Post on 24-Feb-2021
MÁRIO DE ANDRADE E A PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO
ARQUITETÔNICO NO BRASIL: O ANTEPROJETO DE 1936 EM
PERSPECTIVA
Diomedes de Oliveira Neto
Doutorando em História pela UFRPE
diomedesneto85@gmail.com
A presente comunicação se propõe a tecer problematizações sobre o documento do
anteprojeto para a criação de um Serviço de Proteção do Patrimônio Nacional,
elaborado por Mário de Andrade em 1936, a pedido do Ministro da Educação e Saúde
Gustavo Capanema durante o Estado Novo varguista. Considerado um documento que
abarcava a possibilidade de se preservar uma diversidade de bens culturais, pretendemos
verificar as possíveis contribuições do anteprojeto para um alargamento das práticas e
discursos de preservação do patrimônio no Brasil, destacando nosso interesse específico
para com os bens culturais arquitetônicos produzidos entre finais do século XIX e nas
três primeiras décadas do século XX. Para tanto realizamos uma breve revisão
historiográfica de escritos sobre o anteprojeto nos textos de Maria Cecília Londres
Fonseca e Márcia Chuva, seguindo de uma análise na perspectiva da História Cultural
diante do documento do anteprojeto, problematizado em paralelo com alguns escritos de
Mário sobre suas visões e impressões sobre a arquitetura brasileira, tomados a partir de
suas viagens pelo Norte e Nordeste do Brasil ainda na década de 1920.
Palavras-chave: arquitetura; patrimônio cultural; Mário de Andrade
Introdução
A trajetória das políticas federais de preservação do patrimônio no Brasil tem
como um dos marcos de referência a criação em 1937, em pleno período do Estado
Novo varguista, de uma instituição de preservação chamada de Serviço do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), que junto com a construção do Decreto-lei n.
25, legitimaria de forma jurídica as práticas de preservação do patrimônio considerado
histórico e artístico em âmbito federal.
No entanto, é importante ressaltar que antes mesmo desse marco temporal, tão
propagado na historiografia tradicional do patrimônio no Brasil, outras mobilizações,
projetos, agentes e até instituições se dispuseram a firmar discursos e práticas
direcionadas a uma seleção, preservação, restauração e divulgação de um patrimônio
brasileiro que se pretendia nacional.
Em alguns circuitos cariocas, paulistas e mineiros, durante as décadas de 1920 e
1930, artistas e intelectuais sintonizados com a emergência de movimentos modernistas
internacionais, se dispuseram a construir um movimento estético modernista “à
brasileira”, sendo a semana de Arte Moderna de 1922 um dos marcos dessas
mobilizações.
Com propostas de se romper com uma tradição, no intuito de estabelecer outras
possibilidades estéticas, os modernistas brasileiros (incluindo-se os arquitetos)
buscaram definir primeiramente qual seria essa tradição nacional (NATAL, 2013), que
deveria ser superada e ao mesmo tempo tomada como referência para que novas
expressões artísticas e arquitetônicas se tornassem possíveis. Foi diante dessas propostas
modernistas, em movimentos entre tradição e modernidade, que a arquitetura colonial
brasileira foi considerada como o reduto dessa tradição nacional, devendo, pois, não
apenas ser preservada, como também orientar os novos fazeres arquitetônicos
modernos.1
A criação do SPHAN em 1937 seria resultado de uma vitória do projeto dos
intelectuais modernistas, arregimentado pelo ministro de Vargas, Gustavo Capanema,
junto a Rodrigo Mello Franco de Andrade e seus colegas intelectuais mineiros, cariocas
e paulistas. Dentre esses sujeitos, estava a figura do intelectual e literato Mário de
Andrade, que teria confeccionado ainda em 1936, a pedido de Rodrigo Mello e
Capanema, um anteprojeto direcionado à criação de uma instituição federal de
preservação do patrimônio, contendo diretrizes e encaminhamentos possíveis para a
organização e atuação de um órgão desse porte.
