Post on 24-Sep-2015
description
102
Revista do Programa de Ps-Graduao em Letras da Universidade de Passo Fundo - v. 4 - n. 1 - 102-115 - jan./jun. 2008
Resumo
Ensino e pesquisa na rede de ensino:
para uma poltica de vnculos de
conhecimentos
Rosngela M orello*
A pesquisa na escola popularizou-se nas duas ltimas dcadas no Bra-sil, evidenciando questes sobre as articulaes entre escola e sociedade, ensino e pesquisa, sobre as metodo-logias de ensino, o papel do aluno e professor e sobre a relao destes com o conhecimento a ser ensinado e aprendido. Considerando que o cerne desta perspectiva de pesquisa est na construo de uma posio investiga-tiva para alunos e professores e que esta posio est tradicionalmente ancorada na pesquisa como prtica distinta do ensino, indagamos sobre o estatuto do conhecimento que mobili-za. Motivada pelos desafios que per-correm a implementao de propostas em tal perspectiva, propomos discutir este estatuto como parte de uma po-ltica para a formulao do conheci-mento. Para tanto, acreditamos ser necessrio assumir uma tica investi-gativa na relao com o ensino.
Palavras-chave: Ensino-via-pesquisa. Escola. Produo de conhecimento. Cincia. Cultura cientfica.
Introduo: nsino-
asiupseq/pesquisa-onisn
forte na histria da educao no Brasil a tradio de se desvincularem ensino e pesquisa. Quase sempre en-tendida como instncia legitimada da produo de conhecimento,1 a pesquisa aparece circunscrita a nveis institucio-nais de estudos aprofundados. Nesta tradio, a ideia de que a pesquisa exige um domnio do pensamento e de tcnicas especfico liga-se ideia de ensino na escola, principalmente nos nveis fundamental e mdio, como es-pao de transmisso de conhecimento no produo ou formulao , am-bas ancorando uma definio prvia do papel imaginrio do aluno e professor nessa relao.
* Docente na Universidade do Sul de Santa Catarina e pesquisadora do CNPq processo 484080/2007-5.
Data de submisso: agosto de 2008. Data de aceite: novembro de 2008.
103
Revista do Programa de Ps-Graduao em Letras da Universidade de Passo Fundo - v. 4 - n. 1 - 102-115 - jan./jun. 2008
De um lado, concebe-se que o aluno
(criana ou adolescente) precisa de
capacidades de raciocnio especficas
para o exerccio da pesquisa e de suas
formas de linguagem, o que justifica
tanto a seriao e a organizao por
disciplinas dos conhecimentos quan-
to os ajustes do tipo de contedo a
ser destinado a cada srie. De outro,
generaliza-se um imaginrio de pro-
fessor transmissor de conhecimentos
os contedos , no investigador ou
pensador.
Quanto mais aprofundadas as
pesquisas e mais bsicos (ou iniciais)
os nveis de ensino institucionaliza-
dos nas redes, mais largo e profundo
o fosso que os separa. O estatuto do
conhecimento, j disciplinarizado,
divide-se entre estas instncias: numa,
aquele a ser transmitido, reproduzi-
do, porque formulado alhures; noutra,
aquele que descoberto, inventado,
formulado. Essas distines, embora
dominantes na cultura escolar, tm re-
cebido crticas profundas, que mostram
especialmente seus efeitos restritivos
na compreenso da natureza histrico-
social do conhecimento.
Ao final do sculo XIX, John Dewey,
por exemplo, j anunciava a necessida-
de de se assumir uma perspectva de
vinculao dos conhecimentos produ-
zidos na escola. Em nossos dias, esta
perspectiva se fortalece em propostas
pedaggicas que defendem uma inter-
locuo investigativa de alcance social
nas relaes de ensino-aprendizagem,
em todos os nveis, atravs do ensino
via pesquisa, ou por projetos.2 Essas
propostas, de modo geral, questionam
as tradicionais formas disciplinares e
seriadas de organizao de contedos
nos sistemas de ensino, promovendo
uma reorganizao da relao ensino-
aprendizagem. Ao mesmo tempo,
pressupem revolues mais sutis no
campo da formulao do conhecimen-
to, uma vez que deixam a descoberto
o estatuto do prprio conhecimento
produzido, sua legitimidade social e
institucional.
Derivam da crticas abstrao do
metaconhecimento que predomina nas
relaes de ensino nas escolas. E, num
quadro mais amplo, perguntar-se-
sobre a funo social dos conhecimen-
tos em face dos mercados cientficos
derivados da institucionalizao das
pesquisas e do que Santos (1985),
numa crtica racionalidade cient-
fica, denomina industrializao da
cincia.
