada para a frente e com os ombros meio caídos, à qual eu também
havia me rendido neste momento. Pessoas idosas sentavam-se próximas de
familiares e dos acompanhantes que tomavam conta delas e tinham o olhar
perdido adiante, com os olhos vazios, peculiar a quem tem Alzheimer.
Ainda estou tentando montar um quadro geral, algo que me pareça familiar,
e levo ainda alguns segundos para finalmente descobrir. Meu Deus, é um
encontro de despertar religioso. Depois que faço a associação, ela fica na
cabeça. Não consigo fazê-la sumir. Em minha vida, na parte recente dela,
75
fui a muitos encontros desses, e as únicas coisas que faltam aqui são carri-
nhos cheios de muletas descartadas e um pelotão de recepcionistas com
transmissores sem fio, separando os aflitos em filas para serem atendidos
no palco. Não é o que ocorre aqui, é claro. Mas de que maneira aquele
grupo é diferente deste? Reunindo-se no auditório de uma universidade de
Ohio ou em uma super igreja em Houston, o desejo das pessoas não é de
melhora, de se livrar da doença, de se curar? A resposta reside numa
mistura de fé e esperança, entre procurar a mudança fazendo um pedido a
Deus ou procurá-la exercendo seu direito político.
Seguro dois papéis bem diferentes nas mãos, que, neste momento,
não estão tremendo. Um deles é meu discurso, que agora mais parece um
teste de Rorschach com os borrões do meu suor, ficando totalmente inútil, a
menos que o ponto principal de meus comentários seja: "Dama pelada com
uma serra elétrica". Já pelo lado bom, tenho um pedaço de papel que me foi
entregue por uma garotinha chamada Jessi. É uma pintura de aquarela, com
vários retratos dos heróis dela: a professora, o médico, os pais e algo bem
parecido comigo. Ela diz que o desenho acompanha um abraço, e, enquanto
me abaixo para receber o outro presente, Jackie pega o desenho para ele
ficar seguro. Em breve, ele será enquadrado e colocado no meu escritório.
Quando finalmente sou chamado ao palco, a platéia explode - aplausos,
gritos, assovios e acenos. Após respirar, fecho os olhos por um segundo.
Como cheguei até aqui''.
O movimento de Christopher
Em outra vida, anterior aos nossos respectivos problemas de saúde,
Christopher e eu éramos astros de cinema. E, como todas as pessoas
inteligentes de Hollywood, morávamos em Nova York. Encontravamo-nos
76
em eventos, estréias e em uma festa ou outra. Na primavera de 1993, Tracy
e eu dividimos uma mesa com Chris e Dana na abertura do Planet
Hollywood em Londres. Recém-casados, eles eram um casal esperto, en-
graçado, gracioso e absurdamente bonito. Tracy comentou comigo depois
quanto eles eram amáveis e incrivelmente enamorados um pelo outro, e
concordei, anotando a pequena dica de demonstrar mais meus sentimentos
à minha noiva. Dois anos depois, quando Chris ficou tetraplégico ao cair de
seu cavalo em um evento de equitaçâo, ficamos angustiados e incrédulos.
Como isso podia ter acontecido com Chris, um cavaleiro experiente, que
fazia algo que amava e que já fizera milhares de vezes? Um ser humano
como ele - homem bom e decente, pai, marido – sofrer uma calamidade
aleatória que mudaria por completo sua vida parecia validar o temor que
sentíamos quando uma esposa tem de dirigir para casa bem tarde, em uma
noite chuvosa, ou uma criança que demora a se levantar após um tombo no
parquinho.
Quatro semanas depois de Chris ter sofrido o acidente, parecia que
a imprensa e o público não se cansariam nunca das alusões ao papel dele
como Superman e da "amarga ironia" de tudo que havia acontecido.
Contudo, enquanto tantos se preocupavam com o assunto "super-herói
sofrendo uma tragédia na vida real", alguns anteciparam o verdadeiro herói
em carne e osso que Christopher Reeve se tornaria. Ele definia herói como
"uma pessoa comum que encontra forças para resistir e perseverar". Apesar
da humildade de Chris, alguns idealizaram seu heroísmo como algo
predeterminado, e não podiam ser dissuadidos pelos argumentos "mais
simples". Pessoas bem-intencionadas, esforçando-se para achar sentido nas
coisas sem sentido, asseguraram a Chris que o acidente havia ocorrido por
uma razão maior, o que apenas acrescia mais um fardo à sua condição
física, emocional e financeira - o peso da religião.
Michael Manganiello, incansável advogado das células-tronco, que
77
trabalhara com isso por muitos anos e era um conselheiro bem próximo de
Chris e Dana, lembra-se do casal refutando a idéia de a tetraplegia dele
servir a um bem maior.
- Não, é só uma droga. Isso não ocorre com alguém por uma razão
maior. Às vezes coisas ruins acontecem, mas é como você lida com elas o
que realmente importa.
Apesar de não ter problema nenhum em falar o que pensava, mes-
mo com a ajuda imperfeita do respirador, Chris sabia que sua declaração
mais importante seria sem palavras.
- Chris queria sair de sua cadeira e Dana queria que Chris saísse da
cadeira dele - conta Mike. A dedicação àquela eventualidade era a seguir a
vida deles, atrás apenas da dedicação de um com o outro e à família. -
Chris se tornou um símbolo para as pessoas com lesões na coluna e outras
deficiências, e Dana se tornou um símbolo para acompanhantes no mundo
todo. A vida ainda pode ser boa. Tudo depende de como você enfrenta os
desafios.
Chris e Dana nos deram uma demonstração de coragem, alegria,
amor e esperança eterna.
Às vezes as pessoas ficam surpresas ao saber que não nos conhecía-
mos tão bem assim. Houve alguns telefonemas entre minha revelação e a
morte de Chris, meia dúzia ou mais, a maioria relacionada a trabalho.
Nunca chegamos a ter ura bate-papo fora disso. Quando a pessoa do outro
lado da linha não consegue respirar sem a ajuda de algo mecânico, não
espero por conversa fiada. Apesar disso, falamos de hóquei - meu amado
esporte de infância. O filho dele, Will, jogava, enquanto o meu, Sam, nunca
gostou. Eu vivia a emoção de ser um pai orgulhoso do filho que joga
hóquei através de Chris, que não perdia um jogo. A meta comum de nossas
fundações era o pretexto usual para nossas conversas. Como muito mais a
aprender com Chris do que ele comigo, eu tinha a tendência de ficar na
78
minha enquanto ele falava em linhas gerais sobre como influenciar
opiniões políticas ou calcular a taxa de confiabilidade desse senador ou
daquela deputada. Lembro-me de como me esforçava para não interrompê-
lo, apesar de acabar fazendo isso de qualquer forma. Chris era tão
articulado e cuidadoso ao escolher as palavras, juntando meticulosamente
séries de pensamentos com um ritmo interessante e no momento certo, que
imagino que fosse algo só dele. Então ele fazia uma pausa, e eu aproveitava
e respondia, e ouvia o ofegante sibilar do respirador dele reciclando, e a
voz surda e hesitante de Chris continuando de onde tinha parado. Isso
funcionava uma ou duas vezes em cada telefonema. Eu ficava
envergonhado, mas, se o incomodava, Chris era educado demais para falar
algo (ou talvez tenha falado e eu o interrompi). Acabei aprendendo com o
tempo a internalizar os momentos nos quais o oxigênio era forçado para
dentro e para fora da laringe de Chris. Era o que o mantinha vivo, mas ele
não estava respirando - estava recebendo ar de maneira ativa. Tendo
responsabilidade sobre a vida e a morte e com todo o investimento
emocional de um relógio digital, o respirador dava a Chris o sopro da vida.
Mas a parte de Chris na história podia ser tudo, menos mecânica. Ele dava
vida ao sopro - o oxigênio, um simples gás que ele transformava em
palavras, idéias e esperança. O último e o próximo não eram importantes.
Este era. Para cada novo sopro, Chris tinha a paciência e o espírito de olhar
para as coisas do dia a dia que ele não poderia mais fazer e ver a si mesmo
fazendo as coisas que ainda não tinham sido feitas.
Um paradoxo acontecia em todos os telefonemas - eu sempre estava
em meu escritório, um homem com distúrbios de movimento tentando tirar
o controle das minhas extremidades do abraço da Doença de Parkinson,
enquanto Chris, na casa dele, estava sentado em uma imobilidade forçada.
A realidade é que o silêncio de Chris me assustava muito. No Parkinson,
não importa quão diabólica seja a dança, inexoravelmente você será levado
79
ao silêncio. Sempre que tive o privilégio de passar um tempo no mesmo
lugar que Chris, pensei em falar com ele sobre o silêncio, sobre como isso
deve ser solitário, mas nunca encontrei o momento certo. Marcamos uma
aparição conjunta no Congresso para o inverno de 2000, mantendo nossa
promessa de termos mais tempo juntos que no passado, mas uma doença o
forçou a cancelar a viagem. Na ausência dele, solicitaram-me que lesse o
discurso enviado por Chris pedindo menos restrições às pesquisas
científicas.
Um jeito de comparar o que aconteceu com Chris e o que estava
acontecendo em minha vida é a analogia de um impacto repentino de uma
locomotiva com alguém que está amarrado nos trilhos, sentindo a vibração
do trem que se aproxima, sem conseguir medir a que distância ele se
encontra. Pelo fato de a lesão de Chris ter acontecido de uma vez, instanta-
neamente, ele só pode reagir às coisas que não pode desfazer, enquanto eu
lenho tempo de ver com antecedência as coisas que não poderei evitar.
Contudo, deixando aparências e caprichos dos momentos certos de
lado, Chris se perguntava não "O que aconteceu?", mas "O que fazer
agora?".
- Antes de uma tragédia, não nos imaginamos carregando os pesa-
dos fardos que podem aparecer num momento de dificuldade. Então,
quando esse momento chega, percebemos de repente que temos recursos
em nós que nem imaginávamos que existissem - ele me disse.
Não percebi de repente, mas com uma confiança crescente comecei
a desenterrar esses recursos. Percebi que o importante era evitar o pânico, e
não poderia achar um exemplo melhor que a graça sublime sob uma
impiedosa pressão de Christopher Reeve.
A eleição presidencial de 2004 seria a última que Chris Reeve veria
na vida, e, infelizmente, ele nem conseguiu vê-la até o final (não que fosse
ficar feliz com o resultado). No dia 10 de outubro de 2004, 34 dias antes da
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eleição, Chris sucumbiu a um ataque cardíaco. Alguns dias depois, sentei-
me ao lado de Teresa Heinz Kerry, no Arizona, enquanto assistíamos ao
debate entre seu marido e George Bush. Quando a imprensa me pediu,
depois do debate, para comentar a respeito da morte de Chris e sobre o
efeito disso na defesa das células-tronco, acabei sendo tomado pela emoção
e, após murmurar uma resposta mecânica, pedi licença e saí. Chris passou a
melhor - e a pior - fase de sua vida sendo um exemplo de como defender
algo em uma democracia. Ouvi que ele recebeu pressões para não se
envolver na eleição de 2004. Quando perguntei a Mike Manganiello sobre
isso, ele me disse:
- Chris ficou preocupado que pacientes e pesquisadores sofressem
se ele se envolvesse na eleição. A Fundação Christopher Reeve recebia
bastante ajuda federal, além de haver uma legislação com o nome de Chris.
Se ele tomasse partido, tudo isso estaria em risco. No fim, ele sentiu que
não poderia. Quando Chris morreu, em outubro, Dana me disse: "Preciso
fazer campanha para Kerry". Então, a levamos para Ohio e Dana fez um
discurso que ficou indelével mente gravado em mim. Foi um daqueles
momentos. Chris sempre dizia: "Sou apenas um cara; sou a voz dessas
pessoas, mas elas estão por aí e carregam a mensagem".
Apesar de ninguém ainda saber naquela época, essa também foi a
última campanha de Dana. Mesmo sem ser fumante, ela foi diagnosticada
com câncer de pulmão no verão de 2005. Ao lutar contra aquelas restrições
que Chris vinha enfrentando, ela deu um presente sincero ao marido e a
todos aqueles que poderiam encontrar nas pesquisas com células-tronco o
caminho para uma vida mais longa e mais saudável. A morte de Chris foi
dura, e a de Dana também. Tão súbitas e tão injustas. Mas eles nos
inspiraram a seguir em frente.
Em quem você confia?81
Com algumas poucas exceções, todo mundo gosta de ser amado. E
isso é mais real ainda com atores. Mesmo aqueles que achamos que não são
do tipo que se gosta, que nas telas e fora delas parecem ser pessoas som-
brias e inacessíveis, no mínimo eles têm a qualidade de seu trabalho para
recomendá-los - "Ele é um idiota, mas adoro vê-lo no filme tal".
Quando Sally Field balbuciou "Você gosta de mim... agora, você
gosta de mim", ao receber o Oscar de melhor atriz em 1984 por Um lugar
no coração, sua sincera expressão de surpresa pela aprovação da Academia
inspirou reações da imprensa que foram de uma brincadeira saudável a
acusações de típico narcisismo hollywoodiano. A maior parte do público
concordou com Sally - exceto talvez pela parte do "agora"; eles gostavam
dela antes, continuaram gostando e ainda gostavam. Talvez tenham ficado
um pouco confusos com o fato de uma atriz tão popular e no ápice da
carreira ainda ter dúvidas. Mas os atores na platéia - e eu me incluo aí -
entenderam sua manifestação de alívio em relação a ter feito tantos
sacrifícios, esforços e perseverado até ser recompensada com um tesouro
muito maior que uma estatueta de ouro ou um monte de propostas de
trabalho que receberia - o prêmio era o tapinha nas costas.
O público aprendeu a confiar que Sally Field sempre faria perfor-
mances atraentes e cheias de nuances quando a câmera a filmasse, e que
não seria uma grande idiota quando não estivesse filmando. Isso está
diretamente ligado com a mesma confiança que as pessoas têm na gra-
ciosamente madura Sally Field, quando ela faz propaganda de um me-
dicamento para osteoporose. Para a indústria da propaganda, que está
sempre à procura de homens e mulheres que sejam seus porta-vozes, a
chave para ter uma celebridade que fale com sua audiência é a qualidade da
confiança que as pessoas depositam nela - e também a quantidade. Sim,
82
confiança agora é quantificável.
Desde os primeiros dias do rádio e da televisão, companhias como
Nielsen e Arbitron têm medido o tamanho e a queda demográfica das
audiências. Algo chamado "classificação-Q" combina o reconhecimento do
nome de uma celebridade particular ou de alguma figura pública com a
reação emocional evocada por aquele nome - favorável ou desfavorável -,
estabelecendo, assim, um ranking. Todavia, há pouco tempo, pesquisadores
de marketing elevaram esse sistema a outro nível, ao adicionar uma meta
específica para determinar não só quanto gostamos de uma celebridade,
mas - e isto é mais importante para os anunciantes -quanto confiamos nela.
Claro que a relevância e a exatidão desses dados ainda são algo dis-
cutível, porém a lista completa, chamada de "índice David Brown" (DBI
em inglês), pode ser acessada pelos anunciantes por vinte mil dólares
anuais. Esse valor, pensando em termos de orçamentos de marketing, é
quase um trocado. Tendo sido vazado ou algo plantado, o DBI virou notícia
em vários veículos de imprensa e, em fevereiro de 2006, a revista New York
publicou parte da lista. Um amigo me mandou por fax a reportagem e
circulou o quarto nome que vinha depois de Tom Hanks, Oprah e Bill
Cosby, e logo antes de Michael Jordan -era o meu.
Não vou mentir para você (pode acreditar) - esta foi uma bela e
inesperada confirmação, com certeza muito melhor que ficar entre os cinco
primeiros de uma lista dos "Maiores Bundas-Moles de Todos os Tempos".
Durante mais de duas décadas beneficiei-me de todas as formas possíveis
da enorme boa vontade de milhões de pessoas desconhecidas. No decorrer
de uma longa carreira, às vezes suas bilheterias são boas, às vezes não; já
fiquei no topo das paradas e também já fiquei lá embaixo. Mas, desde a
primeira temporada de Caras & Caretas, as pessoas "gostavam de mim",
como Sally sempre gosta de lembrar. Eu nunca havia considerado o salto
de "gostar" para "confiar", ou até mesmo "respeitar". Fora um "olá", um
83
aperto de mão ou um “Adorei O Garoto do Futuro", o que mais as pessoas
pensassem de mim não era da minha conta. Contudo, como evidenciado
pelo DBI e com o apetite dos anunciantes por informação, para alguns isso
era um negócio. Qualquer executivo inteligente vai lhe dizer que negócios
e política não se misturam.
Vamos olhar a lista novamente. Tom Hanks, um cara genuinamente
legal, conhecido por seus papéis de homens comuns e muitas vezes
patrióticos - nenhuma controvérsia. Oprah, de forma estudada, evita
envolver-se em assuntos políticos, até seu recente apoio a Barack Obama
(suspeito de que isso a tenha feito cair algumas posições). Bill Cosby, para
muitos norte-americanos, personifica o conforto e a força de um núcleo
familiar. Michael Jordan, quando pressionado a respeito da anunciada dis-
tância de ações políticas ou declarações, respondeu apenas:
- Os republicanos também compram tênis.
Quanto a mim, suponho que o DBI poderia ter sido uma dica para
que eu usasse essa confiança em favor de alguma companhia de pasta
dental ou fabricante de sopas, mas não fiz isso. Apenas dei risada e colo-
quei a lista na pilha de papéis.
Entretanto, seis meses depois, coloquei aquela confiança à prova, e
meu "gostamento" em risco, ao me tornar um dos maiores defensores da
liberdade aos cientista e ás pesquisas com células-tronco. Muitas pessoas
que estiveram ao meu lado durante vários anos continuaram lá e passaram a
vocalizar também suas posições, mas houve igualmente um grande número
que passou a não mais gostar tanto de mim. Não fiz nenhum esforço para
medir quantos, e não, não olhei a lista do ano seguinte - tem aí 20 mil
dólares sobrando? Afinal, o motivo pelo qual as pessoas concordavam
comigo ou confiavam em mim não tinha nada a ver com o fato de eu
cultivar isso ou de ter pensado em criar essas coisas se elas não existissem.
Eu era um feliz resíduo de ser honesto comigo mesmo.
84
Apesar da minha onipresença vinda de aparecer interminavelmente
em reprises de televisão e aluguéis de DVDs, agora penso em mim mais
como pai, marido, ativista e cidadão que como celebridade. E, para meu
grande prazer e satisfação, o sucesso rápido e a ótima reputação da Fun-
dação Michael J. Fox têm mais a ver com o talento e a dedicação da equipe
que com o nome famoso na porta.
Estranhamente, penso em minhas atividades políticas em favor das
pesquisas com células-troco como algo mais pessoal que público. Vi uma
necessidade e procurei tratar dela da maneira mais efetiva possível, usando
quaisquer meios legítimos possíveis. O que estava em jogo era importante
demais para eu me preocupar se dez, cem, mil ou mesmo um milhão de
pessoas iriam gostar menos de mim se eu me envolvesse. Não que eu fosse
tão corajoso a ponto de fazer tudo isso sem ter um bom exemplo a seguir.
Quando Chris e Dana se foram, senti que não era uma responsabi-
lidade pequena, mas um grande privilégio continuar o trabalho deles da
melhor maneira possível. Há uma frase de Chris que carrego comigo até
hoje:
- Ou você fica no lado raso da piscina, ou vai nadar no oceano.
Tentei molhar o pé, entrar no rasinho, andar na água, algumas
braçadas e, enfim, talvez inconscientemente seguindo o conselho de Chris,
encontrei-me no meio de águas profundas e agitadas. O engraçado é que
Chris não mencionou os tubarões.
Vineyard 2001: atirando para matar
MARTHA'S VINEYARD, MASSACHUSETTS
VERÃO DE 2001
Meu filho, Sam, tinha acabado de se juntar a nós em Martha's
85
Vineyard, vindo de um acampamento. Ele era nosso repositor oficial de
munição, recolocando com confiança uma generosa mistura de nitrato de
potássio, enxofre e uma amálgama de carbono no orifício menor do
canhão, que estava apontado indiscriminadamente para o terreno de trás
que podia ser visto da alta varanda em que estávamos. Abaixando-se para
acender o pavio estava o especialista em fogo e antigo diretor de
comunicações de Clinton, George Stephanopoulos, que acendeu um fósforo
com os dedos e levou a chama até a mecha (tá bom, inventei a parte de
acender com os dedos). Sam e George abriram sorrisos que só posso
descrever como inquietantes.
Bater em retirada parecia a coisa mais prudente afazer – e me
oferecer para pegar bebidas geladas me daria cobertura -, mas por um
vago senso de obrigação paternal eu disse:
- Cuidado, gente, a brincadeira é divertida até que alguém perca
uma mão. Antes que eu pudesse completar a frase com a hilária piada que
depois disso não seria mais uma brincadeira, mas ainda seria divertido,
um alto barulho de trovão saiu do canhão, ecoando pelas dunas até chegar
à praia. Um pequeno fio de fumaça preta também saiu, mas a brisa logo
cuidou dela. Uma rápida conferida para ver se todos estavam com as mãos
ocorreu antes de os quatro aplaudirem o sucesso da empreitada. A verdade
é que o canhão era apenas uma pequena réplica, uma arma de destruição
mínima. Não havia nenhum projétil envolvido. No caso de o tiro sair pela
culatra, o máximo que podia acontecer era alguém perder um dedo.
Se você que está lendo isto for pai, provavelmente está se
perguntando:
- Por que Mike não ajudou Sam a acender o pavio? (Trêmulo
demais.)
Se você for um garoto e estiver lendo isto, o que è algo bacana,
deve estar se perguntando:
86
- Onde compro um canhão desses? (De um pirata.)
Se for uma mãe, provavelmente está gritando:
- Você deixou eles brincarem com a porcaria de um canhão?! (...
Que canhão?)
Mas, se for um viciado em política, está pensando:
- Espere aí, George Stephanopoulos? (Voltarei a esta parte num
instante.)
- Pai - Sam começou a perguntar, usando a lateral do tênis Nike
para varrer o excesso de pólvora da varanda -, se a gente explodisse
mesmo as mãos, poderíamos usar as células-tronco para fazer mãos novas
crescerem no lugar?
Olhando de relance para mim, George sorriu. Ele também queria
ouvir a resposta que eu daria.
Neste final de semana de julho, George Stephanopoulos tinha vindo
a Martha's Vineyard fazer uma entrevista comigo para o programa sobre
política This Week with Sam Donaldson and Cokie Roberts, que passava
aos domingos pela manhã. A ABC não tinha substituído os dois lendários
jornalistas, por isso George ainda fazia o trabalho de campo. Tracy e eu
conhecíamos George havia muito tempo, bem antes de eu fazer o papel de
um clone dele no filme Meu querido presidente, por isso o convencemos a
não ficar em um hotel e ser nosso convidado por uma noite. Fizemos a
entrevista naquele dia de manhã e aquela localidade ganhou de longe de
qualquer estúdio, com um lindo céu azul e o belo cartão-postal que é a
marina de Edgartown ao fundo. George veio para discutir células-tronco, o
que criou uma curiosa união de colocações e assuntos importantes. O
futuro das pesquisas dependia da iminente decisão de política do presidente
Bush. Com o perfil político da nova administração ainda incipiente e
enigmático, as perguntas de George eram a respeito de expectativas e
conjecturas. O presidente poderia liberar as restrições ou mostrar um
87
surpreendente suporte à causa, mas proibir tudo também era algo possível.
É difícil lembrar de um tempo no qual a guerra, as razões da guerra e os
rumores de uma nova guerra não dominavam as manchetes. Mas, naquele
verão de 2001, o último antes do 11 de Setembro, "Gary Condit, tubarões e
células-tronco" eram as obsessões da mídia.
Durante os dois anos anteriores ao anúncio da política de 2001, as
atenções estavam voltadas para as células-tronco, não tanto pelo público
em geral ou pela mídia, mas de todos que de um jeito ou de outro tinham
alguma relação com a ciência. Especialistas tinham sido encontrados,
sessões do Congresso tinham sido convocadas e acontecido, comitês de
busca e exame de dados tinham achado e examinado os dados, todos
esforçando-se para desenrolar as premissas da controvérsia e reconciliar a
teoria com sua aplicação prática. Mas, em geral, tudo parecia ter um ar de
atraso deliberado. Era uma ciência emergente, e muito do trabalho prático
laboratorial só se tornaria realmente prático no início do século XXI, então,
enquanto Clinton era a favor das pesquisas com células-tronco
embrionárias, todos pareciam estar esperando a era Clinton acabar para ver
o que o "cara novo" pensava. Aqueles de nós vivendo ou morrendo de
doenças ou condições atualmente incuráveis, sabiam que nossa posição não
poderia ser a de esperar o tempo que fosse preciso. Um paciente de
Parkinson e ativista, Jim Kordy, é conhecido em Capitol Hill por carregar
uma enorme ampulheta nas reuniões e nos gabinetes dos comitês, virá-la e,
enquanto a areia cai, reclamar atenção à Doença de Parkinson e à
evanescente natureza do tempo.
Falei sobre esse ritmo compreensivelmente lento das discussões
parlamentares em setembro de 2000, quando, com Mary Tyler Moore, o
último manifesto de Jennifer Estess de seu Projeto ELA (a atriz Gina
Gershon leu a declaração de Jennifer em voz alta) e outros, testemunhei
perante o subcomitê de verbas para produção, saúde e educação do Senado.
88
Após ler os comentários de Chris Reeve, usei o privilegiado espaço de
tempo reservado a mim para um pequeno desabafo:
- Durante dois anos, vocês tiveram um desfile de testemunhas -
cientistas, eticistas, teólogos de todas as correntes e algumas celebridades
discutindo todas as nuances da pesquisa com células-tronco. Vocês deram
tempo a todos os lados da questão, incluindo os poucos, mas muito ativos
opositores. No entanto, a consistente e inescapável conclusão é que essa
pesquisa tem potencial para eliminar doenças - salvando literalmente
milhões de vidas. Então, mesmo aplaudindo a eficácia de vocês, não posso
deixar de dizer, respeitosamente, "Basta".
Menos de uma semana antes da eleição de 2000, o New York Times
publicou um editorial escrito por mim, descrevendo a frustração e as
promessas associadas às pesquisas com células-tronco. Eu lembrava o en-
tão governador do Texas, George W. Bush, e os eleitores que poderiam lhe
dar a vitória, da oportunidade que ele teria de introduzir uma política
histórica em relação às células-tronco. Durante toda a campanha, seus
assessores o aconselharam a não tocar nesta questão por ser algo muito
polêmico. Nós, os pacientes, defendemos com insistência que ele saísse de
cima do muro e declarasse sua posição. Fui mais político era minha
mensagem ao futuro presidente eleito. Veja uma parte:
Uma eleição crucial para as pesquisas médicas - NewYork Times -
1Q de novembro de 2000
O sr. Bush é favorável ao banimento das pesquisas com células--
tronco, diz um assessor, "por causa de sua visão provida".
Mas as pesquisas com células-tronco não têm nada a ver com o
aborto... são usadas células indiferenciadas extraídas de embriões com
poucos dias de vida - embriões estes produzidos em fertilizações in vitro...
89
Atualmente, mais de cem mil embriões estão congelados e estocados. A
maioria desses microscópicos pedacinhos de células estão destinados a ser
destruídos - acabando com qualquer chance de vida...
O apoio à pesquisa com células-tronco não vem só de democratas
pró-escolha como Al Gore, mas também de republicanos que concluíram
que, nas palavras do ex-senador Bob Dole, apoiai este tipo de pesquisa é
"ter posição pró-vida".
... Esperamos que entre hoje e a próxima terça-feira o sr. Bush
explique a nós, os que têm doenças debilitantes - e a todos os outros -, por
que é mais pró-vida jogar células-tronco fora que usá-las para salvar vidas.
O candidato Bush acabou virando presidente Bush. Enquanto
George Stephanopoulos e eu estávamos conduzindo nossa entrevista em
Martha's Vineyard, o novo presidente e seus assessores estavam decidindo
sobre a política dessa administração em relação às células-tronco.
Estávamos procurando sinais de qual seria e, mesmo não encontrando
nenhum, ainda mantínhamos a esperança.
RANCHO BUSH/A CASA BRANCA DO OESTE
CRAWFORD, TEXAS • 9 DE AGOSTO DE 2001
Falando de Crawford, no Texas, o presidente, no primeiro grande
anúncio de políticas de sua administração, começou a falar do que ele
chamou de "uma questão difícil e complexa... uma das mais profundas
desta época": as pesquisas com células-tronco embrionárias. Em muitos
sentidos foi ura grande discurso, feito numa linguagem habilidosa para
agradar aos dois lados. Ele fez referência ao "Criador", aos "riscos morais"
e às "ramificações éticas", acrescentando:
- Tomei esta decisão com muito cuidado, e rezo para que seja a
90
certa.
O toque espiritual foi uma mensagem à sua conservadora base
cristã, mostrando que não a havia abandonado.
Os norte-americanos a favor das células-tronco, os milhões de pes-
soas lutando contra doenças incuráveis (tenho certeza de que aí estavam
incluídos muitos evangélicos e cristãos conservadores, cujas preces os
levaram a abraçar a promissora pesquisa de células-tronco embrionárias)
também ouviram uma mensagem bem-vinda: o presidente permitiria que as
pesquisas continuassem. Apesar de serem aparentemente boas notícias
alguns elementos- chave da nova política eram preocupantes, e faziam
acender a luz amarela, se é que não acendiam a luz vermelha. Uma delas
restringia todos os pesquisadores a utilizar apenas sessenta colônias
autorreplicantes preexistentes de células-tronco, conhecidas como
"linhagens celulares". Nossa pesquisa tinha um número bem menor de
linhagens celulares viáveis: menos de vinte, talvez por volta de treze. Mas
sessenta era a última estimativa que o NIH havia passado ao presidente.
Nenhuma pesquisa financiada pelo governo utilizaria novas linhagens
celulares, nem nenhuma pesquisa com novas linhagens celulares, mesmo
que não recebesse verbas do governo, poderia ocorrer em uma instituição
ou instalação que recebesse um dólar que fosse por qualquer razão. Isto é
um "nem" muito grande. Significava que, se um pesquisador de células-
tronco ainda não tivesse sido desencorajado o suficiente para desistir de sua
pesquisa e quisesse manter laços com uma instituição com financiamento
federal, teria de arranjar uma nova equipe e um local de trabalho fora de lá.
Outra preocupação vital com essas linhagens celulares que já existiam era
quanto à pureza. Algumas, se não a maioria, estavam contaminadas por
proteínas não humanas. Essas proteínas, em geral células de ratos,
tornavam certas linhagens inúteis para o desenvolvimento de terapias que
poderiam ser utilizadas em pacientes humanos.
91
E de acordo com o que o presidente estava descrevendo ainda havia
algumas armadilhas no caminho das curas. Uma delas era como lidar com a
patente privada de linhagens celulares. Sabíamos que isto comprometeria
um progresso rápido, pois laboratórios particulares e grandes corporações
eram reticentes em dividir descobertas com pesquisadores externos. Em
uma conversa telefônica com o secretário da Saúde e Recursos Humanos,
Tommy Thompson, um dia depois do discurso, eu disse que estávamos
contentes com o fato de c» presidente reconhecer que as pesquisas com
células-tronco eram promissoras, mas que havia perguntas muito
importantes sem resposta. O secretário, que sabíamos ser um proponente da
pesquisa (desde então, ele Lançou sua candidatura .a presidência e adotou
uma posição contrária às células-tronco... Tommy anda fazendo contas),
disse que o NIH lhe reportara que existiam, na verdade, sessenta e nove
linhagens disponíveis no mundo. E, em relação às patentes, assegurou que,
mesmo não havendo ainda um acordo formal, eles confiavam que
corporações e grupos privados iriam colaborar. O secretário Thompson
reconheceu que algumas questões sobre taxas e pagamentos a linhagens
celulares privadas ainda estavam em aberto. Temíamos que o efeito da
condição das linhagens celulares fosse limitar a quantidade e a qualidade
das células disponíveis e reduzir as perspectivas.
Eu estava desapontado, mas ainda pensava: Melhor que nada;
vamos esperar para ver.
Talvez a política tenha sido tão bem bolada, tão habilmente condu-
zida por George W. Bush, que o plano era nos fazer pensar que os dois
lados estavam cedendo um pouco, quando, na verdade, a intenção era que a
ciência levasse o maior tombo.
Nos quatro anos seguintes, não havia muita gente se preocupando
com células-tronco, exceto aqueles de nós cuja vida dependia delas. A
questão até apareceu durante a eleição presidencial de 2004. Fiz um
92
comercial para Kerry, que não atraiu muita atenção. Pode ter sido porque
também fiz um para o senador republicano Arlen Specter, ou mais
provavelmente porque os eleitores só pensavam nas células terroristas do
Al Qaeda, e não nas células-tronco embrionárias. Dana Reeve fez um
discurso bravo e desafiador em Ohio, em nome do falecido marido. Houve
uma vitória significativa na Califórnia: a Proposição 71, uma iniciativa para
criar o Instituto de Medicina Regenerativa da Califórnia, aprovada com
59% de votos, que garantia um investimento de 3 bilhões de dólares às
pesquisas com células-tronco embrionárias no Estado. Nacionalmente,
legislações foram levadas ao Congresso, tentando alterar a política para as
células-tronco, adicionando novas linhagens celulares, infelizmente sem
sucesso.
Levando-se tudo em conta, as restrições de 2001, como uma cáp-
sula de veneno, levaram as pesquisas a uma paralisia virtual. As fundações
privadas fizeram o possível. A Fundação Michael J. Fox liderou a
promoção das pesquisas com células-tronco relacionadas à Doença de
Parkinson. Financiamos uma pesquisa avançada usando todos os tipos de
células-tronco. Nossa meta era determinar qual delas tinha o maior
potencial de resultados com o Parkinson. Os resultados foram claros; em
muitos dos experimentos, as células-tronco embrionárias mostraram-se as
mais promissoras, pois eram manipuladas muito mais facilmente para se
tornar os neurônios produtores de dopamina necessários para reparar o
cérebro.
Mesmo com nossos avanços, o congelamento imposto pela política
restritiva de Bush significava que os experimentos críticos que deveriam
vir a seguir não poderiam ser feitos. O próximo grande obstáculo era
grande demais para ser superado por uma única fundação.
***
93
Nosso pequeno chalé de madeira em Martha's Vineyard é
abençoado com uma vista limpa do farol de Gay Head. Toda noite, seu
vagaroso giro, a cada meia-volta, pinta a casa e o morro com um caloroso
facho de luz. Do anoitecer em diante, vários vagalumes voam pelo jardim
como a metáfora do primeiro presidente Bush: "Mil pontos de Luz". O
farol completa outra volta de trinta segundos, c uma onda brilhante
esconde a luz dos insetos. Mil vagalumes não geram luz suficiente para ler
um mapa. Um farol - mais poderoso e confiável - dá uma sensação de
caminho e esperança. Da mesma forma, eles iluminam e apagam, então o
caminho a seguir é escolher na claridade e confiar na escuridão.
Admito que nunca passei muito tempo no oeste do Texas, mas,
dada .a quantidade e variedade de arbustos que o presidente limpa nas
férias, meu palpite é de que ele tem muitos vagalumes em seu rancho - e
nenhum farol.
Vineyard 2006: O dia da marmota*
MARTHA'S VINEYARD • VERÃO DE 2006
Joguei a sacola térmica cheia de embalagens de sanduíche, potes
vazios, garrafas de água e latas de refrigerante na cozinha e dei dois
passos arrastados até onde estava o telefone. Apertei o botão play da
secretária eletrônica. A alegre voz robótica informou que eu tinha cinco
mensagens. Um pequeno olhar por cima do ombro queimado de sol me fez
estremecer ao notar minha flagrante falta de etiqueta pós-praia ao entrar
na casa. Da porta até o lugar em que eu estava, o caminho que fiz estava
vivamente demonstrado por pegadas de areia.
Bipe. "Aqui é do escritório do senador Reid. Queremos falar com
Michael.J. Fox. Por favor, ligue para nós quando puder."
94
Tracy ainda estava lá fora, provavelmente tirando a areia dos
pezinhos de nossa filha caçula, Esmé.
Bipe. "Fala, cara, é John Rogers. O senador Reid vai te ligar. Você
sabe do que se trata."
... Tracy provavelmente ia me perguntar se precisava tirar a areia
dos meus pezinhos também.
Bipe. "É do escritório do senador Reid novamente. Por favor,
avise-nos qual o melhor horário para falarmos com você."
Bipe. "Mike, aqui é Tom Harkin. A votação está chegando e... bem,
acho que o Harry Reid vai te ligar."
Faltava uma mensagem...
Bipe. "Tracy, é a jennifer. Não se preocupe com o salmão. Clark
vai comprar no Larsen's. E faremos o prato com coentro."
... Excelente!
Louco para destruir todas as evidências da minha transgressão, fui
até apia, peguei um pano de prato, joguei-o em cima da pegada de areia
mais próxima, botei o pé em cima e comecei a "varrer". Então o telefone
tocou. Eu poderia não ter atendido, mas isto teria feito Tracy entrar
correndo para atendê-lo.
Peguei logo o telefone.
-Alô?
- Alô. É Michael. J. Fox? O senador Reid quer falar com você.
Ouvi o barulho da porta de tela se abrir. Era Tracy.
- Ah, Mike, olhe para este chão!
Com o telefone no ouvido, virei totalmente envergonhado para a
janela.
- Ahn... Pode pedir para o senador aguardar um segundo? Preciso
limpar meus pés.
__
95
* Referência ao filme O Feitiço do tempo, que se fosse traduzido literalmente
se chamaria O dia da Marmota. (N.T.)
John Rogers tinha razão. Eu sabia por que o senador Reid estava
me ligando, e o senador Harkin, meus amigos da CAMR (Coalizão para o
Avanço das Pesquisas Médicas) e do PAN. A Lei do Aumento das
Pesquisas com Células-Tronco, também conhecida como H.R. 810, um
projeto de lei bi-partidário apresentado ao Congresso em fevereiro de 2005
pelos deputados Mike Castle (republicano de Delaware) e Diana Degette
(democrata do Colorado), aprovado por 238 a 194 votos em maio de 2006.
O Senado provavelmente votaria sua versão do projeto nos próximos dias.
Enquanto ainda precisava falar pessoalmente com o senador Reid, os outros
telefonemas eram para pedir que eu fizesse propaganda na mídia apoiando
o projeto, e eu esperava que ele fizesse o mesmo. Eu não tinha nenhum
problema com o H.R. 810; era uma lei excelente, exatamente o que
precisávamos. No entanto, a grande questão era que o projeto passaria
facilmente, mas precisaríamos ganhar com uma margem de dois terços. E,
mesmo com um encorajador número de votos de republicanos, não
conseguiríamos cruzar aquela linha. Com isso, tão certo como uma garota
de Vineyard cagaria em seu carro novo e limpo, o presidente vetaria a lei.
Eu estava tomado pela enfadonha sensação dejá vu. Foi em
Vineyard, em 2001, que discuti uma política emergêncial para as células-
tronco com George Stephanopoulos. Agora estava no mesmo lugar, cinco
anos depois, falando outra vez de células-tronco com um senador dos
Estados Unidos. Quando o presidente revelou suas diretrizes em 2001, eu
havia saído algum tempo de Martha's Vineyard para uns dias de trabalho
em Los Angeles, da mesma forma que aconteceria agora em 2006, no dia
em que a lei seria aprovada e o presidente nos decepcionaria novamente.
Eu não estava procurando novas responsabilidades para preencher
96
meu tempo. Apesar de não gerenciar as operações do dia a dia, estava
totalmente envolvido no trabalho mais amplo da Fundação Michael J. Fox,
que naquele momento se tornara a segunda maior financiadora de pesquisas
da DP do mundo, atrás apenas do governo federal. Éramos implacáveis em
procurar possíveis novos avanços e soluções, incluindo pesquisas que
envolviam células-tronco, mas não excluindo as demais.
Queria enterrar minha cabeça na areia nas próximas seis semanas
do verão, porém, antes precisava lavar a areia dos pés e atender à ligação
de um senador.
- Michael - começou o senador Reid -, não nos conhecemos muito
bem, mas precisamos de sua ajuda nessa questão.
Lisonjeado que ele pensasse assim de mim, ainda estava em dúvida.
O senador então delineou a situação com o H.R. 810, qual era a expectativa
de votos e os quase 100% de chance de o presidente vetar.
- Precisamos que você apareça - ele continuou. - As pessoas espe-
ram ouvir sua opinião. Se pudesse fazer uma coletiva de imprensa e al-
gumas entrevistas, uns programas de TV esse tipo de coisa, seria muito
bom para nós.
Pela segunda vez, em dez minutos, estremeci.
- Bem, pense a respeito. Só quero dizer que você estaria nos
fazendo um enorme favor.
Ah, ele usou a palavra com F. Para um político, favores são como
leite materno. Agradeci-lhe e disse que iria considerar o assunto e que
ligaria de volta em breve.
Continuo achando que, quando tratada como uma questão isolada, a
maioria dos norte-americanos seria a favor de reformar a política dessa
administração em relação às células-tronco. Baseio-me parcialmente nas
recepções calorosas - ou pelo menos abertas - ao diálogo que em geral re-
cebo quando advogo em favor da questão. Mas a experiência me ensinou
97
que a Presidência dos Estados Unidos é mesmo, como falado sempre, a
cadeira de maior poder do mundo. E, se George W Bush estava determi-
nado a impedir o H.R. 810, comecei a aceitar que não havia muito o que
fazer a respeito. O presidente tinha claramente fechado a questão sobre esse
assunto, e o público, mesmo concordando comigo, não tinha como
demandar uma mudança de política. Minha participação no debate do
assunto atrairia atenção, mas não influenciaria muito no final. Parecia-me
que o máximo que poderíamos fazer era esperar que passassem logo os
anos que faltavam para o fim do segundo mandato dele e torcer para uma
liderança mais esclarecida ganhar. Aquele 2006 era um ano de eleições
parlamentares, e eu não havia pensado nisso... ainda.
