MICHEL FOUCAULT. A questão da segurança nas cidades esteve centrada, e quase que restrita, ao...

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A questão da segurança nas cidades esteve centrada, e quase que restrita, ao domínio clássico da defesa militar, expresso, em termos de desenho, nos castelos, fossos, fortificações e muralhas. No entanto, com a intensificação da migração campo-cidade, da aglomeração urbana e do pauperismo, o foco do problema sofreu um deslocamento do plano 'externo' para o 'interno'. Não se tratava mais de conter a 'invasão' estrangeira, mas de impedir a 'evasão' dos desviantes, e obstar a 'difusão' da doença, dos vícios, das idéias subversivas, do pecado, do crime, da pobreza, enfim, da 'desordem' física, psíquica, social e moral. A 'ideologia da segurança' aparece, agora, intimamente relacionada ao ramo sanitarista da 'ideologia ecológica'. Era preciso 'limpar' as cidades, estabelecer a disciplina e a ordem, isolar e vigiar os pobres e os 'marginais': doentes, loucos, subversivos, mendigos, delinqüentes e degenerados. E, para isto, se fez necessária a formulação de uma 'estratégia'.

Do controle Foucault passa ao adestramento, ao poder disciplinar e suas técnicas. O sucesso disciplinar precisa de muito pouco: olhar hierárquico, castigo normalizador e uma combinação que é específica do castigo, o exame. A vigilância precisa do olhar. Os observatórios multiplicam-se e favorecem uma arte do visível para preparar o homem e sujeitá-lo, utilizá-lo. No acampamento militar o poder é exercido pela vigilância. A disposição das tendas, as filas, as colunas permitem uma rede de olhares que controlam uns aos outros e o monitor controla a todos. A visibilidade geral propicia o exercício do poder. As instituições passam a funcionar em arquiteturas planejadas para favorecer a vigilância, com planejamento de aberturas, transparências, vazios, passagens. O hospital se organiza assim para a ação médica que observa o doente e coordena os cuidados e impede o contágio.

                                                                                                                                                                                                                                                                                               

                               

No âmbito projetual – ou do desenho –, desenvolveu-se, em primeiro lugar, uma tecnologia arquitetônica baseada nas idéias de 'supervisão visual' e 'isolamento', logo aplicada na construção de hospitais, prisões, asilos, internatos, quartéis, reformatórios e, um pouco mais tarde, fábricas. O modelo ideal desses edifícios era o Panopticon de Bentham. Seguindo esta pista, Charles Fourier, seu discípulo Victor Considérant, e outros, propuseram a aplicação de técnicas semelhantes na construção de habitações coletivas 'racionalizadas', agora não mais para 'desviantes', mas para cidadãos 'normais': operários passíveis de contaminação política! Entretanto, as tentativas de tratamento destas, segundo os modelos aprovados com sucesso nas 'instituições totais' para desviantes, ou não ultrapassaram o plano da utopia ou ficaram restritas a experiências isoladas.

                                                                                                                                                                                                                                                                                               

                               

Assim a escola serve ao adestramento para obtenção de corpos vigorosos, obedientes e livres da devassidão, da homossexualidade. É preciso separar os corpos mas torná-los visíveis para observação. As latrinas têm meias-portas, com separações laterais. Não é possível ser visto pelas laterais, mas sim pela frente. É preciso punir levemente atrasos, ausências, desatenção, negligência, falta de zelo, grosseria, desobediência, tagarelice, insolência, gestos não conformes, sujeira, imodéstia e indecência. A punição pode ter a forma de pequenas humilhações e privações. Não atingir metas, como não gravar o catecismo, no caso da criança; não empunhar a arma corretamente, no caso do soldado, são ações passiveis de punição. O que determina a ação errada é a regra, isto é, a regularidade, o normal.