Tomando em conta esse quadro
geral, e considerando procedentes as
crticas e propostas em prol de um
posicionamento investigativo dos
sujeitos na rede de ensino, propomos
problematizar justamente as condies
para a formulao do conhecimento
nos nveis mdios e fundamentais. Es-
pecificamente, observando os desafios
104
Revista do Programa de Ps-Graduao em Letras da Universidade de Passo Fundo - v. 4 - n. 1 - 102-115 - jan./jun. 2008
enfrentados em trabalhos com docen-
tes e alunos visando a constituir uma
posio investigativa para as relaes
ensino-aprendizagem na escola,3 inda-
gamos sobre o estatuto do conhecimen-
to produzido e quais potencialidades
se podem vislumbrar para fortalecer
a perspectiva investigativa.
O funcionamento dos imaginrios
que antecipam os sentidos sobre o
papel do professor e aluno, antes in-
dicado, constitui, para ns, um impor-
tante foco de anlise. Por meio desse
funcionamento, podemos observar a
configurao de uma certa posio para
o sujeito (professor e aluno) se repre-
sentar nos processos de formulao do
conhecimento. Observar a configurao
dessas posies de representao signi-
fica tocar nas condies histricas de
significao e funcionamento das pr-
ticas de formulao de conhecimento,
notadamente, nos modos pelos quais
se estabiliza uma memria para essas
prticas. Ser no confronto com as evi-
dncias que garantem o funcionamento
desta memria que se instalaro as
possibilidades de novos sentidos para
as prticas investigativas na rede.
Neste texto, destacaremos alguns
pontos que marcam esse confronto e
que repercutem nas relaes de ensi-
no-aprendizagem-pesquisa. As redes
digitais de informao e comunicao
constituem um desafio e uma possibi-
lidade para o ensino e a pesquisa, am-
pliando a problemtica da formulao
do conhecimento, como deixaremos
aqui indicado.
Ao propor essa anlise, entramos
tambm na rede de memria das pr-
ticas sociais de formulao de conhe-
cimentos. No poderamos, por isso,
negar a espessura tcnica e adminis-
trativa da institucionalizao da pes-
quisa, como mostraremos brevemente
a seguir; ainda menos poderamos
cair na defesa de um voluntarismo
pedaggico que colocaria os sentidos
do trabalho na vontade de cada um,
ou, ainda, que aceitaria um esponta-
nesmo do trabalho investigativo que
abandonaria o conhecimento cientfico
institudo, por meio do qual se tm as
definies a priori do objeto.4
Ao contrrio, trata-se, em nossa
perspectiva, de operar com e sobre
as prticas sociais constitudas para
compreender seus efeitos de sentido e,
assim, vislumbrar frestas para novas
articulaes dos conhecimentos com
seus exteriores.5 Por tudo isso, inda-
gar sobre o estatuto do conhecimento
na rede de ensino nos nveis funda-
mentais e mdios um desafio novo e
atual. E inevitvel! Mas no de fcil
abordagem!
Sigamos com nosso recorte.
105
Revista do Programa de Ps-Graduao em Letras da Universidade de Passo Fundo - v. 4 - n. 1 - 102-115 - jan./jun. 2008
A diviso social do trabalho
intelectual: nveis e prticas
de pensar
A reflexo sobre o estatuto de conhe-cimento que circula na rede de ensino remete, inicialmente, e como dissemos, ao prprio fazer (das) cincias, mode-lado no Brasil pela tradio ocidental. Nos dias de hoje, e no que se refere especificamente problemtica em foco, pesquisar-ensinar algo que j tomamos como evidentemente dividido em grades e categorias que nomeiam e institucionalizam os saberes. Para retomar brevemente esse quadro, temos divises em reas (cincias da terra, exatas, humanas...), em cam-pos (tericos ou prticos, tecnolgicos, epistemolgicos, descritivos, etc.), em nveis, graus, sries (1, 2 ou 3...) e em disciplinas.
Essas divises constituem o traba-lho intelectual, mobilizando procedi-mentos que caracterizam e qualificam cada uma delas em relao s outras. Por meio delas se constituem os senti-dos para o sujeito se dizer em sua es-pecialidade e construir sua trajetria. As especializaes, os nveis de estu-dos, os concursos, os acessos a cargos gestores, por exemplo, funcionam como alguns destes procedimentos. Forja-se, nesse percurso, todo o aparato tcnico, administrativo e poltico que funda
o real da pesquisa e do sistema de ensino. um real que nos enreda, do qual no escapamos, porque lanamos mo dele para falar e dar sentido ao que fazemos.
Queremos com isso dizer que, em certa medida, quando atingimos o nvel superior nos representamos prontos a explicitar, garantir ou mos-trar a necessidade de definir critrios de pesquisa, ou, ento, a propor novos, em nossa rea. Identificamo-nos com essa prtica sem estranhar o fato de que descrever e operacionalizar com os sentidos de cientificidade j um produto do discurso da cincia.6 Do mesmo modo, quase sempre estamos prontos a argumentar pela legitimida-de das prticas que derivam daquelas divises e hierarquias, buscando ace-der aos diferentes nveis por meio de cursos, concursos, certificaes, fruns de discusso.