Apesar de ser considerado um documento referência para a criação do SPHAN
em 1937, o anteprojeto de Mário não teria sido de todo aproveitado por Rodrigo no
processo de criação da instituição. Alguns trabalhos historiográficos se propõem a
perceber quais pontos do anteprojeto de Mário teriam sido absorvidos pela instituição
em criação, e quais aspectos foram desconsiderados, ou apenas retomados de alguma
forma, décadas mais tarde pelo órgão federal de preservação.
1 Em relação a essa proposta dos arquitetos modernistas em se buscar definir uma narrativa de tradição
para a arquitetura brasileira, destacamos a tese de doutorado em História de NATAL (2013) que se
propõe a analisar como se deu essa invenção e naturalização do patrimônio arquitetônico brasileiro.
No entanto, percebemos que ainda são muitas as possibilidades de análise acerca
do anteprojeto de Mário de Andrade, então considerado um documento de destaque nos
debates e construções em torno das propostas de preservação do patrimônio no Brasil. A
própria historiografia que se debruçou sobre o anteprojeto merece considerações, no
sentido de se vislumbrar outros caminhos de pesquisa em torno desse documento
exaustivamente mencionado, mas por vezes pouco problematizado de forma mais
aprofundada.
Alguns questionamentos ainda se colocam possíveis, como por exemplo, se o
anteprojeto de Mário estaria totalmente alinhado com as propostas e narrativas
modernistas; ou quais seriam os limites, possibilidades e contribuições efetivas de seu
anteprojeto para as futuras práticas de preservação do chamado patrimônio imaterial; ou
quais seriam as possíveis contribuições do anteprojeto para uma preservação da
diversidade da arquitetura brasileira?
O objetivo deste artigo, portanto, é realizar um breve debate historiográfico
sobre duas obras que se dispuseram a analisar o anteprojeto de Mário de Andrade,
visando perceber as narrativas e discursos construídos por essa historiografia em torno
desse documento, e de como essas operações podem ter contribuído na construção de
representações e lugares comuns passíveis de serem problematizados. A partir dessas
considerações, analisando também o próprio anteprojeto junto a alguns escritos de
Mário sobre arquitetura brasileira, pretende-se perceber como o anteprojeto,
considerado um documento que abarcava uma diversidade de bens culturais a serem
preservados, poderia ter contribuído para um alargamento da preservação do patrimônio
arquitetônico brasileiro, que havia sido então restringida nas práticas pelo SPHAN
apenas à arquitetura colonial.
A sociologia do patrimônio na obra de Maria Cecília Londres Fonseca: uma das
primeiras análises do anteprojeto de Mário de Andrade.
Fruto de seu trabalho de doutoramento em sociologia na Universidade de
Brasília, a obra O patrimônio em Processo da socióloga Maria Cecília Londres Fonseca,
é atualmente considerada uma das primeiras pesquisas que se dispuseram a
problematizar e desnaturalizar os discursos e práticas de preservação, empreendidos
pelo órgão federal ao longo do século XX no Brasil (FONSECA, 1997). Por seu lugar
de destaque e de certo pioneirismo na historiografia do patrimônio, a obra de Fonseca
foi a primeira a ser elencada para nossas análises.
Suas análises acerca do anteprojeto de Mário de Andrade aparecem no terceiro
capítulo, dedicado aos primeiros momentos da organização do SPHAN durante a gestão
de Rodrigo Mello Franco de Andrade. Neste momento de sua pesquisa, a autora destaca
o protagonismo de Mário de Andrade nos discursos e práticas de preservação do
patrimônio nacional, sintonizando as preocupações do literato junto aos outros
intelectuais modernistas, que buscavam então definir uma tradição brasileira. No
entanto, devemos considerar os limites dessas sintonias de Mário com estes outros
intelectuais e mesmo as diferentes propostas em jogo de se definir essa pretensa
“tradição brasileira”. Partindo dessas considerações, não é possível analisar Mário de
Andrade e o arquiteto modernista Lúcio Costa sob uma mesma perspectiva, por
exemplo.