Tentei entrar em contato com o senador Reid algumas vezes, mas
nos desencontramos. Mal sabia eu que, como resultado das eleições par-
lamentares, a próxima vez que viesse a falar com o então líder da minoria
do Senado, o senador Reid, ele já seria o líder da maioria.
PRAIA DE MANHATTAN, CALIFÓRNIA
19 DE JULHO DE 2006
Se a perspectiva de passar parte do verão lutando contra a
administração Bush provocou uma reação de "acho que já fiz isso antes",
minha volta a outra arena pareceu exótica e finita de forma bem atraente.
Desde minha aposentadoria de Spin City, eu havia feito alguns pequenos
papéis, incluindo uma participação especial no meu próprio programa,
agora de Charlie Sheen. Então, em 2004, Bill Lawrence, cocriador de Spin.
City e um dos produtores comigo (e também com Gary Goldberg, pediu-me
para atuar em um arco de dois episódios em sua nova série cômica para a
NBC, a surrealmente engraçada Scrubs, e eu topei. Fazendo o papel de um
brilhante cirurgião que lutava todos os dias com seu severo transtorno
98
obsessivo-compulsivo, pude simular sintomas para o personagem que
mascaravam os meus. A experiência não foi nem um pouco fácil, e, apesar
de esse trabalho em Scrubs me lembrar de tudo que eu amava em relação a
ser ator, também me lembrou do porquê me afastei. A filmagem foi adiada
em uma ou duas ocasiões, apenas por alguns minutos, por causa de
sintomas que não respondiam à medicação no tempo certo para filmar.
Algumas escolhas que eu fazia ao atuar, emocionais e físicas, eram
prejudicadas por uma teimosa recusa do meu cérebro e do corpo em
colaborar. Não havia mais tantas flechas à minha disposição, mas ainda o
suficiente para acertar o alvo na maioria das vezes; sob as circunstâncias
certas, percebi que conseguia ter uma boa performance.
Mais ou menos um ano depois, quando David Kelley, o produtor de
Justiça sem limites, me ligou para saber se eu estaria interessado em par-
ticipar de um arco de três episódios; li o roteiro e dei sinal verde. Gravei os
primeiros episódios em outubro de 2005 e, após serem exibidos e bem
recebidos, me comprometi a participar de mais dois no verão seguinte. Meu
plano era ficar cerca de uma semana em Los Angeles, em julho de 2006,
para filmar, na mesma época em que o presidente deveria vetar a Lei do
Aumento das Pesquisas com Células-Tronco. Isso criou em mim o clássico
conflito da velha e da nova identidade - a carreira de ator que eu não havia
abandonado por completo e o papel de advogado que eu não havia
abraçado por completo, também.
Ocupado com as filmagens de Justiça sem limites quando a CNN
passou ao vivo a cerimônia do veto, pensei que poderia dar uma olhada
durante a maquiagem, entre uma cena e outra. "Cabelo e Maquiagem" é
algo muito importante e comum a todos os filmes e séries. É o primeiro
lugar ao qual você vai de manhã e a última parada no fim, com algumas
outras passadas no meio. A fofoca rola solta com muito café; reclamações
encontram ouvidos simpáticos a elas; atores que não têm cenas juntos
99
batem papo; e a TV está sempre ligada. Bill Shatner, Candice Bergen e
Julie Bowen, entre outros, sentavam e giravam as cadeiras de barbeiro da
sala, claramente concentrando-se bastante no trabalho de serem arrumados.
Sentei em uma cadeira vazia e perguntei se podia mudar de canal. Como
ninguém disse nada, peguei o controle remoto e coloquei no canal que
retransmitia a ABC. A história continuava depois da primeira parte do
programa e um comercial. A imagem inicial mostrava o presidente, um
homem de meia-idade que era uma ilha no meio de um mar de crianças
pequenas, Gulliver em Lilliput. Uma dúzia ou mais de crianças - bebês
pequenos, outras de uns 3 anos e umas maiorzinhas também - corriam em
volta, agarravam, escalavam e passavam por baixo do presidente. Elas
agarravam as mangas do terno dele, brincavam com sua gravata, e uma ou
duas agitavam-se e choravam no colo dos pais. Esses adoráveis jovens
cidadãos eram os convidados de honra da Casa Branca na cerimônia do
veto. "Bebês flocos de neve" é o nome dado às crianças que nascem de
embriões congelados que os pais doaram para adoção. Todo ano, dezenas
de milhares de embriões sobram de fertilizações in vitro. Lembre-se de que,
apesar de a palavra "embrião" parecer algo bem desenvolvido, estamos
falando de formações de dez dias, com duas, quatro ou oito células. Eles
são criados fora de um útero e os que não são implantados na mulher ficam
armazenados criogenicamente, e eventualmente descartados. Para o casal
ou a pessoa que não pode ter filhos, adotar um embrião dessas sobras é algo
maravilhoso, sem dúvida nenhuma. Mas a lógica sugeic, e as pesquisas
comprovam, que, mesmo que tivéssemos taxas recordes deste tipo de
adoção, elas só cobririam uma pequena fração do número de embriões
produzidos, ainda sobrando milhares de células com potencial para salvar
bilhões de vidas. Crianças felizes ficam muito bem na TV, porém,
apresentar a adoção como resposta ao rotineiro descarte de embriões in
vitro é manipulação. O que eles queriam dizer era: Se você é a favor de
100
pesquisas com células-tronco embrionárias, é contra bebês flocos de neve.
Uma questão que em geral fica esquecida na discussão sobre as
células-tronco embrionárias é o quase consenso em relação ao básico da
coisa. Concordamos com as diretrizes éticas; somos contra fazendas de
embriões, somos contra a clonagem de humanos e somos enfaticamente a
favor dos bebês flocos de neve. Nossa única discordância é o fato de nos
opormos à destruição de embriões congelados que poderiam ser usados em
pesquisas para salvar vidas.
Pesquisas que utilizam células derivadas de fontes menos
controversas, como células-tronco do cordão umbilical ou de adultos,
mostram-se promissoras, mas ainda precisam alcançar a versatilidade das
células-tronco embrionárias. Uma das estratégias mais recentes e excitantes
procura usar células da pele que são alteradas para virar células-tronco
embrionárias (ou, pelo menos, parecerem-se com elas). Se isso tiver
sucesso, essas novas células-tronco poderão ser uma fonte ilimitada de
células, com a habilidade de gerar qualquer tipo de tecido substituto e sem
toda a controvérsia supracitada. O problema é que não sabemos ainda se as
novas estratégias poderão substituir o uso das células-tronco embrionárias,
e, por enquanto, temos de manter todas as nossas opções andando e apoiar
as pesquisas com todos os tipos de células.
Corta para o presidente fazendo seus comentários formais:
- Parto do princípio de que temos de usar a tecnologia em nosso
favor, sem nos tornarmos escravos dela, garantindo que a ciência sirva à
causa da humanidade. Se conseguimos achar os caminhos certos para o
avanço da pesquisa médica ética, também temos de estar dispostos, quando
necessário, a rejeitar os caminhos errados.
No mundo imparcial, essa era a hora de cortar para a cena das ge-
ladeiras de embriões sendo abertas, com aquela névoa saindo delas, e o
conteúdo sendo jogado fora. O presidente conclui:
101
- Por essa razão, tenho de vetar essa lei.
Agora, a cena principal: o presidente segurando a caneta do veto.
Ao derrubar o H.R. 810, a Lei do Aumento das Pesquisas com Células--
Tronco, George Walker Bush exercia o primeiro veto de sua acidentada
administração.
Eu estava sentado no final de um grande retângulo de espelhos, tão
perto da TV, que só conseguia ver fragmentos de reflexos das outras pes-
soas assistindo, mas consegui ouvir bem o que pensavam. Os comentários
finais do presidente induziram uma onda de vaias e assovios. Mesmo sendo
um ator convidado para apenas alguns episódios, fiz novos amigos aqui,
que sabiam o que isso significava para mim. (A pergunta era: será que eu
sabia o que isso significava?) Uma esponja de maquiagem cheia de base
passou voando pela minha cabeça e bateu na tela da TV, sujando a testa do
presidente. Como para defender o presidente, a imagem mudou para les
três mignons Enfants de Neige.
De volta ao âncora:
- Em um depoimento gravado antes do veto presidencial, o ator e
ativista Michael J. Fox falou sobre células-tronco e o provável veto do
presidente Bush à lei:
Acho frustrante que o presidente Bush use seu primeiro veto
para se opor a esta pesquisa. Parece-me uma vergonha. Respeito
aqueles que se opõem a esta pesquisa, mas eles são a minoria, e acho
que fazer a escolha de proteger milhões de células que serão
destruídas de qualquer jeito em vez de proteger milhões de pessoas
ainda vivas deste país é algo difícil de aceitar.
Mesmo considerando pouco eficiente minha luta através da mídia,
ela atingiu a pessoa que precisava acordar e sentir o cheiro do veto - eu
mesmo. A perturbação que senti, os olhos semicerrados, o rosto vermelho e
a boca com um gosto amargo eram sintomas - mas não do Parkinson. Eu
102
estava possesso da vida. Havia algo diferente nesse último revés, quase
uma alegria no tom imparcial e na conduta do presidente. E o desfile de
bebês flocos de neve foi uma clara tentativa de enganar as pessoas, uma
falsa escolha - como se a cura de Tanner Barton e um embrião ser adotado
fossem coisas excludentes, só uma delas possível.
As pessoas querem isto de verdade, consideraram o assunto,
rezaram por ele e pensaram nele, e acho que você deve confiar no
povo norte-americano, nos nossos cientistas, nas nossas instituições e
nos nossos laboratórios, que vão fazer a coisa certa e liderar o
caminho nesta questão.
A Casa Branca é pequena demais para abrigar os cem milhões de
pessoas cujos destinos estão ligados àquela assinatura. Apesar de não haver
convites para todos, elas mereciam um reconhecimento. Para as pessoas
que sofriam de Alzheimer, Parkinson, Huntington, ELA,* Escle-rose
Múltipla ou Diabetes juvenil, a tinta daquele veto representava o sangue da
vida. Para outros, o veto prolongava a incerteza. Em algum lugar do país,
uma mãe solteira vive todos os dias com medo de que ela, a filhinha e a
mãe com um recém-descoberto Alzheimer estejam presas em um ciclo de
predisposição genética que talvez nunca seja quebrado. O salva-vidas de 17
anos que foi surfar em Long Island e quebrou o pescoço não estava lá
testemunhando seu sonho de andar e surfar de novo ser posto em espera
pela falta de visão presidencial. Essas realidades são bem mais duras de
olhar que os bebês flocos de neve, mas são muito mais relevantes.
Precisamos de uma liderança que nos incentive a seguir em frente.
__________
* Esclerose Lateral Amiotropica. (N.T.)
103
George W Bush sempre sustentou que suas decisões são tomadas
com base na fé e guiadas pela preocupação ética. E seu espírito de
moralidade o levou, em 2001, a falar corajosamente da promissora pesquisa
de células-tronco embrionárias e a permitir que seguissem, depois retardou
o processo nos anos seguintes ao restringir o número de linhagens celulares
e então, em 2006, vetou qualquer chance de resgate da pesquisa durante sua
administração. Mas será que alguma vez ele pensou de verdade na questão?
Em vinte anos de fertilização in vitro, ele nunca explicitou publicamente
nenhuma preocupação, mas mesmo assim promoveu a adoção de embriões
excedentes, como se tivesse dado de cara com o problema e achado a solu-
ção no mesmo dia. Não entendo como ele passa de algo tão inconsistente
para o campo moral elevado de onde discursa afirmando que um punhado
de células criadas fora de um útero, menores do que isto (.), descartadas
inutilmente, têm mais valor que sua filha, seu filho, sua esposa, sua mãe,
seu pai, seu irmão, sua irmã, seus primos, seus avós - ou você.
Fomos abençoados com recursos, inteligência, espírito e energia
para superar esse tipo de problema e estamos todos preparados para isto...
desde quando os norte-americanos esperam que os outros resolvam as
coisas por eles?
Tenho certeza de que as pesquisas com células-tronco têm as
respostas para os mistérios da medicina. No início dos anos 1960, ninguém
poderia afirmar que o homem pisaria na superfície da Lua uma década
depois. Como Chris Reeve diria:
- O presidente Kennedy baseou suas expectativas em conhecimento
científico e aonde essa ciência poderia nos levar.
A Nasa conseguiu fazer o que era considerado apenas ficção cientí-
fica poucos anos antes, em parte pela "disposição de não ficai presa ao
lugar-comum". Nossa expectativa de aonde as células-tronco podem nos
levar vem do conhecimento coletivo dos pesquisadores médicos e cientistas
104
mais brilhantes da nação. Com base nesse conhecimento científico, a
esperança é dividida pela maioria dos cidadãos norte-americanos e en-
dossada pelas duas Casas do Congresso. Mas o lugar-comum finalmente
nos alcançou. Ninguém do nosso lado iria gastar dois minutos de tempo na
TV para falar de nossas esperanças e frustrações.
Contudo, se eu conseguisse fazer isto e, por qualquer razão que
fosse, conseguisse um pouco de atenção, então era isto o que eu iria fazer
com todo prazer.
O caminho certo para a campanha
eleitoralNOVA YORK • SETEMBRO / OUTUBRO DE 2006
O quartel-general da campanha ficava no meu escritório no Upper
East Side, mas no térreo. Apesar de estar no mesmo prédio, não podia ser
acessado diretamente dele. Eu precisava me vestir, descer e dar
aproximadamente cem passos para fora da entrada do prédio,
contornando a esquina até a porta na rua lateral. Ela havia sido a porta de
um consultório, mas nunca soube consultório de quê. Aparentemente, os
pacientes não precisavam de tratamentos freqüentes porque, nos sete anos
desde que o doutor fechou as portas, apenas algumas pessoas apareceram
batendo à minha porta, sem saber que ele não estava mais lá. E nunca
pareceram muito surpresas ao me ver, fato que pode ser meio revelador.
Foi Debi Brooks, a talentosa vice-presidente da Goldman Sachs e
cofundadora da Fundação Fox, quem sugeriu John Rogers para a missão
que teríamos nessa campanha. Visionária e estrategista incomparável, com
seu jeito próprio, o foco de Debi nos últimos anos havia sido revolucionar a
105
ligação entre ciência e filantropia. Tendo construído algo extraordinário na
Fundação, ela era compreensivelmente protetora. Nossa organização não
recebe nenhum financiamento federal, por isso não tínhamos os conflitos
que Cris teve de enfrentar na eleição de 2004. Mas ela tomou a precaução
de a Fundação não atuar como intermediária ou facilitadora de nenhuma
campanha de empresas, pois corríamos o risco de perder nossa isenção de
impostos. Mais que isto, para nossos colaboradores, apoiar nosso trabalho
não deveria significar apoiar uma agenda política com a qual eles podiam
não concordar. A Fundação serve para promover e financiar avanços nas
pesquisas sobre Parkinson - esta é sua primeira e única função. A parte
política tinha de ser feita no meu tempo livre, com meu próprio dinheiro e
usando meu nome.
Mandei cartas aos membros da diretoria e aos colaboradores expli-
cando minhas intenções e pedindo que as entendessem e tolerassem. Um
dos nossos colaboradores mais generosos, dono de uma famosa rede de
restaurantes familiares, bem conhecido pelo apoio aos republicanos, dis-
parou ura míssil cheio de desaforos, acusando meus esforços antiliberais
com o máximo de adjetivos baixos possíveis. Quase não cheguei ao seu
sincero e caloroso final, no qual dizia que estava brincando e prometia con-
tinuar nos apoiando, apesar dos milhões de dólares que já havia doado.
Mantendo contatos telefônicos em agosto, John e eu estávamos
contrariados e motivados pelo veto presidencial, e animados em ajudar a ter
uma mudança política após muito tempo. Até agora, meus esforços em
advogar a favor das pesquisas com células-tronco tinham sido relativos e
defensivos por natureza; um candidato ou coalizão entravam em contato
comigo ou eu respondia às perguntas da imprensa em vez de me juntar a
eles com idéias e perguntas próprias. Com o amparo de John e sua equipe,
iríamos mudar o antigo modus operandi pela raiz. Eu seria proativo,
entrando de cabeça no discurso político - indo para o ataque.
106
Entrando em meu escritório de Manhattan no dia 14 de setembro,
John encontrou-me bem orientado em relação ao quadro da eleição par-
lamentar de 2006. As próximas duas horas foram dedicadas a definir o que
pretendíamos fazer nas semanas seguintes. Em linhas gerais, o que
queríamos era mudar o balanço do poder, não de repubLicanos para de-
mocratas, mas de anticélulas-tronco para pró-céluLas-tronco. A maioria
do Congresso já estava do nosso lado, mas precisávamos garantir uma
margem de dois terços, que fosse à prova de veto. Para evitar confundir e,
com isso, diminuir o impacto de nossa mensagem, decidimos por uma
operação de assunto único. A guerra do Iraque, o Katrina, os escândalos do
Congresso, educação, imigração e economia eram assuntos que
deixaríamos para os outros. Evitaríamos a "política usual" e, em vez de
dividir os eleitores com "várias questões", pretendíamos unir as pessoas em
relação à promissora pesquisa de células-tronco.
E como poderíamos ajudar a fazer essa mudança? Acharíamos lu-
gares onde um candidato anticélulas-tronco concorresse contra um pró-
células-tronco. E não importava o partido deles; bastava que discordassem
do assunto. No entanto, nosso levantamento não mostrou nenhum
republicano pró-células-tronco concorrendo com um democrata anticélulas-
tronco. Eu havia apoiado, nas primárias de 2004, o republicano Arlen
Specter, quando sua postura pró foi atacada, e continuava disposto a apoiar
qualquer um, a menos que ele ou ela também propusesse a invasão do
Canadá ou outro assunto indefensável como este.
Concordamos em nos envolver apenas onde a corrida eleitoral esti-
vesse apertada, onde nos quisessem e onde pudéssemos fazer diferença de
forma positiva.
Nessa eleição, todos os cargos estavam concorrendo, menos o de
presidente. Prefeitos, governadores, vereadores, deputados estaduais e
federais e senadores. Após estudarmos tudo, finalmente decidimos qual
107
seriam nossos alvos. Comprometemo-nos com algumas disputas funda-
mentais para o Congresso, e pelo menos uma, apertada (e simbólica), para
governador nos interessou, mas intuitivamente gravitamos para a eleição do
Senado. É verdade que esta eleição tem visibilidade maior, porém a
experiência mostra que, em geral, os democratas não se dão bem nesta
disputa, apesar de o time de candidatos impressionar até mesmo os
republicanos. Claire McCaskill do Missouri, Ben Cardin de Maryland e Jim
Webb da Virgínia eram pessoas talentosas e realizadas de diferentes
profissões, legítimos apoiadores da pesquisa com células-tronco e em dia
com as críticas à atual política governamental.
Nessas disputas para o Senado, uma em particular nos empolgava:
Claire McCaskill desafiando Jim Talent pela cadeira do Missouri. As célu-
las-tronco tinham se tornado um assunto polêmico no Missouri, porque o
Estado conta com uma divisão bem igualitária de conservadores religiosos
e urbanistas progressistas. E lá também seria votado um projeto para as
células-tronco similar à Proposição 71, aprovada na Califórnia em 2004.
Mas a do Missouri era mais controversa, pois liberava a transferência
nuclear de células somáticas (clonagem terapêutica).
A corrida pelo governo do Wisconsin também apresentava ótima
cha-ce de fazermos uma diferença bem tangível. Eu havia me encontrado
com Jim Doyle tanto em Nova York quanto em Wisconsin.
Tremendamente orgulhoso de ser o estado líder no desenvolvimento de
células-tronco, o governador Doyle elogiava, de modo justificável, suas
universidades, seus laboratórios, suas instituições e cientistas pioneiros
como James Thomson, creditado como o pai da pesquisa com células-
tronco nos Estados Unidos. O oponente do governador Doyle, Mark Green,
queria nada menos que o banimento completo da ciência. Ao Lado dele, em
uma manhã de novembro, em um comício em Milwaukee, o governador
aLertou os eleitores:
108
- Se vocês elegerem meu oponente, daqui a quatro anos estaremos
dizendo "O que fizemos?" e sem muito o que responder à pergunta "O que
faremos agora?". A questão estará resolvida, o navio já terá partido e não
haverá mais dessas pesquisas científicas fundamentais em Wisconsin.
John rascunhou uma lista de Estados e a passou para mim do outro
lado da mesa, como um advogado escrevendo sugestões para o acordo: NJ,
OH, MO, VA, MD, MI, WI, RJ, MN e MT. Aqueles cujos critérios eram
iguais aos nossos rapidamente agradeciam nossa ajuda. Por exemplo,
Richard Martin, chefe de campanha de Claire McCaskill no Missouri, ligou
logo para expressar seu entusiasmo, vendo nosso envoLvimento como algo
que combinaria perfeitamente como que precisavam. Eles estavam "cabeça
a cabeça” com o senador Talent, e a pesquisa com células-tronco emergia
como um dos grandes temas da disputa. Como essa era uma das maiores
disputas do país, estávamos muito ansiosos para ajudar.
McCaskill nos deus nossa primeira chance de testarmos na prática o
que eu poderia ou não fazer. Nada de entrevistas coletivas, e pela razão
mais simples: minhas imprevisíveis janelas de discurso articulado e co-
ordenação motora. Nada de debates também. Anúncios na TV podiam
funcionar (não tínhamos idéia) e eventos com tempo moderado de discurso
dariam certo, igualmente. Concordamos ainda com apoio via. press r-lease
quando não desse para aparecer na base eleitoral de um candidato.
O dia 5 de outubro de 2006 marcou nossos primeiros passos em
uma campanha, e prometemos manter sempre o alto nível. Olhando para
trás, manter o nível evoca uma imagem de Wile E. Coyote (que queria
pegar o Papa-Léguas) correndo por curvas fechadas no alto da montanha e,
ao fazer uma delas rápido demais, encontra-se improvavelmente suspenso
em pleno ar, com o precipício abaixo, mexendo as pernas freneticamente,
até que, conformado com seu destino, para de mexê-las, acena um tchau e
cai em direção ao deserto lá embaixo. Todas as vezes o vemos caindo e
109
formando um cogumelo de poeira ao bater no chão, mas ele sempre
sobrevive. Eu tinha uma aventura parecida me esperando.
Cheguei em St. Louis com antecedência. A corrida já havia
começado e não dava mais para voltar. As apostas eram apenas de vitória,
sem outra opção, nas próximas semanas. E, naquela noite, com certeza, o
St. Louis Cardinals venceria o San Diego pela segunda vez seguida, mas
eram necessárias quatro vitórias para eliminar os padres e chegar à grande
final. No comitê da McCaskill, a paixão pelas chances de sua candidata
eram tão altas quanto pelos Red Birds.
Da mesma forma que em Columbus, o calor fora de época
ameaçava me derrubar. Comecei a dar entrevistas no aeroporto mesmo,
com minha camisa molhada de suor e colando no corpo - primeiro o
repórter de um jornal local, depois um programa de notícias e então outro
jornal. Apesar de cansado, irritado e trêmulo, o tom foi cordial nas três
entrevistas, e os jornalistas eram preparados e informados, o que refletia a
importância das células-tronco na política do Missouri. Terminado "meu
batismo" com a imprensa local, sequei-me e coloquei uma camisa limpa
que minha assistente, Jackie "Radar" Hamada, inteligentemente trouxera
para qualquer eventualidade. De lá fomos para um restaurante, para um
evento cuja finalidade era arrecadar fundos para a campanha de McCaskill.
Passei a ter uma nova percepção do termo "política de bastidores" à
medida que meu meteórico circuito político, começando por St. Louis,
requereu esperas e reuniões em vários "bastidores" pelo país. Foi nesse
"bastidor" em St. Louis, uma enorme adega do restaurante, que me
encontrei com a candidata McCaskill e seu marido, Joe. Ex-deputada
estadual, promotora pública de Jackson County e auditora do Estado, Claire
transparecia .aquela grande confiança e inteligência que esses cargos
exigem, balanceadas 11 mi uma afabilidade e humor necessários para
sobreviver na política. E ela também era versada e falava fluentemente a
110
língua das "células-tronco".
Acompanhei Claire a uma sala maior, onde encontramos e cumpri-
mentamos apoiadores, e então ela me levou a outra sala maior ainda para o
evento propriamente dito. Após uma curta mas graciosa
apresentação,Claire me chamou ao palco. Sentia-me confortável e
engajado, apesar de as câmeras capturarem meus sintomas.
Sabe o que acontece comigo atualmente? Não é sempre que percebo
que estou tremendo; preciso que alguém me fale (então, se eu estiver
derramando café no seu terno, me diga). Claire explicou quão promissora
era a pesquisa com células-tronco e seu comprometimento em lutar por ela,
independente de isto ter repercussões negativas no âmbito político. Dava
para ver que tínhamos aliados verdadeiros por aí. Esse foi meu primeiro
evento e eu não tinha um discurso pronto ou mensagens já desenvolvidas.
Mas giravam em minha mente dois axiomas políticos já testados: "O que
acontece no Missouri acontece no país" e Toda política é local", este último
do evangelho segundo Tip 0’Nell Arriscando-me a cometer um sacrilégio,
peguei e aperfeiçoei a máxima de Tip:
Especificamente nesse caso, nessa eleição, nesse Estado e
nessa questão, a política não é local. O que se faz aqui no Missouri
tem impacto no país inteiro, em mim, na minha mulher e nos meus
quatro filhos, e em todos os norte-americanos que têm ou amam
alguém que tem uma doença ou condição incurável. É isso que me
traz ao Missouri. Parece-me certo dizer que, no dia da eleição, se
você se preocupa com o futuro, mostre a mim, mostre ao país,
mostre ao mundo.
Meu primeiro discurso político terminou comigo olhando para
Claire à espera de um aceno de aprovação, mas, em vez disso, fui premiado
com um grande abraço de urso.
-John disse que talvez você faça um comercial para nós.
111
- É claro - respondi.
Indo para a saída, virei-me e acenei para a platéia. Depois, saí pela
porta em direção à luz que se apagava do final de tarde em St. Louis. O
calor não estava diminuindo, infelizmente, e eu não tinha mais camisas.
Ad hom-i-nem* (hom-nem')Adj. Apelar para a consideração pessoal em vez da lógica ou da
razão
Alguns dias antes dos comerciais de campanha que fiz para Claire
Mc-Caskill, os de Ben Cardin e Jim Doyle foram ao ar, cada um deles
tendo sido enviado a John Rogers para que me repassasse e eu pudesse
revisá-los e aprová-los. Ao vê-los na minha caixa de e-mails, hesitei antes
de baixá-los e liguei para John no seu escritório em Milwaukee, no
Wisconsin.
________
* Segundo o dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, diferentemente da explicação
oferecida pelo autor, “ad hominem”, refere-se a argumentos em que se usa as próprias palavras
do adversário para contestá-lo (N.T.)
- O que você achou? - perguntei. - Assistiu a todos eles?
- Ficaram ótimos, cara! - ele respondeu. - Todo mundo adorou.
Richard Martin, da campanha de McCaskill, disse que é o comercial mais
extraordinário que já viu. E a aceitação das pesquisas de opinião está
fervendo.
Extraordinário? Os comerciais eram profissionais e bem filmados,
com roteiros compactos e fatos concretos, mas pessoalmente não achei que
tivessem ficado extraordinários. Se o nome e as roupas dos envolvidos
fossem mudados e algumas rugas retiradas, esses comerciais seriam, em
112
essência, idênticos aos que gravei em 2004 para Specter e Kerry. O que era
diferente agora? A mensagem e o pedido de ajuda talvez fossem mais
urgentes dois anos depois. Abri rapidamente os arquivos para ver como
havia ficado a edição final. Será que tinham posto efeitos especiais?
Após assisti-los algumas vezes, percebi que eu era o efeito especial.
Steven Spielberg, que conhece bem efeitos especiais e também a mim, de-
clarou mais tarde à revista Time que "os anúncios equacionaram a guerra
dos conservadores contra a ciência, com sua terrível conseqüência hu-
mana". Em outras palavras, não era só o que eu estava falando, mas o que
meu corpo, mãos, pernas, pés e olhos faziam enquanto eu falava.
Acostumei-me tanto com a doença, que consigo direcionar a maior parte do
meu foco, fora a Fundação, a promoção das pesquisas e a manutenção
diária do meu corpo e mente, em viver, e não na doença. Meus tremores e
discinesias, fluidos e sempre mudando, estão tão integrados no meu dia a
dia que seria impossível pegar apenas um momento e descrevê-lo como
sendo meu estado ou o estado de todos os pacientes de Parkinson. Contudo,
quando se filma um anúncio de trinta segundos, é isto o que você consegue:
trinta segundos de doença. Apenas capturando-se cada segundo de cada
hora durante trinta dias seria possível ter um quadro mais preciso. Algumas
pessoas me perguntam como me sinto, e costumo responder que me sinto
bem, mas que as coisas mudam de um segundo para outro, como o clima na
Nova Inglaterra. E outras, como se capturando um momento em uma jarra,
por assim dizer, a examinam com intensidade, colocam-na perto da luz, dão
umas boas chacoalhadas nela, mas, definitivamente, não fazem nenhum
furinho na tampa para que o ar possa entrar.
HOTEL WALDORF ASTORIA, NOVA YORK
18 DE OUTUBRO DE 2006
113
Uma grande reclamação das campanhas é a dificuldade em
arrecadar dinheiro, mas, no dia em que fizemos os comerciais de
McCaskill, Cardin e Doyle, vi como é fácil gastar. Para ser justo, conseguir
tempo de estúdio em Manhattan é raro, e o preço é cobrado de acordo com
isto; todavia, para o que queríamos, alugar uma das suítes mais caras do
Waldorf Astoria não pode ser descrito como algo mais econômico. Acresça
a isto o custo da equipe técnica, três diretores, o valor do tempo na TV -
não havia como sair barato. No entanto, fazendo uma retrospectiva, dá para
dizer que eles receberam muito em troca do que gastaram.
Vinda de Vancouver para me visitar em Nova York, minha mãe me
acompanhou ao Waldorf. Ela tem 70 e poucos anos e eu 40 e poucos, mas
naquele dia despertou seu alarme materno, um eco de um jogo de hóquei
no Canadá 35 anos atrás, quando ela, então com 40 e poucos anos, assistiu
ao filho de 10 anos ser ajudado a sair do gelo meio tonto e sangrando de
um corte no rosto. Hoje ela estava assistindo ao mesmo menino, que virou
um homem, esforçando-se para ficar parado sentado na cadeira.
- Os pais deveriam conseguir resolver os problemas dos filhos - ela
me disse. - Sei que você não é mais criança, mas é meu filhinho e não
posso ajudá-lo. Quando você deu a idéia de sentar sobre as mãos, eu sabia
que não ia funcionar.
E de fato não havia nada que ela pudesse fazer.
Se você já tentou jogar "tiro ao alvo" estando bêbado, já
experimentou uma frustração semelhante á tentativa do]e controlar
sintomas avançados de Parkinson. Mesmo com uma estratégia bem
planejada e ritmo perfeito, a chance é de 50% de acerto. Ou pior: dá para
acertar e errar ao mesmo tempo.
Viramos à esquerda na Park Avenue e logo depois entramos à
direita no estacionamento do Waldorf. Saí do carro e no instante em que
pisei na calçada meus remédios começaram a fazer efeito. Sorri. Acertei em
114
cheio - parecia um relógio suíço. Tinha acertado meu "alvo"; os tremores e
a rigidez estariam neutralizados por uma ou duas horas, mas um jorro de
discinesia logo atingiria meu cérebro e corpo. Uma explicação médica sim-
ples, como "overdose de remédio", na verdade pode ser uma designação
incorreta. Uma quantidade indeterminada de dopamina está sempre pre-
sente no sangue e no cérebro, mesmo nos pacientes de Parkinson. Tomar a
dose prescrita no tempo certo não é garantia contra os efeitos colaterais.
Passo o restante da filmagem sob o controle dos efeitos colaterais da levo-
dopa: a dança e os espasmos da discinesia.
Antes de ter Parkinson, eu achava que os tremores eram o traço
característico essencial da doença, quando, na verdade, é a escassez de
movimento causada pela diminuição da produção do neurotransmissor
dopamina pelo cérebro. A bradicinesia, com o rápido embaralhamento do
andar, o descontrole da força, a falta de qualquer balanço nos braços e a
limitação total de movimentos, é a manifestação desta escassez. Podemos
comparar a dopamina ao óleo de motor - imprescindível para um
funcionamento perfeito. A diminuição dele faz com que o motor comece a
falhar e depois pare. Como eu que, sem a dopamina, me torno um cara sem
movimento.
Cada paciente exibe a própria e única combinação de sintomas. Mas
a maioria tem uma coisa em comum. Com o tempo, a levodopa perde a
eficácia; os pacientes aumentam a dosagem até que uma discinesia in-
controlável os força a aceitar que ela não é mais útil. Nos dezoito anos
desde que fui diagnosticado, mantive-me tão responsável em relação à
droga que nunca precisei aumentar a dosagem. Mesmo assim, a discinesia
tornou-se constante.
O dilema tem dois pontos de vista diferentes: o farmacêutico e o
filosófico. No ponto em que estamos, o filosófico pode chegar a uma
resposta melhor. Aqui vai o problema: escolha seu veneno ou, mais pre-
115
cisamente, escolha sua cinesia: bradicinesia ou discinesia. Você poder ser
uma dessas duas pessoas, ambas sentadas em uma cadeira no meio de uma
sala. A distância até a porta é de uns quinze passos. Para um paciente de
Parkinson não medicado, que tem de lidar com a bradicinesia, movendo-se
para a frente em linha reta, desde que consiga levantar da cadeira, ele
deverá dar uns cinqüenta passos meio mancos, indecisos e arrastados, e
levará certo tempo para chegar à saída. Uma vez lá, provavelmente não
conseguirá fazer o quase impossível movimento do pulso para girar a
maçaneta. O outro, um paciente com discinesia profunda, também deverá
dar uns cinqüenta passos, mas nem uma arma de choque o faria andar em
linha reta. Seus passos são rápidos, selvagens e circulares, com um
dramático balanço de um lado para o outro, corrigido com um ocasional
passo para trás (pense no "Ministério das Caminhadas Bobas" do Monty
Pyndion. Essa jornada pode levar o paciente discinético aos dois cantos da
sala e a encostar em todas as paredes antes de chegar à porta; ele baterá
algumas vezes na maçaneta até conseguir segurá-la e abrir a porta. Sem a
opção "nenhuma das anteriores", qual dos dois dilemas você preferiria
enfrentar?
Nós, pacientes de Parkinson, a não ser por aqueles momentos cada
vez mais ilusórios de "ligado", quando os remédios funcionam e os sin-
tomas ficam controlados, podemos ser as duas pessoas descritas, alterando
nossa realidade várias vezes ao dia. Mas, se tiver de escolher, prefiro a
discinesia. Alguns passos falsos infelizes, batendo e cortando minhas
pernas nas cadeiras, a cabeça rolando como uma bola em um barco - é um
preço baixo a pagar por conseguir chegar à porta e abri-la, com a esperança
renovada pelo que pode haver do outro Lado dela. Tendo dado uma tarefa à
minha mente, pouco me importa que tipo de dança tenho
De fazer primeiro.Fico feliz de apenas poder andar, falar;sentar e
ficar em pé, apesar de fazê-lo com meu outro corpo britânico que tem disci-
116
nesia. Em geral, como fiz naquele dia no Waldorf, esqueço-me do fardo
que carrego e mostro-o ao mundo. Também aprendi a ter recursos e a fazer
ajustes.
Numa situação como a da gravação de um comercial, onde só pre-
ciso me sentar e ler as palavras de um teleprompter, uma boa cadeira é
fundamental. Cadeiras de escritório giratórias e com rodinhas são um
perigo - seria necessária uma câmera móvel para conseguir me filmar
enquanto giro pela sala. Meus tremores e balanços fariam uma daquelas
cadeiras de diretor, de madeira e lona, ranger loucamente. Uma cadeira sem
braços não conseguiria me conter - eventualmente eu espirraria para um
dos lados, saindo do enquadramento e caindo no chão. Um banquinho nem
pode entrar na conta, e aqueles bancos giratórios de bar têm grande
potencial para o suicídio. Preciso de uma boa cadeira de madeira sólida,
daquelas de sala de jantar, como tive no Waldorf, com pernas firmes e
braços com boa pegada. O assento, do que é feito e que forma tem, não
interessa. Nos espasmos da discinesia, a energia do meu corpo não fica
contida na cadeira; ela vai para minhas cinco extremidades -pés, mãos e
cabeça. As mãos não descansam nos braços da cadeira, só são reguladas
por eles, enquanto os pés ficam enroscados na parte de trás das pernas da
cadeira, ancorando minhas canelas e tornozelos que, se não tivessem ossos,
se enrolariam como as víboras de um caduceu. Com esses controles,
praticamente não consigo ficar sentado. Mexo-me como um marinheiro no
barco, isto se não me mexer para compensar o balanço da minha cabeça. Só
há uma saída para isto tudo. Sentar sobre as mãos controla o excesso de
movimentos da cabeça (e é isto o que ofereço ao câmera e, sem que eu
saiba, faz com que minha mãe saía da sala).
Mais uma vez, esses ajustes são inconscientes. Não penso muito em
como os outros vêem os sintomas; já tenho muito com. que me preocupar.
Todavia, sempre que tenho tempo, explico o que acontece comigo às
117
crianças, que são curiosas e muito sinceras. Conversei uma vez com uma
garotinha da pré-escola de Esmé que interrompeu nosso papo no meio de
uma frase e exclamou com honesta indignação:
- Dá pra parar de ficar se mexendo?
Depois que consegui parar de rir, prometi a ela que tentaria.
Nossa Fundação patrocinou um torneio de pôquer idealizado por
um membro de nossa diretoria, David Einhorn, que ficou em 17a lugar no
Campeonato Mundial de Pôquer em Las Vegas (e doou o prêmio de 660
mil dólares para a Fundação). Nosso pequeno torneio em Nova York teve
240 jogadores. Fui melhor do que esperava - terminei em 30a lugar -, e
credito meu inesperado sucesso à dificuldade dos meus oponentes "lerem"
meus movimentos. Meu corpo inteiro era um grande blefe. Eu piscava ou
arregalava os olhos, ondulava e acenava a cabeça, tendo um par de ases ou
não tendo nada.
Algumas noites depois, porém, minha discinesia inspirou uma con-
fusão não tão boa. Tracy e eu estávamos comendo sushi no centro. Ba-
lançando e tremendo num nível que comer era impossível e bater na mesa
era inevitável, disse a Tracy que esperaria lá fora.
- Termine sua comida e peça para embrulhar a minha para viagem -
sugeri.
Dramaticamente discinético, andava para a frente e para trás sob
uma garoa há uns vinte metros à esquerda da porta do restaurante. Andando
com dificuldade, um braço cruzando o peito para segurar o outro e a cabeça
acenando como um rabino em oração, parava a cada trinta segundos mais
ou menos e me encostava em um muro de tijolos grafitado. Os poucos que
passavam me olhavam desconfortavelmente e apertavam o passo. Eu
também não estava nem um pouco confortável, nem ficava olhando muito,
mas, mesmo depois que eles passavam, eu me sentia observado. Um
desajeitado giro de cabeça confirmou minha impressão quando vi um rapaz
118
encostado em uma porta do outro lado da rua, olhando para mim
ostensivamente e nem um pouco preocupado. Olhei o relógio pela nona ou
décima vez e pensei nas minhas opções.
Juntar-me a Tracy estava fora de questão; meus sintomas estavam
muito fortes e o restaurante era pequeno demais para que eu passasse entre
as mesas organizadas de acordo com o feng shui e dissesse a Tracy que
estava indo para casa. Raramente levo comigo um celular, por isso não
dava para ligar para ela, até porque, com a discinesia, provavelmente eu
ligaria para Kuala Lumpur. O cara da porta, sentindo que eu ia embora,
resolveu agir. Ele atravessou a rua, parou bem perto de mim e continuou a
me encarar. Encarei-o de volta, mas com a cabeça chacoalhando.
- Está esperando alguém? - ele perguntou com a voz que parecia
um sussurro e os olhos meio perdidos nas órbitas. - Com quem você se
encontra aqui normalmente? - continuou. Ele cerrou os olhos, mordeu o
lábio e foi direto aos negócios. - Você quer comprar? - perguntou.
Todos os episódios de The wire que já assisti passaram pela minha
cabeça e então entendi. Por causa dos meus movimentos erráticos e olhar
para todos os lados, ele imaginou que eu era um viciado querendo comprar
drogas. Momentaneamente espantado e sem resposta, por fim consegui dar
uma testada pelos garotos e aprovada pelas mães:
- Vai se foder!
- Ei! - ele respondeu, levantando as mãos em um gesto pedindo
calma. - Tá tudo bem, não sou policial.
Eu já tinha uma resposta pronta:
- Ah... tá bom... então vai se foder!
Depois de vê-lo indo embora, finalmente voltei ao restaurante e en-
contrei Tracy pagando a conta. Disse a ela que, se por acaso quisesse um
aperitivo de heroína, eu sabia onde conseguir.
119
CHICAGO • ILLINOIS -24 DE OUTUBRO DE 2006
Escolher investir tempo, energia e identificar-se com o processo
político é uma expressão de esperança. Se algo em nossa experiência
pessoal nos informou ou inspirou a acreditar que uma direção ou resultado
é melhor que outro, não só por questões individuais, mas para a sociedade
como um todo, colocamos aquela crença em ação através de ativismo,
defesa, apoio financeiro a um candidato, concorrendo a um mandato ou
simplesmente votando. Por esta razão a experiência política norte-
americana pode ser vista como um otimismo coletivo. A unanimidade é
rara, naturalmente, pois pessoas racionais (e outras nem tanto) são feitas
para discordar umas das outras. Acredite em mim, as coisas ficam meio
intensas quando se sacam as espadas e tudo que você tem na mão é uma
enxada.