Como qualquer outra prtica social, esta arregimenta procedimentos admi-nistrativos e investimentos subjetivos e realiza-se por confrontos, disputas e lutas. A questo da autoria e dos di-reitos autorais designa bem a potncia desse processo. Como quer que seja, sero diferentes espaos ou forma-es discursivas construindo, em relaes de oposio, complementao ou contraidentificaco a legitimao histrica do trabalho intelectual e dos objetos que engendra.
106
Revista do Programa de Ps-Graduao em Letras da Universidade de Passo Fundo - v. 4 - n. 1 - 102-115 - jan./jun. 2008
Em consequncia, produzir conheci-
mentos na rede de ensino uma tarefa
que se efetiva nesses espaos de con-
fronto. Por isso, no se trata de negar
sua existncia ou relevncia social e
histrica; muito menos podemos evitar
os confrontos que os constituem. Es-
tamos enredados nessa historicidade,
como antes dissemos.
A questo, diante desse quadro,
como pretender que se estabelea uma
posio investigativa de produo de
conhecimentos nos nveis de ensino
ditos fundamentais? No estaria
esta conversa em dessintonia com
toda essa diviso social, institucional
e administrativa das instncias for-
muladoras e definidoras dos sentidos
de pesquisa e de conhecimento? No
seria o caso de abandonar a proposta
e, ento, circunscrever a problemtica
da formulao do conhecimento a uma
pesquisa particular, um objeto de pes-
quisa, portanto?
Sem dvida, o quadro em que se
inscreve qualquer proposta de ressig-
nificao das relaes pedaggicas
multifacetado e complexo. Poderamos,
por certo, reconhecer que a questo
da disciplinarizao e hierarquia dos
conhecimentos apresenta-se como um
fato intransponvel para a configura-
o das redes de ensino e pesquisa e,
ento, fazer uma anlise crtica de seus
efeitos. No entanto, indo alm dessa
percepo crtica, arriscamo-nos a de-
fender a pertinncia de se almejar uma
nova ordem nessas relaes. Em nosso
ponto de vista, essa possibilidade est
em se estabelecer e explicitar como
parte imprescindvel do trabalho de
pensar, pesquisar, ensinar variados
confrontos entre os espaos (e posies)
de formulao dos conhecimentos.
Pesquisa: um modo de
trabalho
Falamos de uma tomada de posio
que olha alm do espectro dos conte-
dos, que mexe com os sujeitos envolvi-
dos confrontando-os com diferentes po-
sies que entretecem os processos de
produo de conhecimento. Falamos,
portanto, de um modo de trabalho que
toma em conta as diferentes posies
que entram em cena no trabalho de
natureza investigativa. Um modo de
trabalho cuja especificidade e quali-
dade consiste em promover a produo
de condies para que os conhecimen-
tos produzidos e os processos de sua
produo signifiquem para os sujeitos
envolvidos vnculos capazes de lhes
conferir visibilidade, autonomia, his-
toricidade.
Nesse modo de trabalho, faz-se uma
dupla passagem na relao ensino-
aprendizagem-investigao: a informa-
o passa a se dar como saber dispo-
nvel para se chegar a outros; a trans-
misso de um conhecimento j pronto
107
Revista do Programa de Ps-Graduao em Letras da Universidade de Passo Fundo - v. 4 - n. 1 - 102-115 - jan./jun. 2008
d lugar a um processo de produo de uma descoberta, ou a um processo de mltiplas descobertas. Esse movimen-to resulta de uma mudana no modo de olhar as relaes de investigao, na medida em que supe a assuno do sujeito a uma posio que articula as diferentes possibilidades tericas e metodolgicas de compreenso de um objeto. Por isso, podemos dizer que se trata de uma posio que se articula como uma poltica para a formulao do conhecimento, isto , como uma tica investigativa.7
Com essas afirmaes no estamos ignorando o fato de que conhecimentos se produzem durante todo o tempo e em qualquer espao ainda que, no caso da rede de ensino, os vnculos estejam ausentes mas que essa tica investigativa enquadra os processos e produtos de modo a qualific-los e signific-los pelas relaes que vo se estabelecendo no percurso. Ao invs de se assumir a informao disponibi-lizada como nica e certa, pretende-se que se negocie com ela, assuntando suas evidncias, sua repercusso, seus espaos de circulao e legitimidade.