O sistema trabalha com a lógica gratificação-sanção para o sucesso do treinamento e da correção. Portanto, o sistema assim posto hierarquiza numa relação mútua dos “bons” e dos “maus”. O que aparece é o poder da Norma. A regulamentação é o grande poder no fim da era clássica. A regulamentação obriga à homogeneidade mas permite ver o desempenho individual para medir os desvios, tornar úteis as diferenças. Nos hospitais o ritual da visita é o aparelho mais visível do exame. No século XVIII os horários de visita dos médicos e sua duração (duas horas) tornam-se rotina. O médico residente coloca o doente em situação de visibilidade e exame perpétuos. O médico substitui o religioso e o torna subordinado, aparece o “enfermeiro” e o hospital passa a funcionar como um local de aperfeiçoamento científico. É o poder na constituição de um saber.

A escola é aparelho de exame ininterrupto através da comparação de um com todos, a fim de medir e sancionar. Ao mesmo tempo em que o mestre transmite seu saber ele levanta um campo de conhecimentos a respeito dos alunos. A escola é o local de elaboração da pedagogia que passa a ser ciência. O exame coloca os indivíduos num campo de vigilância contínua, a uma visibilidade obrigatória. Os saberes são adquiridos através da observação. Assim aconteceu na medicina que aprendeu com os hospitais, na pedagogia que aprendeu com as escolas, na psiquiatria e psicologia que aprenderam com os loucos, as mulheres histéricas, etc... Cada individuo é um “caso” passível de ser mensurado, medido, comparado e, é passível de ser treinado, classificado, normalizado.

                                            

Um dos aspectos mais importantes da questão da criminalidade é a educação. Existe um consenso a respeito da ligação entre as duas coisas. Punir educa?

Ao entrar no campo da disciplina Foucault fala de “docilidade”. Os métodos que permitem o controle do corpo, que o sujeitam constantemente é chamado “disciplina”. Processos disciplinares existiam, mesmo antes dos séculos XVII e XVIII, nos exércitos, nos conventos e nas oficinas, mas após isso, tornaram-se fórmulas de dominação. Não podem ser chamadas de escravidão nem de domesticidade, nem de vassalidade, nem de ascetismo do tipo monástico, mas uma arte do corpo humano. O que essa arte visa é a formação de uma relação que torna o corpo mais obediente e mais útil na mesma proporção. Faz do corpo uma aptidão, uma capacidade que a disciplina procura aumentar.

Esse processo se deu de forma lenta. Começou nos colégios com adolescentes, mais tarde com crianças, entrou nos hospitais e mais tarde no exército. A disciplina descrita por Foucault é uma nova “micro-física” do poder e trata do que é minúsculo, das pequenas coisas do cotidiano. O autor mostra-nos como se dá a distribuição dos indivíduos no espaço: encarceramento dos vagabundos, o internamento em colégios, formação de quartéis. Obedece ao critério de cada indivíduo no seu lugar e em cada lugar um indivíduo, evita formação de grupos, controla as presenças e ausências, sabe onde está o indivíduo, enfim, conhece, domina e utiliza. Um dispositivo da disciplina é a arquitetura e a religião. A cela dos conventos é sempre nos fundos, a solidão é necessária para o corpo e a alma para que se confrontem com Deus e evitem a tentação.

Nos hospitais são todos cadastrados, separados, vigiados, esquadrinhados para a utilidade da medicina; nas fábricas a distribuição dos “postos” e a arquitetura permitem a vigilância tanto coletiva como individual e constata a freqüência, a habilidade e rapidez e consegue caracterizar, apreciar, contabilizar e transmitir. No século XVIII a repartição dos escolares segundo a idade, aptidão, desempenho, comportamento, mostram um movimento perpétuo onde um substitui o outro num espaço serial. A escola é uma máquina de ensinar, de vigiar, de hierarquizar e de recompensar. Com relação ao horário Foucualt mostra como é garantida a qualidade do tempo: controle contínuo, pressão dos fiscais, afastamento do que possa distrair para que o tempo seja integralmente útil.