A primeira vez que senti o peso das espadas foi quando Jackie e eu
tínhamos acabado de chegar em Chicago no voo da manhã, vindo de Nova
York. Pretendíamos ir direto para um comício e fazer uma aparição para
ajudar à major Tammy Duckworth, uma democrata que esperava ganhar a
cadeira de Henry Hyde no sempre conservador sexto distrito congressional
do subúrbio de Chicago. O plano era dormir de terça para quarta lá, ir a um
evento que não tinha nada a ver com política, um almoço de um doador em
prol da Fundação Michael J. Fox, e retornar a Nova York no final da tarde.
Como combinado, encontramo-nos com John Rogers, Kelly Boyle e Alan
McLeod. Durante nossos cumprimentos e apertos de mão, os três pareciam
malabaristas multimídia respondendo a uma ca-cofonia de apitos, sons e
tremores vindos de seus celulares, BlackBerrys e outros Smartphones.
Agora que estávamos fora do avião, Jackie tinha ligado o celular dela
também e, na mesma hora, ele começou a clamar por atenção. Pela cara de
todos, o tom urgente de seus sussurros e perguntas, e o fluxo furioso de
envio de mensagens de texto, era claro que alguma merda grande tinha
120
acontecido.
Encontramo-nos com uma pessoa da campanha de Duckworth, que
nos levou até a uma minivan alugada. Caminhando rapidamente pelo
estacionamento, John inteirou-me da situação. Os conservadores tinham
feito uma resposta aos nossos comerciais, em especial ao da campanha de
McCaskill. Tínhamos antecipado que isso aconteceria, mas não ima-
ginávamos aue o ataque seria liderado pelo pitbull Rush Limbaugh. A
maior parte de seus programas dos últimos dias tinha sido dedicada não
tanto a ridicularizar os méritos do comercial ou falar das complexidades
éticas das pesquisas com células-tronco, mas focar em mim, falando as
piores coisas possíveis - e, pelo visto, sem parar. Até aquele momento, eu
não tinha a menor idéia disso - prefiro as rádios que tocam rock clássico e a
NPR.* Ele estava falando disso desde o primeiro comercial de McCaskill
que interrompera o primeiro jogo da final de beisebol, quando com certeza
estava se divertindo com o time de sua cidade, o Cardinals, vencendo o
Detroit Tigers. O argumento principal das reclamações dele, John e sua
equipe me contaram, era de que eu era um hipócrita, exagerando, atuando e
criando sintomas para provocar simpatia e pena no coração e na mente dos
eleitores.
- Mas em que diabo de situação você me colocou, John? -
resmunguei.
- Vamos esperar para ver aonde a coisa vai - ele respondeu.
Jogamos os restos de café morno do Starbucks fora quando chega-
mos ao estacionamento do hotel. Tínhamos uma manhã cheia pela frente.
Eu não conseguia pensar em ninguém mais apropriada que a major
Duckworth para passar aquela manhã, tendo em vista ter descoberto que
estava no meio de uma grande batalha. E, afinal, Tammy estava habituada a
grandes batalhas. Aqui estava ela, novata na política, uma democrata com
culhão de competir pela cadeira de Henxy Hyde no mais conservador
121
subúrbio de Chicago.
_____
*Rádio Pública Nacional.(N.T.)
Menos de dois anos antes, a major Duckworth, de 38 anos, piloto da
Guarda Nacional, perdeu as duas pernas no Iraque, quando o helicóptero
Black Hawk que ela copilotava foi atingido por uma granada e caiu. Ela
acordou dez dias depois no Centro Médico do Exército Walter Reed, em
Washington, DC, e em agosto de 2005 decidiu concorrer ao Congiesso.
Com poucas chances em um distrito tradicionalmente republicano, aqui
estava ela, há menos de duas semanas da eleição, inesperadamente numa
disputa equilibrada com o oponente republicano Peter Roskam.
Antes de me encontrar com Tammy e a caminho da campanha, dei
as entrevistas de sempre para a imprensa local, uma para um jornal e outra
para a televisão. Minha equipe tinha me mudado do carro para uma sala no
hotel, onde iriam me preparar para as entrevistas. Em circunstâncias
normais, isso envolveria eu me inteirar das últimas novidades das pesquisas
e dos argumentos dos últimos debates pró e contra. Mas agora havia um
novo elemento em discussão. Como responder ao Rush?
- Vamos repassar isso mais uma vez. Ele disse que fiz o quê? -
perguntei.
- Que ou você fingiu os sintomas, ou não tomou os remédios de
propósito para filmar o comercial, pois assim os sintomas ficariam exa-
gerados -John respondeu.
- Espere aí, vamos voltar um pouco - retruquei. - Ele falou algo
sobre células-tronco, sobre os méritos das pesquisas ou sobre alguma
inverdade no que falamos no comercial?
- Disse basicamente apenas que você era uma fraude - Kelly res-
pondeu.
122
Percebi o canto de sua boca levantando de leve quando ela falou.
Ela está mesmo sorrindo?
- Ah - Alan interveio -, ele também disse que você ofendeu os elei-
tores do Missouri pronunciando Missoura em vez de Missouri.
Então sorri, e comecei a rir enquanto respondia:
- Você só pode estar brincando.
Um assistente de Duckworth bateu à porta. A repórter local da NBC
estava pronta para a entrevista em outra sala do hotel.
Em meu papel de defensor das questões relacionadas ao Parkinson,
tenho a responsabilidade principal de educar e informar, promovendo o
entendimento a respeito do que passamos como indivíduos e como
comunidade. Pela primeira vez, pelo menos que me lembre, minha
mensagem estava sendo contestada por alguém com tanta visibilidade e tal-
vez mais voz que eu, e, para piorar, ele estava ativa e entusiasticamente
disseminando a desinformação e promovendo a ignorância.
- Não temos certeza de que ela vai falar disso na entrevista -John
falou enquanto eu punha o terno e ela instintivamente arrumava minha
gravata.
- E se ela falar? - perguntei. Quero dizer, esse negócio era muito ab-
surdo. Decidi que a verdade era a melhor resposta. Eu não tinha ouvido
nem lido o que ele falara exatamente e não estava em posição de responder.
Enquanto ia sendo conduzido para a entrevista, dei uma checada em minha
condição física. Eu estava me sentindo muito bem esta manhã. Os
medicamentos tinham funcionado bem; meus passos estavam calmos, mi-
nhas mãos estavam firmes e, até agora, não tinha tido discinesia. Ótimo. Ou
será que não?
Eu sabia que simplesmente chamar as alegações de Limbaugh de
loucura seria perigoso. Se ele fosse louco, então era, perdoem-me a ex-
pressão, louco como uma raposa. Era a clássica provocação "quando você
123
parou de bater em sua esposa" baseada não numa acusação, mas na
presunção de que algo sinistro tinha acontecido. Suas violentas críticas
tinham armado várias armadilhas para mim, e eu cairia nelas se não fosse
cuidadoso. A primeira estava logo à minha frente.
Como eu disse, estava me sentindo muito bem esta manhã. A meta
é sempre ficar o mais confortáveL possível, especialmente em público. Mas
será que agora eu não poderia ficar bem demais, tranqüilo demais -sem
sintomas demais? Eu não ia entrar em um círculo vicioso de merda, criando
sintomas para provar que não estava criando sintomas.
Acontece que os dois repórteres com quem falei não estavam intei-
rados por completo dos ataques de Rush, então quase não falaram, do
assunto diretamente, apenas de passagem e de forma indireta.
Aquela manhã recebi uma grande injeção de ânimo, quando final-
mente me encontrei com a major Tammy Duckworth, momentos antes do
comício. Seu sorriso acolhedor e sua natureza amável logo me deixaram à
vontade. Rapidamente estávamos trocando anedotas sobre nossas
respectivas experiências como políticos novatos em uma eleição. Ela foi a
primeira a falar da atenção que a direita conservadora estava dando a mim;
tendo ouvido Limbaugh no rádio, ela disse que "não podia acreditar
naquilo", apesar de também ter recebido acusações parecidas. Após
sabermos da saúde um do outro, ela me mostrou as próteses que usava em
cada perna, admitindo com um sorriso que agora era mais alta que eu,
graças às novas próteses.
Eu havia lido o material de campanha com a biografia da major
Duckworth e estava familiarizado com sua história. Assim, encontrar-me
com ela só poderia ser mesmo uma grande fonte de inspiração. Seu exem-
plo - transformar uma circunstância trágica numa oportunidade para servir -
põe em xeque o caráter dos detratores que a acusavam de usar sua
deficiência para despertar simpatia. Tenho pena de quem comete o erro de
124
ter pena de Tammy Duckworth. Ela é genuína. É óbvio que sua força é seu
espírito positivo. Ao olhá-la nos olhos, fica claro que ela acredita no que
está fazendo e que tem certeza de que - um otimismo informado -, se tiver a
oportunidade, vai mudar as coisas de maneira positiva, não só para os
veteranos com deficiências, de quem ela tirou a inspiração para concorrer,
mas para as pessoas da sua região, de seu país e do mundo.
Antes do acidente, ela não era uma pessoa "super otimista", afirma.
- Sou muito mais otimista agora que antes.
Ela conta que o tratamento nos campos de batalha avançou tanto
nos últimos dez anos que:
- Eu não teria sobrevivido se tivesse me ferido na primeira Guerra
do Golfo.
Infelizmente, a habilidade em tratar vítimas nos campos de batalha
não está no mesmo nível da nossa capacidade de cuidar delas quando vol-
tam ao país para se tratar e se reabilitar. Hospitais militares, associações de
veteranos e todo o sistema, já considerado por muitos terrivelmente
impessoal e ineficiente, está agora largado e quase a ponto de quebrar.
Tammy descobriu isso nos dias, nas semanas e nos meses que passou no
hospital sendo tratada dos terríveis ferimentos.
- Quando estava em Walter Reed, comecei a defender outros
pacientes, pois eu era a amputada de maior patente por lá durante bom
tempo
- ela me contou. - Então, sempre que precisavam de alguém para
falar pelos pacientes, eles me mandavam. Comecei conversando sobre a
burocracia existente e sobre como precisávamos nos livrar dela.
Testemunhei no Senado e na Câmara e, durante o processo, fui
transformada num ser politicamente ativo, mesmo sem nunca tê-lo sido
antes. O exército colocou-me nessa posição de ajudar outros pacientes e
então comecei a ligar para o escritório do senador Durbin dizendo: "Olha,
125
temos um problema aqui ou um problema ali. Preciso de ajuda". Foi no
final do verão que o senador Durbin me ligou e disse que, se eu estava tão
chateada com o fato de as coisas não estarem andando, deveria me
candidatar. Em seguida, me sugeriu o distrito de Henry Hyde.
O comício estava sendo realizado no maior salão de festas do hotel,
que já estava lotado e repleto de sons de conversas e risos quando entra-
mos, com estilo. A major seguiu para o palanque em meio aos desejos de
boa sorte de apoiadores. Era difícil entender o que cada um dizia, mas é
suficiente dizer que ouvi bastante o nome "Ruslí", em geral acompanhado
de um palavrão ou dois. A imprensa estava acomodada em um lado
- havia umas doze càmeras de TV e o dobro ou o triplo disto de
fotógrafos. Mantive meu discurso curto, cora o foco em Tammy e nas
pesquisas com células-tronco. E, da mesma forma que nas duas entrevistas
que dera mais cedo, não mencionei Rush Limbaugh de modo específico. E,
na verdade, daquele ponto em diante, não disse mais o nome dele em
nenhum evento público, até o final da campanha eleitoral Eu não podia
deixar de apreciar o rosnado de aprovação quando fiz referência a "um
conservador sem compaixão" que falou contra os nossos esforços. Era uma
boa frase, por isso continuei usando-a nas duas semanas seguintes.
Fui para um hotel no centro naquela tarde; eu tinha um almoço no
dia seguinte com alguns colaboradores da Fundação Fox da região de
Chicago. A parte política da minha viagem estava cumprida. Mas claro que
minha mente continuava totalmente ocupada com a política.
Não há dúvida de que eu estava no limite. Estando quase de todo
aposentado nos últimos anos, fazia algum tempo que não recebia uma
crítica negativa, e acho que nunca recebera uma tão pessoal em toda vida.
Não era discordância, desaprovação ou mesmo desagrado. Isso era nojo e
ódio, o mesmo tipo de dura reprovação que vi receberem as pessoas que
nos últimos anos falaram contra a política do governo, apesar de seus
126
comentários terem sido sobre a guerra e as ações do governo que levaram a
ela. Eu estava sendo difamado pelos caipiras desinformados defensores de
Bush.
Isso era novo para mim, e então percebi que sempre tinha gostado
do fato de as pessoas gostarem de mim. É estranho ver que um
representante da sociedade, com voz ativa e ligação com o poder, tem
trabalhado para gerar uma antipatia a você e está incitando suas bases a
deixá-lo de lado e também a ameaça que você representa. Será que eu ainda
faria os comerciais se tivesse uma idéia da ameaça que eles representariam
para minha reputação?
Com certeza. O que estava em jogo para mim como paciente e de-
fensor da causa era muito mais importante. Minhas opções eram o básico
"bater ou correr", e eu não pretendia correr, mas estava ansioso e um pouco
incerto ainda sobre como responder.
Meu plano imediato era pedir comida e bebida no serviço de quarto
e assistir a um jogo de beisebol. Enquanto esperava a hora do jantar para
dar prosseguimento ao plano, peguei compulsivamente coisas do frigobar,
fazendo um belo rombo em minha conta. Nada de bebidas alcoólicas, claro
- após passar quinze anos sóbrio, seria preciso mais que uma brisa de ar
quente vinda de Rush Limbaugh para me tirar dos trilhos. Mas acabei
pegando outras coisas: dois sacos de amendoins pela bagatela de oito dóla-
res cada, umas balas gelatinosas de limão cobertas com açúcar cristalizado
e alguns quadradinhos salgados com bolinhas de wasabi de um saquinho
todo escrito em japonês, a não ser pela palavra "SALGADINHO".
Houve também alguns telefonemas. A mídia sensacionalista, sen-
tindo o sangue na água, estava rodeando e esperando que alguém os
alimentasse com notícias. John me ligou para bolarmos uma declaração.
Respondi que ainda não tinha certeza.
- Vamos fazer o seguinte, camarada. Falarei em seu nome hoje e
127
direi algo bem genérico, mas pontual. Expressarei choque e grande desa-
pontamento pela ignorância das declarações e reafirmarei seu compromisso
de continuar falando em favor das células-tronco.
Estava bom para mim.
O telefone tocou de novo. Era minha mãe. Ela nem perguntou quem
estava falando; em vez disso, já foi logo perguntando:
- Tá tudo bem com você?
Algumas pessoas perguntam isto de um jeito, com aquela certeza na
voz de que você não está bem, que faz com que a gente examine nossas
extremidades e coloque a mão na testa para ter certeza de que estamos bem
antes de dar a resposta afirmativa.
- Mas que homem mais idiota! Estou tão brava que nem estou ra-
ciocinando direito.
- Está tudo bem, mãe.
- Ele é um ignorante. E não tem idéia do que está falando.
- É por isso que está tudo bem. Nenhuma pessoa séria pode levá-lo
a sério.
Enquanto conversávamos, ficou claro para mim que o que tinha dei-
xado minha mãe mais brava fora o instinto maternal normal de defender o
filho, sua lembrança do dia da gravação, de como havia ficado abalada de
me ver lutando contra a discenesia.
- Eu nem sabia que você ouvia o programa dele.
- E não ouço - ela disse, - Mas outras pessoas ouvem e me telefona-
ram. Então o vi imitando você na TV e fiquei louca de raiva.
U- Viu ele fazendo o quê? - perguntei. Ainda não tinha ouvido falar
dessa parte.
- Ele o estava imitando e tirando sarro de você. Ondulando, chacoa-
lhando e contorcendo-se no palco.
Jesus! Hunter S. Thompson estava certo. Quando as coisas ficam
128
estranhas, o estranho definitivamente vira profissional.
Meu próximo telefonema foi com Tracy e durou tempo suficiente
para colocar minha cabeça no lugar. Sensível, ela não estava tão brava
quanto minha mãe, nem perplexa como eu ainda parecia estar.
- Parabéns! - ela disse. - Você conseguiu a atenção deles.
Tracy, como sempre faz, havia descoberto o ponto central da coisa.
Eu tinha conseguido a atenção não só de Rush Limbaugh e seus seguidores,
mas também de toda a mídia e público em geral que viram as reclamações
dele. A atenção criava a oportunidade de educar. Eu precisava pensar um
pouco mais em como capitalizar melhor essa oportunidade. Enquanto isso,
a declaração de John em meu nome era o primeiro passo na direção certa.
- É uma afirmação vergonhosa. É espantosamente triste que pessoas
que não entendem a Doença de Parkinson se sintam compelidas a fazer
esses comentários. Qualquer um que entenda a doença sabe que é por causa
dos medicamentos que um paciente acaba sofrendo de discinesia.
Na manhã seguinte, eu tinha um tempo livre antes do meu último
compromisso em Chicago - o almoço da Fundação para apoiadores locais e
pesquisadores. As palavras cruzadas do New York Times pareciam uma boa
distração, por isso abri a seção "Artes e Lazer". Procurando o tradicional
jogo de palavras em preto e branco, meus olhos passaram pela coluna de
Alessandra Stanley, a crítica de televisão do Times. Sua crítica ao nosso
comercial tinha o seguinte título: "Fazendo das células-tronco um assunto
pessoal e político", e era racional e criteriosa. Mesmo após ler apenas o
primeiro parágrafo, eu percebia inteiramente as emoções que havíamos
despertado nos dois lados da questão, de Richard Martin e suas pesquisas, e
de Limbaugh e seus seguidores.
As cenas são tão perturbadoras - e apreensivas - quanto as de um
vídeo de reféns no Iraque. Em um blazer azul e uma esnobe camiseta
Oxford, o ator Michael J. Fox pede calmamente aos telespectadores que
129
apoiem as pesquisas cora células-tronco votando em vários candidatos
democratas em Maryland, no Missouri, e em Wisconsin, enquanto seu
corpo ondula para a frente e para trás incontrolavelmente, como um
marinheiro jogado de um lado para o outro por uma grande tempestade.
Em resumo, o sr. Fox mostrando os efeitos da Doença de Parkinson
em si mesmo transformou-se em um dos comerciais políticos mais fortes e
falados dos últimos anos.
Fiquei boquiaberto quando finalmente peguei o vídeo do programa
de Limbaugh antes de ir embora de Chicago. Ele mexia os braços e sacudia
os dedos ao mesmo tempo que balançava o corpo, rotacionando os ombros
e ondulando a cabeça.
[Michael J. Fox] está exagerando os efeitos da doença. Ele se mexe
para todos os lados e chacoalha, e isso é só uma atuação... isso é uma falta
de vergonha de Michael J. Fox. Ou ele não tomou seus remédios, ou está
representando.
Se a intenção dele era só me imitar e tirar um sarro do que chamou
de performance "sem-vergonha", acabou indo muito além de algo pessoal -
fez a caricatura de milhares de pacientes de Parkinson com os quais me
encontrei e trabalhei ao longo dos anos. Vi aquilo como uma afronta a eles
e suas famílias, e me senti na obrigação de defendê-los.
Previsivelmente, minha recepção no almoço da Fundação foi
calorosa e em tom de apoio. Até aquele momento, meu foco havia sido
apenas as denúncias feitas por Limbaugh e à direita em reLação ao
comercial e aos motivos por trás do meu envolvimento neles, mas agora eu
estava tendo uma visão do outro lado da coisa. As pessoas a favor das
pesquisas e a comunidade dos pacientes estavam chocadas e enojadas com
aquele ataque político. No avião de volta para casa e nos dois aeroportos,
descobri que as pessoas que me apoiavam iam muito além das que se
interessavam por Parkinson ou células-tronco. Na hora do check-in, na
130
verificação de segurança e na esteira de bagagens, as pessoas
aproximavam-se sempre com palavras de apoio. A mensagem consistente
que eu recebia era de que devia lutar contra aquilo. Apesar de apreciar o
sentimento, estava tomando cuidado para não me deixar levar e lutar a
batalha errada. Minha luta não era contra o conservador apresentador de
um programa de rádio, cuja intenção, entre outras coisas, era distrair a mim
e às pessoas da nossa mensagem, mas contra aqueles que estavam no poder
e lutavam obstinadamente para impedir o progresso das pesquisas
científicas que poderiam melhorar a vida de milhões.
Limbaugh não estava sozinho em suas objeções aos comerciais e à
minha participação neles. Previsivelmente, os representantes dos candi-
datos cujas posições anticélulas-tronco eram combatidas por meu anúncio
entraram na discussão; porém, eles não tinham como contornar os
indiscutíveis efeitos devastadores de uma doença catastrófica. A ironia é
que a única solução para isto era a pesquisa à qual eles se opunham tão
fortemente.
Durante as poucas horas da volta de Chicago para Nova York a
controvérsia apenas se intensificou. Parece que Limbaugh estava sentindo a
força da reação ao que tinha feito. Sua alegação de que eu tinha forjado os
sintomas para manipular os eleitores foi efetivamente contestada pela
explicação de John sobre discinesia. Primeiro, Limbaugh lembrara que no
meu primeiro livro contei que havia decidido não tomar meus remédios
quando fui fazer meu primeiro testemunho diante do Congresso para que os
legisladores pudessem ver os efeitos da doença na totalidade, sem ate-
nuantes. Ele brandiu este detalhe como se tivesse descoberto a América,
mas sua lógica era falha. Como Stanley explicava em seu artigo no Times,
"Se o sr. Fox não tomou mesmo seus remédios para fazer o comercial,
como sugere o sr. Limbaugh, isso não é considerado fraude: mascarar a
extensão da destruição da doença é, sim, uma ilusão; revelá-la, não".
131
Fazendo uma pequena correção, Limbaugh admitiu:
- Humildemente e com grandeza de coração, posso estar errado e
vou me desculpar com Michael J. Fox se errei em caracterizar como atua-
ção seu comportamento nos comerciais.
Surpreendentemente, talvez beneficiado por ninguém esperar nada
dele, isso foi visto por todos como um pedido de desculpas, ou pelo menos
o mais perto que ele poderia chegar de algo assim.
Seu próximo míssil foi, na minha opinião, lançado para atacar em
dois níveis diferentes. Já tendo deixado claro que eu era ator, e, portanto,
um tipo de ilusionista, ele agora fazia a próxima conexão lógica. Se o fato
de eu ser ator não significava necessariamente que estivesse fingindo os
siintomas, daria para apostar que eu era um liberal e, com isso, só podia ser
democrata. E então declarou:
- Michael J. Fox está deixando sua doença ser explorada e usa isto
para arrecadar dinheiro para os políticos democratas.
Amigos e associados de todos os setores da minha vida -
profissional, pessoal e médica - foram rápidos em corrigi-lo em todos os
aspectos, em todos e bom som e de forma convincente. Mais que isso,
membros da empresa fizeram piadas com as falhas que existiam nas suas
acusações. Keith Olberrmann, no MSNBC,* "divertiu-se" respondendo à
parte do privilégio aOS democratas, apontando o fato de eu já ter apoiado e
feito campanha para republicanos a favor de células-tronco em anos
anteriores.
Decidi que o que precisava fazer, mais que qualquer outra coisa, era
agarrar a oportunidade que se apresentava e usar bem os holofotes que
tinham sido direcionados para mim até a eleição, O único contra-ataque
aceitável a toda essa negatividade era fazer coisas positivas.
____
132
*MSNBC: Canal a cabo de noticias 24 horas (disponível nbos Estados Unidos e
Canadá) e Wbsite da Microsoft (MSN) e da NBC (rede de rádio e TVdos Estados Unidos).
Tarde da noite, no dia em que voltei de Chicago, Tracy encontrou--
me parado em frente à geladeira, com a porta aberta, encarando
perdidamente um pote de maionese, coisas que homens em geral não
fazem. Percebendo que eu não estava procurando por nada, apenas
preenchendo o momento com alguma atividade corriqueira, ela fechou a
geladeira gentilmente e me abraçou.
- Você deve estar exausto - ela disse.
- Sim, acho que sim - respondi. - Mas sinto-me verdadeiramente
calmo, sabe? Toda essa história, os comerciais, Limbaugh, células-tronco,
as eleições... Parece a tempestade perfeita. E estou no centro dela, no olho
do furacão, e sinto-me estranhamente calmo.
- Eu sei. E isso é ótimo - ela disse. - Acho que ê a primeira vez,
desde que conheço você, que não está preocupado por deixar alguém bravo.
Você é sempre muito diplomático. Mas, em relação a isso, você tem uma
grande convicção e não liga de verdade para o que os outros pensam, em
especial Rush Limbaugh.
- Eu ligo para o que você pensa - respondi.
- Penso que você precisa ir dormir. Bem pensado.
***
Minha condição física chamou a atenção para o custo humano
quando se falha em conseguir avanços nas pesquisas científicas, assim
como as lesões de Tammy Duckworth apontavam para o preço que alguns
pagavam pela nossa decisão de ir à guerra. Mesmo sendo bem articulados
em expressar nossas posições, é a parte muda de nossa mensagem, sobre a
qual não temos controle, que é irrefutável e, portanto, extremamente
133
frustrante aos nossos críticos. Não quer lembrar as pessoas quão terrível é a
guerra? Basta não deixar a imprensa mostrar as imagens dos caixões
enrolados em bandeiras chegando do Iraque e caracterizar qualquer
comentário crítico sobre a guerra como falta de patriotismo
Levou bastante tempo para que eu superasse a idéia de que meus
sintomas e desafios físicos eram ofensivos a mim, mas nunca cheguei a
pensar de verdade na perspectiva de eles serem ofensivos às outras pessoas.
Como processar isso?
Em um artigo recente no New York Times intitulado "Claramente,
francamente, Imperturbavelmente com deficiência", Mireya Navaro
defendeu que "a imagem pública das pessoas com deficiência", que, "em
geral, eram mostradas como heróicas ou trágicas", está mudando. En-
trevistado para a matéria, o ator e duplamente amputado Robert David Hall,
que faz o papel de médico-legista na série CSI, declara: 'Antiga mente se
você tivesse alguma deficiência e fizesse TV, sempre era tocada uma
música suave de piano ao fundo". Gosto particularmente desta observação
porque ela mostra o que acontece mesmo lá dentro, o que as pessoas acham
que têm de fazer quando apresentam histórias de indivíduos com
deficiências. É mais ou menos a mesma coisa que os guinchos de violinos
na cena do chuveiro de Psicose - eles arrancam do nosso pensamento a
reação ao que estamos assistindo e a direcionam para nossas emoções. A
música certa colocada de fundo em uma cena de um cão feio/, pode nos
convencer de que estamos vendo um filhote. É desumanizaador,
marginalizador e fácil ver porque, como a srta. Navaro põe em um texto,
pessoas como Robert David Hall precisam reclamar. Se a sociedade é
encorajada a ver você de certa maneira, você vai aparecer com uma música
tema que não escolheu e provavelmente não adequada ao seu ponto de
vista. É algo que você precisa superar a cada batalha e em fatia experiência.
Porque um segmento da população é responsável não NÓ p< M como ele se
134
sente, mas também por como você se sente em relaçãoo aos sentimentos
dele.
O artigo do Times citava também Kaylee Haddad, uma amputada
que estava em uma piscina comunitária do seu bairro, quando uma mãe nr
aproximou e pediu que ela colocasse as próteses de pernas de volta porque
estava "assustando a minha filha". A única explicação, ou talvez desculpa,
para a grosseria dessa mãe é o medo. Sem vontade ou sem saber como
explicar as deficiências para a filha, ela reage à srta. Haddad como se esta
fosse uma transgressora. Mesmo assim, parece ridículo se imaginarmos
uma mãe chegando a uma outra mulher normal na piscina e pedindo-lhe
para cobrir uma perna com a toalha porque ela está "assustando" sua filha
amputada.
NOVA YORK –
26 DE OUTUBRO DE 2006
Querendo que eu respondesse a Rush Limbaugh, de preferência no
ar, no programa dele, pedidos vinham de programas de entrevistas de rádio
- liberais e conservadores - e do que parecia ser milhares de programas de
notícias de TVs a cabo. Dois nomes que se destacavam entre possíveis
entrevistadores eram os de Katie Couric e George Stephano-poulos. Já falei
de George a você, e, além de ter sido entrevistado muitas vezes por Katie
quando ela fazia o The Today Show, moramos no mesmo bairro e sempre
nos encontramos quando levamos nossos filhos ao ponto do ônibus escolar
de manhã. Não os caracterizaria como amigos chegados, mas eu sabia que
ambos seriam inteligentes e justos, além de bem informados sobre
pesquisas com células-tronco.
Tenho idade suficiente para me lembrar de Walter Cronkite, o
homem mais confiável dos Estados Unidos (ele também tem ótima
reputação no Canadá), por isso pisar no estúdio do CBS Evening News no
135
centro de Manhattan me deu mais simpatia ainda pela história e tradição da
instituição. Ouvi a voz de Katie, virei-me e lá estava ela, vindo me dar as
boas-vindas. Eu podia sentir o grande peso que estava sendo colocado
nessa pequena, mas determinada, transmissão. Eu entendia que era a notícia
mais quente do dia, e que por isso teria um bom espaço, porém, o que Katie
e seus produtores propuseram era extraordinário: os primeiros sete minutos
e os últimos seis minutos do programa. E, apesar de termos uma ligação
pessoal, eu estava preparado, pois se ela precisasse ser dura comigo, ela
seria.
E, confirmando o que acabei de falar, nos segundos antes de come-
çar as filmagens - com o diretor fazendo a contagem regressiva -, Katie
aproximou-se de mim e sussurrou:
- Agora preciso me esquecer de quanto gosto de você.
Após os comentários iniciais para a câmera, ela se virou para mim,
educada e profissionalmente, e perguntou:
- Como vai você?
Vamos ver. Eu já estava suando; minha assistente, Jackie,
convenceu--me a usar paletó esportivo sobre uma malha azul de caxemira
que estava por cima de uma camiseta. Meu respeito pelo senso de moda das
mulheres em minha vida, começando pela minha mãe, que deixava as
roupas no pé da minha cama, preveniram-me de protestar por estarmos no
meio de uma onda de calor. Agora, sob as luzes do estúdio, estética
tornava-se menos importante que absorvência. Tremendo
incontrolavelmente, tentei em vão estabelecer uma posição e manter uma
atitude física única e consistente, como um portão balançando com o vento,
esperando alguém passar-lhe o trinco. Em parte por desejo meu e em parte
pela própria inciativa, meu braço direito, em um movimento
semicontrolado, tentou segurar e conter minha perna esquerda cruzada por
cima do joelho direito. E eu sabia que, se minha mão não ficasse lá
136
policiando a perna, um espasmo violento poderia levar a um chute no
queixo de Katie. Se essas coisas a distraíam, ela não demonstrou. Eu
também estava ocupado com algo que chamo de ""tremor central do corpo"
- algo como se alguém tivesse me dado um soco e atravessasse meu
estômago, me segurasse e levantasse pela espinha e depois me
chacoalhasse como se eu fosse uma bandeira.
- Estou bem, obrigado.
Katie começou perguntando dos sintomas, dando-me a chance de
corrigir as idéias erradas e de me dirigir aos obstinadamente ignorantes.
Levou quatro perguntas até Katie falar de um LImbaugh e suas alegações
de fraude. Ela fez o papel de advogado do diabo, apesar de usar uma versão
mais leve em respeito ao sentimento das pessoas, falando do ataque de
Limbaugh em termos mais razoáveis.
- Você poderia ter esperado um pouco antes de gravar o comercial,
quando estivesse com menos discinesia, por exemplo?
Minha resposta foi imediata.
- Bem, não há como saber quando isso aconteceria... Não é tão sim-
ples assim.
Vi isto como uma oportunidade de sair correta e necessariamente do
lado pessoal da coisa - isto não era só sobre mim.
Este é o motivo de fazermos isso. Não só as pessoas com Parkinson.
As pessoas com lesões da coluna também. As que têm um tempo mais
curto por serem portadoras de ELA, as crianças que nasceram com diabetes
juvenil. O que quero dizer é: potencialmente, pode haver respostas para
essas pessoas. Não estamos interessados em nos exibir e aos nossos
sintomas, pedindo compaixão ou algo assim. Estamos apenas determinados
a fazer com que a ciência siga em frente. Já faz um bom tempo. Nossa
situação não nos permite sentar e esperar.
Mudamos de assunto para explicar sobre a doença e, mais
137
importante, sobre por que escolhi esse momento para falar. Fora o fato de
essa ser a primeira de muitas entrevistas de primeira linha que eu iria
conceder nas duas semanas seguintes, duas coisas em relação ao CBS
Evening News destacaram-se para mim. Foi a primeira e única vez, na
campanha e depois dela, que falei literalmente o nome de Rush Limbaugh.
(Acredito que a frase tenha sido: "Não dou a mínima para as desculpas de
Rush Limbaugh. E a segunda foi algo que Katie fez mais tarde, quando os
remédios fizeram efeito e os tremores mudaram para a espasmódica dis-
cinesia. Durante os contorcionismos de explicar um ponto de vista, meu
braço esquerdo soltou o microfone da lapela do terno. Sem nenhum pro-
blema, quase sem interrupção da conversa e nenhum olhar, ela se abaixou e
recolocou o microfone. Nenhum de nós comentou o assunto, mas foi um
gesto tão empático e automático, longe de algo por pena ou por defesa, uma
simples gentileza que me permitiu continuar com dignidade e explicar meu
ponto de vista, que era muito mais importante que a superficialidade da
minha condição física.
Eu sabia da ligação familiar que Katie tinha com a Doença de
Parkinson - seu pai era um portador. Ela falou sobre isso da mesma forma
que também comentou sobre seu apoio à Fundação no final da entrevista.
Mesmo assim, seria difícil para algum telespectador normal julgar que a
entrevista não tinha sido mais que honesta. Contudo, uma coisa ficou clara,
tendo ela conseguido ou não se esquecer de quanto gostava de mim - com
aquele simples ato de consideração, ela deixou claro quanto amava o pai.
NOVA YORK –
27 DE OUTUBRO DE 2006
138
O impacto da entrevista feita por Katie Couric foi imediato e
poderoso. Minhas caixas de mensagens, de voz e de texto ficaram cheias.
Não foi surpresa que as comunidades de defesa dos pacientes de Parkinson
tenham apoiado e ficado gratas pelo tom equilibrado de nossa resposta.
Não se parecendo com uma defesa, nem atirando de volta com uma retórica
inflamada, tínhamos mantido o nível, uma abordagem do tipo resistência
pacífica. Inclusive Meg Ryan, uma velha amiga de Tr acy, ligou e
perguntou em tom de piada:
- Como é ser casada com Gandra?
Sou eu mesmo, Mahatma J. Gandhi.
Muita gente assistiu ao CBS Evening Show, e a audiência desse dia
registrou um salto significativo (um artigo recente de uma revista de Nova
York falando da carreira de Katie como âncora de notícias cita nosso
programa com um de seus pontos altos de audiência e de qualidade
editorial). Pessoalmente, senti grande alívio.
Com certeza eu não estava na minha melhor condição física - para
ser .sincero, eu estava uma merda. Mas uma merda diferente da que
apareceu nos comerciais de campanha, e, mais importante ainda, eu estava
pouco me lixando se minha aparência estava uma merda. Admiti a Katie:
- Não é legal ver quando fico mal... mas já vivi muitos anos com as
pessoas me achando bonito e as adolescentes pendurando fotos minhas nas
paredes. Já passei dessa fase.
Assistindo ao programa gravado, fui confrontado pelo preço físico
que estava pagando por meus esforços e pela certeza de que estava fazendo
uma boa troca. O espaço que Katie me deu para que eu pudesse defender
nossa posição de forma apaixonada, mas também de maneira calma e
diplomática, provocou grande contraste com a beligerância daqueles que
estavam tentando confundir a questão. Serviu para mudarmos o tom da
coisa.
139
No fim da tarde daquele dia, John, eu e nossa comitiva seguimos
para os estúdios da ABC em Manhattan, para a próxima parada em nossa
agenda de aparições. George Stephanopoulos veio de sua base em
Washington, certamente tendo desejado que eu ainda estivesse em
Vineyard. Como eu imaginava, George queria abordar muito mais o ângulo
político da questão que o pessoal. Enquanto passava pelos rituais da
maquiagem nos bastidores, batia um papo com George sobre política e
família. Fisicamente, sendo sincero, eu tinha perdido qualquer pretensão de
tentar controlar ou calibrar os sintomas, e fui para a frente das cârneras
sentindo-me leve, que era o mais próximo do confortável que eu conseguia
chegar.
George começou com as fanfarronices do sr. Limbaugh. Ainda me
sentindo solto pela jovialidade da conversa dos bastidores, fui direto para a
ridicularizarão da premissa de Limbaugh:
- Quando ouvi a resposta dele, disse algo como: "Quê? Tá
brincando, né?". Foi algo do tipo: "Não, isso não é possível".
- Mas sua mãe ficou brava - George contrapôs.
Respondi que sim e fiz alusão a quão bravas as mães irlandesas po-
dem ser.
- As mães gregas também - ele completou.
A maior parte do que se seguiu foi um bate-papo político, detalhan-
do posições de campanha, métodos e táticas. Mas outra referência a
Limbaugh me levou de volta a um tema que eu já havia tocado antes e que
se tornou parte importante da minha mensagem nos dias seguintes - a fé
intrínseca que temos em nós mesmos, como norte-americanos, de fazer a
coisa certa. Também falei de quão irônico era o fato de que, às vezes, as
pessoas que mais acreditavam nas possibilidades para o futuro também
eram as que tinham maior motivo para dúvidas.
- Vou ter de falar mais uma vez de Rush Limbaugh - alertou
140
George. - Uma das coisas que ele diz é que, ao falar sobre todas essas
curas, você está dando falsas esperanças às pessoas, e isto é algo cruel.
- O que é mais cruel? - perguntei. - Não ter esperança ou tê-la? E
não se trata de uma falsa esperança; trata-se de uma esperança informada.
Dois passos à frente e um passo atrás, entende? É um processo. E como
este país foi construído. E o que fazemos. Todavia, parece-me que nos
últimos oito, dez anos, simplesmente paramos. Perdemos nossa curiosidade
e ambição. E a esperança, bem, a esperança é... -Meu entusiasmo tinha me
carregado a uma referência patriótica que faria Emma Lazarus se revirar no
caixão. - ... Não quero parecer muito sentimental em relação a isso, mas
não é o que nos mostra aquela pessoa na baía com seu jeito? - Fiz um
movimento entusiasmado com o braço, fingindo carregar uma tocha
imaginária em alusão à Estátua da Liberdade, e então concluí: -
Caracterizar a esperança como uma doença ou uma falha de caráter é, para
mim, ir contra o que caracteriza nosso país.
Mesmo enquanto a entrevista ia chegando ao fim, Rush Limbaugh
ainda aparecia no retrovisor. Ele havia nos dado um bom empurrão e
estávamos prontos para pegar essa estrada. Vamos ser sinceros aqui: esse
episódio todo, mesmo tendo sido bem desagradável, também foi um
presente, da mesma maneira que descrevi o Parkínson como um presente
também. Você sofre o baque inicial, mas aproveita a oportunidade que se
apresenta depois.
- A noção de esconder as coisas... é isso o que dá nos nervos. Sentir
a necessidade de esconder seus sintomas é a chave para entender o que os
pacientes de todas as doenças, em especial de Parkinson, têm de enfrentar.
Temos de esconder e esconder... Não deixe ninguém ver, não deixe que
pensem que está bêbado, não deixe que pensem que você é incapaz, que é
instável, que não tem firmeza, que é inválido, que não tem valor. Mascare
tudo. Esconda tudo. Disfarce... Mas temos de levar outras coisas em conta.
141
Levamos muito a sério nossas responsabilidades como cidadãos, nosso
senso de ética e, mais uma vez, nossa espiritualidade e nossa participação
no governo. Levamos isso tudo muito a sério. E isso tudo não pode ser
descartado apenas porque temos um problema que nos leva a determinado
caminho de ativismo.
Para finalizar, George perguntou:
- E você estará em campanha na semana que vem?
- Sim - respondi. - Estarei por aí.
Vox Populi
CIDADE DE NOVA YORK • DIA DA ELEIÇÃO
7 DE NOVEMBRO DE 2006
Eu adoro votar, e não só no amplo sentido de exercer minha
participação como representante da democracia, mas porque gosto
mesmo. Nos poucos anos desde que me naturalizei, o simples ato de votar
transformou-se num ritual de afirmação pessoal.
Acordo mais ou menos uma hora antes do início da votação,
deixando bastante tempo para que minha medicação faça efeito. As
crianças, já sentadas em volta da mesa e arrumadas para a escola, ainda
estão meio sonolentas. Tracy faz as vezes de chefe de cozinha, enquanto eu,
com aquele barulho de páginas virando, vasculho o Times, o Post, o News
e o USA. Today atrás de alguma notícia de última hora que possa mudar
algo nas disputas mais importantes. Discutir política com as crianças é
possível de vez em quando. Mas, de manhã, cedo assim, elas não vão se
lembrar de nada - apesar de perceberem as dicas de Tracy e tirarem um
sarro do meu entusiasmo em praticamente correr para a porta e sair em
uma fria manhã de novembro. E elas tinham razão em me lembrar de que
142
eu não tinha pressa; no caminho para a escola delas, passamos pela
igreja, que é nosso local de votação, e elas sabem que pela manhã não
existem filas nem montes de pessoas. Mas elas não entendem que não é por
isso que fico entusiasmado.