Justamente por isso, evidencia-se nesse enquadre uma tenso especfica na conduo do trabalho: a de evitar que os sentidos procurados sejam ime-diatamente esgotados nos contedos prontos. A reproduo de contedos constitui uma prtica sedimentada,
que tende a apagar o processo de re-flexo que conforma uma investigao. Para os objetivos deste texto, vamos destacar duas foras que tendem a produzir esse apagamento: uma local, imediata, ancorada na didatizao dos conhecimentos; outra mais sutil, porque se d como uma evidncia histrica para as prticas investiga-tivas e que conduz desqualificao do conhecimento produzido em pases colonizados, como o Brasil. Essas for-as tendem a estabilizar alguns sen-tidos de conhecimento e de sujeito de conhecimento como nicos possveis, conformando a rede de memria a que nos referimos.
Confronto 1: contra a
didatizao do saber e do
vnculo
Quando indagamos sobre o estatu-to do conhecimento, inevitvel que lidemos com as inmeras constata-es de que o saber que se legitima na escola, uma vez pedagogizado,8 significa quase sempre, em virtude de um valor de verdade abstrato e fun-dado na regulao cientfica do que pode e deve ser dito e aprendido e aprendido disciplinarmente. A diviso disciplinar dos saberes reproduz o exerccio do poder-fazer das cincias como uma forma especfica de poder (FOULCAUT; PCHEUX, 1990). Uma
108
Revista do Programa de Ps-Graduao em Letras da Universidade de Passo Fundo - v. 4 - n. 1 - 102-115 - jan./jun. 2008
das formas mais cristalizadas desse
empoderamento parece ser a fixao
dos contedos por sries, exercida como
uma necessidade (aquilo que se tem de
aprender!) e inquestionvel repetio
(todos, em todos os anos, devem apren-
der o mesmo).
Nesse alinhamento, quando se
prope uma pesquisa, tende-se a co-
locar o foco num contedo temtico, a
ser pesquisado por meio de uma busca
que consiste, especialmente, em reunir
as informaes disponveis. Raramente
se articulam essas informaes para
solucionar uma problemtica.
Na tica do conhecimento comparti-
lhado como um processo, em suas
inmeras formas de aparecimento,
como se preconiza naquelas propos-
tas de vinculao entre ensino e pes-
quisa, se induz produo de novas
condies de reflexo. Os contedos
indicados passam a funcionar com um
dos saberes disponveis, entre outros.
Menos do que a renovao dos con-
tedos, essas condies requerem um
posicionamento do sujeito professor
e aluno no dilogo institucional,
por meio do qual possam elaborar
uma compreenso do papel poltico
dos conhecimentos, em confronto com
o paradigma dominante da cincia
universal e abstrata. Nesse processo,
ser uma consequncia salutar que se
questionem os processos de legitima-
o do conhecimento produzido, com
todo o aparato tcnico-administrativo
e poltico que os acompanha.
Confronto 2: a crtica
discursividade do
comentario
Mas questionar tais processos
conduz a refletir sobre aquilo que os
determina. Entramos, assim, no ter-
reno das determinaes histricas (e
ideolgicas) do trabalho de formulao
de conhecimento no Brasil, querendo
compreender como elas funcionam.
H muitas formas de se pensarem
essas determinaes. Uma delas resul-
ta de anlises sobre a maneira como se
cristalizam historicamente os sentidos
sobre a produo de conhecimento e
a posio sujeito nela concernida no
Brasil. Nessa direo, pode ser perti-
nente considerar o que denominamos
de discursividade do comentrio
(MORELLO, 2001).
Em linhas gerais, esta tese da dis-
cursividade do comentrio resulta de
uma anlise mais ampla do processo
de produo de conhecimentos e das
relaes de poder e fora que o estrutu-
ram. Grande parte das relaes de pro-
duo de conhecimento no Brasil est
marcada por eventos que conduzem a
legitimar o saber brasileiro com base
numa dupla determinao: de um lado,
esse saber significado em face de um
imaginrio de saber cientfico ancorado
109
Revista do Programa de Ps-Graduao em Letras da Universidade de Passo Fundo - v. 4 - n. 1 - 102-115 - jan./jun. 2008
numa tradio civilizadora dos pases
centrais. Por isso, um saber que
est sempre em defasagem. De outro
lado, e como face da mesma moeda,
essa defasagem justificada pelo fato
de o pas ainda no ter atingido um
nvel de desenvolvimento desejvel
imaginrio , tendo, portanto, uma
sociedade no pronta.O sujeito dessa
sociedade aparece significado como um
sujeito no dado a reflexes profundas
(MORELLO, 2001).