Como já mencionado, o anteprojeto de Mário de Andrade aparece ainda nos
momentos anteriores à institucionalização do SPHAN, e Fonseca o apresenta como
sendo um documento bastante abrangente, se comparado ao que fora institucionalizado
pelo órgão federal de preservação em 1937. Esse discurso de abrangência presente no
anteprojeto, acerca das conceituações e práticas de preservação do patrimônio, fora
largamente propagado pela historiografia do patrimônio, porém, por vezes sem intentar
compreender quais eram os limites e as possibilidades de abrangência a esse patrimônio
propostas por Mário de Andrade na década de 1930.
Fonseca defende que Mário de Andrade apresenta uma visão mais abrangente
para o conceito de patrimônio e de arte, calcado, segundo a autora, numa aproximação a
um conceito antropológico de cultura (diferente de como se definia arte, por exemplo,
na perspectiva dos arquitetos modernistas brasileiros). Para estes modernistas, a noção
de arte (e principalmente de arquitetura) estava associada a um ideal universal, supra-
histórico, que prezava muito mais pela beleza ideal e por uma razão construtiva que
ultrapassava estilos e historicidades.2
Diante dessa perspectiva da definição de arte trazida por Mário de Andrade em
seu anteprojeto, poderíamos vislumbrar possibilidades para a preservação de uma maior
diversidade de acervos arquitetônicos produzidos no Brasil ao longo dos séculos
(incluindo-se as arquiteturas dos séculos XIX e início do século XX, então desprezadas
pelos modernistas em favor de uma preservação quase exclusiva da arquitetura
colonial).
No entanto, Fonseca nos apresenta que o anteprojeto estabelecia um recuo
cronológico para a preservação: só seriam considerados bens que tivessem origem do
ano de 1900 para os séculos anteriores (ou seja, produções arquitetônicas do século XX
estariam de fora desse processo). Segundo a autora, Mário parecia conferir uma
prioridade ao valor histórico (pautado numa noção de ancianidade) em relação ao valor
artístico (que apesar de considerar uma proximidade antropológica, deveria ser
atravessado pelo valor de antiguidade).
Apesar das muitas diferenças discursivas que já percebemos em torno das
noções de patrimônio e dos valores de arte e de história, entre o anteprojeto de Mário de
Andrade e as atuações modernistas do SPHAN, Fonseca conclui surpreendentemente
afirmando que não havia muitas contradições entre as propostas do intelectual paulista e
os posicionamentos do órgão federal de preservação. A principal diferença, apontada
pela socióloga, residia no aspecto jurídico e na questão da propriedade privada dos bens
culturais, que havia sido desconsiderada no anteprojeto, mas fora priorizada no decreto-
lei do tombamento pelo SPHAN.
Apesar de conferir um destaque quase inédito ao anteprojeto de Mário de
Andrade em sua pesquisa, a análise de Fonseca ainda se apresenta bastante limitada,
sobretudo no que diz respeito aos aspectos conceituais de patrimônio, ao valor artístico
e histórico em jogo e à pretensa diversidade cultural proposta no documento. Caberiam
também análises comparativas mais aprofundadas entre o anteprojeto e o decreto-lei do
2 Sobre a influência desses ideais estéticos nas narrativas dos modernistas brasileiros, nas suas produções
historiográficas e nos consequentes discursos e práticas de preservação do patrimônio no Brasil, com
destaque para a atuação de arquitetos como Lúcio Costa e Paulo Santos ver o trabalho de PUPPI (1998).
SPHAN, o que poderiam evidenciar os limites e mesmo as diversidades das propostas
modernistas no Brasil, sendo bastante distintas entre figuras como Mário de Andrade e
Lúcio Costa. A obra da historiadora Márcia Chuva, publicada em 2009, parece ter
sinalizado algumas dessas possibilidades de análise.