Satisfeito com meu progresso lento e firme, caminho os quatro
quarteirões até meu local de votação com as mãos enfiadas nos bobos
quentes do meu casaco. A aglomeração da manhã ainda não começou. O
tráfego ainda está bom. As únicas coisas se movendo com algum
entusiasmo são as folhas amarelas e vermelhas, empurradas através da
avenida pelo vento e dançando na calçada à minha frente.
Surpreendentemente, não sou o primeiro a chegar ao meu local de votação
esta manhã. Quando subi as escadas da igreja, um casal de vizinhos, já
tendo votado, ofereceu sorrisos a mim e depois chamou táxis para ir para
o trabalho. Lá dentro, fiquei novamente sozinho, a não ser, è claro, pelos
voluntários que trabalham na eleição. A princípio, eles parecem meio
amuados, porém, quando olham bem e me reconhecem, oferecem-me
sorrisos e abraços e brigam para ver quem vai me levar ã cabine de
votação e me explicar sobre como funciona a coisa. Imagino que não é
todo mundo que recebe esse tipo de tratamento, mas seria legal se fosse
assim.
E gosto até das antigas máquinas de votar usadas na nossa seção.
Meus remédios já fizeram, efeito completo a essa hora, mas minhas mãos
tremem o suficiente para que a escolha dos candidates seja algo a. fazer
com cuidado, e puxara altiva nca final significa que meu pé tem de esta na
posição correta para balancear o corpo.
E então acaba.Joguei minha pedrinha no oceano e esperava que,
ao longo do dia milhões de outras pessoas também jogassem as delas.
Nenhum de nós sabe qual pedrinha gera a. crista da onda, mas cada um
acha, com razão, que pode ser a sua; é um ato de fé.
143
No dia 19 de julho de 2006, assisti, em um trailer de maquiagem
em Los Angeles, ao presidente Bush vetar o H.R. 810. O projeto de lei,
criado para amenizar as restrições introduzidas pelo presidente cinco anos
antes, tinha sido aprovado nas duas Casas legislativas, a Câmara e o
Senado. O veto afetou meu futuro de longo prazo e minha disposição
imediata. Desapontado e frustrado, fiz as contas básicas; se tudo se resumia
a números e faltavam alguns votos no Congresso para atingir uma maioria
que fizesse com que o veto não fosse possível, nós, a comunidade dos
pacientes, poderíamos levar nosso caso ao povo norte-americano. E foi o
que fizemos.
Eu me envolvera em dezenove campanhas para deputados ou sena-
dores e agora, 111 dias depois, na minha casa em Nova York, ia descobrir o
resultado dos meus esforços.
Mesmo sem o componente político, a temperatura em nossa casa,
nessa época do ano, é sempre muito alta. Primeiro temos o Dia das Bruxas,
depois do qual minha energia é aumentada artificialmente pelo monte de
doces que meus filhos ganham e que comemos. Com a escola já bombando,
a quantidade de lições de casa das crianças está no nível máximo. O
aniversário de Esmé é no dia 3 de novembro, e, este ano, ela anunciou que,
para entrar no clima do tema da festa, será Peter Pan e vai aprender a voar.
E esta semana é também a que a Fundação Michael J. Fox faz tradi-
cionalmente seu evento anual de arrecadação de fundos em Nova York -o
chamamos de "Aconteceu uma Coisa Engraçada no Caminho da Cura do
Parkinson". Uma das maiores tarefas da nossa equipe é conseguir en-
tretenimento de primeira. Não sei se isso pode ser atribuído diretamente ao
fato de eu ter feito campanha naquele ano, mas Sheryl Crow, que além de
ser ativa politicamente ainda é, como Claire McCaskill e Rush Limbaugh,
nativa do Missouri, voluntariou-se com entusiasmo para se apresentar, do
mesmo jeito que fizeram Elvis Costello, Axl Rose e Denis Leary.
144
O dia da eleição foi estranhamente anticlimático. O que quer que
acontecesse, sentia-me bem com o que tinha feito e com o porquê de tê-lo
feito. Recebi muitos convites para participar de festas e celebrações de
vitória em Nova York e em muitas outras cidades e Estados nos quais
fizera campanha nas últimas semanas. Mas eu estava cansado e muito feliz
de estar em casa na companhia da minha família, com a qual tinha passado
pouco tempo junto ultimamente.
John me ligou ao longo do dia com novas informações de várias
praças. As coisas pareciam bem para a maioria dos candidatos que tínha-
mos apoiado. Algumas eram surpresas bem agradáveis. Na Virgínia, por
exemplo, Jim Webb parecia que ia ser mais que mero incômodo. Para
outros, no entanto, as previsões não eram tão boas. Tammy Duckworth,
apesar de chegar mais perto de ganhar do que todos poderiam esperar,
provavelmente ficaria no quase.
Naquela noite, depois do jantar, as meninas estavam ocupadas com
a lição de casa e de vez em quando vinham me pedir ajuda. Estavam mais
felizes por eu estar em casa que curiosas a respeito de eu não ter estado lá
tanto nos últimos tempos. Sam via algumas prévias comigo e Tracy. Ele me
surpreendeu com o tanto que sabia sobre a questão das células-tronco e
sobre as maquinações políticas que fizeram com que eu me envolvesse
nisso. Sem eu saber, ele e os amigos vinham prestando atenção e discutindo
acerca de toda controvérsia com Limbaugh. Todavia, mais que a extensão
do conhecimento dele, eu estava especialmente impressionado com sua
imparcialidade. Ele não estava na defensiva nem me protegendo; era
apenas inteligente e engraçado. Ele nos dava exemplos do que esse disse ou
do que aquele outro falara, explicava por que eram hipócritas e,
implicitamente, quanto ficava, orgulhoso de mim por irritá-los.
Conforme as votações foram, se encerrando na Costa Leste, ficou
ii,iro que esta havia sido uma boa noite para os democratas em geral C
145
também para os candidatos a favor das células-tronco. Por volta de
23h30, Sam e Tracy foram dormir. Ele tinha escola de manhã cedo e Tracy,
é claro, tinha de acordar cedo para acordar Sam.
Fiquei sozinho na sala, no escuro, a não ser pelo brilho leve da tela
da TV, com uma abóbora de plástico como companheira, da qual eu retira-
va vez ou outra uma bala ou um doce. Se tinha achado a maior parte do dia
anticlimática, as últimas horas foram recheadas de suspense. E tudo se
resumia a uma disputa para o Senado. O vencedor representaria que os
democratas teriam a maioria ou, se o candidato republicano ganhasse, que o
número de cadeiras seria igual e o vice-presidente Dick Cheney teria o voto
de minerva quando as votações terminassem empatadas. Era algo histórico.
Era a eleição da cadeira do Senado do Missouri. E era a vitória de
Claire McCaskill, a primeira candidata para a qual fiz campanha e para
quem gravei o comercial que gerara tanta controvérsia e incitara a dis-
cussão nacional em relação às células-tronco, que nós, da comunidade dos
pacientes, tanto queríamos que ocorresse. Ela estava atrás o dia todo, mas
com margem tão pequena que não dava para afirmar nada. As entradas ao
vivo da TV no seu comitê de campanha mostravam seus apoia-dores e
voluntários entusiasmados e otimistas mesmo assim; e, sentado em meu
sofá em Nova York, eu entendia o porquê. McCaskill tinha ido mal na parte
rural do Missouri - o que já era esperado -, porém, os últimos locais a
serem divulgados seriam Kansas City e St. Louis. E, quando finalmente
saíram, colocaram-na na liderança.
Peguei o controle remoto, desliguei a TV, recostei-me no sofá e fe-
chei os olhos. Quando acordei de manhã, exatamente na mesma posição,
tenho quase certeza de que tinha um sorriso na cara.
146
PARTE TRÊS
FÉ
Hell hath no fury*
Todos os anos, durante parte do verão, minha família aluga uma
casa no subúrbio de Long Island, mais ou menos a um quilômetro da praia.
É nessa época que as crianças estão em acampamentos ou envolvidas em
alguma atividade. No final de uma manhã, Tracy tinha ido andar de
bicicleta e eu estava descansando na varanda, lendo. Ao ouvir o barulho de
passos nos cascalhos da entrada, levantei o olhar e vi um jovem casal, ela
num vestido simples e sóbrio e ele usando terno e gravata, caminhando em
direção à casa. Encontrei-me com eles na entrada da varanda, já sabendo, é
claro, que eram Testemunhas de Jeová. Eles se apresentaram como tais e
me entregaram um livreto.
147
___
* Numa tradução livre, a expressão significa: “Não existe ódio maior que o de uma
mulher mal-amada.” (N.T.)
De acordo com práticas familiares e costumes da maioria das pes-
soas que conheci durante a vida, meu próximo movimento seria dizer "Não,
obrigado", e fechar a porta educadamente, mas de maneira firme. Duas
coisas evitaram que eu fizesse isto. Primeiro, simplesmente porque já
estávamos lá fora e eu não tinha uma porta para bater na cara deles, mesmo
que quisesse fazê-lo. Segundo, porque eu estava curioso. Que tipo de
mensagem pode ser tão poderosa a ponto de compelir essas pessoas a usar
suas roupas de igreja em um dia quente de agosto e andar a pé de casa em
casa, sem ser convidadas, falando com gente que não quer saber delas e
passar uma mensagem que ninguém quer ouvir:' O que faz isso ser tão
importante para elas? Essas pessoas são guiadas pela esperança,pela fé,
pelo medo por mim ou por elas mesmas? Fiquei tão surpreso quanto elas
quando as convidei a se sentar na varanda. Elas tiveram uns quinze minutos
para contar sua história.
E o que se seguiu foi o papo de sempre, aquele em que não havia
como eu tentar fazer o casal mudar de idéia. Mas houve um momento
interessante, quando o marido, após trocar alguns olhares com a esposa,
perguntou um pouco nervoso se eu era Michael J. Fox. Confirmei que era e
tive de perguntar como dois seguidores dessa fé em particular poderiam me
reconhecer da televisão ou dos filmes se, pelo que eu sabia, esses
passatempos eram proibidos? Não tendo respostas à minha pergunta, eles
mudaram o rumo da conversa da sua transgressão para a minha salvação.
Você pode entender que minha disposição em ouvi-los era uma expressão
da minha fé, de meu instinto de que é sempre bom dar algo se eu tiver
como. Gosto de pensar que sou aberto a outras pessoas, que não tenho
148
medo de novas idéias. Seria muito difícil que naqueles poucos minutos na
varanda eu pudesse ser coagido a entregar minha alma, por isso não havia
nenhum problema em eu dispensar alguns minutos do meu tempo a eles.
Essa era uma oportunidade de ouvir o ponto de vista deles, não de defender
o meu. Tudo que precisei fazer foi sentar e escutar.
Ouvir pessoas exporem crenças diferentes das minhas é algo infor-
mativo, não ameaçador, porque a única coisa que pode mudar minha visão
de mundo é uma verdade inegável, e, ao contrário do que Jack Nicholson
diz em Questão de honra, "eu consigo suportar a verdade".
Nas semanas seguintes, várias vezes quando eu voltava para casa da
academia, da quadra de tênis ou da praia, Tracy me dizia que meus amigos
tinham passado por lá ou eu achava sinais de que tinham estado lá - pan-
fletos novos na varanda.
Ao participar das eleições, como fizera no outono anterior, eu havia
pedido às pessoas que me deixassem entrar em suas varandas durante um
ou dois minutos e que escutassem o que eu tinha a dizer. Eu usava um
paletó e uma camisa, falava polidamente e era sincero em minha promessa
de respeitar o ponto de vista delas. Muitos me permitiram esse privilégio.
Alguns me viram como invasor e soltaram os cachorros em mim, rangeram
os dentes e latiram alto o suficiente para afogar o som da minha mensagem,
afastar-me, ou as duas coisas. Fiquei gratificado e inspirado pelo fato de
tantos norte-americanos terem se sentado e ouvido o que eu tinha a dizer,
descobrindo alguma verdade naquilo.
Se ouvir é uma expressão de otimismo, pode-se dizer que os
resultados da eleição de 2006 demonstraram uma crescente maré de
otimismo no país e talvez nossa crescente fé no próximo. Sempre
considerei a fé um aspecto ou uma faceta do otimismo, e algo semelhante a
um primo, ou talvez até sinônimo, de esperança. Uma discussão da fé como
religião já é mais assustadora. Não fiz ou mantive amigos ao oferecer
149
minhas opiniões e atitudes em relação à religião. Não sou teólogo,
seminarista, nem estudante do divino. Não tenho argumentos para as
pessoas que vêem nas religiões organizadas um modelo de vida ou uma
obrigatoriedade de como viver a vida de acordo com crenças
preestabelecidas. Dê espaço às pessoas para que elas, nas leis de uma
sociedade civilizada, acreditem ou não no que quiserem.
Tive muitas experiências religiosas ao longo dos anos - boas, más e
médias -, com vários tipos de dogmas e denominações, mas nunca fui um
discípulo obediente e constante de alguma fé com "F" maiúsculo. Correndo
o risco de parecer new-age demais, considero-me uma pessoa espiritual.
Abençoado demais para ser agnóstico, acabei aderindo a um código de
ética pregado pelas doutrinas básicas das maiores disciplinas monoteístas:
"Faça aos outros o que gostaria que os outros fizessem a você", "Não
julgue se não quiser ser julgado", e mais tuna meia dúzia de Mandamentos.
"O oposto do medo é a fé é um ditado que ouvi muito quando parei
de beber. O sentido é de que o medo paralisa ou talvez nos faça regredir,
fazendo com que você dê um passo atrás na defensiva, enquanto a fé
inspira progressos. Fico imaginando porque o medo é tão proeminente em
nossas discussões e práticas da fé. Falamos em temer a Deus como uma
coisa boa - e ser temente a Deus como um estado desejável. Sei que não
sou o primeiro a dizer isto, e pessoas mais inteligentes já fizeram exames
mais profundos sobre o assunto e expressaram-se de forma mais eloqüente,
mas isto não faz sentido para mim. Vai contra nossa essência e, acho,
confunde medo com respeito. Como forma de motivar as pessoas, cultivar
o medo é mais fácil que investir tempo e esforço necessários para
engendrar o respeito. Respeito requer grande conhecimento, e, pela minha
experiência, quanto mais conhecimento tem, menos medo você sente.
No ano entre ser diagnosticado com Parkinson e parar de beber, eu
considerava ficar totalmente sóbrio, mas temia a vida sem o compreensivo
150
amortecedor do álcool. O que acabei percebendo depois de uma sobriedade
disciplinada é que meu medo nada tinha a ver com o álcool ou com a falta
dele. Tinha a ver com minha falta de autoconhecimento. Assim que fui
adquirindo um conhecimento mais íntimo de mim mesmo, por que fiz as
coisas que fiz, quais eram meus ressentimentos e como poderia me dirigir a
eles, meu medo começou a diminuir.
O mesmo vale para o Parkinson. A época que mais temi a doença
foi quando menos entendia dela - nos primeiros dias, meses e anos após o
diagnóstico. Pode parecer estranho dizer isto, mas tive de aprender a
respeitar a Doença de Parkinson. Em vez de ser reativo, comecei a ser
proativo, lendo todos os materiais disponíveis sobre o assunto,
encontrando-me com médicos, cirurgiões, pesquisadores e, finalmente,
após vários anos de medo prolongado, com colegas pacientes e membros
de nossa comunidade. Respeitar, entretanto, não quer dizer tolerar. E só se
pode derrotar um inimigo que se respeita e conhece plenamente, em todos
os sentidos.
Entender que Parkinson é um processo neurológico, mesmo sendo
destrutivo, despersonaliza a coisa e a faz ser menos sinistra. Da mesma
forma, ficar sóbrio e estar na companhia de outras pessoas com o mesmo
problema, pessoas das quais eu gostava e pelas quais tinha muita
consideração, deixava claro que o alcoolismo era mais uma falha moral que
uma doença física. Então, mesmo que minhas experiências com o álcool e
o Parkinson tenham, de muitas maneiras, me levado a enxergar a vida de
forma mais espiritual, não troquei meu temor do Parkinson por temer a
Deus. Em vez disso, meu respeito pela Doença de Parkinson transformou-
se em respeito por um poder superior.
Quando eu ainda estava crescendo, o que me confundia na religião
em relação ao fogo do inferno, o enxofre e as variações do diabo era que o
mal parecia ficar com todo o respeito, enquanto Deus ficava com a parte do
151
temor. Quando era criança, em Vancouver, mal podia esperar pela última
semana de agosto, quando íamos à Pacific National Exhibition, uma grande
feira estadual. Havia vários brinquedos, bolos e algodão--doce e exibições
agrícolas e de trocas. E por toda a feira havia atrações e apresentações para
promover vários grupos sociais e de serviços, incluindo organizações
religiosas. Quando eu tinha 8 ou 9 anos, uma igreja evangélica estacionou
um ônibus escolar reformado, pintado com cores vivas, ao estilo do da
Família Dó-Ré-Mi. Ao lado, montaram alguns brinquedos e colocaram uns
bancos para que os pais se sentassem enquanto os filhos se divertiam. De
modo inevitável, a maioria das crianças achava o caminho das escadinhas
do ônibus e entrava. Lá dentro, uma aula sobre a Bíblia acontecia
continuamente. O interior do veículo, em vez dos bancos normais, tinha
cadeiras pequenas, as paredes e janelas cobertas com papéis com temas
religiosos e educacionais, parecendo, assim, uma sala de aula em miniatura.
Quando subi as escadas e entrei, senti um cheiro meio sulfuroso. Um
homem do outro lado do veículo aproximou-se de um grande cinzeiro de
baquelite. Falando às três ou quatro crianças que |.'i estavam lá, ele acendeu
um palito de fósforo e deixou a cabeça virada para baixo, fazendo com que
a chama consumisse todo o palito. Com a i mira mão pairando pertinho do
fogo, ele disse:
Não quero chegar mais perto disso, senão vou me queimar. E isso
me machucaria, não?
A jovem audiência concordou nervosamente.
- Agora imaginem milhares desses queimando cada parte do seu
corpo, cada centímetro da sua pele. Vocês gritariam de dor. Bem, crianças,
é assim que é o inferno. E dura por toda a eternidade. Mas a boa notícia é
que...
Não fiquei lá para ouvir a boa notícia.
Basicamente, toda aquela produção pareceu uma coisa sem sentido
152
para mim. Já tinha ouvido meus pais, professores e técnicos de hóquei
explicarem as coisas de maneira efetiva, ensinarem-me lições e valores sem
ter de me amedrontar tanto. Minha curiosidade foi mais a respeito de saber
por que um adulto perderia tempo e energia assustando crianças com uma
caixa de fósforos. Por que não falar apenas de quão maravilhoso era o
paraíso? Pensando agora, a resposta é óbvia. Para uma criança de 9 anos, o
paraíso era do lado de fora daquele Ônibus Bíblico - a distância de alguns
passos que levava aos brinquedos, ao barulho, ao mistério e ao crepúsculo
de um dia de verão. Além da feira, havia muitas outras interações com o
paraíso - acampamentos, jogos de hóquei ou até mesmo se inclinar durante
a aula para sentir o perfume do xampu da garota sentada à sua frente.
Nunca me ocorreu que esses prazeres fossem recompensas por eu ter sido
um bom menino, da mesma forma que não pensei que teria de reestruturar
minha vida para evitar uma eternidade sendo queimado e transformado em
churrasco.
Se isso parece petulante, presunçoso ou desrespeitoso, não era mi-
nha intenção. É óbvio que há uma grande sabedoria, beleza e relevância
nos ensinamentos teológicos milenares encontrados pelo mundo todo. A
questão que estou levantando é: por que esses grandes temas e opiniões
extremas não encontram ressonância em mim? Nunca engoli o conceito.
Talvez eu seja parte de uma pequena minoria, mas não acho que seja o
caso.
Enquanto assistia à TV numa noite do último verão, vi um homem
que, até pouco tempo vivia daquele jeito - igualando
a fé ao temor. Pregador poderoso, com uma congregação com
milhares de pessoas, o bispo Carlton D. Pearson descrevia ao entrevistador
do programa 20/20 da ABC uma epifania que mudara a vida dele.
Aconteceu enquanto ele assistia a uma reportagem sobre a terrível situação
dos refugiados de Ruanda.
153
- Lembro-me de pensar que eles deviam ser muçulmanos, pois Deus
não deixaria aquilo acontecer com cristãos - ele disse. - Foi quando falei
em voz alta: "Deus, como pode, como você pode ser chamado de Deus
amoroso e Deus da vida e deixar que sofram desse jeito, e depois deixar
que vão para o inferno?". Então ouvi uma voz dentro de mim dizer: "Você
não está vendo que eles já estão no inferno?".
Ele internalizou essas palavras como uma mensagem de amor e
inclusão em rejeição aos julgamentos e às condenações. O inferno não
existe.
Para mim, assistindo ao programa da minha sala de estar, isso não
era uma "grande novidade". Nunca vi a vida como uma prova na qual você
ganha pontos suficientes para passar a eternidade nas nuvens, ao lado
direito de Deus, ou deméritos bastantes que o amaldiçoem a uma
eternidade como ator de um filme escrito por D ante e dirigido por
Hieronymus Bosch. Nunca vislumbrei um Deus tão chato que precisasse
brincar conosco como se fôssemos ratos em um labirinto para poder se
divertir.
Mas para o bispo Pearson, considerando as ramificações pessoais,
políticas e espirituais de alguém na posição dele, um soldado de Deus e
salvador de almas, o diabo sempre fora parte proeminente de sua retórica e
formara a visão religiosa que ele tinha do mundo.
- Eu esperava diabos, esperava demônios, via-os em todos os luga-
res... Isso era grande parte da minha vida - ele disse ao This American Life,
da NPR. - O diabo era tão presente e grande quanto Deus. Ele dominava a
maioria das pessoas e no final iria ficar com boa parte delas. Os demônios
estavam em todos os lugares, nas igrejas e escolas, tudo era do diaibo.
Então, se você acredita na coisa, vivera essa coisa.
Eu estava vidrado enquanto ele contava ao 20/20 as conseqüências
de dividir sua epifania com a congregação de sua igreja, a Higher Dimen-
154
sions. Os líderes da igreja e a comunidade evangélica de sua cidade natal,
Tulsa, em Oklahoma, e também do restante do país, condenaram-no por
sua blasfêmia. A retórica e a punição deles parecia algo das escrituras.
- O corpo de Cristo deve ignorá-lo a partir de agora. Não o apóiem,
não o reconheçam, não compareçam aos seus eventos e não dignifiquem a
posição dele com seu tempo e energia. E, quando necessário, protejam os
desavisados das pregações dele - decretou o presidente da Associação
Nacional dos Evangélicos, Ted Haggard.
O mesmo Ted Haggard, obstinado oponente do casamento gay, ad-
mitiu em novembro de 2006 que recebera uma massagem de um homem de
Denver, que declarou outrora ter havido um negócio de sexo pago entre os
dois por mais de três anos. Haggard também admitiu ter comprado
metanfetamina graças às conexões do mesmo homem. E ele foi perdoado
pela maioria das mesmas pessoas que endossaram o pedido de Haggard
para que renunciassem ao bispo Pearson. James Dobson, fundador do
Focus on the Family, disse sobre Haggard:
- Ele continuará sendo meu amigo mesmo se as piores alegações se
mostrarem verdadeiras.
Os perdões e as preces deles podem ter salvado Haggard do inferno,
mas Carlton Pearson diria que Haggard já estava vivendo no inferno por
causa de sua hipocrisia, homofobia e humilhação.
Por outro lado, o bispo Pearson perdeu sua igreja e também o
respeito e o apoio das pessoas que havia conhecido, servido e adorado
durante a vida. Não era como uma vertiginosa queda em desgraça; era um
salto para a desgraça ou para a graça divina.
Para mim, os avisos de Haggard eram razões suficientes: eu tinha
de me encontrar com o bispo Pearson. Superficialmente, parecia não haver
conexão entre nós. Não poderíamos ser pessoas mais diferentes. Ele é
negro: eu sou mais branco que um pão de forma. Ele é evangélico e vive
155
no Cinturão Bíblico, região dos Estados Unidos onde a prática
fervorosa da religião protestante evangélica faz parte da cultura local; eu
sou um protestante relapso que freqüenta uma sinagoga de judaísmo
reformista (ou progressista) em Nova York. Contudo, da mesma forma que
me identifico com FDR pela declaração "a única coisa que devemos temer
é o próprio medo", fiquei impressionado com a coragem do bispo Pearson
em atacar o medo. Só posso ler a respeito de Franklin Roosevelt, mas com
um pouco de esforço e alguns (imagino que inesperados) telefonemas,
poderia marcar um encontro com o bispo.
TULSA, OKLAHOMA • DEZEMBRO DE 2007
Depois de seis horas e meia em dois vôos turbulentos e uma
conexão em Dallas, minha assistente, Asher Spiller, e eu finalmente
chegamos a Oklahoma, onde se sente mesmo que o vento está varrendo seu
avião para baixo. Eram 19 horas no horário de Tuba, e, carregando
apenas bagagem de mão, rapidamente localizamos nosso motorista. Era
uma bela moça segurando uma placa com o nome de viagem que eu estava
usando, um nome bobo que não tinha como ela associar com o rosto
conhecido que aparecia de repente diante dela. Nós dois parecíamos estar
imaginando que diabos eu estava fazendo em Tulsa?
Nessa parte da minha jornada, eu poderia me descrever como uma
Dorothy ao contrário, deixando OZ/Manhattan, viajando durante a
tempestade e caindo na paisagem plana e monocromática das planícies
norte-americanas. Não estou aqui para ver o mágico, mas a pessoa que
teve a oportunidade e a audácia de fechar as cortinas.
Demos entrada no Doubletree Inn, deixamos nossas malas nos
quartos e fomos até o restaurante do hotel. O Warren Duck Club Grill, da
156
mesma forma que o pouco que vimos de Tulsa na última hora desde que
chegamos, estava quase vazio. Asher e eu fomos levados a uma mesa
redonda da outro lado do salão. Apertando minha mão com uma pegada
firme, o bispo Carllon me puxou para um aluno. Esse gesto de
familiaridade não pareceu estranho, tendo em vistaque nós dois, por
razões óbvias, sabíamos bastante um do outro, mais do que a maioria das
pessoas que se encontram pela primeira vez.
Negro na casa dos 50 anos e em forma, o bispo não era alto - tinha
alguns centímetros a mais que eu -, mas era uma figura marcante. Vestia-
se todo de preto com a camisa aberta no colarinho, usava óculos de
armação preta retangular e estilosa e tinha um bigode muito bem feito,
contornando os cantos de seu sorriso e terminando em um fino
cavanhaque. Ele é meio James Brown e meio Johnny Cash, não só no
aspecto físico, mas no espiritual também - algo indo do I feel good para
Ring of fire. Nas duas ou três horas seguintes, a conversa é reveladora e o
bispo conta a história a qual tive de atravessar metade do país para ouvir
em primeira mão.
Mesmo sabendo que o bispo Pearson é um pregador veterano, uma
personalidade televisiva e, de várias maneiras, um artista, é incrível como
ele compartilha sua história comigo sem esforço e candidamente. Afinal,
sou um estranho com um motivo vago. Pergunto a ele do efeito em sua
formação ao crescer num lar onde Deus e o Diabo eram tão vivos e pre-
sentes quanto qualquer membro da família. Do jeito que ele contou, na sua
família, ou você encontrava Deus e se afastava do Diabo, ou o contrário, e,
se perdesse a noção de que caminho estava seguindo, alguém ficaria feliz
em lembrá-lo. E não se aplicava apenas ao aqui e agora, servia para a
eternidade também.
Ele contou que, quando perguntava à tia viúva sobre o tio, homem
sem fé e pecador incorrigível, era normal usar a seguinte frase:
157
- Tia, há quanto tempo tio T. D. está no inferno?
Essa tia, que Carlton descrevia como muito temente a Deus e fre-
qüentadora assídua da igreja, não só aceitava que o marido residia no
inferno como também achava que, apesar de toda sua devoção, estava
fadada a se juntar a ele lá. Negar a existência do inferno não era só o oposto
de tudo em que Carlton tinha acreditado até aquele ponto, mas também sua
admissão de culpa por promover um mito danoso às inúmeras pessoas para
as quais ele pregara.
Há um anseio na voz do bispo, com um sentimento de perda. En-
quanto fala, ele mexe o guardanapo pelo tampo da mesa. Tudo é um
prelúdio que se encaixa para o que vem a seguir - uma visita guiada ao seu
reino perdido.
Talvez eu seja paranóico, mas, enquanto esperamos o manobrista
com o carro do pastor, uma mulher sentada na recepção do hotel me encara
com um olhar negro e distante, quebrado apenas por alguns segundos para
que ela possa oferecer o mesmo olhar ao bispo. Tenho certeza de que é
minha imaginação, porém é um daqueles casos de "Se pensa nisso, você
sente isso", e que me dá um pequeno entendimento de como é ser um
recipiente de animosidades silenciosas e borbulhantes. E, como meu
anfitrião me lembraria mais tarde, ele podia ser um herege local, mas por
causa das minhas posições em relação às pesquisas com células-tronco eu
também era malvisto por muitos dessa região - um pouco mais exótico,
porém, ainda assim, um infiel perigoso.
Sentei-me no banco de passageiros e saímos para um trânsito leve.
Dominando a vista de Tulsa está o prédio de 88 andares chamado CityPlex
Towers. Originalmente batizado de r Cidade da Fé", o grande arranha--
céu foi encomendado por Oral Roberts no final dos anos L970, com a
instrução de que fosse como uma visão de Jesus de trezentos metros de
altura. A especificação de Jesus era para que tivesse pelo menos uns trinta
158
centímetros a mais que a BOK Tower, a construção mais alta de Tulsa
naquela época. Os visitantes da cidade acharam a edificação um ótimo
ponto de referência, e, como estamos particularmente interessados em
explorar o impacto que as pregações de Oral Roberts tiveram sobre a
cidade e essas pessoas, o CityPlex serve de estrela-guia para a constelação
de posses e propriedades de Roberts. As ligações do bispo com o idoso
pastor e seu império são profundas e complexas, e, apesar de todo tempo
gasto e serviços, as declarações dele por uma teologia mais moderna
levaram-no a ser excomungado do ministério de Oral Roberts.
Sei que o grande mundo evangélico é formado por dúzias de feudos
individuais, grandes e pequenos. Sendo grande especialista nos mistérios e
histórias de várias comunidades carismáticas, o bispo apimenta seu papo
com referências a pregadores e convertidos famosos. No jantar da noite
anterior, no café da manhã e agora no carro, ele expressava surpresa por eu
conhecer personalidades como Benny Hinn, Paul e Jan Crouch e Carman,
um tipo de Tom Jones gospel. Sinceramente, isso me assustava também.
Rex Humbard, Kathryn Kuhlman, Oral Roberts, Billy Graham, Er-
nest Angley, Jerry Falwell, Jim e Tammy - percebi que esse momento com
o bispo é a conseqüência lógica de uma vida de fascinação por pregadores e
pregações. Acho que desde cedo em minha vida houve uma procura por
afirmação divina. Mas hoje entendo que, na verdade, eu gostava era do
show, daquele brilho e exagero teatral e de toda aquela enorme ironia não
intencional.
Passando os canais da TV a cabo, inconscientemente diminuo o rit-
mo ao passar do 372 ao 379. E o que chamo de grupo gospel, canais
dedicados apenas a passar a mensagem evangélica. O próximo toque no
controle remoto pode revelar qualquer coisa, de um fervoroso solista
apresentando uma bela e dolorosa versão de um hino que você se lembra
vagamente da infância à Luta livre por Jesus, durante a qual lutadores
159
entretêm um ginásio lotado de adolescentes, batendo um no outro com
cadeiras, em nome do Senhor.
Há pouco tempo, dediquei uma hora inteira de insônia a um progra-
ma que apresentava comediantes renascidos em Cristo, cada um revezando-
se em apresentações de cinco minutos. Eles pareciam ser de duas escolas
diferentes: o cara que sempre foi religioso, o palhaço das aulas bíblicas
dominicais, disparando frases engraçadas como "Não, Barrabás, não
consigo ver sua casa daqui!", e havia os três ou quatro caras engraçados,
que tinham vivido a vida normalmente, na qual encontrar Jesus não fora
algo natural c talvez nem voluntário. Dolorosamente familiarizados
com os dois extremos, eles sabiam bem onde ficavam e quão perto
poderiam levar os fiéis desses extremos. Sendo um exemplo da velha
equação "dor + tempo = comédia", o humor deles aventurava-se no lado
negro tão conhecido pelas próprias batalhas contra vícios em drogas e
álcool, provocando risadas baseadas no medo. Eu sentia que o medo da
audiência não era uma reação ao risco de uma vida de pecados, mas mais
um medo daquela parte dentro deles que dizia: "Ei, isso parece divertido!".
Sendo um adolescente consumidor de cerveja, eu adorava que meu
quarto ficasse no porão, permitindo-me chegar a qualquer hora, sem nin-
guém saber. Em muitas noites de sábado eu dormia (ou desmaiava) com
minha pequena TV preto e branco com orelhas de coelho ligada. Acordei
muitos domingos com imagens de sonhos religiosos - sobre Jesus ou viajar
para a África para distribuir bíblias aos aldeões pobres. Ouvia hinos em
meus sonhos e pessoas pregando e falando em vários idiomas. Demorou
um pouco para minha mente adolescente perceber que, independente do
que aquele canal passasse de madrugada, às 8 horas eles passavam o The
700 Club. Por osmose, eu incorporava imagens e palavras da televisão no
que quer que meu subconsciente estivesse processando e criando no
momento.
160
Enquanto crescia, acabei formando vários grupos diferentes de ami-
gos, cada um pertencente a uma diferente órbita social. No oitavo ano do
ensino fundamental, fiquei amigo de um garoto chamado Russell. Ele to-
cava bateria, e eu, guitarra. Nossa dupla pré-White Stripes foi a primeira
banda na qual toquei na minha juventude. Sendo batistas estritos e devotos,
os pais de Russell, suas duas irmãs e o irmão acolheram-me na sua casa
como se eu fosse da família e, como extensão natural, da. igreja deles.
Refeições feitas na casa de Russell significavam orações de agradecimento
sinceras e entusiasmadas; viagens longas de carro significavam, que
iríamos cantar muitos hinos religiosos; e ficar por lá alguns dias no verão
significava, em geral, ir a um acampamento religioso. Eu não me importava
nem um pouco com isso. Eram sempre coisas alegres e enaltecedoras. E
não sei se era o tipo de fé que eles tinham ou apenas uma exceção quando
eu estava junto, mas o inferno e o paraíso quase não apareciam nas
conversas. Havia uma beleza elegante e comovente na dedicação deles a
Deus. Em um feriado de primavera viajei com Russ para a fazenda de seus
avós na Colúmbia Britânica. Na ainda escura manhã de domingo, uma
caravana familiar a pé e com quadriciclos motorizados dirigiu-se a um dos
morros mais altos da propriedade, levantou uma cruz de madeira feita à
mão e fez uma missa de Páscoa enquanto o sol nascia.
Mas tínhamos muito tempo para brincar também. Russ tinha uma
casa espetacular na árvore, no quintal, que ficava a dois minutos de bici-
cleta do condomínio de apartamentos onde cresci. E aparentemente não
houve nenhum conflito religioso para Russ quando levei uma Playboy, de
onde recortamos fotos para colocar nas paredes. Tínhamos um terceiro
parceiro de crimes na casa da árvore, um garoto que chamarei de
Lawrence. Até onde sei, Lawrence não tinha interesse nem tomava parte do
lado religioso da vida de Russell. Era um garoto engraçado, mas tem-
peramental. Dava muitas risadas quando as coisas eram divertidas, mas
161
quando, por exemplo, tínhamos de limpar, consertar o telhado ou fazer
alguma outra responsabilidade que demandava trabalho, ele dava um jeito
de arranjar uma briga e pedia demissão do nosso clube. Nós apenas
dávamos de ombros.
Nós três já havíamos começado a nos separar no nono ano, quando
ouvimos a trágica notícia numa segunda-feira de manhã. Após uma briga
com os pais no final de semana, porque eles não deixaram que ele fosse a
um show de rock, Lawrence subiu para o quarto, amarrou um cinto na parte
mais alta e se enforcou. Na época, eu não era maduro o bastante para reco-
nhecer, mas aquela tragédia significou o fim da minha infância.
Fui mais algumas vezes com Russ e a família dele à igreja, mas
nada que ouvi nos sermões ou grupos de jovens me pareceu relevante. Eu
não tinha raiva, ressentimento ou desilusão com a religião. Ainda penso no
mundo de Russ e de sua família - apenas era a hora de eu seguir em frente.
Russ cresceu fiel à sua fé. Continuou tocando, tornou-se um tipo de
cantor missionário, fazendo performances gospel e folk-rock em igrejas
pelo Canadá. Casou-se com uma mulher que tinha a mesma paixão por
Jesus que ele, criou belos filhos e, botando todos eles em um trailer, passou
dois anos viajando pelo continente. Era um incrível teste a devoção deles
para comprovar que a família poderia trilhar o estilo de vida livre e sem
vínculos - escola em casa, falta de privacidade e nem sempre ter boas
recepções.
Por respeito ao comprometimento dele e também pela gratidão nos-
tálgica por todo amor e carinho que sua família teve comigo durante anos,
fui aberto e receptivo quando Russ me ligou um dia e pediu ajuda para seu
trabalho de missionário. Mandei-lhe um cheque, mas especifiquei que seria
em nome dele, e não em nome de sua igreja. Eu não iria financiar uma
igreja da qual eu não conhecia as políticas e práticas, mas me sentia
confortável em ajudar Russ e sua família a fazer o que quer que os deixasse
162
felizes. Alguns anos depois, ajudei-os novamente, quando ele, a família e
um grupo de amigos foram fazer um trabalho humanitário em Ruanda,
depois do devastador enfrentamento das tribos por lá. E quando Russ e o
irmão passaram por Nova York deixei que dormissem no sofá-cama do
meu escritório. Nunca falei com Russ diretamente sobre isso, mas fiquei
chateado quando, logo após eu começar a me envolver na campanha pelo
aumento das pesquisas com células-tronco, ele me mandou uma carta
dizendo que a boa notícia era que eu iria me curar do Parkinson um dia,
porém, ele advertia, seria puramente por razões sobrenaturais, não
científicas. Em outras palavras, eu devia largar a política e começar a rezar.
Ele me lembrava de que durante uma festa de Ano-Novo, de 1972 para
1973, no porão de nosso amigo Rusty, eu havia aceitado Cristo como meu
salvador. Eu não me lembrava direito disso. Lembro-me de que tinha
interesse profundo e espiritual na irmã mais velha de Rusty, Karen, que
estava crescendo muito rápido. Ela era uma religiosa renascida e estava
muito interessada em sua cruzada para conseguir almas do nono ano para
Cristo. De qualquer forma, acho que, ao longo dos anos, isso importou
muito mais para Russ que para mim. Acabei guardando meu talão de
cheques.
Quando contei essa história ao bispo Pearson, em Tulsa, ele a ouviu
com alguns acenos de cabeça pontuais, mas quando mencionei a repreensão
de Russ em relação a preterir Deus em favor da ciência o aceno cresceu e
foi seguido por um sorriso de entendimento.
- Você precisa entender de onde seu amigo Russ vem. Ele tem re-
zado por você e realizado missas para você durante muito tempo. Com tudo
que tem no coração e na alma, ele acredita que o que está dizendo é o certo
- a luz nos olhos do pastor alterou-se levemente, e o que se seguiu foi
claramente o que ele pensava sobre o que significaria para uma pessoa
conseguir me convencer a desistir da minha posição e abraçar o ponto de
163
vista evangélico. - Você seria uma grande vitória de Jesus. E, para a igreja
de Russ e sua congregação, você seria uma adição importantíssima aos
quadros deles. Você dizer que estava errado, que percebeu que as células-
tronco estavam apenas matando bebês e que sabia que apenas Jesus poderia
curar as doenças do mundo seria algo grandioso. Você participaria do The
100 Club com Pat Robertson e a CBN (Rede de Televisão Cristã). Não
subestime o impacto que você teria e a atenção que ele receberia se
conseguisse levá-lo para casa.
Não estou atribuindo nenhum desses motivos a Russ, apesar de ser
o mundo de Carlton e de ele conhecê-lo intimamente, tanto a parte es-
piritual quanto a do entretenimento. Ele claramente sente falta da vida
anterior e da grande audiência que atingia. E entendi ainda mais o que ele
tinha sacrificado ao falar a verdade que enxergara. Mesmo agora, Carlton
ainda mantém um escritório em um prédio do centro, cheio de ornamentos
e superlotado de móveis, com certeza parte de uma coleção maior deixada
para trás com seus dias de ícone na Higher Dimensions. File não conseguiu
explicar por que ainda não foi embora de Tulsa e sempre usa as palavras
"nós" ou "nossas" quando fala da igreja ou de sua comunidade, incluindo, e
não restringindo, Oral Roberts e sua congregação, que o tinham dispensado
tão completamente.
Não era uma questão de uma porta se fechando e outra se abrindo.
Carlton Pearson vê todas as portas abertas, com toda sua experiência dis-
ponível a ele e, por causa de suas pregações, aos outros também. Esse é o
paralelo mais óbvio que posso traçar entre minha experiência e a dele. Eu
não tinha idéia do que o futuro me reservava quando saí da minha zona de
conforto, que era minha carreira na televisão. Com certeza não tinha
imaginado que criaria uma Fundação que teria grande impacto não só na
minha vida, mas na vida de incontáveis pessoas com as quais
provavelmente eu nunca me encontraria. O que me levou a essa escolha
164
pode ter sido Deus ou pode ter sido apenas uma decisão prática que surgiu
da necessidade de fazer alguma coisa positiva. O propósito que desejamos
encontrar na vida, como a cura que se procura, não vai cair do céu. Acho
que Carlton está passando por um processo similar. É necessário ter fé para
se arriscar e rejeitar os laços com o temor. Acredito que nosso desígnio é
algo pelo qual cada um de nós é responsável; não é apenas atribuído
divinamente.