Por essas vias, as formas e formatos
do saber brasileiro e da posio-sujeito
de conhecimento neles investida vo se
travestindo de sentidos que se erigem
na discursividade de saber no cientfi-
co, sociedade no pronta, subjetividade
no racional, em oposio s socieda-
des que possuem a tradio e a histria
do pensamento e da cincia. Assim,
a posio do sujeito de conhecimento
para as novas sociedades criada por
uma oposio tradicional figura do
pensador (e da autoria naturalmente
legitimada), de onde se pode derivar
a figura do comentador (e da autoria
sempre em litgio). Entrelaando de-
fasagem do saber e projeto de desen-
volvimento do pas e do sujeito, esses
sentidos se naturalizam e figuram,
para ns, a discursividade do comen-
trio. Nesse sentido, o comentrio pode
ser compreendido como um espao que
determina a posio para a autoria
brasileira, porque a precede e sustenta
(MORELLO, 2001).
Por essas relaes de filiao, os
sentidos de conhecimento estabilizam-
se e distribuem-se socialmente. E po-
liticamente, portanto. Certamente, h
muitas dobras a serem consideradas
nesta discusso sobre a discursividade
do comentrio, inclusive para evitar
que reduzamos a ela todos os processos
de formulao de conhecimentos no
Brasil. Para a questo aqui abordada,
sua considerao permite, em nosso
ponto de vista, notar alguns de seus
efeitos na constituio da rede de
memria para a produo de conheci-
mento na rede de ensino.
Propor que se faam passagens da
informao (caudatria da transmis-
so) ao conhecimento (ligado produ-
o) e, deste, pelas redes de ensino/
pesquisa, mobiliza essas relaes de
filiao, abrindo possibilidades de
rupturas. Em vista da anlise proposta
neste texto, compreendemos que a ins-
tncia de formulao de um processo
de conhecimento, do recorte provisrio
de um produto que a se tece, desig-
na a importncia para o profissional
de uma tomada de posio capaz de
articular os sentidos do trabalho pro-
posto, de lhe dar direcionamentos. E
tomar uma posio sobre os sentidos
do conhecimento e as possibilidades de
sua permanncia em produtos afeta a
organizao do trabalho de ensinar e
seus modos de inscrio na histria.
110
Revista do Programa de Ps-Graduao em Letras da Universidade de Passo Fundo - v. 4 - n. 1 - 102-115 - jan./jun. 2008
Retornamos, por essa via, como
antes mostramos, ao jogo que funda as
mltiplas pedagogias e seus processos
de institucionalizao escolar. Nesse
sentido, vemos que as demandas e
posicionamentos, embora se projetem
segundo a vontade de cada um, estru-
turam-se por identificao subjetiva e
filiaes contraditrias ao que nos sig-
nifica nessa discursidade do coment-
rio. No aprendemos nem controlamos
esses sentidos, como explica Pcheux,
uma vez que se trata de processos
que nos antecedem e operam no mais
alto grau de evidncia e completude;
processos que nos demandam, como
sujeito-professores, um certo posicio-
namento para, em nossa autonomia
e vontade, produzirmos, reproduzir-
mos, contradizermos, frequentarmos,
silenciarmos ou avivarmos objetos e
percursos desses saberes, suas prticas
e divises.
Diante desse jogo constitutivo das
prticas discursivas, como a de ensino
e pesquisa, e no seu entremeio, coloca-
se a demanda de refletir sobre as con-
dies para se produzir hoje, condies
de produo de sentidos que atinjam
exatamente o que h de especfico
nesse processo: o conhecimento.
Entre as mltiplas exigncias de
uma empreitada como essa, e tendo
em vista os objetivos propostos, reterei
para reflexo um ponto que, do meu
ponto de vista, articula multiplamente
e sutura os sentidos de conhecimento
em suas passagens nas redes, sendo
estruturante do trabalho de pensar/
conhecer/pequisar/ensinar, a que
chamarei de temporalidade.
Temporalidade: um certo
vnculo
Significada na articulao tempo
e servio, ou tempo de servio, essa
temporalidade funda uma forma de
vnculo do professor com seu trabalho;
define e qualifica tambm os conhe-
cimentos produzidos nessa relao.
Quero com isso dizer que o tempo de
servio organiza fortemente a relao
do professor com o trabalho, porque em
depoimentos desse profissional sobre o
trabalho que realiza figuram, de modo
central, porque recorrente, enunciados
como: j tenho X anos de Rede, passei
a vida em sala de aula, ... a vida toda
dando aulas.
Compreendemos nessa recorrncia
que o tempo qualifica o vnculo e ha-
bilita o profissional ao acesso a uma
srie de mecanismos de sustentao do
trabalho, de progresso e qualificao
na carreira. Nesse alinhamento, seria
de se esperar que a precedncia signi-
ficativa do tempo na relao com o tra-
balho de ensinar conduzisse tambm
a uma srie de mecanismos capazes
de produzir uma visibilidade sobre o
conhecimento produzido ao longo des-
111
Revista do Programa de Ps-Graduao em Letras da Universidade de Passo Fundo - v. 4 - n. 1 - 102-115 - jan./jun. 2008
sa relao. Contudo, no localizamos
a presena desses mecanismos com
a mesma fora. Em consequncia, a
problemtica especfica da produo
de conhecimentos fica destituda de um
vnculo capaz de sustent-la.