A vigilância se apóia em relatórios destinados aos membros da hierarquia, devendo constar nome, idade, sexo. A hierarquia tem o controle dos cuidados a que são submetidos os indivíduos em caso de peste numa cidade. Trata da quarentena, cuidados médicos, localização dos indivíduos, os exames dos vivos, doentes e mortos. É a ordem que estabelece a cada um seu lugar, a cada um seu corpo, a cada um sua doença e sua morte. O panóptico de Benthan é a arquitetura da composição da disciplina, da utilização dos corpos, da apropriação do tempo. É a construção em forma de anel; no centro uma torre de vigia; as janelas se abrem para a parte interna do anel; na área circular há a construção de celas com duas janelas cada uma: uma que dá para o interior e outra para o exterior; nas celas coloca-se um louco, um doente, um condenado, um operário ou um estudante.

Cada cela é perfeitamente visível da torre. Na torre há um vigia que pode estar ali ou não. Da cela é impossível saber do vigia, fazendo com que seu ocupante se comporte como se lá estivesse. A visibilidade é uma armadilha. O panopticismo induz no detento a consciência de estar sendo vigiado o que aciona automaticamente o poder do qual o detento é o portador. Ele não sabe se estásendo vigiado mas, isso não importa, o que importa é que ele saiba que pode estar sendo vigiado. O que vê tudo não pode ser visto. Assim não é preciso recorrer à força para que o condenado se comporte bem, o louco se acalme, o operário trabalhe, o escolar se aplique, o doente se medique segundo as receitas. As casas de segurança são inúteis com este método pois, quem se pensa vigiado faz o poder funcionar sobre si mesmo espontaneamente. A prisão é vista por Foucault como o coroamento do processo que torna os indivíduos dóceis e úteis.

No fim do século XVIII e começo do século XIX a pena de detenção é formalizada. Por prisão entende-se “pena das sociedades civilizadas”. Até hoje não sabemos o que colocar no lugar da prisão caso ela se extinguisse. A sabemos inconveniente, perigosa e inútil. A prisão tem caráter igualitário pois a perda da liberdade, assegurada a todos, penaliza a todos da mesma forma. É possível quantificar a pena, há pagamento de salário ao detento e é vista como uma reparação. Ao tirar o tempo do condenado dá-se satisfação à toda sociedade que foi lesada pelo crime. Ao “pagar a dívida” o condenado acaba por tornar a prisão algo “natural”. A prisão deve tomar do indivíduo todas as suas prerrogativas: treinamento, aptidão, comportamento, atitude moral e disposições, em uma tarefa ininterrupta de disciplina. Impõe-se a ele o isolamento, pois a solidão é a condição primeira para asubmissão. O trabalho penal deve ter regularidade e ordem e sujeitar os corpos a movimentos regulares, longe da agitação e da distração. Necessita de vigilância constante por se tratar de produzir indivíduos mecanizados a exemplo da sociedade industrial.

É a requalificação do ladrão em operário, em indivíduo-máquina. O encarceramento mais do que substituir o suplício é um dispositivo que não diminui a delinqüência, pelo contrário provoca reincidência. A prisão não devolve à sociedade indivíduos corrigidos, mas mais perigosos do que eram. Para Foucault o sistema carcerário consegue tornar natural e legítimo o exercício da punição, acaba com os exageros do castigo, porém, dá legalidade aos mecanismos disciplinares. As punições legais podem ser infligidas pelo poder sem que isso seja visto como excesso e violência. É preciso tornar o poder de punir tão discreto quanto possível. O carcerário torna natural o poder legal de punir, assim como legaliza o poder técnico de disciplinar, realizando a grande economia do poder. Há cada vez mais dificuldade em julgar. Há também vergonha em condenar. Os juízes medem, avaliam, diagnosticam e reconhecem o que é normal. Os juízes têm apetite por “medicina”, apelam a psiquiatras, médicos, psicólogos evidenciando que há uma certa obediência à lei, o resto é poder normativo. A onipresença do dispositivo da disciplina mostra que o poder normativo é uma das funções mais importantes da sociedade.A rede carcerária foi e é o apoio do poder normalizador.