Enquanto meu tempo com o pastor ia terminando - nos últimos dois
dias passamos vinte e quatro horas juntos -, tento apontar o que exatamente
levarei comigo deste lugar. Fiquei contente de ter vindo aqui. Minha
experiência em Tulsa mostrou-me que às vezes o mundo é tão simples
quanto eu o vejo ou quanto desejo sempre que seja. E às vezes é mais
complicado do que qualquer um pode compreendei.
Minhas conversas com Carlton abriram cadeados, relembrando-me
de fatos e memórias de sentimentos e experiências religiosas havia muito
esquecidos. Durante minha vida, coloquei-me inúmeras vezes, querendo ou
não, em posição de renascimento espiritual. É possível que, de alguma
forma, este tenha sido meu propósito vindo aqui, mas não acho que seja
isso. No entanto, também não estava numa missão de desacreditar nada. É
bem mais complexo que isso. Infinitamente mais simples. O bispo, com
toda sua eloqüência em testemunhar e de ter o fardo divino de angariar
almas para Cristo, não tentou ganhar a minha. Acho que nossa conexão
teve menos a ver com fé e mais cora um otimismo básico que nos levou a
trilhar os caminhos que escolhemos e que cresceu e se fortaleceu com o
tempo e a distância que percorremos.
Quando tive os primeiros sintomas de DP estava com 29 anos e
vivia a vida, como já descrevi antes, numa bolha insular. O espaço nela au-
mentava com cada sucesso e se contraía a cada fracasso. Mas na época eu
estava num ótimo momento profissional e pessoal, tinha acabado de me
165
casar e acabara de nascer nosso filho primeiro filho, Sam. Por isso a bolha
estava bem grande. E, enquanto ia crescendo, é claro que a membrana em
volta dela ia ficando mais fina e esticada. Eu tinha medo do que aconteceria
se e quando ela finalmente se rompesse. Uma explosão representava o pior
cenário de todos; um vazamento vagaroso era melhor. Meu erro foi achar
que as duas opções eram coisas excludentes.
Em 1991, descobri a verdade sobre os tiques e tremores quase
imperceptíveis e as dorzinhas que sentia havia um ano. E não era por
exagero nos exercícios nem por estresse de trabalho ou emocional, mas os
sintomas de uma doença debilitante e progressiva da qual não se sabia a
causa e, pior, para a qual não havia cura. O mundo como eu o conhecia
mudou no instante em que o médico pronunciou meu diagnóstico. Como
ator, estou acostumado a processar as opiniões que as outras pessoas têm de
mim - do auditório, do público e da crítica. Você pega a opinião, raciona-
liza-a e depois a devolve àqueles que as oferecem como projeções à sua
realidade. Mas é raro alguém apresentar a você uma grande e imutável
verdade a seu respeito - algo tão surpreendente e inesperado que você não
pode nem se dar ao luxo de negar.
Fazemos tantas coisas para nos proteger da verdade, porém, o que
aprendi com ela e de onde tirei forças e conforto, especialmente nos
últimos dezessete anos, é que a verdade nos protege de nós mesmos. Isso
se, é claro, conseguirmos conhecê-la e acreditar nela. Como epígrafe após a
primeira página de Lucky man, incluí uma frase de Henry David Thoreau
que achei particularmente apropriada: "Sempre que nos preocupamos em
acumular riquezas para nós mesmos ou para nossa posteridade, em
constituir uma família ou um Estado, ou mesmo em adquirir fama,
tornamo-nos mortais. Todavia, quando procuramos lidar com a verdade,
tornamo-nos imortais e não precisamos temer mudanças ou acidentes".
Não quero dizer com isso que a grande verdade era o Parkinson
166
especificamente, mas que existem realidades que ocorrem na vida e sobre
as quais não tenho controle ou influência, realidades que não posso
negociar, com as quais não posso usar artimanhas nem encantar.
Você poderia argumentar que a verdade do bispo era subjetiva e
que a minha era baseada num fato científico. Mas não dá para questionar a
convicção dele. Do mesmo modo que tive de fazer ajustes e tomar atitudes
que essa nova verdade demandava de mim, ele também precisou fazê-lo.
Na primeira noite em Oklahoma, Carlton comentou sobre minha coragem
ao lidar com o Parkinson e sobre meu comprometimento com a defesa dos
direitos dos pacientes.
- A diferença é - expliquei - que não escolhi ter Parkinson. Con-
cordo que, se pegasse a situação e tudo que vem com ela apenas para
advogar em defesa de outros doentes, aí tudo bem, seria algo historica-
mente heróico, mas estou apenas dançando conforme a música. Você
decidiu fazer isso. Poderia ter guardado suas dúvidas e preocupações para
si mesmo e continuar fazendo seu trabalho, mas entrou nisso de olhos bem
abertos.
Talvez naquele primeiro dia, quando parou em frente à sua congre-
gação e refutou a existência do inferno, ele não tenha antecipado a reação e
sua queda. Todavia, acredito nele quando diz que não tinha outra escolha a
não ser dizer a verdade que havia enxergado e que, provavelmente, aquela
era a coisa mais importante que faria na vida. E também acredito quando
ele diz que não se arrepende de nada, apesar do sofrimento e da dor no
coração que isso lhe trouxe e à sua família. Claro que aqui, em seu
escritório, cercado pelos vestígios de seu império perdido, ele ainda parece
um pouco chocado. Conheço bem a sensação.
Não interessa se você usa um alfinete, como o bispo fez, ou se
estouram sua bolha, a verdade sairá dela e vai levá-lo a lugares que, de
outra forma, você não iria.
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Tikkun Olam
Nosso filho, Sam, nasceu no Hospital Cedars Sinai, em Los
Angeles, no dia 30 de maio de 1989. Ele era enorme. Então, tanto para ele
quanto para Tracy o parto foi vigoroso e extenuante, mas ainda bem que
não foi dramático. Pudemos ficar com ele no quarto por quase todas as
vinte e quatro horas que passamos no hospital. Ninguém descansou. Nosso
filho, como descobrimos, era um chorão. Ele passou aquelas primeiras
horas acertando os sons agudos que seriam sua forma exclusiva de co-
municação nos seis meses seguintes de eólicas.
Compreensivelmente, Tracy queria dormir. E eu tentava ser
prestativo, apesar de que um pai de primeira viagem com 27 anos normal-
mente é inútil nessa situação. Servindo de intermediário entre Tracy e a
administração do hospital, eu consultava as enfermeiras sobre como cuidar
do bebê, respondia aos telefonemas de amigos e familiares que queriam
saber como Tracy e o bebê estavam, quando iríamos para casa, quando
poderiam nos visitar e, acima e tudo, que nome daríamos a ele. No meio da
mala feita às pressas, entre um livro de Lamaze e um pacote de
salgadinhos, estava a lista de nomes que fizemos e compilamos durante
semanas. Havia alguns clássicos do fim dos anos 1980 (embaraçosos
demais para eu repetir), mas o nome "Sam" não estava lá. Concordamos em
esperar doze horas antes de decidir o nome. Depois de botar todo mundo
para fora do quarto, Tracy e eu estudamos com cuidado aquele
pequeno pedaço serpente ante de criança com pés e mãos enormes
que estava ali deitado.
- Ele parece um motorista de caminhão - ela disse.
- Sim, é igual a um caminhoneiro que conheço, o Sam.
- Sam. Bom nome - ela disse.
Foi tão fácil. É assim que funciona?, pensei. É assim que nossos
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pais chegam ao nome ao qual você estará preso pelo resto da vida?
- Espere um pouco - Tracy disse. - Sam Fox?
- Isso. Sam Fox - respondi. Eu estava decidido.
De repente, Tracy começou a rir incontrolavelmente.
- Sam Fox - ela repetiu, ainda rindo. - Isso é tão... tão judeu.
- Agora gosto ainda mais - falei.
Tracy vem de família judia e, mesmo eu não tendo me convertido,
nós nos casamos sob um chuppah. Desde os dez anos de minha chegada a
Los Angeles, em 1979, e esse momento no hospital com minha esposa e
meu filho recém-nascido, eu havia imergido alegremente na comunidade e
na cultura do judaísmo reformista norte-americano. Meus amigos, meus
sócios e agora minha família eram, na maior parte, judeus. Aprendi que
meu sobrenome, "Fox", comum na área de Lancastershire, de onde meu
avô, da Igreja Inglesa, emigrou para o Canadá na virada do século, também
era uma comum "britanização" de vários judeus Ashkenazi do Leste
Europeu. O nome Sam Fox era atraente para mim porque, mesmo eu não
sendo judeu, meu filho, nascido de mãe judia, era judeu por direito de
nascença e por definição. Por isso o nome funcionou em vários níveis.
Sam, é claro, não tinha ciência de nada disso - seu nome, sua reli-
gião, o tamanho de seus pés e mãos. Mas, em breve, ele descobriria de
forma dolorosa a relevância de tudo isso, por causa da relação imediata
dessas coisas com outro membro de seu corpo. A médica visitou nosso
quarto para discutir sobre a circuncisão. Ela era judia e, apesar de expressar
seu respeito por qualquer que fosse nossa posição em relação ao
procedimento, não havia dúvida sobre o que ela achara que deveria ser
feito. Tracy tinha dúvidas, ou talvez fosse um grande receio mesmo, que
não tinha nada a ver com religião ou judaísmo. Apesar de sua família não
ser particularmente vigilante, ela não tinha nenhum problema em se
identificar como judia. Todavia, como mulher norte-americana progressiva
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e esclarecida, criada nos anos 1970, ela tinha como reflexo aversão a
submeter o filho a algo que pode ser descrito como um ritual de mutilação.
Para mim era tudo muito claro, e me surpreendi comigo mesmo ao expor
meu ponto de vista de maneira calma e com muita clareza.
- Entendo o que está dizendo, querida, e não estou dizendo que te-
mos de fazer isso e todo o show envolvido. Mas você é judia, por isso ele é
judeu. Ele é parte da cultura e de uma herança que nem posso fingir en-
tender ou apreciar por completo. Então vou dizer o que acho: se a médica
fizer isso agora, aqui no hospital, irei à sala com os dois e segurarei Sam.
Quando a doutora estiver ocupada com o bisturi, vou olhar nos olhos dele e
Sam terá com quem chorar e gritar. Porém, se daqui a treze anos, ele
decidir que quer fazer um bar mitzvah e ainda não for circuncidado, você é
quem vai ficar na sala com ele enquanto estarei em Las Vegas.
Hoje, entendo que as pessoas tenham opiniões fortes a respeito dis-
so, mas em minha primeira grande decisão como pai senti que o certo era
conectar Sam a uma longa tradição cultural diferente da minha. Então,
peguei meu filho com certa dureza de movimentos pré-Parkinson e falei
amorosamente com ele enquanto a doutora fazia o serviço. Sem dúvida
doeu muito mais nele que em mim. Treze anos depois, minha mãe, meus
irmãos e irmãs, anglo-irlandeses protestantes da costa oeste do Canadá,
voaram a Nova York e sentaram-se numa sinagoga pela primeira vez na
vida e assistiram orgulhosos enquanto Sam era recebido no mundo adulto.
Foi Sam quem veio falar conosco quando tinha 9 anos e pediu para
ir para uma escola hebraica. Ele aprendera com os amigos que tinha de co-
meçar seu treinamento religioso agora se quisesse fazer o bar rmitzvah dali
a quatro anos. Naturalmente, Tracy compreendia melhor a situação que eu
e, após várias visitas a sinagogas em Nova York, ela gostou do que ouviu a
respeito da Central. Apesar de nunca termos estado nela, fizemos planos
naquele verão de passar a freqüentá-la quando voltássemos das férias.
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Em uma sexta-feira à tarde, dia 28 de agosto, liguei a TV de nossa
casa alugada em Long Island e a primeira imagem que apareceu na tela foi
a gravação feita de um helicóptero de um terrível inferno que parecia
acontecer no centro de Manhattan. Era difícil ouvir a reportagem por causa
do barulho das hélices, mas duas palavras soaram claramente: Sinagoga
Central.
- Tracy! - gritei em direção à cozinha, que era onde ela estava
dando comida para as meninas. - Qual é o nome da sinagoga à qual
acabamos de nos filiar?
- Central - ela respondeu.
- Acho que ela pegou fogo.
O prédio vinha sendo todo reformado, e o fogo foi causado pelo
maçarico de um trabalhador que instalava um novo sistema de ar-con-
dicionado. Por sorte ninguém ficou ferido, mas pelo que fiquei sabendo por
intermédio dos jornais e de minhas próprias pesquisas as perdas foram
enormes. Construído em 1872, o prédio era uma marca registrada e
considerado por muitos uma das igrejas mais belas do mundo. Apesar de
precisar de um esforço maciço e de milhões de dólares, o rabino Peter
Rubinstein prometeu aos tristes e chocados fiéis que se reuniram na manhã
seguinte para verificar os danos e reconstruir a sinagoga:
- Temos trabalho a fazer, então devemos começar.
Há uma expressão hebraica - na verdade eu a entendo mais como
um princípio do judaísmo -, tikkun olam (tuhk-OON-oh-LAH-m), que pode
ser traduzida como "consertando o mundo". Isto foi explicado a mim pela
primeira vez pelo rabino Josh Davidson, jovem protegido do rabino
Rubinstein, que ajudou a preparar Sam para o bar tnitzvak.
A conversa ocorreu no início de setembro de 2001. Era um bom
momento para a comunidade da Sinagoga Central. A longa reforma após o
incêndio estava quase concluída e o santuário prestes a ser reaberto. Sam
171
era uma das crianças escolhidas para trabalhar com pincéis e tintas, adicio-
nando os toques finais no extenso trabalho ornamental que havia em quase
todas as paredes e cantos do interior do prédio. Claro que o rabino
Rubinstein iria conduzir os serviços de celebração da reabertura do prédio,
mas o rabino Davidson já estava preparando os trabalhos da semana
seguinte. Ele queria falar sobre células-tronco e por isso me telefonou para
ter mais informações sobre o assunto. Eu me preparara para ficar na
defensiva. Num tempo em que o perfil dessa nova pesquisa ainda estava
surgindo, parecia-me que qualquer autoridade religiosa que fosse abordar o
assunto teria posição negativa. Mas Josh foi agradável, e suas perguntas
vieram de uma curiosidade honesta e de uma empatia por aqueles que
poderiam ter a vida melhorada ou salva. A tradição judaica, ele me
explicou, sempre encorajou os avanços científicos e médicos. Nesse
contexto, a pesquisa com células-tronco, longe de ser destrutiva ou má, é a
incorporação do mitzvah da cura. Todos temos a responsabilidade de fazer
o que pudermos pelos que vivem conosco, por aqueles que amamos e por
aqueles que nunca encontramos. Foi quando ouvi pela primeira vez sobre o
tíkkun olam.
Josh assegurou-me que, quaisquer que fossem meus esforços
naquela área, ele e a sinagoga me apoiariam totalmente. Agradeci a ele e
disse que não via a hora de fazer parte da congregação e de ouvir o que
tinha a dizer sobre o assunto. Entre o telefonema e o sermão, estava a terça-
feira, 11 de setembro. A noção de reparar o mundo tomou uma dimensão
mais urgente e dramática. Por um tempo, o rabino Davidson colocou de
lado seu sermão sobre células-tronco.
CHELSEA PIERS, NOVA YORK • 18 DE MAIO DE 2002
Entre os oradores agendados para brindar a Sam na celebração de
172
seu bar mitzvah estavam meu irmão e tio de Sam, Steve, e o irmão de
Tracy, Michael. E quem não estava na lista? Eu. Mas por mim tudo bem.
Em várias ocasiões que levaram ao bar mitzvah pude dizer a Sam quanto
me orgulhava dele, então, quando ele pediu especificamente que eu não
discursasse, fiquei feliz de ser liberado desta responsabilidade, sem me
sentir privado da oportunidade. Sem eu saber, pelo menos até chegar ao
salão que alugamos, Sam tinha mudado de idéia e agora queria que eu
dissesse algumas palavras. Eu não tinha nada preparado e, mesmo que
tivesse, agora tinha um problema de tempo até os remédios fazerem efeito.
Com o gosto ácido do pânico surgindo na garganta, puxei Tracy de lado.
Sam tinha ido até ela e pedido que me convencesse a discursar.
- Ele vai falar, querido - ela assegurou a Sam -, mas você precisa
pedir a ele pessoalmente.
Elogiei-a pela bela lição que tinha dado a ele à minha custa.
- Conte uma história do Sam - ela falou. - Conte as história da
bicicleta.
Sam nunca foi o tipo de garoto de "bater bola com o pai no quintal".
Todas as minhas tentativas, nos primeiros seis ou sete anos de vida dele, de
fazer com que se interessasse por atividades esportivas, incluindo as que eu
adorava quando criança, como basquete, hóquei e beisebol, foram polida
mas firmemente refutadas. Sam tinha suas razões para isso, e muitas delas
faziam todo sentido. Quando ele tinha 6 anos, fomos até Chelsea Piers, pois
eu pretendia inscrevê-lo na escolinha de futebol. Encontramo-nos com o
jovem, super prestativo e impetuoso técnico voluntário, que nos explicou
que havia dois tipos de programas: um focado nos fundamentos básicos e
que tinha poucos jogos competitivos entre times e, é claro, o programa de
verdade - uma liga de competição com tabelas de jogos entre os times
estabelecidos. Era óbvio para mim que Sam não iria querer nenhum dos
dois programas. Mas ele era um ótimo garoto, então talvez pudesse fazer
173
isso pelo pai.
Após pequena pausa, na qual posso ter inserido um silencioso "se
tenho mesmo de fazer um", ele disse que preferia o programa de funda-
mentos básicos.
Fiquei um pouco desapontado, mas tentei não demonstrar.
- Muito bom, Sam. Mas, e a outra que é mais competitiva? Ele
balançou a cabeça.
- Não rola. Tem brigas demais - disse.
Ele tinha um bom argumento e, sabendo que Sam também não
morria de amores pelo outro programa, não forcei a barra. Fomos embora
sem fazer nenhuma inscrição. Até porque não era como se ele fosse uma
criança sedentária. Ele amava correr por aí, pular e fazer bagunça, fazendo
zigue-zagues nas árvores quando íamos caçar insetos, e tinha aprendido a
nadar bem cedo em qualquer lugar com água - piscina, lagoa ou mar. Ainda
assim, não parecia ter muita confiança na área das atividades esportivas.
Tendo crescido praticando vários tipos de esportes, pude presenciar
vários pais que forçavam os filhos a jogar, projetando neles as próprias
ambições não cumpridas de se tornarem superatletas. E eles nunca jogariam
o suficiente ou bem o bastante para ganhar o bastante. Sam não queria fazer
esportes, e Tracy e eu decidimos que tudo bem. No entanto, tivemos um
pequeno desentendimento nessa área.
Quando Sam tinha 7 anos e ainda se recusava a aprender a andar de
bicicleta, tive de ser firme. Falei a Tracy que ela precisava ensinar a ele. 12
o trabalho dos pais. É como se fosse uma lei ou algo assim. E acho que os
filhos tiram sua licença de pai se você quebrar essa lei. Independentemente
de quanto Sam resistisse, eu tinha decidido que seria paciente, mas também
persistente. Naquele verão, formulei um plano para utilizar as duas
semanas que iríamos passar em nossa fazenda em Vermont para colocar
Sam sobre duas rodas.
174
A aversão de Sam a qualquer tipo de locomoção que não fosse
andar, correr ou nadar, com a recusa em montar no que quer que fosse, a
não ser em meus ombros ou às vezes em um pônei alugado, era tanta, a
ponto de ele nunca ter abraçado a tecnologia de um triciclo - muito menos
as rodinhas de unia bicicleta.
- Melhor assim - decidi. - Podemos ir direto ao assunto.
O início do nosso caminho que levava ao celeiro passava por uma
parte plana de cascalho grande o suficiente para um menino de bicicleta
pegar um pouco de velocidade e andar por uma distância razoável. Apro-
ximei-me de Sam, que já estava de capacete e sentado na bicicleta, segurei
a parte de trás do selim com a mão direita e o guidão com a esquerda.
Quando estava em posição, ele começou a pedalar firmemente para a
frente. Assim que eu já estava trotando em uma velocidade suficiente para
criar equilíbrio, perguntei a Sam se podia largar. O grito que ele deu em
resposta foi frenético, enérgico e completamente ininteligível, mas entendi
a essência dele: "NEM FODENDO!".
O problema era que, Sam explicou-me mais tarde entre lágrimas de
frustração, o cascalho era muito solto e esparso, por isso ele sentia que a
bicicleta iria escorregar de lado a qualquer momento. Imaginei que sua
análise era um passo positivo e mostrava o desejo de seguir tentando.
- Sabe o que podemos fazer? - perguntei. - O estacionamento do
prédio dos bombeiros voluntários está sempre vazio e tem aquele chão
pavimentado, liso e sem ondulações. Por que não colocamos a bicicleta no
porta-malas e descemos até lá?
- Tá bom - ele respondeu. Mas, assim que falou, seu rosto mostrou
que queria fazer qualquer outra coisa, menos isso.
Após alguns minutos de descida até o Corpo de Bombeiros South
Woodstock, ficou claro que as novas condições não eram melhores. Apesar
de a superfície ser mais lisa, também era mais dura, e a perspectiva de cair
175
ou voar por cima do guidão era muito mais aterrorizadora para Sam. Decidi
então que, de algum jeito, em algum lugar, acharíamos o piso perfeito para
que ele aprendesse a andar de bicicleta. Mas hoje não ia dar certo. Senti-me
mal por Sam. E me senti mal por mim.
Talvez sentindo a oportunidade de colocai um fim nesse
"probleminha", pelo menos por aquele dia, e talvez para nos fazer sentir um
pouco melhor, Sam deu uma sugestão:
- Por que não vamos tomar um sorvete?
- É uma ótima idéia - respondi.
Depois de colocar a bicicleta na parte de trás da picape e de prender
Sam em sua cadeirinha, cruzamos uma ponte, pegamos a esquerda na Rota
4 e logo chegamos à sorveteria que parecia saída dos anos 1950 (a não ser
pelos preços).
Sentados numa mesa de piquenique grudenta, Sam sugou as duas
bolas de sorvete de chocolate pelo buraco que mordeu na parte de baixo da
casquinha, enquanto eu empurrava os pedaços do meu frapê com o canudo.
Nenhum de nós sequer mencionou a palavra "bicicleta" e, após uns quinze
minutos, voltamos à picape e começamos a voltar para casa. No caminho
para a ponte, passamos por uma escola, ou, melhor dizendo, pelos campos
dela, incluindo um recém-aparado, mas vazio, campo de beisebol. Antes de
entender por completo o porquê, já estava saindo da estrada, indo até o
final do estacionamento da escola e estacionando. O plano estava pronto
assim que coloquei Sam e sua bicicleta no campo, no lugar do rebatedor,
com a frente apontada para a primeira base. O caminho para as bases era
ideal - sólido o bastante para que as rodas não derrapassem, mas não duro o
suficiente para amedrontar meu filho; se caísse, ele provavelmente apenas
ralaria os joelhos. Sam foi se sentindo confortável e, após algumas corridas
até a primeira base comigo segurando a bicicleta, estava pronto para tentar
sozinho, pelo menos uma parte.
176
- Certo - eu disse. - Começarei com você e depois correrei até a
primeira base para pegá-lo quando chegar lá.
Fiquei impressionado com o que ele conseguiu realizar, pensando
que, naquela manhã, aquilo parecia impossível. E foi relativamente fácil
convencê-lo a fazer a curva da primeira e ir para a segunda base, onde eu
estaria e o pararia gentilmente como fizera antes. Quinze minutos depois
ele estava pronto para fazer três curvas e marcar um home run. Após
quarenta e cinco minutos no campo, eu estava sentado no lugar do
arremessador, aproveitando minha alegria imensa, enquanto Sam, o Baby
Ruth das bicicletas, dava voltas e mais voltas no campo.
Confiante de que ele não precisava mais de mim, fui andando até
uma lata de lixo que havia do outro lado da cerca próxima da terceira base.
Quando me virei, depois de jogar meu copinho no lixo, esperava sentir o
deslocamento de ar causado por um moleque de 7 anos voando em sua
bicicleta. Mas Sam não estava em nenhuma das bases - pelo menos eu não
o via. Comecei a procurar melhor e então o vi. Animado com sua evolução
e por razões que apenas ele pode saber, Sam sentiu-se entusiasmado o
suficiente para não virar à esquerda na primeira base e pedalar reto pelo
restante do campo. Manobrar uma bicicleta na grama é mais difícil, mas
com as pernas pedalando como pistões ele havia progredido. De repente,
ocorreu-me que eu tinha conseguido ensiná-lo a andar de bicicleta, mas
tinha faltado uma lição: como parar. Saí correndo, esperando que
conseguisse chegar até ele antes que entrasse em pânico ao ter o mesmo
pensamento. Eu já estava perto, uns dois metros atrás dele, quando
aconteceu. Talvez tenha passado num buraco, o pé tenha escapado do pedal
ou apenas tenha perdido a concentração, mas ele capotou bonito.
Levantando-o rapidamente para diminuir o impacto do tombo, fiquei
surpreso ao ver que ele não estava chorando. Na verdade, ele ria como uma
hiena. E estava até meio impaciente.
177
- Me põe de volta na bicicleta e me dá um empurrão, pai - ele disse.
Fiz isso. E ele foi embora. Às vezes, reduzia a velocidade o
suficiente para que eu o alcançasse, mas não estava mais seguindo meu
cuidadoso plano geométrico. Estava achando o próprio caminho.
Essa foi a história que contei no bar mitzvah de Sam. Quando olhei
para o rosto dos familiares e dos amigos no salão, percebi que não preci-
saria mais atrasar a sobremesa explicando o simbolismo da coisa.
Obviamente o bar mitzvah foi muito importante para Sam, mas fi-
quei surpreso pelo profundo impacto que teve em mim. Minha adolescência
não teve nenhum ritual parecido, uma passagem formal da infância para as
responsabilidades da vida adulta. Isso pode soar meio duro, mas, para mim
e meus amigos de infância, 13 anos não era uma idade na qual alguém
fizesse uma festança para nós, dando-nos as boas-vindas à vida adulta.
Espinhudos, fedidos, cabeludos, inseguros com as palavras e
desengonçados, respondíamos às sugestões, algumas tácitas, algumas
explícitas, naquela época em que jogávamos na defesa. Apenas
deslizávamos e passávamos por isso; depois passávamos pelo ensino
médio; se tivéssemos sorte, arranjaríamos um trabalho; e, se fôssemos
muito sortudos, arranjaríamos um trabalho no governo.
A cultura judaica, eu começava a entender, colocava uma estrutura
e um ritual em volta dessa transição, instruindo essas formas de vida emer-
gentes a reconhecer e aceitar suas responsabilidades consigo mesmo, com
suas famílias e com os outros. Elas são aclamadas e celebradas bem quando
estão mais suscetíveis a se sentir indesejadas e incompreendidas.
Pessoalmente, nem isso consegui, pelo menos não nessa ordem. Al-
guns meses antes do meu aniversário de 18 anos, já tendo desistido da
escola, com meu pai como motorista médio, mas esforçado, fui para o sul,
de Vancouver até a Califórnia, para encontrar um agente e tentar uma
carreira. Não foi um bar mitzvah, porém aquela longa viagem pela
178
Interestadual 5 foi o mais próximo que cheguei de experimentar um ritual
de passagem para a vida adulta. Ansioso e pensando no futuro, ainda sem
ter desenvolvido aquela pequena parte do cérebro que existe para
identificar e evitar riscos, eu não via isso como uma rejeição do passado,
mas como um salto para o futuro. Todavia, é irônico que eu precisasse ser
guiado por um adulto, ao menos essa última vez, não para me dar boas-
vindas a uma comunidade, mas para me levar de uma para outra. Não
sabendo que diabos eu estava procurando, pelo menos meu pai sabia que eu
não encontraria em casa.
Não sei se percebi totalmente logo de cara, mas muitos dos amigos
que fiz ao chegar em Los Angeles e ao me jogar de cabeça na indústria do
entretenimento eram judeus - meus agentes, técnicos, muitos dos diretores,
produtores e também atores com os quais trabalhei. Parece engraçado hoje,
mas com quase 18 anos, acabando de sair do oeste canadense com sua
grande classe trabalhadora anglo-saxônica, além de grande representação
de Hong-Kong e da índia (antigas colônias britânicas), qualquer conceito
que eu tivesse de judaísmo era baseado no Velho Testamento e nas piadas
autodepreciativas feitas no Tonight Show. Acho que um ano depois
comecei a entender as coisas: sou o único cara que tem planos para o dia
25 de dezembro.
Famílias acolheram-me para refeições e festas, e lembro-me delas
com muita ternura e bom humor. Isso tinha pouco a ver com religião, como
fui percebendo. Não podia falar da vida espiritual dos meus novos amigos,
mas, para mim, tinha tudo a ver com cultura. Minha experiência com Russ
e a família dele, cuja cultura e religião (apesar de mais efervescente) eram
essencialmente as minhas também, parecia-me muito mais exótica que a
cultura judaica, na qual eu estava começando, com muita rapidez, a me
sentir em casa.
O produtor e diretor Gary Marshall falou-me sobre sua teoria para
179
meu sucesso em comédias:
- Você tem um tempo de resposta judeu - ele disse - e um goyishe
punim.
Isto quer dizer que consigo fazer piada ao estilo que tem raízes no
teatro iídiche, mas pareço o típico 'jovem vizinho". Alex Keaton, garoto
branco e protestante do Meio-Oeste nos anos 1980, foi basicamente a
criação de vários roteiristas de comédia judeus, liderados por Gary Gold-
berg, produto da vizinhança judaica do Brooklyn. O ritmo das conversas, a
ênfase em consoantes de percussão como Ps e Ks, responder a perguntas
com respostas invertidas, que, na verdade, eram outras perguntas, como
"Chateado? Por que eu estaria chateado?" - essas são as características de
comédias televisivas com raízes na tradição do humor judaico. Esse tipo de
comédia e os comediantes qiae me foram apresentados pela televisão, de
Phil Silvers a Milton Berle, a Mel Biooks, a Jerry Seinfeld, eram judeus na
maioria, e suas experiências acabaram formando a minha, quer eu
percebesse ou não. Minha afinidade com essa tradição da comédia judaica
era apenas a interação profissional de uma grande conexão que encontrei,
utilizando-a em várias áreas da minha vida.
Em 1985, numa entrevista à revista People, fui perguntado se
pretendia me casar um dia.
- Ah, sim, com certeza - respondi. - Vou me casar com uma garota
judia.
Quando o repórter me perguntou por que, respondi algo como:
- Porque não precisarei tomar nenhuma decisão e ainda poderei co-
mer comida chinesa aos domingos.
Acertei quase 100% - às vezes comemos comida indiana.
É justo dizer que sou um judeu honorário. Casei-me com uma ga-
rota judia, criamos nossos filhos de acordo com a cultura judaica e, mais
importante, segundo a fé judaica - nossos três primeiros filhos tiveram bar
180
e bat mitzvah. Em fevereiro agora, na quinta-feira antes de Aquinnah e
Schuyler serem chamadas ao bema, Tracy e eu levamos as meninas à
sinagoga para uma última checada nos procedimentos e para que tivessem a
chance de dar mais uma lida em seus discursos preparados sobre as partes
da Tora.
O rabino Peter Rubinstein é um homem compacto e enérgico, na
casa dos 50 anos, que poderia ser irmão gêmeo do técnico de basquete
Mike Krzyzewski. Além da incrível semelhança física, o rabino Rubinstein
e o técnico K compartilham o mesmo jeito dinâmico de liderar e sempre
conquistaram muito respeito e lealdade. O rabino nos explicou o que
deveríamos fazer - acender velas, as preces a fazer em hebraico e, para
minha sorte, em inglês. Mostrou-nos como manejar a Tora ao passarmos o
livro sagrado de um membro a outro da família, de geração para geração.
Observações foram feitas às meninas em relação às suas leituras, em geral
elogios, com gentis lembranças de olhar para a frente às vezes c lazer
contato visual com as pessoas da congregação. Todavia, mais fortes e
ressonantes foram as palavras que ele disse antes de deixarmos o santuário.
Ele lembrou às meninas que elas estavam se tornando parte de uma
linhagem incrível, uma tradição que resistira a séculos de opressão e
perseguição. Senti um misto de orgulho e humildade pelo meu papel de tê-
las trazido a esse lugar. Era evidente no rosto delas a percepção de que a
maior parte do que era bom nas suas vidas - família, liberdade e segurança -
estava conectado com a longa história de resistência, e sua declaração
pública de participação nisso já tinha trazido conseqüências complicadas no
passado.
Ao mesmo tempo, eu não achava que ao sancionar essa
identificação dos meus filhos com a religião e a cultura da mãe deles
significava que eu estivesse rejeitando a minha. E, em relação a tradições
religiosas, eu já não tinha nenhuma mesmo. Eu era um anglicano, do
181
mesmo jeito que minha mãe, meu pai e seus familiares, que eram membros
e freqüentavam a Igreja Inglesa. Contudo, em minha infância e
adolescência, fora as aulas dominicais na igreja e algumas missas
ocasionais de Natal e Páscoa, não éramos pessoas muito religiosas.
Culturalmente - é aqui que a coisa fica interessante para mim -, nos-
sos costumes e tradições, apesar de serem diferentes do judaísmo de várias
maneiras, pareciam ser regidos por uma ética similar. Minha família e meus
amigos eram boas pessoas. Prezavam a honestidade, a fidelidade, a
integridade, a família e o trabalho duro. Fizeram sacrifícios por seus países
em épocas de guerra e de paz. Eram muito mais agradecidos ao que tinham
do que tristes pelo que não tinham, e relaciono isso a quanto a tradição
religiosa de Tracy e da sua família era inclusiva, propensa a aceitar e a
enfatizar a importância da curiosidade intelectual e espiritual.
Um dos meus sobrinhos, Isaac, na época com 7 anos, certa vez me
surpreendeu com a seguinte pergunta:
- Não entendo. Você é judeu ou é natalino?
Meu próprio filho, quando era ainda mais novo, voltou um dia da
pré-escola com alguns biscoitos que ele e os colegas tinham feito naquele
dia - dourados, amanteigados, com um pedacinho de fruta cristalizada no
meio. Ele me disse que eram biscoitos Hamantashen para o Purim.
- Haman... tasheri? - perguntei.
- Isso - ele respondeu. - Eles têm o formato de um cara mau chama-
do Hamans hat... e para o Purim... sabe?
- Na verdade não - tive de admitir. - Não sei.
- Ah, é mesmo - ele se lembrou, quase se desculpando. - Você não é
judeu.
Quando penso em papos como esse, lembro-me de que meu mundo
está tão imerso na cultura e tradição judaica que mesmo as pessoas mais
próximas de mim se esquecem de que não nasci assim.
182
SINAGOGA CENTRAL, NOVA YORK SETEMBRO DE 2007
Em setembro de 2007, enquanto eu pastoreava minha família para
dentro do santuário da Sinagoga Central para o serviço religioso de Rosh
Hashanah, o rabino Rubinstein estava parado próximo do bema conver-
sando com um grupo de pessoas. Ao notar minha presença, ele acenou--me
amigavelmente e começou a se dirigir até mim. Tracy e as crianças tinham
acabado de passar por mim e estavam pegando os últimos lugares na quarta
fila, quando o rabino se aproximou e me cumprimentou com um abraço
apertado e um sorriso acolhedor.
- Falarei de você no sermão de hoje - ele me informou. - Não usan-
do seu nome, claro - ele me assegurou. - Será uma referência indireta, mas
tenho certeza de que vai perceber.
Isso me deixou um pouco nervoso. Rosh Hashanah é o Ano-Novo
judaico, o dia para refletir sobre erros do ano anterior e fazer resoluções
para o próximo. Acho que uma das chaves para minha felicidade é que
sempre tento pegar meus erros e transgressões o mais rápido possível
depois ile terem acontecido, minimizando assim o período de reflexão.
Será que o rabino iria me repreender por algo? E, pior que isso, será
que ele iria fazer isso na frente da congregação inteira?
Após uma breve introdução falando da sobrevivência do judaísmo,
o tema central da mensagem de Rosh Hashanah emergiu: o casamento entre
religiões, claro que entre alguém nascido na religião judaica e outro não.
- Quero deixar clara minha posição em relação a este assunto - ele
disse. - Não há dúvida. Recomendo com veemência que judeus se casem
com judeus.
Ooops.
- A comunidade judaica parece ter um futuro mais certo quando
judeus se casam entre si - ele embasou isso com algumas estatísticas, entre
183
as quais uma se destacou: - A chance de um casamento acabar em divórcio
é duas vezes maior em casais mistos que entre judeus.
Eu não caracterizaria seu tom de voz como duro ou estridente,
apenas firme. Mas aí ele pegou um desvio e começou a falar da "im-
portância do amor" e da realidade na qual "todos queremos que nossos
filhos cresçam em ambientes multirraciais, multiétnicos e multirreligiosos".
Então, "dizer a eles que não queremos que se casem com pessoas que não
sejam judias" é algo paradoxal. O rabino começou a descrever uma
situação familiar hipotética e incrível entre um casal inter-religioso, suas
atitudes e formações e os pensamentos por trás das decisões acerca de suas
convicções religiosas. Ele era muito perceptivo e incrivelmente
compreensivo. O que ouvi falou diretamente â minha experiência e re-
forçou os sentimentos positivos que eu tinha sobre inclusão e empatia,
grandes qualidades do movimento reformista judaico.
Quando se aproximava das conclusões, o rabino Rubinstein olhou
para a congregação, fez uma breve pausa e disse:
- Alguns de vocês são casados com pessoas não judias... e estão
criando os filhos como judeus. Seu marido ou sua esposa está ao seu lado
quando os filhos recebem nomes hebraicos e quando se tornam bdr/bat
mitzvah. Vocês os trouxeram para sua família. Vocês nos honram e nós
lhes devolvemos essa honra. Como disse no início, sou obsessivamente
apaixonado pela sobrevivência do judaísmo. Acredito que nosso futuro será
prolongado se nos aproximarmos de nossos maridos ou esposas não judeus
e se adotarmos aqueles que escolhem se juntar a nós.
Decidi tomar sua última consideração como a referência a mim (e
tenho certeza de que muitos outros fizeram o mesmo aquele dia).
- Vamos ser gratos por aqueles que escolheram ser parte de nosso
destino e de nossa família. Vamos deixar nossas portas abertas a todos
aqueles que escolherem entrar e vamos abrir nossos braços bem abertos
184
para abraçar os não judeus, aqueles que estão sentados entre nós hoje. Eles
são preciosos, são corajosos e são nossos, pois são parte de nosso futuro e
do nosso destino. Então vamos, todos juntos, com eles, ser fortes... com a
ajuda de Deus. Amém.
Irmãos e irmãs
Acredito que há uma força maior que rege o universo, e sei com
certeza que não sou eu. Mas ainda não encontrei uma religião ou culto
completamente consistente com o jeito que meu coração e minha mente
processam esse entendimento. Não que eu seja avesso a aceitar teologias.
Todas as pessoas com as quais conversei - o bispo Carlton Pearson, Russ e
sua família maravilhosa, o rabino Rubinstein - se apoiavam em sua fé para
ter força, sabedoria e compasso ético. Suas convicções são genuínas e
sinceras, e tenho grande respeito pelo modo como a vida deles expressa
essas convicções. Minhas próprias experiências levaram-me a crer que a
vida é uma dádiva. Reconhecer essa verdade e manter a humildade me
fazem apreciar o fato de eu ser parte de algo grande e infinito.
O Parkinson e o álcool destruíram qualquer ilusão que eu pudesse
ter acerca de estar no controle da coisa. Acabei aceitando que qualquer
doença ou condição fora do meu controle é um poder maior que eu. Para
sobreviver a essa energia destruidora, preciso procurar por um poder ainda
maior. Para meu propósito, não preciso defini-lo, nem que alguém o defina
para mim - apenas preciso aceitar sua existência. Ele é evidente no amor de
Tracy e sua inesgotável amizade. O dentinho faltando no sorriso de Esmé, a
graça de Aquinnah, a coragem de Schuyler e a curiosidade intrépida de
Sam. É tanta coisa para saborear, para ser agradecido. E, como não sei para
qual endereço devo mandar toda minha gratidão, tento colocá-la em tudo
que faço.
Chris Reeve analisou de forma sábia a diferença entre otimismo e
185
esperança. Diferentemente do otimismo, ele disse, "Esperança é o produto
do conhecimento e a projeção de para onde esse conhecimento pode nos
levar". Se o otimismo é uma expectativa de alegria e sorte de que as coisas
vão sair como quero e de que tudo vai dar certo, e se a esperança é o
otimismo com informação, fatos convertendo desejo em possibilidade,
então a fé é o terceiro pé desse banquinho. A fé me diz que não estou
sozinho. Como meus anos de Parkinson me ensinaram, se uma das pernas
do banco faltar, cairei de bunda no chão. Quando vou para a cama à noite,
sou otimista ao pensar que não acordarei com o telefone tocando para me
dar más notícias. Quando o telefone toca mesmo assim, tenho esperança de
que seja engano. E, quando não ê engano e quem ligou tem as piores
notícias possíveis a dar, é a hora de a fé cuidar disso. No dia 5 de novembro
de 2007, o telefone tocou às 5h45 e Tracy o atendeu no segundo toque.
Após uma rápida conversa, ela me acordou com três palavras:
- É o Steve.