A produo de uma visibilidade do
conhecimento produzido guarda uma
relao inevitvel com os princpios
de diviso e hierarquia dos sentidos
de conhecimento antes explicitados.
Apesar disso, tomar em conta a possi-
bilidade de produzi-la implica discutir
os mecanismos destinados a agregar a
tais conhecimentos vnculos capazes de
garanti-los em suas especificidades, de
coloc-los em relao, disponibiliz-los
e faz-los circular na rede. So conhe-
cimentos que articulam inseparavel-
mente os processos e seus produtos
provisrios.
Fazer uma discusso dos vnculos
significa tom-los como parte da pes-
quisa, da investigao proposta, de
modo a comporem um conhecimento
especfico. Esta discusso apresenta
como principal caracterstica o fato de
conduzir a uma tomada de deciso so-
bre o modo em que o processo de traba-
lho constitui uma memria, um arqui-
vo disponvel e dinmico. Abre-se, por
essa via, um novo patamar de formao
para os envolvidos nas investigaes,
que os coloca diante da demanda de de-
cidir pelas relaes de significao dos
saberes que produzem. Essa tomada de
posio pode ser capaz de desarticular
as passagens meramente aplicativas
da informao; implica uma formao
para a formulao.
As condies para que uma discus-
so nessa direo ganhe corpo supem
uma participao ativa das instncias
administrativas do ensino com vistas
a viabilizar um aparato de trabalho na
rede de ensino que acolha uma forma-
o para a formulao, o que significa
fortemente, para ns, investir, de um
lado, em mecanismos para produzir
arquivos heterogneos e articulados,
que acolham tomadas de posies di-
ferenciadas, as memrias que jogam
nelas, e, de outro e como face de uma
mesma moeda , produzir o confronto
dos sentidos, sua contradio histrica.
Isso se traduz em perguntas sobre os
vnculos: vnculos entre os conheci-
mentos e as condies de sua produo,
investindo o sujeito; vnculos entre as
instituies e seus rituais, suas lgicas
e coerncias e suas margens; vnculos
dos sujeitos com sua memria e, desta,
com as memrias que se materializam
sobre ele.
Perguntas desdobradas sempre em
outras, e mais outras, desbordadas em
teias sobre os modos de se fazer/propor
vnculos de conhecimentos, sociais,
histricos, que organizam saberes e os
entretecem em redes a serem ou no
memoriveis. Na memria discursiva
se engendram modos evidentes de fun-
112
Revista do Programa de Ps-Graduao em Letras da Universidade de Passo Fundo - v. 4 - n. 1 - 102-115 - jan./jun. 2008
cionamento dos sentidos para o saber
e o saber-sobre e que, em diferentes
medidas e pesos, investem os sentidos
sobre o conhecimento produzido no
Brasil, estabilizando-os numa discur-
sividade que, sob os auspcios de um
sentido de pas em desenvolvimento
e de um sujeito em vias de... (se civili-
zar, em formas de pensamentos mais
exatas?), naturalizam a defasagem e
a disperso como traos da prtica de
pesquisa-ensino (MORELLO, 2001).
Algumas consequncias
Para serem extradas consequn-
cias de tudo o que se disse preciso
reconhecer a crise do modelo de racio-
nalidade cientfica que, de acordo com
Santos (2005), dominou a produo
de conhecimento desde o sculo XVI.
Os pontos de impasse que marcam o
trabalho intelectual do docente e do
aluno tensionam as novas propostas
e requerem novas condies para a
formulao do conhecimento, que
permitam ressignificar seu estatuto,
colocando o foco no que mltiplo e
relacional.
Por isso falamos de posio de pro-
duo de novas posies rearticulado-
ras de objetivos a partir de interesses
locais. O ganho, ento, o de retirar
o foco do contedo, porque ele passa a
ser instrumental, um meio, no o fim
especfico. Essa a virada pedaggica
possibilitada pela perspectiva investi-
gativa, que permite agregar ao eixo da
temporalidade a perspectiva de uma
historicidade, uma memria para o
conhecimento produzido.