O anteprojeto de Mário de Andrade sob a perspectiva da História Cultural: as
análises da historiadora Márcia Chuva.
A obra da historiadora Márcia Chuva, intitulada Os arquitetos da Memória,
também se revela como um trabalho historiográfico de destaque na área de estudos
sobre patrimônio. (CHUVA, 2009). A partir de uma perspectiva da História Cultural3, a
pesquisadora se dispõe a analisar os momentos iniciais de atuação da instituição
SPHAN, percebendo a formação de um campo relativamente autônomo de preservação
do patrimônio no Brasil, tecido a partir de relações entre as práticas cotidianas do órgão
federal de preservação e os discursos e representações produzidos nessas relações.
O anteprojeto de Mário de Andrade, apresentado também como um documento
base para a criação do SPHAN, será analisado de maneira mais complexa pela
historiadora, se comparado às pesquisas de Fonseca. Márcia Chuva está preocupada em
mapear os discursos modernistas, presentes nas práticas de preservação do patrimônio, e
em perceber as discrepâncias conceituais existentes entre o modernista Mário de
Andrade e modernistas como Lúcio Costa e Rodrigo Mello Franco de Andrade, por
exemplo. Ao perceber o triunfo do projeto modernista de Lúcio Costa no SPHAN,
declara que:
Neste projeto hegemônico, a inserção no concerto das nações se daria não
tanto pelo conhecimento e valorização de diferentes manifestações culturais
como identificadoras da “brasilidade”, como almejava Mário de Andrade
(refletidos em seu anteprojeto), mas, principalmente, pela identificação de
uma arte brasileira que pudesse se enquadrar na classificação tradicional da
história da arte no mundo ocidental. (CHUVA, 2009, p. 107, grifo nosso)
Chuva conclui, portanto, que o projeto modernista do SPHAN não estava
interessado numa historicidade da arte ou dos bens culturais a serem patrimonializados,
3 Chuva se dispõe a realizar uma espécie de História das Representações da preservação do patrimônio no
Brasil, na esteira teórico-metodológica proposta pelo historiador Roger Chartier (1988).
nem tampouco numa diversidade desses bens (que poderia facilmente ser percebida na
pluralidade de expressões das culturas materiais ou imateriais em todo o território
nacional). Os modernistas em torno de Lúcio Costa estavam interessados num valor
artístico de ordem universal, a guiar as escolhas e práticas de preservação de uma
arquitetura considerada tradicional, materializada nas expressões do período colonial.
Essa análise da historiadora permite nos revelar as contradições conceituais presentes
entre diferentes projetos modernistas então em disputa naquele momento, trazendo
também conseqüências para as escolhas, preservações e exclusões das arquiteturas
brasileiras nos processos de patrimonialização.
Ao analisar o anteprojeto de Mário de Andrade, Márcia Chuva traz um trecho
presente no documento em questão, que busca definir o que o intelectual paulista
compreendia como arte: “Arte é uma palavra geral, que (...) significa a habilidade com
que o engenho humano se utiliza da ciência, das coisas e dos fatos” (ANDRADE, 1936
apud CHUVA, 2009, p. 143). Tal afirmação parece ilustrar uma percepção de arte mais
próxima de uma perspectiva antropológica, de se considerar a historicidade dos bens
artísticos, das relações simbólicas envolvidas, diferente das concepções universalistas e
formalistas defendidas pelos arquitetos modernistas.
Chuva pretende comparar o anteprojeto de Mário de Andrade ao Decreto-lei do
SPHAN, a fim de problematizar e analisar o processo de construção de uma doxa4
específica da preservação do patrimônio no Brasil. Para tanto, a autora se valeu da
noção de intertextualidade, presente na Análise do Discurso, a fim de perceber as
relações discursivas presentes não apenas entre os dois textos em questão (o anteprojeto
e o decreto-lei), mas também com os diversos projetos de preservação do patrimônio
que circularam na década de 1920 no Congresso Nacional.