Em qualquer hora decente do dia ou da noite, uma das pessoas com
as quais mais gosto de falar é com meu irmão mais velho. Steve é um
grande amigo, um modelo de marido, de pai, de como ser filho de nossa
mãe e um grande irmão para mim e minhas irmãs. E é ainda muito in-
teligente e totalmente engraçado - uma mistura de Bill Murray e Steven
Wright. Ele mora num subúrbio de Vancouver, não muito longe do restante
de nossa família (exceto pela nossa irmã, Kelly, atriz de teatro que mora em
Toronto), e não o vejo tanto quanto gostaria. Tracy sempre ralha comigo
por minha relutância em passar mais de um minuto ou dois com alguém ao
telefone. Mas a exceção é Steve. Trocamos histórias de nossos filhos,
contamos piadas e fazemos planos para futuros encontros, às vezes ficamos
falando merda por até uma hora. Todavia, quando o telefone toca entre
meia-noite e seis da manhã, a última voz que quero ouvir do outro lado da
linha é a de Steve. Se alguma coisa deu muito errado lá na Costa Oeste e eu
186
precise ser avisado, é meu irmão mais velho, Steve, quem fará esse
telefonema.
Não gosto nem de ver essas palavras impressas numa página, mas
minha primeira preocupação foi com minha mãe. Ela tem 78 anos agora,
uma saúde de ferro, um humor típico e sensacional, e tenho certeza de que
ela vai viver mais que todos nós, mas é para onde sua mente vai quando o
telefone toca de madrugada.
Há dezoito anos meu pai morreu subitamente. Tracy, eu e Sam, en-
tão com seis meses de vida, vivíamos na Califórnia, e foi Steve, claro,
quem ligou para nos avisar que meu pai havia sido levado às pressas para o
hospital e que tinha poucas chances de sobreviver. Mal dava para ouvi-lo
entre lágrimas e soluços; era uma tarefa horrível, mas ele era o único que
poderia fazê-la.
Quase dezoito anos depois, em Nova York, com Tracy na minha
cola, fui tateando do quarto ao escritório para atender o telefone. Foi tão
duro quanto eu achava que seria, por isso tinha preferido ouvir de pé.
- Mike? - perguntou a cansada mas conhecida voz que estava a
5.149 quilômetros de distância.
- Pode falar Steve. O que aconteceu? É a mamãe?
- Não - ele respondeu. - É a Karen.
Karen é a mais velha das minhas três irmãs. Onze anos mais velha
que eu, ela já havia saído de casa e começado sua família quando eu ainda
tinha 8 anos. E cansei de vê-la, o marido Ed e seus dois filhos, Jamie e Ri-
chard, durante a minha juventude. Obviamente nosso contato
diminuiu quando me mudei para a Califórnia aos 18 anos. Apesar de nossa
vida ter mudado de forma drástica, nossa conexão se manteve forte. Karen,
ou K. C, que era como a chamávamos (seu nome do meio era Charlotte),
teve um casamento difícil e acabou se divorciando do marido, que mais
tarde morreu ao ser atropelado por um carro quando atravessava uma rua
187
em Vancouver. Morando nos Estados Unidos, eu tinha minha própria famí-
lia e gozava de um estilo de vida muito diferente daquele que tivemos em
nossa juventude meio militar. O que nos ligava acima dos laços familiares
normais era uma tenacidade parecida, pois cada um de nós tinha
personalidades enormes em corpos bem pequenos. K. C. e eu éramos as
menores crianças da família - ela mal tinha 1,30 metro. Era imperativo,
pelo nosso físico, que sempre estivéssemos olhando para cima, e isto
também pode descrever nossa atitude em relação à vida. Crescer (ou não
crescer tanto) num mundo de bundas e cotovelos fará de você alguém
resistente ou tímido, e Karen não era nem um pouco tímida. Seu tempe-
ramento era lendário. Quem quer que tenha dito "não é o tamanho do
cachorro na briga que interessa, mas o tamanho da briga no cachorro" deve
ter se encontrado com minha pequena grande irmã. Ela raramente mordia,
porém, a única coisa mais alta que seu latido era sua risada.
Minha irmã era durona e estava pronta para o que desse e viesse,
mas sua grande batalha ocorria dentro do corpo. Karen era epilética.
Ataques repentinos a derrubavam no chão, em geral duas ou três vezes por
semana. O problema progrediu a ponto de ela não poder mais dirigir sem
informar aonde ia, isto para que os lugares mais perigosos ou suas
companhias não fizessem com que uma situação ruim ficasse ainda pior.
Quando fui diagnosticado com Parkinson, nossa ligação se fortaleceu;
tornamo-nos o Clube do Cérebro Podre. E, mesmo na confusão dos dias
seguintes à minha descoberta, nosso trabalho de equipe me deu muito
conforto. Empatia é sempre melhor que simpatia, em especial quando vem
da família.
Em 1993, a epilepsia começou a destruir o espírito de Karen tam-
bém. O grande número de remédios que ela precisava tomar para evitar os
ataques acabaram com sua enorme alegria de viver. Apesar de o Parkinson
demandar sacrifícios e requerer que eu tome uma porção de remédios, a
188
situação dela estava crescendo de forma desesperada, acima de qualquer
coisa com a qual eu pudesse comparar. Quando ela me ligou para contar
que fora aceita para uma cirurgia cerebral não convencional e arriscada,
para remover internamente a parte do cérebro que causava os ataques,
fiquei em dúvida. Contudo, quaisquer que fossem minhas preocupações,
elas foram encobertas pelo inconfundível senso de esperança de minha
irmã de que essa cirurgia pudesse ser a resposta às suas preces. Minha irmã
mais nova, Kelly, mais tarde me contou como foi a conversa que teve com
Karen quando falaram do seu novo plano.
- Tem certeza de que quer fazer isso? - Kelly perguntou. - E se pio-
rar as coisas?
- Não dá pra ficar pior que isso - K. C. respondeu.
- Ainda assim, o mal conhecido não é melhor que o mal que você
não conhece?
Típica de Karen, sua resposta foi elegante e direto ao ponto.
- Você não conhece o meu mal.
A cirurgia acabou sendo um grande sucesso, e nos quinze anos se-
guintes Karen, livre dos remédios e ataques, voltou a ser a mesma garota
engraçada, dura e irrepreensível. Não tenho certeza de que aceitaria fazer
uma operação do cérebro alguns anos depois, não fosse pela grande força
que K.C. mostrou ao deixar seu cérebro ser operado. Ela se casou
novamente com um cara um pouco mais velho (tá bom, ele tinha quase a
idade da minha mãe), um escocês que usava kilt chamado Gordy que tinha
uma risada parecida com a dela e a mesma paixão pelo golfe. Além do
apartamento que dividiam no subúrbio de Vancouver, eles brincavam de
casinha nos finais de semana num parque de trailers na cidade de Birch
Bay, em Washington, do lado norte-americano da fronteira. Ninguém mais
merecia tanto uma felicidade daquelas.
Apenas alguns dias antes do telefonema de Steve, Karen havia co-
189
memorado seu aniversário de 57 anos. Como fazia com todas as minhas
irmãs, eu tinha um ritual com Karen de mandar flores todo dia 27 de ou-
tubro e sempre esperava ansioso o telefonema de agradecimento que ele
inspirava. Estando fora no final de semana quando as flores chegaram, ela
só me retornou no dia 29. Nosso papo foi mais curto que o normal, mas ela
me agradeceu efusivamente e rimos juntos uma ou duas vezes. Lembro-me
bem de ter dito "Eu te amo" antes de desligar. Menos de uma semana
depois, eu estava parado no mesmo lugar e falando com Steve no mesmo
telefone.
- Eles voltaram de Birch Bay - Steve começou a me contar. - Gordy
disse que Karen foi à varanda para fumar um cigarro, depois voltou e
passou por ele a caminho do banheiro dizendo que não estava se sentindo
bem. Poucos segundos depois, ele ouviu um baque, foi ver o que havia
acontecido e encontrou Karen inconsciente no chão. Hemorragia grande no
cérebro. Ela não acordou desde então.
Afundei na cadeira do escritório.
- Onde ela está agora?
- No hospital - ele respondeu. - E os médicos acham que ela não vai
acordar mais.
Muita coisa aconteceu nas doze horas ou mais que levaram para eu
comprar uma passagem e atravessar os Estados Unidos para me juntar à
minha mãe, aos meus irmãos, a Gordy, Richard e Jamie no hospital que
ficava em Surrey, e nada de bom. Karen dependia completamente do
respirador para permanecer viva. Seu cérebro, segundo os exames, tinha
morrido; isto queria dizer que podia sobreviver apenas com a máquina
respirando por ela e sem nenhuma chance real de recuperar atividade
cerebral suficiente para viver mais que num estado vegetativo.
Toquei sua mão e beijei seu rosto, procurando por um. pequeno si-
nal - um tremer do olho, uma mudança do peso do corpo, um dedo se
190
mexendo, qualquer coisa. Mas uma olhada ao redor, no rosto de minha
família, mostrou-me que todos já haviam aceitado o que eu estava come-
çando a entender. K. C. já tinha partido. Mesmo assim, ficamos lá mais
algumas horas, até concordarmos que deveríamos ir todos para casa des-
cansar um pouco. Os médicos prometeram fazer outra bateria de testes pela
manhã e conversar conosco a respeito das opções que Karen teria.
Minha repentina partida de Nova York e a incerteza do que encon-
traria fizeram com que eu deixasse Tracy e as crianças em casa. Sentia
muita falta do conforto de Tracy e do consolo que ela poderia dar não só a
mim, mas também à família da qual ela se tornara parte muito importante.
Dormir não era uma possibilidade, então passei a noite olhando o relógio,
decidindo que cinco da manhã - oito na Costa Leste - seria um bom horário
para ligar para Tracy e contar os detalhes tristes.
Quando nos falamos, ela perguntou se eu queria que ela fosse, e me
vi, pela primeira vez, falando em voz alta o que meu coração sabia que era
a verdade:
- Acho que até você chegar aqui ela já terá partido. Vamos todos
nos encontrar no hospital para falar com os médicos. Tenho quase certeza
de que vão recomendar que a deixemos partir.
O que eu poderia ter dito, mas não disse, é que era melhor esperar
os planos para o funeral serem feitos.
O resultado já era certo, o médico nos assegurou, porém a decisão
de como proceder era nossa. Reunimo-nos numa pequena sala de espera
adjacente à UTI onde Karen passara a noite. Muitas famílias enfrentam
momentos como esses, e não posso imaginar como cada um chega à
conclusão do que é melhor para si mesmo e para as pessoas que ama. Não
consigo nem recontar com exatidão como chegamos à nossa decisão. Sei
que meu irmão lembrou bem que a vida de Karen nos últimos quinze anos,
depois da cirurgia e sem ataques, havia sido uma conquista tão grande para
191
ela que a perspectiva da vida que os médicos haviam descrito com certeza
não seria a escolha que Karen faria. No fim, acabou sendo um papo entre
Gordy e minha mãe. Foi curto, e os dois concordaram. Iríamos deixar que
desligassem o respirador e passaríamos o dia nos despedindo. Alguns
minutos depois de o médico aceitar e concordar com nossa decisão, ele
voltou acompanhado de uma moça bem-apessoada, na faixa dos 40 anos,
que se apresentou como a capela do hospital. Ela apertou as mãos de todos
nós, oferecendo sinceras condolências. Não tínhamos pedido um clérigo e
ficamos sem saber o que fazer diante da presença dela. Mas minha mãe
pareceu mais confortada em saber que Deus estaria representado nessa
triste situação, mesmo que fosse por procuração. Então convidamos a
capela a permanecer com a família durante os acontecimentos das próximas
horas. Não posso falar pelos outros, mas senti uma ponta de ressentimento,
não ultraje, apenas um pequeno sentimento de intrusão. O que os capelães
de hospital fazem? São coletores de almas? Mal conseguíamos nos
conformar com o fato de estarmos perdendo alguém com a qual não
podíamos imaginar viver sem, e ela estava ali para fazer o quê? Garantindo
a parte de Deus? Eu queria ouvir o que ela tinha a dizer sobre isso.
Logo percebi que minha preocupação era infundada, Instintivamen-
te ela percebeu que deveria ir até minha mãe, e seu afeto teve efeito cal-
mante. Mais tarde, quando todos estavam reunidos no quarto da UTI, cada
um achou seu espaço ao lado da cama, colocando uma mão sobre ela e
outra em K.C., com a capela permanecendo em silêncio. As horas
passaram, e o ar da sala não foi ficando pesado, como era de se esperar,
mas, a cada momento que passava, cada um sussurrava um adeus e também
um "Nós te amamos, K.C.". A vigília evoluiu para algo intensamente
espiritual. Começamos a contar histórias e dividir lembranças pessoais;
houve muitos risos, mesmo quando enxugávamos lágrimas com mangas já
ensopadas dos choros anteriores. Os funcionários do hospital, que
192
presenciam tragédias familiares todos os dias, para minha surpresa, não
eram imunes à emoção e ao amor demonstrado pela nossa família. Os
intervalos entre uma e outra de suas visitas foram diminuindo e sabíamos
que o tempo de Karen conosco estava acabando.
A capela mal tinha falado a tarde toda, mas veio com uma pergunta
para nós:
- Karen tinha uma música preferida?
Steve e eu trocamos olhares, e um tipo de alarme soou na minha ca-
beça. Será que ela estava sugerindo um hino religioso? Não sei por que,
mas isso me pareceu meio inapropriado.
- Algo que ela amasse quando era adolescente? Talvez algo de que
ela gostasse de cantar? - a mulher continuou.
Minha irmã Jackie, talvez a mais emotiva de todos nós com a situa-
ção, foi a primeira a responder. Numa voz suave e trêmula, ela cantou:
"Sweet little Sheila, you'll know herif you see her" (pequena e doce Sheila,
você a reconhecerá se a vir).
Kelly juntou-se a ela: "Blue eyes and a ponytail" (olhos azuis e rabo
de cavalo).
Tommy Roe, 1962. Karen amava essa música. Tenho certeza de
que nenhum de nós pensou muito nisso, mas todos, de algum modo, sabía-
mos a letra. Até meu irmão e eu nos juntamos ao coro: "We're so doggone
happy, just beirí around together" (estamos felizes demais apenas porque
estamos juntos).
Agora todos juntos: "Man, that little girl isfine" (cara, essa pequena
é o máximo).
Estávamos chorando, cantando e rindo. E K. C. estava indo. E está-
vamos tristes, mas sabíamos que ela estava bem. Tínhamos fé.
193
PARTE QUATRO
Família
Sorte no amor
Do mesmo jeito que as pessoas supõem que o período de mais ou
menos oito anos desde que escrevi o primeiro livro foi de declínio, também
supõem que isto tenha ocorrido com meu casamento, que eu teria ficado
mais debilitado e que, com isso, meu casamento teria ficado sobrecarre-
gado. Mas, na verdade, este foi um tempo de iluminação e aprendizado,
que nos levou a ura incrível enriquecimento.
Opa, ficou boa a frase acima. Devia tê-la guardado para o cartão.
Hoje é o dia do nosso aniversário de vinte anos de casados e tenho
um cartão em branco para preencher com meus sentimentos até a hora do
jantar - vinte anos de amor, gratidão, afeição e respeito colocados na minha
cada vez mais indecifrável letra. Prometi a mim mesmo que limitaria a
coisa apenas ao espaço do cartão.
Muito do que foi tão bem nesses vinte anos tem a ver com como as
coisas que deram erradas foram abrandadas pela nossa relação, parceria,
194
amizade e, em sentido mais amplo, pela possibilidade de o nosso
casamento dar certo. Algumas pessoas me perguntam o segredo de um
casamento longo e feliz, do mesmo modo que me perguntam qual a chave
para criar bem os filhos. Minha resposta rápida para a parte dos filhos é:
'Ame-os, alimente-os e mantenha-os longe do tráfico". Já para o casamento,
também tenho uma resposta curta: "Mantenha as brigas honestas e o sexo
sacana". Claro que não sei a resposta para nenhuma das duas perguntas,
mas o que aprendi com minhas experiências nas duas áreas vale a pena
darmos uma olhada mais profunda. Só vou resolver o problema do cartão e
já volto.
Amor e sordidezLOS ANGELES, CALIFÓRNIA • 11 DE SETEMBRO DE 2001
O telefone do hotel me acorda de um sono profundo. Luto contra
ele e vejo que são 6 horas. Vim à Califórnia fazer uma participação em
Spin City, agora com Charlie Sheen como astro, mas não era esperado no
estúdio antes das 10 horas. Resmunguei algo ininteligível.
- Liga a televisão - era Tracy.
- Quê? Ah, tá bom. Que canal?
- Não interessa. Qualquer um.
Merda. Só isso já era suficiente para me dizer que algo grande tinha
acontecido, se eu ainda não tivesse intuído pela hora da ligação e pelo
nervosismo na voz de Tracy. Peguei o controle remoto e apertei o botão.
Enquanto a TV ligava, o pequeno pixel no centro da tela aumentava e re-
velava a imagem do World Trade Center. Uma enorme nuvem de fumaça
preta saía de uma torre do lado direito da tela. O controle remoto caiu da
minha mão. Levantei da cama e caminhei em direção à TV numa espécie
de transe, até que a base do telefone escorregou do criado-mudo e caiu no
chão, levando com ela meu copo-d'água, caixas de remédios e o roteiro de
195
Spin City, lembrando que eu ainda segurava a outra parte do telefone.
- Estou vendo o que acho que estou vendo? - perguntei.
- Ouve um acidente no World Trade Center - ela disse. - Um avião
acertou uma das torres.
- Não acho que tenha sido um acidente - respondi. - Já tentaram
explodi-las em 1993. O que estão falando na TV?
- Não tenho certeza - ela respondeu. - Apenas que aconteceu.
- Onde estão as crianças?
- Na escola.
Aquinnah e Schuyler estudavam no segundo ano numa escola no
Upper East Side, relativamente perto da nossa casa e muitos quilômetros
ao norte do Lower Manhattan, onde as coisas estavam acontecendo. Já Sam
estudava no centro, não na direção exata das torres, mas perto o suficiente
para colocá-lo na zona de impacto de um desastre dessa magnitude.
- Espere alguns minutos até eu descobrir o que está acontecendo,
mas acho melhor ficar preparada para pegar as crianças.
- Todas as crianças? As meninas também?
- Sim, eu acho.
Ainda estávamos ao telefone quando o segundo avião bateu na
torre. A cidade onde estavam meus filhos e minha mulher grávida de oito
meses estava sendo atacada naquele instante.
- Espere um pouco - Tracy pediu. - A outra linha está tocando.
Antes que eu pudesse protestar, ela me colocou na espera. E depois
do que pareceu um tempo interminável, apesar de provavelmente
ter sido menos de um minuto, ela voltou.
- Você não vai acreditar quem era - Tracy disse. - Era o Sy.
- Sy? O motorista?
Ele trabalhava para uma locadora de carros com motorista de Nova
York. Quando tínhamos um evento ou situação que pedia mais conforto e
196
confiabilidade do que os táxis amarelos podiam nos dar, contratávamos os
serviços delas. Eu gostava de Sy, um senhor de voz grave e muito
amigável, sempre com uma história para contar. Todavia, pelo que eu
estava prestes a ouvir de Tracy, ele ganhara um lugar no meu coração para
sempre.
- Sy está com Sam - Tracy falou. - Ele estava por perto. Assim que
ouviu sobre a segunda explosão, foi até a escola e pegou Sam. Eles estão a
caminho daqui. Agora vou buscar as meninas. E depois ligo para você.
- Dê meu telefone a Sy e peça para ele me ligar- pedi.
Dez minutos depois, pela TV da minha suíte em BeTerly Hills, eu
testemunhava um êxodo em massa, centenas de milhares de pessoas em
carros e a pé, indo em direção ao norte pela FDR, algumas atravessando as
pontes do East Side. O que fez com que essa experiência fosse ainda mais
assustadora e surreal foi o fato de que, naquele mesmo momento, meu filho
de 12 anos falava comigo do meio daquele imenso rio humano que o
carregava para o norte. Ele parecia assustado, mas afirmava que se sentia
seguro. Apesar de sua postura ter me dado certo alívio, eu sabia que só me
sentiria bem quando estivessem todos em casa, ou melhor, fora da ilha de
Manhattan, juntos e já na nossa casa de campo em Connecticut. Mais que
tudo, é claro, eu queria estar lá com eles - todos nós juntos e salvos.
Tenho certeza de que a memória emocional se mostra presente para
a maioria das pessoas. Com Tracy, minha esposa e mãe dos meus filhos,
desenvolvi uma conexão tão profunda que colocaria minha vida em risco
para proteger a dela a qualquer hora. Eu pularia na frente de um trem por
ela. Com os filhos, o instinto protetor de pular na frente de um trem existe
desde o primeiro dia. No dia 11 de setembro de 2001, enquanto minha
família estava em Nova York, eu não estava realmente em Los Angeles; se
eu não estava com eles, então não estava de verdade em lugar nenhum.
A cada segundo que passava, minha vontade de voltar para minha
197
família aumentava. Mas logo ficou claro que não havia a mínima chance de
pegar um voo para Nova York, para alguma outra cidade da Costa Leste ou
qualquer outro lugar nos Estados Unidos. Os céus sobre o país todo
estavam fechados; ninguém podia voar.
Nelle Fortenberry, minha assistente de produção, também estava
comigo em Los Angeles para minha participação em Spin City, assim como
Jackie Hamada, em sua primeira semana de trabalho como minha nova
assistente pessoal. O trabalho dela já era bem complicado nas horas boas,
mas essa, de repente, era a pior hora de todas. O marido de Nelle, diretor de
TV e o filhinho tinham vindo de avião, de Nova York, mais cedo naquele
dia.
Fiz um monte de telefonemas entre os momentos que falava com
Tracy e as crianças, incluindo vários curtos com Jackie e uma longa
conversa com Nelle - se bem que "conversa" talvez não seja o termo
adequado. Cada um do seu lado da linha, emudecido, assistia às notícias
não só de Nova York, mas também do DC e da Pensilvânia, às vezes
quebrando o silêncio para oferecer uma interpretação dos eventos. Naquele
instante, milhões de pessoas em todo o país e ao redor do mundo estavam
fazendo a mesma coisa: apenas tentando entender o sentido de tudo aquilo.
- Teve alguma notícia dos produtores? - Nelle perguntou, referindo-
se ao dia de trabalho que tínhamos agendado em Spin City.
- Ainda não - respondi. - Pedi um carro para nós.
Para ela, isto trouxe mais confusão a uma manhã que já era confusa
o bastante. O estúdio providenciava transporte para que eu fosse e voltasse
do trabalho, então por que eu fizera isso?
- Um carro com motorista? Para ir ao estúdio? - ela me perguntou.
- Não vou para o estúdio - respondi. - Vou para Nova York. Hoje é
terça e ainda é cedo. Se parar apenas para abastecer, consigo chegar lá na
quinta à noite.
198
Uma das coisas que amo em Nelle é que ela tem muito mais cons-
ciência das coisas que eu. Ela estava pensando na agenda programada do
estúdio.
- Então eles não vão mais gravar esta semana?
- Não sei. Mas eu não vou gravar o programa esta semana. Vou
para casa.
Embora um pouco contrariada, ela entendeu minha decisão e disse
que ligaria para Gary Goldberg e lhe diria o que eu pretendia fazer. Ja-ckie
e eu havíamos falado sobre alugar um carro, mas dividir a direção em
apenas dois durante quarenta e oito horas sem parar pareceu meio absurdo,
e nenhuma empresa que contratamos estava preparada para nos arranjar um
veículo e um motorista para fazer uma viagem de quase cinco mil
quilômetros até uma zona de guerra.
Gavin De Becker é renomado segurança pessoal e especialista em
avaliação de riscos, além de ser meu amigo. Anos antes, ele ajudou a
polícia a rastrear e prender um fã desequilibrado que fizera várias ameaças
de morte a mim e a Tracy. A empresa de Gavin também havia feito a
segurança contra paparazzis em nosso casamento e em outros vários
eventos pessoais e profissionais. Quando falei com ele naquela manhã, já
estava trabalhando duro, analisando a situação em conjunto com agências
para as quais já trabalhara no passado. Gavin estava disposto a me ajudar
como pudesse. E concordou em providenciar uma picape com dois agentes
para dirigi-la.
Saímos de Los Angeles por volta das 15h30. A cozinha do hotel nos
preparou alguns lanches e também nos deu travesseiros e cobertores. Eu
não ia dirigir, mas era difícil imaginar que conseguisse dormir.
Tracy decidiu que era possível ficar em nosso apartamento em
Nova York. Os amigos da vizinhança prometeram manter contato constante
com ela. Pedi ao nosso amigo Curtis Schenker, se a situação piorasse, que
199
levasse minha família com a dele para nossa casa de campo em
Connecticut. Mas não havia garantias de que eles teriam permissão para
deixar a cidade. A preocupação do governo com possíveis novos ataques
permanecia alta, por isto o tráfego para entrar e sair de Manhattan pelas
várias pontes e pelo túnel havia sido severamente restringido. Tínhamos
sido alertados de que poderíamos chegar até os portões da cidade apenas
para ter nosso acesso a ela negado, mas, como diz o ditado, só poderíamos
cruzar a ponte (ou não) quando chegássemos até ela. O importante era
chegar lá.
Os funcionários de Gavin, Dennis e Steve, eram extremamente
profissionais, guiando-nos ao longo dos Estados Unidos pelo sudoeste,
passando pelo Texas, por Oklahoma, depois subindo pelo Missouri,
passando pelo Meio-Oeste e em direção ao nordeste. Concordei que
acompanhar as Rochosas, apesar do cenário de tirar o fôlego, apenas au-
mentaria a distância e nos faria perder tempo. Assim que saímos de Los
Angeles, o sinal do celular começou a falhar. Sempre que achava um sinal
que se mantinha, ligava para Tracy, da mesma forma que um corredor de
maratona checa sua pulsação. Em cada região, conseguíamos achar a Rádio
Pública Nacional. O clima no carro era sombrio. Fizemos algumas paradas
para reabastecer o veículo e comer, incluindo um prato de espaguete no
Olive Garden do Texas. Esta foi a quarta vez que cruzei o país de carro.
Apenas quatro anos antes, havia feito essa viagem com Sam. Todavia,
enquanto Sam e eu procurávamos diversidade naquela experiência, nesta
viagem eu sentia conforto em ver coisas que conhecia, cópias carbono de
cultura. Eu sabia que estava comendo um espaguete igual a todos os Olive
Garden do país. Os donos do restaurante estavam tão focados nos eventos
de Nova York e Washington quanto imagino que as pessoas de Nova Jérsei
estivessem. Parando para usar o banheiro em um quiosque de informações
turísticas em Oklahoma, vimos um aviso que dizia: "Todas as agências
200
governamentais estão fechadas até segunda ordem por causa da ameaça
terrorista". Duvido que a Al Qaeda tivesse aquela casinha com dois lugares
em seus planos, e que distribuísse mapas, mas vi aquilo mais como um
gesto de solidariedade que de medo de uma ameaça. Passar por Oklahoma
lembrou-me do ataque terrorista de seis anos antes, quando um prédio
federal foi destruído, matando quase duzentas pessoas. Lembrei da imagem
de um bombeiro carregando um bebê ferido e pensando que não dava para
ficar pior que aquilo. Percebia agora que, quando a coisa fica feia, ela fica
feia mesmo. Não há graus. No dia 13 de setembro, bem cedinho, passamos
por St. Louis. Não consegui me decidir se o Arco Gateway parecia
vulnerável ou desafiador - acho que os dois. Aquela dicotomia resumia o
humor do país que eu estava atravessando como um fantasma.
No fim da tarde, estávamos em Somerset Coranty, na Pensilvânia,
perto da fazenda onde, apenas dois dias antes, um avião fora derrubado
pelos passageiros para evitar que fosse desviado para a Casa Branca. Liguei
para Tracy para dizer onde estávamos e quanto demoraria para chegarmos.
Ela tinha um pedido: será que eu podia comprar pão?
Quando estava escurecendo, chegamos a Nova Jérsei. Do outro lado
do rio Hudson estava Manhattan, cercada de fumaça, poeira e cinzas. A
falta das torres era o que mais se destacava na paisagem. O céu me deu a
impressão de um machucado recente. Olhar para ele foi doloroso, mas eu
não conseguia parar.
Dennis e Steve, sem conhecer os padrões de trânsito de Manhattan,
perderam a primeira saída. Fizemos a volta na ponte George Washington, a
única rota viável para entrar na cidade vindo do oeste. Uma última parada
para abastecer e, para cumprir o que Tracy havia pedido, comprei pães.
Entramos numa longa fila de carros e caminhões que tinham de passar pela
segurança combinada de polícia e exército. Dois dias tinham se passado
desde que saíramos de Los Angeles, e, tendo chegado, senti um frio na
201
barriga pelo que iria encontrar. Sentia que estava voltando para casa, mas,
ao mesmo tempo, para um lugar onde eu nunca havia estado antes.
Meu único desejo concreto, além de me reunir com minha família,
era abraçar meus três filhos o máximo de tempo que eles pudessem
agüentar e, ao abraçar Tracy, abraçar nosso quarto filho, que nasceria em
menos de dois meses. Eu continuava com meu plano de sair com todos da
cidade, pelo menos temporariamente. O rádio dizia que Nova York poderia
sofrer novos ataques; os serviços governamentais eram limitados; e, como
vi ao comprar pão, os comerciantes trabalhavam com filas ininterruptas.
Com o senso de segurança lá no alto pela minha volta, as crianças
não queriam ir para o campo; na verdade, não queriam ir a lugar nenhum.
A vontade delas era de voltar para a escola e ficar com os amigos. Eu
esperava que Tracy, já nos últimos estágios da gravidez, pensasse diferente
e quisesse sair de Nova York. Mas ela sentia que o melhor para nossa
família e para a cidade era que ficássemos por lá.
Dois dias num carro e sem acesso à televisão tinham me deixado
com pouca exposição às imagens inesquecíveis que eram reprisadas a todo
momento nos últimos dois dias. Claro que as imagens iniciais do desastre
estavam gravadas para sempre na minha mente: prédios caindo, pessoas
aterrorizadas correndo entre um mar de edifícios, perseguidas por turvas
nuvens de morte. Contudo, agora eu tinha a chance de testemunhar, em
primeira mão, a coragem, a bravura, o sacrifício e o senso de envolvimento
da comunidade aqui presente, desde o instante em que o primeiro avião
bateu na torre. Comecei a entender por que tanta gente ficou. Muitos
estavam com medo, mas ao mesmo tempo cheios de esperança. Os efeitos
reverberaram por todo o país, porém, enquanto Nova York tinha sido alvo
de um ato dos mais desprezíveis, um dos piores tipos de sofrimento que um
ser humano pode infligir a outro, também tinha surgido sua grande virtude.
A esperança, neste caso, era verdadeiramente um otimismo formado pelo
202
conhecimento de que mais pessoas estavam mais inclinadas a fazer o bem
do que o mal.
HOSPITAL MONTE SINAI, NOVA YORK 3 DE NOVEMBRO
DE 2001
Menos de dois meses depois, Tracy deu à luz nosso quarto filho,
nossa terceira menina. Demos a ela o nome Esmé por causa do título do
conto de J. D. Salinger, "Para Esmé - com amor e desprezo", que
demonstrava bem o que tínhamos vivido nas semanas anteriores. No dia 4
de novembro de 2001, algumas horas antes de voltarmos para casa com
Esmé, olhei pela janela do quarto de Tracy no hospital e vi uma cena
incrível se desenrolando lá embaixo, na Quinta Avenida. A Maratona de
Nova York, que fora ameaçada de cancelamento, estava acontecendo em
grande estilo. Era um tipo bem diferente de explosão: era uma explosão de
cores, energia, resistência - uma verdadeira celebração do espírito humano.
A primeira visão que Esmé teve de sua cidade e de seu mundo foi mais de
amor que de desprezo.
Por que fico firme com Tracy e trêmulo
sem ela
UNIVERSIDADE DE COLÚMBIA, NOVA YORK 11 DE
SETEMBRO DE 2008
Sete anos depois, para lembrar os eventos do 11 de setembro de
2001, os candidatos à presidência Barack Obama e fohn McCain vieram
discursar na Universidade de Colúmbia, mas separadamente - apesar de
ser no mesmo palco e na mesma noite -, a respeito de serviços públicos. O
campus da universidade fica do outro lado do Central Park e a uns doze
quarteirões de nossa casa, por isso decidimos assistir ao evento
203
pessoalmente. Leonardo DiCaprio e Tobey Maguire ocuparam as cadeiras
bem à nossa frente. Algumas fileiras adiante estava Bonfovi e logo à minha
esquerda estava o astro Usher Raymond.
Mas, minutos depois de começar o evento, desejei que tivéssemos
optado por vê-lo na televisão. Meu problema não era com nada do que eu
estava ouvindo dos primeiros oradores. Eu estava bem concentrado. O
problema era meu cérebro. Com quase nenhum aviso, comecei a tremer
dramaticamente, pulando na cadeira e alternando entre dobrar os braços,
que abanavam na minha frente, e sentar sobre as mãos. Todavia, o
desenrolar foi pior, com as pernas ficando enlouquecidas. Estendi-as bem
na minha frente e pressionei uma contra a outra, como se fosse fundi-las
numa só, mais fácil de controlar que as duas rebeldes. Isso me deixou na
arriscada posição de talvez chutar a bunda do Homem-Aranha, mas,
quando as firmei no chão, ambas deram uma acalmada, apenas pulinhos e
escorregando para os lados, o que me deixava na situação de Usher achar
que eu estava flertando com ele ao fazer a "dancinhagay" do senador
Larry Craig. Se houve um momento para eu escapar, ele passou na hora
em quefohn McCain subiu ao palco.
— Eu sabia que o negócio ia mal - Tracy me disse mais tarde - e
que você precisava ter saído e ficado sozinho até os remédios fazerem
efeito. Mas fiquei com medo de que, se você saísse de repente da cadeira
enquanto McCain estava discursando, o serviço secreto caísse em cima.
Quando Judy Woodruff, moderadora da noite com o editor da
revista Time, Richard Stengel, passou para os comerciais logo após a
primeira parte do discurso de McCain, Tracy viu isto como a chance de
que eu precisava. Por razões difíceis de explicar após o momento ter
passado, relutei quando ela se ofereceu para me levar para fora do
auditório. Enquanto me movimentar é inicialmente difícil, comprometer-me
com uma ação simples é ainda pior, e ter Tracy me ajudando a passar por
204
Usher poderia ser mais embaraçoso que minha "dancinha" do senador -
era bem capaz de eu cair sentado no colo do cara.
Apesar de minha esposa se esforçar para me levantar e me levar
para fora, estanquei e não consegui, depois tremi, bati, ondulei durante o
intervalo e tentei convencê-la de que os remédios já estavam para fazer
efeito e de que o alívio era iminente. No entanto, quando as luzes
começaram a se apagar, os tremores pioraram e preparei-me para mais
um assalto na luta comigo mesmo. Transferir deforma isométrica a energia
de uma parte do corpo para outra é um trabalho duro, como apagar o
incêndio de uma casa usando colheres com água, por isso eu pingava de
suor. Vendo as gotas escorrendo por todo meu rosto, Tracy tentou me
ajudara tirar o paletó, mas, após começara tirá-lo dos meus ombros, ela
hesitou e o colocou de volta. Minha camisa azul ficara azul-marinho por
causa de tanto suor. No próximo intervalo, depois do que pareceu ser uma
eternidade, deixei-a me levar para fora.
Em menos de um minuto eu estava num silencioso canto da ante-
sala, virando uma garrafa de água gelada. Convenci Tracy a voltar lá
para dentro; ela prometeu voltar e ver como eu estava no próximo
intervalo, antes de Obama subir ao palco. Passei os dez minutos seguintes
repetindo a mim mesmo quanto eu era sortudo.
Exceto pelo fato de que estivemos na mesma sala que o futuro pre-
sidente dos Estados Unidos, aquela noite não foi nada fora do comum. O
Parkinson sempre me prende numa caixa, e Tracy virou especialista em
abrir as abas, puxar a tampa e me tirar de Já de dentro. Isto não passa
despercebido e fez com que ela ganhasse o respeito e a empatia de outras
pessoas na mesma posição que a sua. De modo compreensível, as pessoas
projetam suas situações na dela. E, mesmo Tracy sendo sempre bondosa e
tendo muita compaixão, este não é um papel no qual ela se sinta
particularmente confortável. Ela simplesmente não vê as coisas dessa
205
forma. Não que ser casada comigo seja fácil - é preciso ter muita paciência
-, mas com certeza ela diria a você, provavelmente rindo, que o maior
desafio dela não é ter um marido com Parkinson, é ser casada comigo. E,
por falar nisso, eu tenho Parkinson.
Sam sempre teve problemas com matemática básica, porém, à me-
dida que foi crescendo, mostrou-se um excelente aluno nessa disciplina -
parece contradição, mas não é. Enquanto a parte básica - somas rápidas,
tabuada e divisões - pareciam confundi-lo, a parte mais complexa da coisa -
álgebra, trigonometria e cálculo - o animavam muito. Acho que Tracy e eu
sentíamos o mesmo com o casamento. Quanto mais complicado ficasse,
mais parecia despertar o melhor em cada um de nós.
O confronto com uma complicação tão terrível quanto meu diag-
nóstico de DP, tão no início do nosso casamento, poderia ter acabado com
tudo. Eu, para começar, não era propenso a ficar reclamando da vida.
Sempre acreditei no que prego agora: que era um feliz ganhador na loteria
da vida e que tinha tudo que poderia querer - uma grande carreira, uma
esposa linda e um filho saudável. Meu esforço era apenas para imaginar
como manter tudo isso. Eu trabalhava mais do que precisava, preocupando-
me mais do que gostaria de admitir e bebendo mais que qualquer um deve
beber. Eu não estava numa boa posição para lidar com o que estava para
acontecer.
Durante o curso de sua vida, Tracy desenvolveu várias característi-
cas peculiares que, apesar de terem sido muito importantes no passado, não
seriam de grande valia agora e, pior, seriam contraproducentes. Ela acredita
piamente que pesquisas e planejamentos meticulosos podem evitar
qualquer desastre. Quando, pouco depois de conhecê-la, descobri que em
meio hipocondríaca, achei isso fofo, mas não pensei naquela época que
ficar extremamente doente é algo que acontece com as pessoas. A mudança
que o Parkinson forçou em mim e, por tabela, em Tracy e na nossa família,
206
não é nada em comparação às mudanças que trouxemos um ao outro.
Damos muito mais um ao outro do que o Parkinson pode tirar.
Para mim e para Tracy, seria muito difícil separar nosso
crescimento pessoal do crescimento de nossa família. Após meu
diagnóstico de DP, algumas pessoas ficaram chocadas e mostraram
preocupação quando contamos que tínhamos planos de ter mais filhos.
- Acham que isto é justo? - perguntaram. - Justo para a criança?
Justo para você? E o futuro?
Sei bem que tipo de destino desolador essas pessoas imaginavam
para mim, mas fico feliz em afirmar que não aconteceu.
Então, depois de Sam vieram as gêmeas, Schuyler e Aquinnah, e,
seis anos mais tarde, Esmé.
O plano familiar
Há um ditado sobre ser pai e mãe que é mais ou menos assim:
quando seu primeiro filho está chupando uma chupeta e a derruba no
chão, você a recolhe, desinfeta em água fervendo para destruir as
bactérias e depois a põe na boca dele de volta. Com o segundo filho você
percebe que uma passada na água corrente da tornara elétrica está bom.
Já no terceiro filho você pega a chupeta do chão, dá uma lambida nela e a
devolve para a criança. No quarto, você dá a chupeta para o cachorro
lamber.
Aos que ficaram curiosos para saber por que eu e Tracy, pais de três
filhos, resolvemos ter mais um já estando na faixa dos 40 anos, podemos
dar as seguintes razões:
-A casa ainda não estava barulhenta o suficiente.
- Nossa mesa da cozinha tinha seis lugares.
- Apenas tivemos uma sensação de que estava faltando alguém.
207
Falando de maneira clara, acho que o que aconteceu foi que, como
família, ainda não estávamos completos. Outra maneira de olhar a
coisa é que, pessoalmente, eu estava muito mais presente no nascimento de
Esmé que no nascimento dos outros três. De volta para o futuro II e III, Dr.
Hollywood - uma receita de amor, Aprendiz de feiticeiro, Um talento muito
especial, Por amor ou por dinheiro e Os puxa-sacos - fiz sete filmes antes
de Sam fazer 5 anos. E nos primeiros quatro anos de vida das gêmeas eu
estava estrelando e produzindo uma série semanal de TV Eu já estava havia
dez anos com Parkinson e entrando em meu primeiro ano de aposentadoria
de Spin City quando Esmé nasceu. Eu estaria por perto para ouvir suas
primeiras palavras, para ver seus primeiros passos; iria ver a riqueza e
profundidade da personalidade dela.
Se Esmé fosse dividir a chupeta com nossa cadela, Daisy, podería-
mos dizer que Sam, nascido menos de um ano depois de Tracy e eu nos
casarmos, passou muito tempo esperando aquela água do ditado ferver.
Como pais de primeira viagem, Tracy e eu caímos numa rotina de exagero
no que, olhando agora, eram as coisas mais básicas do processo. Fomos a
muitas aulas de Lamaze e de pais iniciantes (botar fraldas em bonecas, e
por aí vai). Reagíamos a cada choro ou resmungo como se fosse uma sirene
de ataque aéreo, sem conseguir acreditar que aquele bebê de saúde de ferro
poderia manter uma respiração regular.
Raramente longe de nós, Sam passava as férias conosco e também
ia a reuniões de negócios e restaurantes. Se algum de nós estivesse tra-
balhando, arranjávamos acomodações no estúdio. Vigílias noturnas ao lado
do berço eram um ritual, ainda mais se ele chorasse querendo a mamadeira
ou fizesse barulhos estranhos pedindo por uma troca de fralda. Tudo isso
era para ter certeza de que ele ainda estava vivo, um milagre contínuo.