Tirar as consequncias dessa virada
e dos vnculos que promove significa
reconhecer que:
a reflexo investigativa da pes-
quisa no ensino no possui um
escopo de metodologia local e lo-
calizada. Ser preciso perguntar
sobre seus desdobramentos socio-
polticos e dar, assim, um passo
atrs. Afinal, lidar com objetos
de conhecimentos mltiplos e de
naturezas distintas coloca em
questo a prpria possibilidade e
necessidade da delimitao de um
deles como objeto de conhecimen-
to. Mas com quais critrios e em
quais condies essa delimitao
se d? Por quais mecanismos esse
um produto se estabiliza, ou
seja, por quais meios circula e em
quais circuitos se legitima? Com
que finalidade?
com as das questes aqui aborda-
das vemos que a problemtica do
estatuto do conhecimento se den-
sifica, mostrando desdobramentos
e apagamentos epistemolgi-
cos e ideolgicos importantes da
diviso ensino-pesquisa Somos
induzidos a prestar ateno nos
mecanismos cotidianos que pro-
113
Revista do Programa de Ps-Graduao em Letras da Universidade de Passo Fundo - v. 4 - n. 1 - 102-115 - jan./jun. 2008
movem a diviso, considerando es-
pecificamente a questo dos nveis
de ensino e do posicionamento dos
sujeitos, vinculados a processos
de identificao que estruturam
a relao destes com os objetos de
conhecimento.
Por tudo o que se disse, se um
percurso de trabalho com docentes
visando pensar a formulao de uma
rede de memria para o conhecimento
produzido na rede de ensino funda-
mental e mdio forneceu a motivao
inicial para este texto, notamos que a
discusso proposta leva em conta as di-
nmicas e mltiplas faces do trabalho
intelectual envolvido nessa produo.
Como mostramos, perguntar pelas
determinaes das condies da produ-
o de conhecimento significa observar
as marcas discursivas que as caracte-
rizam e as relaes de significao que
atualizam em nossa memria. Trata-
se, desse modo, de uma investigao
que, de um lado, reconhece a necessi-
dade de perceber as marcas que estru-
turam as prticas de conhecimentos,
vinculando-as a discursos que denun-
ciam uma continuidade nos modos de
se pensar e dizer o que pesquisa e
digno dela! como caudatria de pro-
cessos colonizadores de longa data. De
outro lado, reconhece a necessidade de
observar os traos dessa produo em
face da cultura cientfica, que deman-
da, nos dias de hoje, um pertencimento
do sujeito e das sociedades a uma mo-
dernidade tcnico-cientfica universal.
As tecnologias digitais da comunicao
e informao marcam essa passagem
por meio de inmeros mecanismos de
espelhamento subjetivo que ordenam
o que se tem nomeado de sociedade
do conhecimento (LEVY, 2006; CAS-
TELL, 1999).
No caso do Brasil, que aqui nos
interessa, reproduzem-se impasses
que atravessam o espao do trabalho
intelectual. Notamos, de um lado, que
h um descompasso histrico entre o
saber produzido no cotidiano do ensino,
aquele que se legitima como pesquisa
e os modos como ambos ensino e
pesquisa entram em nossa histria
de produo de conhecimento e auto-
rias (MORELLO, 2001). De outro, a
presena de instrumentos eletrnicos
informatizados destinados a uma r-
pida e intensiva circulao de saberes
promove e tutela a entrada do sujeito
num amplo circuito de informaes,
que se sobrepe de mltiplas formas
rede de ensino, reorganizando os
acessos.
Em cada uma dessas dimenses
estruturam-se vnculos entre conheci-
mentos e entre sujeitos que afetam am-
plamente os processos investigativos
e seus possveis objetos. Pensar esses
impasses traz para a cena a necessida-
de de se contemplar os modos de olhar
o mundo, de se pensar as sociedades e
114
Revista do Programa de Ps-Graduao em Letras da Universidade de Passo Fundo - v. 4 - n. 1 - 102-115 - jan./jun. 2008
de nos pensarmos nelas. Mas essa
uma nova problemtica, para um outro
momento.
Abstract
Teaching and research
in the school system: for
a politics of knowledge
bondings
Research in schools became popular
in the last two decades in Brazil, brin-
ging questions about the relationship
between school and society, education
and research, the methodologies of
education, the function of pupils and
teachers, and the relationship of the
latter with the knowledge to be taught
and to be learned. Considering that
the core of this perspective of research
is in the construction of an investiga-
tive position for pupils and teachers,
and considering that this position is
traditionally anchored in research as
a distinct educational practice, we in-
quire about the statute of knowledge
that it mobilizes. Motivated by the
challenges of the implementation of
proposals in such perspective, we con-
sider to discuss this statute as part of a
politics for the building of knowledge.
For such, we believe it is necessary to
take an investigative perspective about
education.
Key words: Teaching-through-research.
School. Knowledge building. Science.
Scientific culture.
Notas
1 vasta a literatura atual que re ete sobre as polticas de produo de conhecimentos, incluin-do o estatuto do conhecimento e suas formas de circulao (SANTOS, 2005; GUIMARES, 2001). Neste texto, propomos uma re exo so-bre a formulao de conhecimentos na rede de ensino, considerando os desa os que advm de se assumir uma posio investigativa para o desen-volvimento de pesquisas nos nveis fundamentais e mdio. Para tanto, assumimos uma perspectiva discursiva de abordagem dessa problemtica que evita uma delimitao a priori entre os tipos de conhecimento, como o cient co e o popular ou outro. O estatuto do conhecimento aqui discuti-do por sua relao constitutiva com as diferentes prticas sociais.