"Milagre" não é uma palavra forte demais quando é um jovem pai
que a usa. Meu sentimento era de que (conheço outros pais com a mesma
208
ilusão) esse bebê, o nosso bebê, tinha um significado especial. Da mesma
forma que toda noiva no dia do casamento é Grace Kelly, antes de perceber
que não se casou com um príncipe e que mora era Bayonne, Nova Jérsei, e
não Mônaco, pais de primeira viagem acham que deram à luz o Menino
Jesus. Quanto antes perceberem que estão errados, melhor para o Júnior.
Um grande número de livros e de programas de TV a cabo alimenta esse
narcisismo. Claro que não existe um jeito certo de cuidar de um bebê e
criar um filho. Até mesmo os mais bem-intencionados, os pais e mães mais
certinhos, acabam fazendo besteiras colossais alguma hora.
Quando Sam nasceu, troquei minha Ferrari de motor potente, dois
lugares, roncadora, uma máquina mortífera preta, por um ultrasseguro e
familiar SUV Consultamos a revista Consumer Reports para achar a ca-
deirinha de bebê com a melhor nota nos testes de qualidade e segurança.
Certa vez, após um dia de brincadeiras (bem, Sam tinha uns cinco meses,
então não foram tantas brincadeiras assim), estávamos voltando de carro
pela Mulholland Drive, percorrendo as difíceis curvas com extremo
cuidado. Sam estava resmungando baixinho no banco de trás, enquanto
Tracy e eu conversávamos com descontração, provavelmente sobre quão
Sam era brilhante em relação ao amiguinho que não era nenhum Menino
Jesus. Chegamos na garagem, paramos e, ao olharmos para trás, Sam não
estava lá. Entramos em pânico. Pulamos um por cima do outro para tentar
ser o primeiro a achá-lo. E lá estava ele, ainda com seus res-mungos, feliz,
de ponta-cabeça, atrás do banco do passageiro. Ele ainda estava bem preso
na caríssima cadeirinha de bebê, que só não tinha sido presa direito no
caríssimo carro. Hoje isso é quase engraçado - bem, nem tanto -, mas
naquela época ficamos horrorizados.
Examinamos cada pedaço de Sam, procurando por algum machu-
cado, e imaginamos, seriamente, se haveria algum dano psicológico de
longo prazo, qualquer trauma que pudesse combinar com um dano físico.
209
Acho que discutimos vários dias sobre quem seria o culpado - se eu,
porque, como motorista, tinha a responsabilidade de me certificar de que
todos os passageiros estavam em segurança, ou se, precisamente por ser o
motorista, Tracy poderia ter cuidado disso com tranqüilidade. Perguntamos
aos nossos amigos, igualmente pais jovens, se eles tinham tido experiências
similares e ficamos vermelhos de vergonha quando responderam:
- Bem, não - e sem muita sinceridade ainda acrescentaram: - Mas
não precisam se preocupar com isso.
Nem preciso dizer que jamais aconteceu de novo. Depois daquele
dia, o carro nunca mais foi ligado antes de termos certeza de que ele estava
bem preso.
Claro que, se o mesmo acontecesse com Esmé, iríamos checar se
estava tudo bem com ela e, vendo que sim, trocaríamos um "Bem, acon-
tece", e iríamos direto para a parte de ter certeza de que aquilo jamais
aconteceria de novo.
Como convidado freqüente dos programas de David Letterman,
descobri que podia conseguir risadas fáceis dele contando histórias dos
meus filhos e a respeito de como ser pai. Isso funcionou muito bem na
primeira personificação do programa, na NBC, quando Sam era pequeno e
estava começando a andar. O trabalho de ser pai sempre confundia Dave.
Para ele, parecia uma ocupação em tempo integral, com mais riscos que
recompensas.
— Claro — ele diria -, crianças pequenas são bonitinhas e tudo
mais, mas simplesmente não entendo o que você faz com elas.
Eu sentia que Dave tinha aquela aversão dos solteiros pela intermi-
nável responsabilidade de criar um filho, e decidi alimentar sua ansiedade
falando mais sobre isso.
- Bem, Dave - respondi -, passear com Sam ou com qualquer crian-
ça de Z anos é basicamente como ter de vigiar um suicida. A missão deles
210
é achar um jeito de se machucar a cada instante... mijar numa
tomada, lamber o focinho de um pitbull, correr atrás de um caminhão de
sorvete pelo meio da rua... e seu trabalho como pai é resolver essas coisas
antes que elas aconteçam.
Superproteção pode ser um conceito duro para um pai jovem com
um único filho para se agarrar. Além da vigilância constante, Tracy e eu
tornamos nossa casa à prova de bebês. Mais que colocar objetos afiados,
remédios, venenos e outras coisas perigosas fora do alcance de Sam, pro-
tegemos cada canto das mesinhas de centro, todas as tomadas e cada porta
ou escada com um portãozinho. Não lembro de haver uma proteção desse
nível quando eu era criança. Quem tinha condição de pagar por tudo isso?
Mas me lembro de um método usado pelas mulheres das bases militares
nas quais cresci para prevenir as crianças de se machucarem. Elas
colocavam os filhinhos num colete salva-vidas amarrado ao varal no
quintal de casa.
Vejo o jeito mais livre e desencanado da minha mãe de criar os
filhos como algo que não era nem negligente nem descuidado - era algo
meio darwiniano. Ela se arriscava e nos colocava em risco, e tenho de
admitir que os resultados foram mistos. Eu tropeçava, caía, batia nas coisas
e passava por lugares e situações perigosos quando tinha uns 6 anos de
idade, algo pelo qual Sam não vai passar a vida inteira. Um dos
condomínios de apartamentos em que moramos tinha um muro de concreto
em volta do estacionamento. O atalho que eu pegava para vir do
apartamento de meus amigos para o nosso envolvia passar em altíssima
velocidade por uma curva daquele muro. Minha mãe poderia ter estado
naquele ponto toda vez que eu viesse correndo e me avisado de que era
bom eu olhar para onde ia, mas eventualmente eu ainda iria dar uns
encontrões com o canto do muro, com força suficiente para fraturar o
crânio e ter de levar catorze pontos na cabeça. Na ausência das mães,
211
paredes de concreto são ótimos professores. Eu era o quarto de cinco filhos.
Meus pais trabalhavam - e meu pai geralmente estava longe, em algum
posto militar -, então eu ficava bastante tempo sozinho. Se esse tempo livre
teve o preço de uns dentes quebrados, vários pontos levados e uma
concussão ocasional, mesmo assim valeu muito a pena.
Se todos os riscos são removidos do ambiente da criança, ela ficará
fadada a viver uma vida sem nunca correr riscos. Ironicamente, foi quando
as gêmeas nasceram e o mundo de Sam ficou mais cheio de gente que ele
teve mais espaço para se mexer. Se Tracy estivesse esperando apenas mais
um bebê, talvez tivéssemos conseguido manter uma boa vigilância dos
nossos dois filhos.
Claro que não é como se Sam fosse começar a surfar, esquiar, mer-
gulhar ou decidir sozinho que iria estudar na Califórnia, com um continente
inteiro separando-o do lar, e ainda assim continuaríamos a vigiar cada
passo dele.
Durante os últimos dezenove anos, passei a entender que os pais
não têm como carregar nos braços todos os "poderia ter", "deveria ter",
"tinha de", "talvez" e "e se". Cada momento novo já traz um fardo a ser
carregado, e aprendi que, em especial quando meus braços foram se tor-
nando mais trêmulos, às vezes o melhor é desencanar.
Desencanar não quer dizer apenas evitar as coisas desagradáveis;
significa também entender quando o assunto não é da sua alçada.
Aquinnah, minha filha mais velha (nasceu dez minutos antes de Schuyler),
é bailarina clássica. Hoje com 14 anos, ela faz bale desde a pré-escola.
Aquinnah é graciosa - não só na aparência, mas também pela flexibilidade,
que lhe permite se dobrar inteira e nunca cair. Tracy também tinha feito
bale, mas admitia que a paixão e o progresso de Aquinnah estavam muito
acima que os dela. Ela está nos apresentando a experiências que nunca
imaginamos ter.
212
Fileira do meio do Teatro Estadual de Nova York do Lincoln
Center, sento-me ao lado de Tracy. Esmé, extasiada, pula de um colo para o
outro enquanto nos aproximamos do momento de O quebra-nozes, quando
a impossível mulher gigante parte as dobras de sua saia e libera uma
dúzia de pequenas dançarinas, que emergem e dançam pelo palco.
Meu foco é a terceira bailarina da esquerda para a direita - pequena, etérea
e arrebatadoramente feliz. Sinto-me mais em casa num jogo de beisebol
que no bale, mas agora estou me sentindo absolutamente em casa; não na
minha, mas na de Aquinnah.
Schuyler dançou durante alguns anos também. Entrou na mesma
prestigiosa escola de bale da irmã e apareceu em algumas produções pro-
fissionais. Mas há dois anos ela disse que queria experimentar outras
coisas, talvez algum esporte. Para os gêmeos, a vida de um é inexpli-
cavelmente ligada à do outro. Andar para fora da segurança e do enig-
mático mundo de ser uma metade para virar um indivíduo completo é algo
bem assustador. Os pés de Schuyler sentiram-se melhor com chuteiras de
futebol que com sapatilhas de bale. Alongar num colchonete a animava
mais que girar pelo palco. Deixei para trás as últimas ilusões de que nada
de bom poderia transpirar do coração da criança, do seu rosto ou até
mesmo de sua alma sem que eu colocasse lá, quando a vi correndo pelo
campo.
Do meu lugar no quase vazio Estádio Icahn, segui o ponto louro e
azul, que era Schuyler de uniforme de corrida, enquanto ela corria pelo
campo e se aquecia nas raias antes da partida. Ela cumprimenta uma das
colegas de equipe, apesar de que, conhecendo Sky, sei que ela não liga
muito para quem ganha e quem perde. Várias escolas independentes de
Nova York estão participando, e a competição parece formidável. Schuyler,
meio rindo, deixa um grupo de amigas barulhentas e segue em direção ao
início da pista, onde os corredores estão se alinhando para sua corrida.
213
Como é baixinha, perco-a de vista várias vezes, quando passa por trás de
meninas mais altas e maduras de corridas anteriores, mas as horas em que a
vejo ela parece estar muito feliz, sorrindo como sempre e totalmente
despreocupada com o fato de que a competição vai começar. Ando pela
arquibancada até um lugar no qual vejo o meio da pista. Será que ela sabe
como fazer isso? Parada na linha de partida enquanto as outras
competidoras alongam as grandes pernas e se aquecem, Sky parece o
cordeiro diante do lobo. A única coisa que me impede de gritar conselhos é
o fato de não ter nenhum a oferecer, sabendo pouco mais sobre corridas do
que sei de dança - ou seja, quase nada. O juiz levanta a arma para dar o tiro
inicial. Sky olha para baixo e depois levanta a cabeça, e aquele meio
segundo é transformador. Sua face angelical é estoica e confiante; seus
olhos ficam semicerrados. Jesus, penso quando é dada a largada. Ela vai
ganhar essa coisa. E ganha mesmo. E com folga.
Esmé, sendo nossa quarta filha, nunca foi filha única como Sam ou
conectada fisiológica e psicologicamente a alguém como as gêmeas o são.
A cena a seguir, ou versões dela, aconteceram inúmeras vezes em
nossa casa nos últimos anos: estou sentado na banqueta da cozinha no
nosso apartamento de Nova York, lendo o jornal, comendo alguma coisa ou
ajudando uma das outras crianças com a lição de casa, e Esmé passa por
nós. Ela se move com um propósito. Não cumprimenta ninguém, mas
consigo mandar um "Ei, Ez", e a mão dela, a última parte de seu corpo a
sair pela outra porta da cozinha, me faz um cumprimento, mais como um
tchau. Alguns minutos depois ela volta pela mesma porta, agora carregando
um bichinho de pelúcia, um rolo de fita adesiva e uma caixa de ovos. Já sei
que ela vai voltar outras vezes. Quando vem, está usando capa de chuva,
chinelos de dedo e um par de asas de fadas da Disney. Ela parece estar
lendo as instruções em um livro. Quando passa de novo, nem levanto a
cabeça, apenas pergunto:
214
- Esquema mirabolante?
- Isso - ela responde, lançando um olhar rápido na minha direção. -
É um esquema mirabolante, e dos bons.
"Esquema mirabolante" foi a expressão que Tracy usou há alguns
anos para definir todos os planos excêntricos e imaginativos criados por
Esmé, em parte para entreter os outros, mas principalmente para seu
próprio divertimento. Podia ser um elaborado show que ela apresentaria ilc
sua pequena cama, utilizando os talentos de seus muitos bichinhos de
pelúcia ou de qualquer ser vivo que estivesse perto num momento da sua
inspiração. Podia ser uma música que ela escreveu ou uma dança que
coreografou, um livro que ilustrou ou uma torre balançando que ela montou
na banheira usando várias coisas.
A criatividade de Esmé é definitivamente mais natural que ensi-
nada. Ela já nasceu velha; sempre a descrevo como alguém que já esteve
aqui antes. Talvez não seja bem isso, mas ela parece ter vindo ao mundo já
com uma familiaridade de lidar com o básico e além dele. É curiosa,
inventiva, criativa e engraçada - ela é quem eu sempre quis ser quando
estava crescendo. O truque que ela mais domina - ou talvez seja uma
habilidade, e não um truque - é se mover sem esforço entre o mundo da
imaginação e o normal no qual todos nós vivemos. Ela não é uma daquelas
pessoas que foge para o mundo da imaginação; apenas tem dois passaportes
e viaja muito. Sempre alerto babás, professoras, parentes que nos visitam
ou qualquer um que queira dar algo para ela fazer:
- Se você chegar e ela estiver deitada no sofá, no tapete ou no galho
de uma árvore, com os olhos mirando perdidamente o espaço enquanto a
mão direita brinca com o cabelo atrás da orelha, ela não vai fazer mais
nada. Está ocupada. Desencana.
***
Odeio dizer isso, mas existem pais que vêem os filhos como instru-
215
mentos que devem ser usados. Tudo se resume a que cordas apertar e a
quão afinadas ficaram. Eu os vejo, usando a mesma metáfora, mais como
uma jukebox. Coloque sua moeda, às rezes é preciso dar um tapinha do
lado para fazer funcionar, mas nove entre dez vezes, se você tiver sorte,
elas vão tocar as próprias músicas. Essa sempre foi a grande emoção para
mim e Tracy. Descobrir o que nossos filhos já tinham descoberto, ouvi--los
contando suas alegrias e sucessos, deixar que sejam donos de suas
conquistas e lhes dar crédito pelas coisas que aprenderam são a melhor e
mais fácil parte de ser pai
Mas é muito mais difícil, claro, deixar que também sejam donos de
seus fracassos e desapontamentos. A verdade é que você não tem escolha.
Em alguns casos, o peso pode ser dividido, mas nunca será carregado
apenas por você.
A experiência a seguir é familiar a todos os pais, e Tracy e eu já
passamos por isso muitas vezes com nossos quatro filhos: agachar-se no
chão do banheiro às 3 horas, segurando uma toalha úmida na testa de seu
jovem filho, que, não tendo idéia do que o atingiu, está ajoelhado ao lado
do vaso sanitário, vomitando loucamente, além de tremer e suar. É
provável que o mesmo drama se repita três ou quatro vezes durante a noite.
Ninguém vai dormir. Os lençóis sujos tirados da cama estão numa pilha ao
lado da máquina de lavar porque a primeira vez que aconteceu você estava
sonolento demais para perceber por que a criança foi até seu quarto de
maneira tão urgente. Em uma das pausas, você coloca o termômetro para
ver se a febre baixou. Quanto menor a idade, mais você se preocupa. Com
tudo isso, você comenta, em geral:
- Eu sei, eu sei. Tá tudo bem, já tá acabando. Essa foi a última vez.
Você vai ficar bem, filho(a).
Mas não é isso que você gostaria de dizer. A vontade é de jogar a
cabeça para trás e gritar:
216
- Pelo amor de Deus, por favor, passe isso pra mim! Deixe que eu
fique doente.
Mas você não faz isso porque simplesmente não pode. Não
funciona assim. E só estou falando das doenças básicas do dia a dia. Todos
sabemos que há pais que adorariam que isso fosse o máximo que os filhos
tivessem de enfrentar. O sofrimento deles é inimaginável. Aqueles de nós
que são abençoados por ter filhos que continuam saudáveis, inteiros e
felizes podem pelo menos apreciar essas noites no banheiro como uma
gentil lembrança de que você não tem como fazer a dor de seu filho
desaparecer. Você pode apenas estar presente, atento, ser compreensivo, ter
compaixão e amar aquela criança com todas as suas forças.
Claro que meus 47 anos, minha infância, os altos e baixos da car-
reira, minha experiência e rendição ao álcool, meu diagnóstico e a vida
com Parkinson, assim como tudo que veio antes, depois e no meio, me
ensinaram bastante sobre o poder de recuperação. Não importa quão bem-
intencionado eu seja, se por acaso conseguir convencer meus filhos de que
posso resolver todos os problemas deles, amenizar todas as dores e poupá-
los dos altos e baixos da vida, estarei prestando um enorme desserviço a
eles.
SETEMBRO DE 2008
A educação formal do meu pai foi apenas até o primeiro ano do
ensino médio, apesar de ele sempre lembrar que depois se formou com
grandes honrarias na "escola da vida". Cheguei até o último ano do ensino
médio e, na primavera do que seria o ano da minha formatura, enquanto
meus colegas falavam das provas finais, eu morria de calor no velho Dodge
do meu pai, a caminho de Los Angeles, para encontrar um agente.
Não que a busca do conhecimento não fosse encorajada em nossa
família; só não assumíamos que a estrutura seria automaticamente o que
desencadearia o processo do conhecimento. Tracy vem de uma família
217
altamente escolarizada. Entre seus parentes mais próximos há professores,
doutores, escritores e empresários bem-sucedidos. Na verdade, a única que
não fez faculdade foi Tracy. Ela entrou na universidade que queria, mas
postergou a matrícula enquanto cursava a escola de teatro e tentava fazer
sua carreira decolar. E, como isso aconteceu logo, os planos de fazer
faculdade foram ficando para trás.
No entanto, por muitas razões diferentes, sempre achei que Sam iria
para a faculdade; o ensino que ele recebeu durante toda a vida certamente o
preparou para uma escolha como esta. Tenho certeza de que a porcentagem
dos alunos da escola de Sam que vão para a faculdade e a dos da minha que
foram é inversamente proporcional. Bem, isso não é uma verdade absoluta;
acredito que 100% dos alunos da escola de Sam vão para a faculdade,
enquanto apenas um punhado de meus colegas chegou a entrar em uma,
com exceção de um ocasional estudante de faculdades técnicas. No último
inverno, Sam foi para a Universidade Stanford, na Califórnia. Por ser meu
primeiro filho e o único menino, ele ficou sujeito a muito mais projeções e
idealizações da minha parte. A tentação é sempre ver a jornada dele pelas
lentes da minha experiência. Fiquei mais consciente disso porque, sendo
filho de pai famoso, Sam também estava sujeito às projeções de outras
pessoas, além das minhas.
Imagino que a expectativa com a qual Sam sempre teve de lidar é a
de que, como sou um ator bem-sucedido, ele também escolheria a mesma
carreira. Fora ter levantado a mão para se candidatar a assistente do mágico
em seu aniversário de 6 anos, Sam nunca mostrou interesse pela indústria
do entretenimento. Se existe um padrão de "criança celebridade", Sam
definitivamente não se enquadrava nele. Em especial nos últimos dez anos,
mais ou menos, vivemos nossa vida bem longe dos holofotes, mas, se ele
fosse inclinado a ser visto e aparecer, havia muitas oportunidades para isso
- porém, não era o estilo dele. Sam foi para a faculdade não para fazer
218
graduação em teatro, mas buscando especializar-se em coisas do seu
interesse, como matemática e ciências. Tenho certeza de que a visão dele
de como sua vida será depois da faculdade ainda é incerta. Ele já falou em
trabalhar com pesquisas médicas, com foco em biologia celular. Quando
conto isso para as pessoas, em geral vejo sempre a mesma reação. Posso
ver as pessoas concatenando os pensamentos, antes de olharem para mim
buscando uma confirmação:
- Quando você diz pesquisas médicas, é algo como pesquisas sobre
Parkinson? - elas me perguntam.
Sei aonde querem chegar. É uma noção romântica da coisa, bem
mais forte que outros duetos feitos por pais e filhos. Espero um pouco antes
de responder, deixo que pensem um pouco e cheguem ao ponto de as
lágrimas quase rolarem.
- Olha, ficarei muito feliz se ele conseguir curar a calvicie.
Não forcei Sam a fazer isso. Apenas desencanei e o deixei escolher.
Já chegamos, pai?BASE CHILLIWACK DO EXÉRCITO CANADENSE
COLÚMBIA BRITÂNICA • 1968
Em 1968, meu pai e sargento do exército recebeu a notícia de que
estava sendo transferido da base de Chilliwack para a instalação militar
NORAD NATO, em North Bay, Ontário. Para meus pais e meus três
irmãos mais velhos essa não era uma boa notícia. Para meu pai, foi algo
que o pegou de surpresa. Parecia uma punição ou, no mínimo, um capricho
dos homens no comando. Estando no exército havia vinte anos, ele se
ressentiu de ser forçado a se mudar com a família para o outro lado do
continente, depois de já ter mudado tantas outras vezes - três vezes desde
219
que eu tinha nascido e muitas outras antes disso. Para meu irmão e minhas
irmãs mais velhos, que estavam bem entrosados no ensino médio, aquilo
significava perder muitos amigos e interromper o ano letivo. Minha irmã
menor, Kelly, só um pouco mais velha que eu em 1964, quando nos
mudamos pela última vez vindos de Edmonton, Alberta, não tinha cons-
ciência daquele motim. Para mim seria uma grande aventura - minha
primeira grande viagem de carro.
Quaisquer que fossem as razões e os porquês da migração da nossa
família para o leste, como o fizemos é que ainda parece um milagre para
mim, no sentido das vantagens pessoais. Tínhamos um carro fodão - um
Pontiac Laurentian azul-royal com quatro portas, bancos contínuos na
frente e atrás, e alugamos uma caixa para carregar mudanças, que ia no teto
do automóvel. O porta-malas estava tão abarrotado que meu pai teve de
amarrar a porta com uma corda para evitar que abrisse e derrubasse parte
da nossa vida na Transcanadá. Dentro do carro, meu pai dirigia, minha mãe
ia do lado do passageiro e minha irmãzinha Kelly, de 3 anos, sentava-se
entre eles. Atrás, Karen (18 anos), Steve (15 anos), Jackie (12 anos) e eu
ocupávamos cada espaço livre do banco de vinil.
Carros como o que tínhamos vinham equipados com cinto de se-
gurança, mas eram aqueles para a cintura, raramente usados; nós, pelo
menos, não estávamos nem aí para eles. Espere, não, não é verdade. Em
algum lugar nas proximidades de Moose Jaw, na província de Saska-
tchewan, após uma batalha por causa de um gibi, joguei a parte de metal de
um dos cintos na cabeça de Jackie, com força suficiente para fazer um corte
bem atrás da orelha dela. Essa bagunça, que virou quase um derramamento
de sangue, fez com que minha mãe virasse para trás na vã tentativa de nos
separar. Meu pai, abrigado atrás do volante em sua camiseta de manga
curta, com o braço tatuado apoiado na janela aberta do carro, pegando sol
apenas na ponta do cotovelo, gritou algo assustador e, dadas as
220
circunstâncias, absurdo, como:
- Não me façam ir aí atrás!
Se fosse uma viagem de férias, e não aquela por causa do trabalho,
ele teria dito:
- Se não pararem, viro o maldito carro e voltamos para casa! Mas
isso era impossível, para tristeza do meu pai.
Com o preço da gasolina bem abaixo dos 50 centavos por galão e
nossa acomodação provida por uma grande barraca de lona do exército,
carregada na caixa do teto do carro, que era montada em acampamentos de
cidades como Peapod ou Flin Flon, nossas despesas eram mínimas.
Todavia, tenho certeza de que, mesmo assim, excederam qualquer pequeno
auxílio-viagem que o exército tenha se disposto a pagar. A cada manhã, a
tenda era desmontada antes de o sol nascer e partíamos em seguida. Havia
pelo menos duas razões para isso: a primeira, a falta de ar-condicionado,
como a maioria dos carros daquela época, por isso queríamos rodar o
máximo possível antes de o Pontiac se tornar uma grande
sopa de suor, fedor e mau humor colocada para ferver no calor da
tarde. A outra tinha mais a ver com prazer que com praticidade. Pegando a
estrada cedo, chegávamos à cidade seguinte e arrumávamos nossa tenda
ainda de dia, com luz do sol e tempo suficientes para explorarmos as re-
dondezas - uma praia, um playground ou, se tivéssemos sorte, alguma da-
quelas atrações bregas de beira de estrada, como um zoológico de répteis /
posto de gasolina ou uma floresta petrificada. A proximidade do Canadá
com o Polo Norte significava que mesmo os primeiros dias de verão con-
tinuavam claros até bem depois do final da tarde, com o céu bem azul até
umas 22h30. Talvez seja por isso que minha infância parece ter sido tão
longa, enquanto a dos meus filhos parece passar voando.
Meu pai tinha certas regras de estrada que nós, como passageiros
(ou carga humana, como sei que ele preferia pensar em nós em algumas
221
ocasiões), tínhamos de aceitar. Minha mãe, a navegadora, tinha de ficar
atenta à rota do dia, estar familiarizada com aquela região no mapa e,
quando perguntada, passar a informação para meu pai de forma clara e
sucinta. Nunca sugeríamos que se pedisse informação a outro motorista,
atendente de um posto ou alguma garçonete. O pesadelo do meu pai era
chegar a uma encruzilhada e perguntar a um morador local se fazia
diferença, para quem ia para Winipeg, por exemplo, e a pessoa responder
presunçosamente:
- Não, para mim não faz diferença.
Minha mãe não tinha permissão para avisar meu pai de que ele esta-
va prestes a virar à esquerda numa rua lotada, mas se ele virasse rápido
demais ou devagar demais, quase atropelando alguém, ela podia reclamar.
Isso era feito para viagens tensas.
Já nós, as crianças, nem pensávamos em participar de nada que en-
volvesse meu pai e a direção, ficando inteligentemente em silêncio por
longos períodos de tempo. Falando em tempo, sair do carro e esticar-se
estava reservado para as paradas para comer ou ir ao banheiro. Para isso
tínhamos, em 1968, nas estradas canadenses, alguns McDonalcTs, Dairy
Queen ou Kentucky Fried Chicken, mas em geral tínhamos mesmo
vários daqueles pequenos postos/restaurantes de beira de estrada. Ainda
não havia a grande proliferação de grandes outâoors nas estradas anun-
ciando grandes cadeias de fast-food, um fenômeno que começaríamos a ver
três anos depois, em nossa viagem de volta. Se passássemos por um
Burguer King ou um Dairy Queen, seria só isso o que faríamos - passar.
Nosso orçamento não permitia muito mais que uns sanduíches de frios no
pão branco e uma salada de repolho que minha mãe preparara no camping
pela manhã e colocara em nossa bolsa térmica.
Mais que uma parada num fast-food, meu maior desejo era que meu
pai parasse num lugar, qualquer lugar, que tivesse banheiro - podia ser
222
grande, pequeno, limpo ou sujo, desde que tivesse banheiro. Só o fato de
não precisar mais ficar no acostamento da Transcanadá, quase pelado e
fazendo minhas necessidades na frente de todos que passavam, já seria mil
vezes melhor que um Big Mac.
Nunca entendi a aversão de meu pai pelas paradas para ir ao banhei-
ro. Em parte, imagino, era a crença de que as piores coisas só aconteciam
com você se fosse trouxa o bastante para sair da estrada principal. A pers-
pectiva de se perder nas pequenas estradinhas do campo canadense já era
motivo suficiente para que morrêssemos de dor nos rins e na bexiga de
vontade de fazer xixi. Negociações ferozes das pessoas do banco de trás
eram sempre apoiadas com declarações de solidariedade implorando para
que meu pai desse uma parada. A resposta dele era que devíamos
sincronizar nossas necessidades. Ele nunca precisava parar para isso, o que
era incrível, levando em conta a quantidade de café que consumia em ura
dia. Juntando, torcendo ou cruzando as pernas, tentávamos nos distrair
lendo uma velha revista Mad pela milésima vez ou jogando outra rodada de
soquinho, que era simplesmente dar um soco no braço da pessoa ao lado se
aparecesse um fusca, algo tão comum que todos ficamos com manchas
roxas nos braços. Por sorte, minha mãe precisava de paradas freqüentes.
Sempre lhe empurrávamos café pela manhã, já que ela não era imune às
suas propriedades diuréticas como meu pai. O melhor jeito de aumentar a
irritação do meu pai era perguntar:
-Já chegamos, pai?
De vez em quando, esquecendo que este era um pecado capital, um
de nós fazia a pergunta, percebendo apenas a gravidade do erro ao escutar
os resmungos e vendo o encolhimento dos outros. Meu pai lançava todo
tipo de injúrias e, nesse ponto, todas as apostas estavam encerradas. Se
precisasse ir ao banheiro, melhor se preparar para segurar. Se estivesse com
fome, podia se preparar para ficar faminto. "Já chegamos, pai?" era a
223
pergunta mais inútil e estúpida que alguém podia fazer.
- O carro ainda está se movendo? Já estamos montando a barraca? -
Essas eram pistas óbvias de que ainda não tínhamos chegado lá naquele
momento da pergunta. E, para nos dar uma lição e deixar bem claro quanto
odiava isso, meu pai prometia que, se tivéssemos chegado lá, ele começaria
a andar a cinco quilômetros por hora, estabelecendo um novo lá ao qual
não chegaríamos tão cedo.
Meu pai era o rei da estrada, e aquelas eram suas leis.
Finalmente chegamos a North Bay, Ontário, nove dias depois
deixarmos CB. Como eu disse, meu pai tinha dúvidas das razões pelas
quais havia sido transferido para lá, mas claramente não era porque estava
desesperado para mudar ou porque estavam precisando das suas habi-
lidades por lá. Não havia uma habitação do exército para nós, por isso
continuamos usando a velha barraca. Pelo restante do verão e até perto do
inverno, ela ficou armada num camping ao lado do lago Nipissing, servindo
de residência para nós. Meu irmão dormia no carro.
Imagino que meus pais eram infelizes com isso. Eu acordava com
suas tensas conversas em voz baixa, do lado de fora da barraca, enquanto
aqueciam o café da manhã. Mas, mais uma vez, para mim era apenas uma
extensão da aventura. Havia outras crianças por lá, apesar de serem apenas
pessoas em férias, e não refugiados como nós. E uma pequena liga local de
beisebol jogava num campinho ali perto. Lembro-me com certa culpa de
que sempre patrulhava as sombras embaixo da arquibancada com meu
novo amigo, Spike, coletando moedas que caíam dos bolsos dos
espectadores e dando olhadas ocasionais embaixo das saias das moças que
se sentavam acima. Minha irmã mais velha, Karen, desesperada por ter
deixado o namorado Ed para trás, ficou surpresa e muito feliz, ao contrário
de meu pai, quando Ed, que se descrevia como hippie, se lançou numa
travessia solitária do continente e chegou misteriosamente ao nosso
224
acampamento para levar Karen embora. Eles se casaram em um ano.
Resumindo, independente do que a família pensasse desse drama
doméstico, acho que ficamos todos felizes por ter mais espaço para nossos
sacos de dormir. O calor de agosto incitou meus pais a conseguirem uma
casa permanente para nós, em tempo do início das aulas, em setembro -
algo com mais que uma lona entre a família e o frio do outono de Ontário
ou, pior que isso, o frio do inverno.
Eles encontraram um modesto bangalô de três quartos perto da ci-
dade quase rural de Callander, local de nascimento dos quíntuplos de
Dionne. No ano seguinte, mudamo-nos para um quartel militar privado.
Dois anos depois, em 1971, meu pai aproveitou a primeira oportunidade
que teve e se aposentou. Nossa família se preparou e entrou no Pontiac para
fazer tudo de novo, mas desta vez em direção ao oeste. Karen e Ed, já
casados e com um filho, já tinham voltado para a Colúmbia Britânica.
Steve, recém-formado no ensino médio e bem acostumado a grandes
andanças, estava viajando pela Europa com amigos, carregando mochilas
com a bandeira canadense para evitar discussões a respeito do Vietnã.
Desta vez era Jackie, agora com 15 anos, que estava deixando um namo-
rado para trás. Lembro-me dele como um cara muito legal, que tinha um
Plymouth Barracuda envenenado bem legal.
Em todos esses anos, convenci-me de que, se tivesse meus próprios
filhos um dia, iria arrastá-los pelo continente também. Era apenas questão
de quando, como, de onde e para onde.
A volta do “Ja chegamos, pai?"CONNECTICUT • 7 DE JUNHO DE 1997
Se eu não conseguir construir esta droga âe barco, decidi, a
225
viagem de carro estará cancelada.
Era o primeiro final de semana de junho de 1997; na segunda-feira
seguinte seria meu aniversário de 36 anos. Na terça-feira, Sam e eu, com
nosso amigo John e seus dois filhos, Emily e Josh, ela um pouco mais
velha e ele um pouco mais novo que Sam, iríamos embarcar num Chevy
Suburban novinho e partir numa excursão de dezesseis dias atravessando os
Estados Unidos. No entanto, ao deparar com a atordoante superestrutura
marinha e seus detalhes - a cobertura, a hélice, o eixo motor, o assoalho e a
casa do leme - que estavam bem à minha frente, eu podia sentir a dúvida
sobre a viagem instalando-se na minha mente.
Perceba que o barco não tinha nada a ver com nossa viagem de
carro. Tendo sido um presente antecipado de um amigo da Costa Oeste, o
pequeno barco esportivo de controle remoto tinha sido entregue na sexta-
feira pela Federal Express. Era um modelo ao estilo "monte você mesmo"
de dois pés, do tipo que as pessoas apostam corrida no laguinho do Central
Park. A idéia por trás do presente era que eu poderia montá-lo com Sam e
depois nos divertir revezando o uso do controle remoto enquanto faríamos
a pequena embarcação cruzar nossa piscina em Connecticut. Agora, vou
dizer uma coisa a você: se acha difícil dizer barco de brinquedo três vezes
bem rápido, tente montar um, E, se achar que está apto para o trabalho,
tente montar um tendo Parkinson.
Abri a caixa na mesa de jantar dos meus sogros em Connecticut. Ti-
rei todas as peças da embalagem, chequei-as com o inventário que tinha
vindo com o produto para saber se estava tudo lá e tentei identificá-las com
as ilustrações do manual. O que se seguiu foi um exercício de frustração
que levou embora a melhor (ou pior) parte da manhã do meu sábado.
Durante um tempo, Sam sentou-se do meu lado direito e fez um trabalho
bem melhor que o meu em entender o manual em inglês, traduzido do
226
japonês. Aos 8 anos de idade, ele tinha uma mente mais arguta para esse
tipo de coisa do que eu jamais terei, mas depois de mais ou menos uma
hora ficou claro que não iríamos fazer o barco flutuar tão cedo e que ele
poderia achar coisas mais interessantes para fazer lá fora numa manhã de
verão.
Então me sentei, comecei a montagem, resmunguei, xinguei e mais
de uma vez cheguei perto de jogar toda aquela confusão frustrante no chão.
Isso não iria rolar. O barco não seria montado nunca - não por mim, pelo
menos -, e aquela conclusão me deprimia quase a ponto de me levar às
lágrimas. Eu punha a culpa da minha dificuldade em juntar as muitas peças
em suas posições corretas à minha falta de destreza manual causada pelo
Parkinson. E minha inabilidade em decodificar o método certo de
construção era atribuída à distração causada pelos tremores e pela confusão
mental do Parkinson. Claro que seis anos depois do diagnóstico esses
fatores existiam mesmo, mas não na extensão que têm hoje (doze anos
depois), e raramente me sinto tão louco da vida e desmoralizado quanto me
senti naquele dia, tentando fazer aquele barco flutuar. Eu já havia passado
por coisas difíceis na vida e enfrentaria outras muito maiores no futuro,
porém aquilo era algo pessoal. O desafio instigava minha competência
como pai. Era uma péssima lembrança de que a saúde teria impacto nas
minhas responsabilidades do dia a dia.
Eventualmente minha sogra veio me resgatar de meu momento difí-
cil, lembrando-me com polidez de que iria servir o almoço naquela mesa
em breve e perguntando se eu me importaria de parar um pouco para que
ela pudesse fazer a arrumação. Muito feliz até mesmo para dizer que sim,
joguei as peças na caixa, onde, pelo que sei, elas permanecem até hoje.
Fico imaginando se me permiti cair numa armadilha. O barco era
apenas um brinquedo de montar e, claro, minha condição tornava a coisa
mais difícil; contudo, falando sério aqui, nunca fui bom nesse tipo de coisa.
227
Minha mente seguiu adiante com muita rapidez para a armadilha
potencialmente maior na qual eu iria me meter - a iminente viagem que eu
faria com San, atravessando o país.
Eu havia tentado antecipar qualquer contingência. Reservas de
hotéis, motéis e os alojamentos dificílimos de conseguir no parque
Yellowstone e no Grand Canyon; itinerários foram escolhidos; números de
confirmação foram confirmados; consultei até mesmo a previsão do tempo
dos lugares e de todos os dias. Fiquei mal-acostumado por ter uma parceira
como Tracy, excelente com os detalhes, de forma que eu nunca precisava
me preocupar com esse tipo de coisas. Ela estava dividida, eu acho, entre
tranqüilizada e até impressionada, mas também insegura em relação à
perfeição do trabalho que eu fizera. Esse zelo pela organização era algo
novo ou algo que eu vinha escondendo havia muitos anos, talvez pela
preocupação de que, uma vez demonstrado, ele sempre seria esperado de
mim.
A verdade é que eu estava tão surpreso quanto ela pelo detalhamen-
to e pela minuciosidade com a qual havia planejado essa viagem. Em
circunstâncias normais, prefiro ver a parte geral do plano e delegar a parte
dos detalhes. Mas algo maior estava agindo dessa vez. Antes do Parkinson,
eu tinha espontaneidade de sobra. Para cada plano A ou B, sempre havia
um plano C, sem nenhum detalhamento, a não ser pelo fato de
simplesmente não ser o plano A nem o B. Eu ficava feliz em dançar
conforme a música, seguir o ritmo. Na minha nova vida com DP, não era
necessário apenas ter os detalhes do plano C, mas também sólidos planos
D, E e F. Foi com isso em mente que entrei de cabeça no planejamento da
Grande Viagem de Carro de 1997.
Foi divertido olhar os mapas e guias de viagens com Sam, decidir
nosso curso e tentar imaginar o que descobriríamos no caminho. As aven-
turas de cruzar o Canadá na minha infância fizeram de mim um guerreiro
228
amante das estradas, e eu esperava incutir esta mesma paixão em Sam. Já
tínhamos uma boa história de viagens de carro juntos, viajando a
Vermont várias vezes e passando uma vez por Shenandoah Valley,
com a vaga meta de tentar visitar todas as cavernas da região. A
impetuosidade daquela viagem, que incluiu uma parada em Washington,
DC (ainda temos a foto de Sam, eu, George Stephanopoulos e Bill Clinton
em volta da mesa presidencial no salão oval), foi o último suspiro de Sam
como filho único. Com 6 anos na época, ele estava compreensivelmente
nervoso com a iminente chegada das irmãs gêmeas. Ainda não sabíamos se
seriam meninas ou meninos, mas, de qualquer forma, a vida dele iria
mudar, e parecia o momento ideal para um momento de ligação entre pai e
filho. Agora, dois anos depois, as gêmeas tinham chegado, duas anjinhas
que atraíam imediatamente as atenções em qualquer lugar que chegassem,
atenção esta outrora de Sam. Não houve trauma, porém não precisamos de
um especialista para perceber que a mudança em seu papel na família tivera
impacto na escola.
Não que ele rejeitasse a mudança. Na realidade, ele adorava mu-
danças, em especial as da natureza, como a lagarta virar borboleta ou o
impacto dos elementos mudando as formas do planeta. Grande parte do
nosso relacionamento era baseada na fascinação mútua pelo mundo à nossa
volta, em como ele mudava no próprio ritmo e com propósito definido.
Mas a rápida alteração de dinâmica familiar e as mudanças de expectativas
na escola eram duras de engolir. E também havia a mudança inexorável
ocorrendo em mim. Enquanto eu não fazia esforço para esconder os efeitos
da doença, também não tornei isso um tópico diário de discussão. Fora
forçar uma sessão de perguntas e respostas que traria mais dúvidas que
respostas, era difícil saber o que Sam estava pensando a respeito do
Parkinson. Quando ele perguntava dos sintomas, eu sempre era sincero e
tentava apresentar a coisa como apenas mais um processo da natureza.
229
Quando ele viu meus dedos tremendo, mostrei a ele como poderia distrair
meu cérebro, pegando e apertando minha mão, interrompendo o sinal e
induzindo-o a uma calma que infelizmente não duraria muito. Tudo
continuaria bem desde que eu mantivesse meu equilíbrio e tentasse
enxergar essas experiências do ponto de vista dele, sem projetar nele
minhas ansiedades. Houve vezes, entretanto, quando eu estava lutando com
o maldito barco, que posso ter traído minhas próprias dúvidas e
preocupações. Por que Sam tinha ido embora? Será que estava mesmo
louco de vontade de brincar lá fora ou sentia-se repelido por aquela
mudança que ele não entendia e não fazia sentido em seu processo lógico?
Após colocar as peças do barco na caixa e a caixa numa prateleira,
considerei minhas razões para a viagem de travessia do continente que
estava prestes a fazer com meu filho. A viagem era, como acabei decidin-
do, sobre lidar com as mudanças ao abraçá-las. Se a mudança do meu pai
de Chilliwack para North Bay tivesse me obrigado a entrar num avião e
chegar seis horas depois em meu novo lar, tenho certeza de que teria tido
um impacto radicalmente diferente do que teve em mim. A semana e pouco
de viagem pelas estradas (além do mês morando como um beduí-no às
margens do lago Nipissing) me permitiu marcar aquilo como uma grande
mudança em nosso ambiente familiar e também de natureza, pois trocamos
as florestas do Pacífico pelas Montanhas Rochosas. Cruzamos as pradarias
de Saskatchewan, tão retas e sem vegetação alta que podíamos ver um silo
de grãos a quase dez quilômetros de distância; circulamos pela miríade de
lagos de Manitoba, procurando abrigo em nossa barraca dos milhões de
mosquitos que eles atraíam. O que meu pai e minha mãe fizeram,
provavelmente sem saber - aliás, com certeza sem saber -, foi colocar nossa
mudança familiar no contexto de uma grande transformação que estava
acontecendo em todos os níveis, em todos os lugares, todos os dias.
Era isto o que nossa viagem de duas semanas de carro cruzando os
230
Estados Unidos significaria para mim e para Sam - o contexto para as
mudanças que estavam acontecendo na vida de nós dois. Claro que ele só
via a viagem do jeito que vi quando criança: a primeira gr ande viagem de
carro da sua vida. Eu, por outro lado, sabia que essa, provavelmente, seria a
minha última. Mas isso foi antes do 11 de setembro.
NOVA YORK • 10 DE JUNHO DE 1997
Crianças são iguais a labradores - mostre a eles um carro com o
motor ligado e a porta de trás aberta, sem nenhuma dica do destino, e eles
vão pular lá dentro e ficar com a cara na janela aberta, esperando o vento
balançar os pelos e levar embora a baba de sua boca.
Estávamos embarcando numa ambiciosa odisséia do nosso aparta-
mento na Quinta Avenida para uma casa alugada na Avenida Costeira de
Malibu, na Califórnia. Tracy e as gêmeas iriam pegar o avião pouco depois
que partíssemos, e nós nos encontraríamos lá. Incluindo as paradas ao
longo do caminho, levaríamos em torno de dezesseis dias para cruzar de
uma costa à outra.
O Chevy Suburban novinho estava parado com a parte metálica e a
cor azul brilhando no sol da manhã. Tendo acabado de ser lavado, ele só
veria água e sabão de novo na Califórnia; Sam e eu queríamos ver nosso
bebê com tanta terra, lama, fuligem e insetos esmagados no pára-brisa, que
no final da viagem poderíamos pegar uma amostra do que cobria o carro e
ler as camadas como um mapa de onde havíamos estado. A mesma lógica
masculina serve para explicar as malas cheias no porta-malas -não haveria
paradas para lavar roupa em Wheeling, na Virgínia Ocidental; Mitchell, em
Dakota do Sul; Durango, no Colorado; ou em Yuma, no Arizona.
O porta-luvas, que meu pai gostava de chamar de "guarda-mapas",
estava muito bem recheado no meu Chevy. Tinha os melhores guias de
viagem, atlas de estradas de cada Estado arrumados na ordem de viagem
231
Leste-Oeste, lista de contatos ao longo do caminho e informações de
segurança e serviços.
Antes de partirmos, John e eu abrimos nosso mapa dos Estados
Unidos de costa a costa no capo do carro. Para Tracy e Sharon, a mulher
dele, saberem, passei o dedo pela rota que faríamos de Nova York a
Malibu. Era uma enorme distância continental para cobrirmos. Nossas
esposas estavam impressionadas com a nossa iniciativa, mas felizes
em irem de avião, e não de carro conosco.
Iríamos de Nova York para Hershey, na Pensilvânia, para
Columbus, em Ohio, para Chicago, do Wisconsin até Minnesota, da Devil's
Tower até as Badlands e para Deadwood e o Monte Rushmore, cruzando o
Wyoming, com uma passada em Montana, depois para o sul acompa-
nhando as Rochosas até o Colorado, passando Four Corners até o Grand
Canyon e subindo para Nevada, cruzando a Califórnia, até chegar à praia.
Dobramos o mapa. Abracei e beijei Tracy e os bebês. E então partimos.
Não que eu tivesse algum ressentimento da autocracia de meu pai
em viagens de carro. Mas nesta, desde o início, resolvi não ser nem
autoritário nem mole demais. Afinal, aqui estava eu, querendo replicar de
alguma forma aquela experiência com meu filho. Todavia, as
circunstâncias eram diferentes - tínhamos um carro mais espaçoso, tempo e
orçamento maiores, por isso eu não precisava utilizar os antigos métodos
do meu pai. Muita coisa foi diferente nessa viagem em relação àquela de
quando eu era criança. Uma delas era o fato de ter outra família envolvida;
não faria mal ter outro motorista no carro, companhia para Sam e alguém
para bater papo tarde da noite quando a estrada estivesse escura e os olhos
pesados. Sam, Emily e Josh se entenderam melhor que eu e meus irmãos,
tendo em vista que o espaço extra ajudava muito no quesito paz. Em geral,
duas das crianças ocupavam o primeiro banco de trás e a outra ficaria no
outro. Chamávamos de "o lixo" por causa dos detritos acumulados durante
232
o dia - papéis de doces, miolo de maçãs, latas de refrigerante vazias,
garrafas de plástico - que acabavam ali. Qualquer coisa perdida acabava
sendo eventualmente achada no lixo. Muito raramente eu ou John nos
aventurávamos lá atrás, a menos que algum odor misterioso se tornasse
ruim o suficiente para que um adulto tivesse de ir fazer uma visita de
limpeza. Você nunca sabia o que iria descobrir lá. Uma vez, após tirar o
lixo, reportei a john o seguinte:
- Tenho boas e más notícias para você. A boa é que Josh sabe escre-
ver o nome dele. A má é que ele escreveu no banco de trás inteiro.
O único conflito de Sam com Emily era por causa de música. Ainda
não existiam iPods, e minha política de igualdade para o rádio do carro
(meu pai nunca concordaria com isso) significava que todos éramos for-
çados a ouvir o CD Mmmbop do Hanson, que Emily havia trazido, tantas
vezes que parecia um disco riscado. Quando era a vez de Sam escolher a
música, me passava um CD do Clash ou do Elvis Costello - eu o havia
ensinado bem. Apesar de ter John e seus filhos conosco e de isso ter au-
mentado o valor da viagem, ela ainda era, na essência, uma experiência de
pai e filho.
Sam era um filho feito na lua de mel, nascido no início do verão de
1989, menos de um ano após Tracy e eu termos nos casado. Caras àr
Caretas estava no final da sétima e última temporada; o trabalho estava
andando em De volta para o futuro II; e, no começo de 1990, com pouca
ou nenhuma interrupção, começaríamos a trabalhar em De volta para o
futuro III. Meu pai morreu em janeiro daquele ano, e de repente eu era um
pai que não tinha mais pai. Trabalhar, ganhar a vida e prover minha família
tornou-se minha única missão. Imagino que tenha sido a mesma coisa com
meu pai quando ele e minha mãe criaram a mim e meus irmãos. Mas,
agora, suspeito de que, se meu pai ainda estivesse à disposição para
consultas, observaria que ele tentava cumprir sua missão com um salário de
233
militar. Eu ganhava num mês mais do que ele ganhou a vida toda. Eu podia
fazer o que ele nunca pôde - diminuir o ritmo, passar mais tempo com
minha mulher e meu filho, aproveitar a sorte que tinha. Contudo, estava
fechado num círculo de trabalhar mais para ter mais trabalho. Durante os
primeiros anos da vida de Sam, eu passava mais tempo fora que em casa, e,
mesmo quando Tracy, Sam e meu trabalho estavam na mesma cidade,
como foi o caso de Aprendiz de feiticeiro, todo filmado em Nova York,
minhas horas de trabalho eram extremas e o tempo com a família pequeno.
Então veio o diagnóstico de Parkinson e com ele, por várias
circunstâncias diferentes, a oportunidade de parar, avaliar e pôr as coisas
em perspectiva: saúde, família e carreira. Mas não fiz isso. Escolhia a nega-
ção, o que no meu caso significou mais trabalho ainda. E, quando não
estava trabalhando, estava bebendo. Numa época em que eu deveria estar
me aproximando da minha família, eu os afastei. Eu temia que a DP me
impedisse de ser o marido e o pai que eu havia prometido ser. No entanto,
na metade dos anos 1990, mudei a maioria dessas coisas. Adotei uma
atitude responsável em relação ao meu tratamento do Parkinson e parei de
beber. E, enquanto os filmes que fazia ainda me tiravam de casa às vezes,
como no caso de Os espíritos, em 1995, durante o qual passei seis meses na
Nova Zelândia, meus planos para o futuro eram aumentar bastante meu
tempo com Tracy, Sam e minhas gêmeas.
Na Nova Zelândia, tendo deixado Tracy sozinha não com uma, mas
com três crianças, comecei a pensar num retorno à televisão e numa agenda
mais amena para se criar uma família. Posso não ter passado tanto tempo
quanto queria com Sam em seus primeiros 6 ou 7 anos de vida, mas mesmo
assim construímos uma relação bem forte. A viagem cruzando o continente
não foi uma tentativa de reparar nossos laços, mas apenas de fortalecê-los
ainda mais.
Meu pai nos colocou a todos no carro não porque queria, mas por-
234
que precisava. Eu e Sam éramos o contrário - não precisávamos, mas
queríamos ir. O engraçado é que, se meu pai fosse vivo, sei que adoraria ser
convidado para essa viagem. Sem a necessidade de chegar por causa da
nova chefia, ele estaria livre para aproveitar todos os caminhos que
pegássemos e todas as nossas odisséias pelas estradas. Teríamos rido da
ridícula grandeza do Palácio do Milho em Mitchell, na Dakota do Sul, e ele
se sentiria ao mesmo tempo feliz e triste pelo adesivo que vimos em
Indiana, que dizia: "O diabo é bicha". Não acho que ele ficaria bravo com
Sam e com as outras crianças pelos milhares de pedidos de paradas para ir
ao banheiro, os quais eu aceitava com prazer, mesmo que estivéssemos
longe de tudo ou que tivéssemos acabado de parar. Não paramos em fast-
foods (um ou dois, no máximo), mas só porque tínhamos pesquisado
exaustivamente quais eram os melhores lugares para se comer perto das
estradas. Algumas vezes, porém, vi o mérito do meu pai na intratável
proibição da temível frase: "Já chegamos, pai?".
"Já cheguei lá?" foi a frase que literalmente lançou nosso carro
através do continente, "lá" sendo o ponto sem retorno no qual o Parkinson
ditaria os termos da minha vida. Será que as mudanças que fiz na vida - a
sobriedade, as novas prioridades - tinham sido feitas tarde demais? Havia
sobrado o suficiente de mim para que eu fosse o homem que eu não sabia,
até agora, que gostaria de ser? Dizer que minha atitude em relação à doença
era menos evoluída que hoje seria uma declaração bem equivocada. Eu
ainda não a tinha desenvolvido na totalidade e lutava para entender o
quanto ela me dominaria. Então, essa jornada foi, em grande parte, uma
rebelião. Meus mapas e listas e folhas de contatos eram uma preparação, se
não para uma batalha, pelo menos para um trabalho pesado de
reconhecimento.
Descobri nessa viagem que mapas e fronteiras são coisas arbitrárias
e, às vezes, invisíveis. Sem sinais feitos pelo homem, nada indica a você
235
que passou de um lugar a outro. É tudo uma percepção pessoal. Ao viajar
de costa a costa, ganhei um entendimento de que as fronteiras antigas - o
rio Mississípi, a Divisória Continental, as Montanhas Rochosas e o Grand
Canyon - marcavam verdadeiras mudanças. O risco de atravessá-las era
recompensado com a descoberta de algo completamente novo e poderoso
do outro lado. Aos poucos, relaxei com a crescente idéia de que o que
estava acontecendo em mim era apenas parte do meu mundo. O reloginho
que estava criando um senso de urgência em mim era, na verdade, um
metrônomo que eu podia diminuir para um tempo que julgasse mais
apropriado. E quanto a Sam, meu companheiro daquela viagem e de outras
que viriam, percebi que ele me amava, confiava em mim, dependia de mim
e talvez se preocupasse um pouco comigo, mas, fora isso, eu não ocupava
muito espaço na cabeça dele. Sam estava se divertindo muito.
Sam deu umas escorregadas e perguntou algumas vezes se já ha-
víamos chegado. Dma vez, cm particular, enquanto passávamos pelos
grandes pastos do Wyoming, ele começou a usar a frase porque estava
entediado. Não exatamente incomodado, ainda assim decidi que seria uma
boa hora para acabar com isso antes que virasse um hábito. Sem aviso,
parei o carro gentilmente no acostamento e olhei sobre o ombro para o
banco de trás. Será que eu deveria gritar? Fazer ameaças? Exigências?
Talvez fazer algo mais passivo, pegar o mapa e explicar polidamente o
tempo estimado de nossa chegada naquele dia e depois abrir a discussão
para sugestões de como seria melhor a gente proceder? Não. Optei por uma
estratégia diferente, uma que meu pai jamais teria imaginado, mesmo que
se esforçasse. Eu ia usar o existencialismo contra ele.
- O que você perguntou? - disse para Sam, sem deixar minha voz
expressar nenhum tipo de sentimento.
- Se nós já chegamos - ele respondeu, um pouco provocante agora.
- Ótima questão - soltei o cinto e saí do carro, mantendo os olhos
236
nos dele enquanto circundava o veículo, ia até a porta dele e a abria. -Não
sei, Sam - respondi, ajudando-o a descer do automóvel. - Vamos dar uma
olhada. Pode ser que tenhamos chegado.
A nossa volta havia pastos vazios até onde a vista alcançava, inter-
rompidos apenas pela grande faixa de concreto na qual estávamos viajando.
Aquele era exatamente o meio do meio do nada. Agora, John e as crianças
já haviam saído do carro também, e perguntei ao grupo todo:
- O que vocês acham, já chegamos? Vamos lá, olhem em volta,
sem pressa.
Nos cinco ou dez minutos seguintes, as crianças exploraram minu-
ciosamente aquela enigmática paisagem de grama, terra e pequenos
arbustos. Emily pegou algumas flores, Josh achou duas pedras bem di-
ferentes e Sam voltou com algo que parecia cocô de coiote petrificado. Era
uma psicologia primitiva, mas fiquei surpreso de como funcionou. Acho
que a pessoa mais afetada por ela fui eu. Estamos onde estamos. Se
continuarmos nos movendo, estaremos em outro lugar. E saberemos
quando chegarmos lá.
EPÍLOGO
Há oito anos aposentei-me de Spin e mergulhei na vida de ex ator.
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Dei um jeito de preencher meu tempo- ou melhor, o tempo me preencheu.
Eu jamais teria imaginado quão ocupado ficaria a Fundação Fox; minha
defesa dos pacientes e meu ativismo político, minhas explorações da fonte
espiritual de minhas inspirações e bênçãos e, é claro, os muitos momentos
de aceleração com minha família. Parafraseando uma antiga expressão se
há dez anos, antes de começar essa minha segunda odisséia, eu fizesse uma
lista de coisas que esperaria ter conseguido até agora, teria descoberto que
esperava pouco de mim.
Mesmo durante esses últimos dias de trabalho em meu livro
consigo alcançar, tocar e me sentir seguro pelos quatro pilares que descrevi
aqui: trabalho, política, fé e família. A última semana foi, na verdade, uma
representação perfeita do lugar aonde essa jornada me trouxe e a promessa
de aonde ainda pode me levar.
NOVA YORK SEXTA-FEIRA, 31 DE OUTUBRO DE 2008
Dwight, de 40 e poucos anos, está paralisado da cintura para baixo.
Apesar de ter sido um entusiasta dos esportes radicais e um viciado em
adrenalina, não foi sua busca por desafios arriscados - base-jumping, surfe
em ondas gigantescas, corridas de carte - que o colocou numa cadeira de
rodas. Ele é vítima da mais ordinária e trágica das circunstâncias. Quando
dirigia de volta para casa de um jogo de hóquei com o irmão e o primo, o
carro deles foi abalroado por um bêbado dirigindo um Hummer. Ele perdeu
o movimento das pernas e os outros dois perderam a vida. Até aquele
instante, sua vida havia sido chegar sempre ao limite. E então o limite o
empurrou de volta. Agora Dwight vive tomando remédios, bebendo,
perdendo a cabeça e competindo na internet para compensar suas perdas.
Dwight é uma bomba-relógio.
Ou seria uma bomba, se existisse de verdade. Mas não existe. Para
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não dizer que ele não existe, na verdade eu sou ele. Ele é um personagem
que estou interpretando em Rescue Me, a série de TV do canal FX nas
últimas semanas. Meu amigo Denis Leary, protagonista, escritor e produtor
da série, me ligou no verão para saber se eu estaria interessado em aparecer
num arco de quatro episódios. Não atuei muito desde que me aposentei de
Spin City. Apenas aparições especiais em Scrubs e Justiça sem limites - e
nenhuma delas foi fácil. Sendo um ator com Doença de Parkinson, acho
bem difícil fazer o papel de alguém que não tem Parkinson. Atuar tem a ver
com escolhas, e nisso não posso contar com meu corpo para expressar
minhas intenções. Tenho de operar sem ter todas as ferramentas. Muitas
coisas podem motivar um personagem a tomar uma cerveja, mas, se eu não
conseguir levar a garrafa à boca sem derrubar um monte do conteúdo, então
não terá adiantado nada. E Dwight apresentava uma característica
especialmente amedrontadora. Ele é paraplégico, caramba, e eu sou uma
batedeira ambulante. Como manter minhas pernas paradas por mais de
alguns segundos durante uma cena? E, como já disse antes, coloque-me
numa cadeira com rodas e é bom se preparar para correr atrás de mim.
Denis foi louco de me convidar para fazer isso, e fui mais louco
ainda em aceitar. Este é um bom caso de "escolha de elenco fora do tipo", e
não apenas pela nossa disposição física diametralmente oposta. O contraste
entre a visão de mundo de Dwight e a minha não poderia ser maior. Mas
claro que no contexto de nossas diferenças estão nossas similaridades.
Conheço a perda, a vida remodelada, os propósitos reexaminados, os
limites do destino. E, afinal, não faço mais isso para viver. Segui em frente.
Por isso, posso voltar ao tempo que quiser e escolher. Existem tantas razões
pelas quais posso acreditar que consigo fazer isso que não dá para me
convencer de que o Parkinson não me deixaria fazer.
Por isso resolvi dar uma volta na cadeira de rodas de Dwight. Hoje,
Dia das Bruxas, é meu último dia de filmagem. Faltando apenas algumas
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cenas, já posso dizer que sobrevivi à experiência e que vou chegar em casa
para brincar de "travessuras ou gostosuras" com Esmé, uma experiência
mais difícil do que meu papel como Dwight. Se esse exercício será um
sucesso ou não, acho que depende da cabeça das pessoas que vão assistir.
Mas estou feliz de ter aceito o papel. Um dia, tenho certeza de que farei
isso de novo.
Além de manter meus benefícios do sindicato dos atores, como o
plano de saúde, por exemplo.
SÁBADO, 1Q DE NOVEMBRO DE 2008
Desejamos lembrá-lo de que, na infinita tradição de nosso povo,
iremos mencionar o Yahrzeit de Karen Lang...
No inverno anterior, Tracy e eu fomos visitar o rabino Rubinstein
para conversar sobre os detalhes do vindouro b'not mitzvah de Aquinnah e
Schuyler. Não sei se foi intuição clériga, mas o rabino rapidamente sentiu
que eu estava preocupado com algo mais que o D'var Torahs das meninas.
Contei a ele que havia acabado de perder minha irmã Karen e como aquilo
tinha sido algo chocante para nossa família. Não havia nada prático nem
nenhum desconforto na expressão de simpatia e compaixão dele. Agora,
um ano depois, eu não deveria ficar surpreso ao saber, na forma de uma
carta da sinagoga, que o nome de minha irmã Karen vai ser incluído no
kadish durante o serviço religioso de sábado, dia 8 de novembro.
Mantenho uma fotografia de K. C. na mesa do meu escritório. Gos-
to da foto. E uma bem-comportada, tirada num casamento de família quatro
meses antes de ela morrer. Com apenas um traço de cansaço, ela sorri para
mim do retângulo do frame. E, pelo menos uma vez por dia, cinco dias por
semana, sorrio de volta. É difícil acreditar que os dias e as semanas se
passaram e que já faz um ano desde que nos reunimos em volta da cama de
Karen e cantamos nossas despedidas.
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Vim à sinagoga sozinho. As crianças fizeram sua dispersão do sába-
do - dormir na casa de amigos, aulas de bale, Tracy ocupada em levar e
buscar todas elas. Mas eu queria estar aqui. Então, esta manhã, coloquei um
terno, peguei um táxi e agora estou aqui, sentado no final de uma fileira
vazia, olhando a programação que me foi entregue pelo porteiro. Karen não
é um dos nomes na lista dos que serão lembrados. Verifico a data - é l2 de
novembro. Estou uma semana adiantado.
O serviço religioso começa e o sobrinho de um dos meus sócios
está fazendo o bar mitzvah hoje, por isso decido ficar e ver o garoto dar
este passo. Observo o rosto orgulhoso dos seus familiares e, apesar de
nunca ter me encontrado com aquele jovem, logo me sinto orgulhoso
também. Chega o momento de a congregação recitar o kadish, e os nomes
são lidos. Num sussurro que apenas ela, eu e quem mais puder estar
ouvindo ouve, adiciono o nome de Karen à lista.
DOMINGO, 2 DE NOVEMBRO DE 2008
Equipe Fox, Equipe Fox... tlim, tlim, tliml
Esmé e eu estamos na rua, na Quinta Avenida, dando uma força aos
maratonistas que vão atacar os últimos cinco quilômetros que os separam
da linha de chegada no Tavern on the Green, o restaurante do Central Park.
O pelotão de elite já passou faz tempo; mas estamos aqui para ver o pelotão
intermediário, a turma da hora do almoço, os sorridentes corredores
melhores que a média que, ao mesmo tempo, inspiram e envergonham os
que não participam da corrida.
Mais especificamente, Esmé e eu gritávamos mais alto pelos 135
participantes que corriam pela equipe Fox, usando as cores da nossa
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Fundação e doando o dinheiro ganho dos patrocinadores para ajudar nossos
programas de pesquisa. Esmé tem olhos aguçados e, ao ver a palavra Fox
em laranja numa camiseta azul, gritava "Equipe Fox!" e tocava um maldito
sino daqueles que ficam pendurados no pescoço de uma vaca que alguém
(e pretendo descobrir quem) lhe deu. Claro que aprecio seu entusiasmo,
mas seria um pouco mais fácil se ela não estivesse sentada nos meus
ombros, gritando loucamente e tocando a maldita coisa a centímetros das
minhas orelhas.
Um cortejo de familiares da Equipe Fox, funcionários e apoiadores
da Fundação reuniram-se conosco na calçada. Estávamos todos aplaudindo,
assoviando e levantando cartazes grandes e chamativos o suficiente para
que os corredores os vissem a distância e, se quisessem, pudessem vir para
o nosso lado da avenida e cumprimentar as pessoas com aqueles tapinhas
na mão - e é claro que os primeiros "cinco" tapinhas seriam meus. Óbvio
que alguns de nossos heróis estavam tão cansados, confusos ou distraídos
com a liquefação de suas entranhas e ossos que nem percebiam a guarda de
honra. Mas a maioria percebia, e alguns se mostravam tão em forma e
relaxados que parecia muito possível que, quando chegassem à Columbus
Circle, fizessem a curva completa e voltassem correndo até a linha de
partida. Um desses espécimes era Ryan Reynolds, astro do cinema, recém-
casado com Scarlett Johansson e amável filho de um pai com DP. Ele nos
viu a tempo de passar por vários abraços rápidos e uns tapinhas nas costas
e, em reconhecimento ao nosso "muito bem rapazes" no finalzinho da
corrida, declarou mais tarde:
- Ganhei uns sete quilos em arrepios. E foi o que me fez terminar
aqueles últimos quilômetros.
Os esforços de Ryan hoje trarão mais de 100 mil dólares para a
Fundação, juntando-se ao montante de 500 mil dólares arrecadados pela
Equipe Fox. Isto é o que chamo de muitos arrepios.
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Essa não foi a primeira vez que Esmé e eu ficamos vendo a marato-
na de Nova York enquanto ela passava pela Quinta Avenida. Sete anos
antes, quase exatamente no mesmo dia (o aniversário dela é amanhã),
assistimos à maratona da janela do hospital Monte Sinai, apenas alguns
quarteirões ao norte. Com um dia de vida, embrulhada em meus braços,
não sentada nos meus ombros, Esmé não tinha um sininho nem mesmo a
força de tocar um. Mas agora, enquanto desce dos meus ombros e sorri para
mim como se tivesse sido lambida por um cãozinho, lembro de seus olhos
serem tão vastos quanto antes.
SEGUNDA-FEIRA, 3 DE NOVEMBRO DE 2008
Esmé escolheu seu restaurante italiano preferido para jantar hoje à
noite no seu aniversário. Tracy teve de buscar o bolo; afinal, não era algo
que pudesse ser confiado a mim. Temos de levar nosso próprio bolo porque
Esmé tem alergia a amendoins e nunca dá para ter certeza de que
amendoins ou derivados não vão ser encontrados num bolo por aí. Tracy
toma tanto cuidado para que nada contenha amendoim que não deixaria
sequer um desenho de amendoim ser feito no bolo. Estamos mais alertas
esses dias por causa do Dia das Bruxas que acabou de passar. Tivemos de
separar todos os salgadinhos, chocolates e doces com amendoim de tudo
que ela ganhou. Eu estava encarregado disso. As guloseimas proibidas
iam direto para a mesa do meu escritório. Ei, vou precisar mastigar
muito para acalmar meus nervos enquanto assisto aos programas políticos
da eleição amanhã à noite.
TERÇA-FEIRA, 4 DE NOVEMBRO DE 2008
É dia de eleição e, como de costume, saí bem cedo. Em decorrência
da natureza histórica da eleição presidencial deste ano e apesar de a vitória
de Obama aqui em Nova York ser um fato consumado, minha seção está
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com muito mais gente do que jamais vi. Na escada da igreja uma garo-tinha
se aproxima; ela tem 10 ou 11 anos, usa saia e agasalho náutico - o
uniforme de uma escola particular próxima.
- Com licença, senhor, posso fazer algumas perguntas depois que
votar?
Olhando em volta, vejo que ela faz parte de um contingente que
pode ser descrito como o mais irresistível grupo de pesquisas do mundo,
carregando pranchetas e tendo como sombras alguns adultos supervisores.
- Claro - respondo.
Obviamente estão fazendo a pesquisa como parte das aulas de Edu-
cação Cívica, mas imagino que isso seria um contra-ataque brilhante para
aquele "probleminha" com as pesquisas de boca de urna. Quem teria
coragem de mentir para essas crianças?
Lá dentro vejo muitos sorrisos. Todos estão felizes. Assino meu
nome, entro na cabine, fecho a cortina, ponho o nome do meu candidato e
puxo a alavanca. E fico razoavelmente feliz comigo mesmo.
De volta ao lado de fora, minha pequena pesquisadora e seu profes-
sor acenam para mim e me lançam um monte de perguntas, anotando
laboriosamente cada uma de minhas respostas.
- Não precisa responder a esta última questão se não quiser - ela me
diz e me dá essa chance, como se neste ponto eu não lhe desse o número do
meu cartão de crédito se me pedisse. - Posso perguntar em quem você
votou para presidente?
- Vou lhe dar uma dica - respondo e então abro a jaqueta de couro e
mostro a camiseta, presente de minha amiga Nelle. A habilmente mo-
dificada versão do logotipo laranja estilizado de um conhecido filme é
reconhecida na mesma hora pelo professor da menina. Após ler, ele olha
para mim de novo enquanto sua aluna lê em voz alta:
- Barack para o Futuro.*
244
Agora o professor está rindo. Fica claro para nós dois que a jovem
não entendeu a referência, e também solto uma boa gargalhada.
______
* Analogia ao filme “De volta para o futuro”, que em inglês se escreve “Back to the
future”.
Vi, durante a campanha de 2006, como era difícil para os opositores
das pesquisas com células-tronco competirem contra a esperança. E o
mesmo aconteceu na eleição presidencial de 2008. Esta era uma esperança
coletiva, uma definição que sempre deveria ser aplicada à expressão da
vontade política das pessoas. Christopher Reeve acreditava na fórmula:
otimismo + informação = esperança. Neste caso, fomos o agente da
informação. É certo que tudo poderá parecer diferente daqui a um ano, mas
é difícil não ser envolvido pelo desejo de mudanças positivas expresso e
adiantado por Barack Obama. E bom ter esperança. Desta vez, o desejo de
muitos não será ridicularizado como se fosse desespero de algumas
pessoas, como ocorreu no debate sobre células-tronco em 2006.
Quando você estiver lendo este livro, o presidente Obama e o Con-
gresso terão estabelecido um programa federal de fundos para as pesquisas
com células-tronco. A maldição terá terminado.
Como eu tinha esperança de que acontecesse.
QUARTA-FEIRA, 5 DE NOVEMBRO DE 2008
- Quase vale a pena ter Parkinson graças a isso! - anuncio para as
mil e poucas pessoas reunidas no salão de festas do Sheraton do centro, no
evento anual de arrecadação de fundos da Fundação Michael J. Fox,
o 'Aconteceu unia Coisa Engraçada no Caminho da Cura do Parkinson". Já
animado, o público entende exatamente o que quero dizer e me devolve um
belo grito de aceitação. Dou um passo para trás e acerto o tom e o volume
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da minha guitarra Les Paul 1962 que Tracy me deu de Natal há alguns
anos. Não penso em mim como um possuidor de coisas premiadas e tal,
mas se há uma coisa de que gosto é deste ótimo instrumento musical norte-
americano manufaturado. Esta guitarra merece coisa melhor que eu, porém
amo tocá-la, mesmo quando estou travado e trêmulo, impedido de regular o
ritmo com o braço direito ou de descrever um padrão de acordes ou uma
linha a seguir por causa dos dedos caídos da mão esquerda. Às vezes,
apenas embalo a Gibson e, na mais pura tradição (se não for o espírito
exato) de gerações de guitarristas de rock'n'roll no mundo todo, espero as
drogas fazerem efeito.
Mas esta noite estou pronto, meus sintomas estão bem controlados
e, se por acaso eu fizer coisas erradas, posso contar com os rapazes da
banda para me carregarem em algumas notas. A música é Magic bus, e a
banda que me acompanha é The Who. Isso mesmo, juntei-me a Pete
Townshend e Roger Daltrey no palco para o bis deles depois da
performance em favor das pesquisas da DP. Olho para Pete enquanto ele
manda ver e Bo Diddley também está detonando. Estou atordoado e
impressionado de estar me juntando a eles enquanto de algum lugar atrás
de mim, do lado esquerdo do palco, Roger canta Every day 1 get in tine
queue... Viram o que eu quis dizer? Quase vale a pena ter Parkinson
graças a isso!
Eu poderia fazer a mesma declaração sobre os eventos que levaram
à formação de uma organização que fez muito pelo avanço das pesquisas
relacionadas às condições debilitantes e sem esperança que afetam milhões
de pessoas ao redor do mundo. O esforço e as conquistas não são meus,
mas devem-se a Debi Brooks e sua sucessora, a dinâmica Katie Hood, à
nossa equipe, à nossa diretoria, aos cientistas e às milhares de pessoas que
reconheceram a importância do nosso trabalho e nos encorajaram com
apoio econômico e emocional. Na primavera de 2009, a Fundação terá
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aplicado quase 200 milhões de dólares em pesquisas de Parkinson, sendo,
assim, a líder das fundações privadas em seu segmento. Mesmo no período
de extremo distúrbio econômico, com boa parte de nossos apoiadores
estando no combalido mercado financeiro, esperamos arrecadar hoje tanto
quanto nos eventos anteriores, algo como quatro milhões de dólares. E,
mais, o total deve aumentar daqui a alguns dias, quando a seção especial
"Giving", do New York Times, publicar um artigo de capa falando em
detalhes da Fundação, de nosso trabalho e da visão inovadora que temos
em relação a incentivar o avanço da ciência:
O que faz a história da Fundação Michael J. Fox diferente - não, o
que a faz importante - é que não apenas doa dinheiro aos cientistas e torce
pelo melhor, mas usa seu dinheiro para controlar as pesquisas com
Parkinson de uma maneira que poucas outras já tinham feito. No processo
de tentar solucionar os mistérios da doença, ela evoluiu o modo como as
pesquisas científicas são feitas e como os acadêmicos interagem com as
pesquisas farmacêuticas e as companhias de biotecnologia, pelo menos em
seu pequeno canto do mundo. Isso demanda mais responsabilidade e
divisão da informação do que já se ouviu falar na comunidade científica. E
por isso já conseguiu se tornar, em sua curta vida, a voz mais confiável em
pesquisas de Parkinson do mundo.
De volta ao palco, Roger está pingando de suor e, com o microfone
e a harmônica presos entre as duas mãos que parecem rezar, toca e aperta o
instrumento em Mãgic bus. Quando Zach Starkey (filho de Ringo Starr)
aumenta as batidas da bateria um decibel ou dois, Pete Townshend e eu
construímos o crescente com uma série de acordes poderosos. Estou aqui,
tocando minha amada Les Paul, a menos de um metro de uma das maiores
lendas do rock de todos os tempos. Quando ele começa uma série de seus
giros patenteados, olha para mim, sorri e acena para que eu laça o mesmo.
Já faz um bom tempo desde que Marty McFly fez uma homenagem a
247
Townshend com os mesmos movimentos em De volta para o futuro, mas,
se funcionou na época, então que se dane o medo de fazer agora. Meus
braços giram como uma daquelas setas circulares de um jogo de tabuleiro.
Isso é loucura. Olho para a multidão espremida nos cantos do palco e
imediatamente reconheço os belos rostos de Aquinnah e Schuyler. As
meninas estão aproveitando. Mesmo sendo um dia de semana, elas
receberam permissão de vir à nossa festa pela primeira vez. Esmé, é claro,
está em casa, dormindo, sonhando com o esquema mirabolante de amanhã.
Sam, lá longe na faculdade, também perdeu a festa, mas em breve vai ficar
enjoado de tanto me ouvir falar dela.
E agora vejo Tracy. Acho que vou sair com essa fã e dar um passe
de bastidor para ela. Tracy parece especialmente bem.
QUINTA-FEIRA, 6 DE NOVEMBRO, 2 HORAS
Too much. Magic Bus!
Minha fantasia de ser um astro do rock acabou há algumas horas, e
estou em casa com minha família. Amanhã tem aula, por isso Aquinnah e
Schuyler vão rapidamente para o quarto para tirar os vestidos, colocar os
pijamas e aparecer como as menininhas que sempre serão para mim
(desculpe, é coisa de pai). Abraços, beijos de boa-noite e em alguns minu-
tos os sons de risos atrás da porta transformam-se em roncos.
Meia hora depois, Tracy (minha maior e única fã) e eu nos damos
boa-noite e, assim que ela dorme, saio da cama e começo meu passeio
noturno. É meu padrão normal. Dormir, como acordar, não é algo que faço
e pronto. Preciso negociar, buscar o consenso de todas as partes envolvidas
- mente, corpo e psique -, antes de simplesmente deitar, fechar os olhos e
cair no sono.
Conseguir fazer tudo que queria nas últimas horas exigiu mais re-
médios do que tomo normalmente, e agora estou pagando o preço da
248
discinesia. Arrasto-me pelo apartamento, pego água na geladeira e volto ao
escritório para checar meu e-mail. Alguém já mandou uma foto minha com
Roger, Pete e os outros rapazes tirada de um aparelho sem fio. Estou
fisicamente exausto agora, com o rosto sem expressão demais para poder se
aproximar do sorriso estático da minha foto que salta do Mac. Mas o sinto
por dentro; a adrenalina gerada pelo evento desta noite ainda vai adicionar
uma hora ou mais ao meu ritual noturno. O negócio é ir dormir no
momento exato, quando a última rodada de medicamentos fizer efeito e eu
puder subir na cama sem incomodar muito Tracy com chutes e socos.
Entro em nosso quarto e sigo com calma até a beira da cama. Meu
balanço, seriamente comprometido pelo Parkinson, está num momento
negro de pouca confiança. Se eu cair, pelo menos posso me inclinar para a
frente e garantir uma aterrissagem macia na cama. Circundando até meu
lado, passo a mão que agora não treme muito por baixo do cobertor, pronto
para levantá-lo e entrar embaixo dele. Quando os pés tocam os sapatos, já
preparados para amanhã de manhã, sei que estou na posição certa. Temos
uma cama bem confortável e logo deito nela como um gato em uma
almofada. Silenciosamente agradeço a Tracy por estar quenti-nho debaixo
do cobertor; o último obrigado do dia à minha mulher e o mais recente dos
milhões já ditos durante nossa vida juntos.
Após todo trabalho que deu para eu chegar ali, acabo dormindo bem
rápido. Pode ser que acorde algumas vezes, talvez mais ou menos daqui a
uma hora. Repetirei minha rotina de caminhada pelo apartamento, mas
apenas por alguns minutos. E voltarei para a cama e dormirei de novo.
Nesse meio-tempo, enquanto durmo, terei os "filmes da minha mente".
Quando prescreveu os remédios que tomo, o médico avisou-me de um
efeito colateral comum: sonhos exageradamente reais e intensos. Sendo
honesto aqui, nunca senti a diferença. Eu sempre sonhei grande!
249
AgradecimentosCom muito amor e gratidão, gostaria de agradecer às pessoas a
seguir pelo apoio pessoal e pelas contribuições para este livro.
Tracy - você faz tudo funcionar. Vinte e poucos anos e a cada dia
eu me apaixono por você de novo.
Sam, Aquinnah, Schuyler e Esmé, obrigado por me entenderem e
me inspirarem. Amo cada um de vocês completamente.
Obrigado à minha mãe, Phyllis, por ter a mim e por tudo que fez
desde então.
Nesse esforço, levando tudo em conta, beneficiei-me da ótima re-
lação que mantenho com meus espertos, engraçados e espirituosos irmãos:
Steve, Kelly, Jackie e K.C. (da qual sentimos muita falta).
Obrigado também aos melhores sogros do mundo, Corky e Stephen
Pollan.
Eu não teria conseguido sobreviver a essa experiência de quase to-
dos os dias se não fosse o entusiasmo, a inteligência e o apoio da minha
escritora-assistente, Asher Spiller.
Durante um dos meus muitos bloqueios criativos, reclamei para
Tracy:
- Nunca vou terminar meu livro sobre otimismo.
- O que você precisa - ela me aconselhou - é de alguém que estale o
chicote todos os dias.
Então, procurei a pessoa que Tracy sugeriu, uma velha parceira de
produção, Nelle Fortenberry. Nelle, sem você, essa tarefa teria sido
impossível.
Também tenho a sorte de ter acesso a dois brilhantes profissionais,
meu cunhado, o lendário Michael Pollan, e o jornalista político Frank
Wilkinson.
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Meu mais profundo apreço também para Jackie Hamada, Nina
Tringali, Iwa Goldstein e Patti Ruiter - todas elas mantiveram minha vida e
meu escritório funcionando enquanto eu estava ocupado tentando
recapturar memórias das campanhas e de outros eventos dos últimos dez
anos.
A Hyperion foi uma grande parceira, e sou grato pela paciência e
confiança no meu livro. Leslie Wells, como já fizera em Lucky man, foi
uma ótima editora e mentora. Quero agradecer a Bob Miller, por me trazer
de volta à Hyperion para mais uma volta, e a Ellen Archer, por mergulhar
de cabeça com tanta energia e brilho. Agradeço também a Marie Cooleman
e Leslie Sloane, por apoiarem o lançamento do livro.
Quero agradecer aos funcionários, cientistas, conselheiros
científicos e apoiadores da Fundação Michael J. Fox, pela generosidade,
comprometimento e por acreditarem em nossa missão. E por
particularmente me ajudarem neste livro: Debi Brooks, Katie Hood, Todd
Sherer, Brian Fiske, Kate Gendreau, Holly Barkhymer, Sandy Drayton e
Karen Leies. Sou grato a eles pelos comentários e contribuições.
Muitas pessoas ficaram à disposição durante meu processo de
escrever o livro, dividindo comigo suas idéias, experiências profissionais e
histórias inspiradoras: bispo Carlton Pearson, George Stephanopoulos,
Lance Armstrong, Lonnie e Muhammad Ali, rabino Rubinstein, Donny
Deuts-ch, Lawrence 0'Donnell, Mike Manganiello, Claire McCaskill,
Sherrod Brown e Connie Schultz, Ben Cardin, Jin Doyle e Tammy
Duckworth.
Minha agente, a grande e única Binky Urban, muito obrigado. John
Rogers, meu guia em todo o território político, muito obrigado. E obrigado
também à sua assistente, Kelly, e à sua equipe incrível. Meu agradecimento
também à dra. Susan Bressman e a Mark Seliger, pelas contribuições. A
Bob Philpott, Aaron Philpott, Peter Benedek e Cliff Gilbert-Lurie, obrigado
251
por tomarem conta dos negócios.
Uma menção especial a Bruce Springsteen, Pete Townshend e
Roger Daltrey. Curtis e Carolyn Schenker, vocês são os melhores amigos
que qualquer um pode ter. Denis Leary, obrigado por me fazer rir. E pelo
trabalho. Mort Kondracke, vejo você no almoço em novembro de 2010. E,
é claro, muito amor e gratidão, como sempre, a Joyce A.
Mesmo que eu dedicasse tanto tempo a esta lista quanto dediquei a
escrever o livro, ainda sim não conseguiria fazer uma lista completa. Há
muitas pessoas que fizeram parte desta jornada, e, se você não viu seu
nome aqui, saiba que ele está escrito no meu coração.
252