2 Cf, entre outros, Hernndez (1998), Pacheco, (2006), Oliveira (2005) e, por certo, a obra de Paulo Freire.
3 Estamos tomando como referncia algumas ini-ciativas na rede de ensino pblica com as quais nos envolvemos, de modo especial, o Programa das Escolas Interculturais Bilngues de Frontei-ra, implementado pelos Ministrios de Educao argentino e brasileiro, que constitui uma rica experincia de trabalho com ensino via pesquisa. Cf. www.ipol.org.br
4 Estamos referindo aqui questes do tipo o que H2O (resposta: gua), ou a que classe de palavra pertence cachorro? que conduzem a respostas que a prpria teoria produz.
5 A exterioridade a que nos referimos diz respeito ao interdiscurso, aquilo que fala sempre em outro lugar e independentemente, conforme ensina Pcheux (1969). Esta exterioridade determina as condies de produo de trabalho, fazendo com que consideremos como evidente parte da realidade algo que resultado da maneira pela qual essa realidade dita.
6 Sobre a determinao dos critrios de cienti ci-dade com base nos quais se delimitam conheci-mentos enquanto cincia, S. Auroux lembra que, do ponto de vista de uma epistemologia da histria das cincias, essa separao supe:
115
Revista do Programa de Ps-Graduao em Letras da Universidade de Passo Fundo - v. 4 - n. 1 - 102-115 - jan./jun. 2008
que seja concebido como cincia aquilo que se apresenta como tal; que toda cincia seja aut-noma no que ela se d a cada instante como sua norma; que as formas de racionalidade sejam concebidas em sua mutabilidade histrica e, con-sequentemente, em relao com os objetos dos quais exprimem conhecimento. Esses critrios, segundo ele, no permitem sair da cincia para dizer o que cient co, indicando, simplesmente, que para produzir uma cincia, preciso entrar em uma escola de cincia (1991, p. 440).
7 A compreenso da poltica como uma tica defendida por Oliveira (2004).
8 O discurso pedaggico tende a esgotar o sentido proposto nas relaes de ensino na certeza de respostas que o livro didtico prope, atribuindo ao professor uma posio que no admite dvi-das, falhas, ou negociaes (ORLANDI, 1997). Fecha-se neste circuito a possibilidade para o aluno circular em suas tentativas de descobertas, de pesquisa, de indagaes.
Referncias
AUROUX, S.; WEIL, Y. Dictionnaire des Au-teurs et des themes de la Philosophie. Paris: Hachette Education, 1991.
CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede - a era da informao: economia, sociedade e cultura. So Paulo: Paz e Terra, 1999.
LEVY, P. As tecnologias da inteligncia: o futuro do pensamento na era da informtica. So Paulo: Editora 34, 2006.
MORELLO, R. Do cultural ao civilizado: quando o conhecimento nos transporta. In: GUIMARES, Eduardo Junqueira (Org.). Produo e circulao do conhecimento: po-ltica, cincia, divulgao. Campinas: CNPq/NJC/Pontes, 2003. p. 21-31.
_______. Definir e linkar: em que sentido? In: ORLANDI, Eni (Org.). Para uma enciclop-dia discursiva da cidade. Campinas: CNPq/Labeurb/Pontes, 2003. 121-133.
_______. A lngua portuguesa pelo Brasil: diferena e autoria. Tese (Doutorado em Lingustica) - Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2001.
_______. La diversit linguistique dans les textes ds grammaires normatives brsilien-nes. In: COLOMBAT, Bernard; SAVELLI, Marie (Ed.). Mtalangage e terminologie linguistique. Actas du colloque international de Grenoble (Universite Stendhal - Grenoble III, 14-16 maio 1998), Louven-Paris-Sterling-Virginia, Peeters, 2001. p. 569-576.
_______. Os meandros da alteridade: marcas de dizer e indistino de vozes no discurso. Dissertao (Mestrado em Lingustica) - Universidade Estadual de Campinas, Cam-pinas, 1995.
OLIVEIRA, G. M. de. Poltica lingustica, poltica historiogrfica - epistemologia e es-crita da histria da(s) lngua(s) a propsito da lngua portuguesa no Brasil Meridional. Tese (Doutorado), 2004.
ORLANDI, E. Discurso e texto: formulao e circulao dos sentidos. Campinas: Pontes, 2001.
PCHEUX, M. Discurso: estrutura ou acon-tecimento. Trad. de E. Orlandi. Campinas: Pontes, 1990.