4 Este conceito é tomado de empréstimo da teoria social do campo construída pelo sociólogo Pierre
Bourdieu. (LAHIRE, 2017). Márcia Chuva acredita que o Patrimônio se constitui como uma espécie de
campo (tal como o campo político, o campo jurídico, o campo acadêmico, o campo artístico, etc.),
relativamente autônomo, dotado de determinadas percepções e práticas partilhadas entre seus agentes
internos, e conduzidas de acordo com o lugar ocupado por esses agentes dentro do campo, então em
constantes disputas e conflitos. Portanto, ao considerar o patrimônio como um campo, nossa interlocutora
evidencia as disputas internas na década de 1930 entre os diferentes projetos modernistas, de Lúcio Costa
ou Mário de Andrade, postos em embates no sentido de se definir uma determinada “doxa” da
preservação do patrimônio.
Ao comparar todos estes textos, a historiadora concluiu que o anteprojeto de
Mário de Andrade fora o que melhor trouxe concepções embasadas de cultura e de arte
(diferente dos projetos da década de 1920 que deixavam em aberto essas discussões).
No entanto, apesar da complexidade presente no anteprojeto, essas concepções não
seriam de todo absorvidas pelo decreto-lei de 1937, evidenciando suas limitações e
mesmo conflitos diante das propostas dos modernistas do SPHAN.
A respeito do anteprojeto, Chuva o considera mais como uma espécie de ensaio
em aberto, um texto informal, contendo debates e problematizações que não dariam
conta de configurá-lo como um documento mais direto, dotado de instrumentos legais
para práticas de preservação. A própria proposta de Mário de Andrade (pautada numa
espécie de unidade a se definir na diversidade cultural), diferia do projeto modernista de
construção de uma identidade nacional mais homogênea, livre de desvios, pouco aberta
às diferenças e à diversidade, inclusive no que dizia respeito nas considerações sobre os
acervos arquitetônicos.
O texto de Mário, tal como nos apresenta Chuva, se configura sob uma proposta
de classificar todos bens a serem patrimonializados como “obras de arte patrimonial”,
ou seja, todos os bens classificáveis são atravessados por uma espécie de valor artístico,
valor este que se distribui de acordo com a produção da obra: de arte pura, ou aplicada,
popular ou erudita, nacional ou estrangeira. Dessa atribuição de valor, desdobram-se as
categorias: arte arqueológica, arte ameríndia, arte popular, arte histórica, arte erudita
nacional, arte erudita estrangeira, artes aplicadas nacionais, artes aplicadas estrangeiras.
Cada um desses critérios, segundo a autora, são definidos por Mário, que se
dispõe, inclusive, a apresentar possíveis exemplos de bens a serem tipificados como tal.
Apesar dessa diversidade de categorias presentes, Chuva parece não problematizar em
detalhes cada uma dessas categorias, nem despertar atenções para uma possibilidade
dessa diversidade envolver possibilidades de preservação de outros acervos
arquitetônicos para além das referências coloniais.
Sobre a categoria de “arte histórica”, Chuva aponta que tal classificação serviria
para contemplar bens que remetessem a fatos e acontecimentos do passado, e que
porventura não dispusessem de valores considerados exclusivamente como artísticos. A
autora relaciona as semelhanças dessa categoria com o posterior Livro de Tombo
Histórico adotado pelo Decreto-lei, que visava preservar bens que fossem dotados
apenas de um considerado valor histórico. A respeito das outras categorias de arte
patrimonial presentes no anteprojeto, Chuva chega a destacar alguns critérios de
classificação, mas não apresenta as possibilidades e limites de alcance desses critérios
conferidos a um bem patrimonializável.
A conhecida forma de classificação do tombamento no Brasil, de inscrever os
bens preservados nos chamados Livros de Tombo, é uma herança do anteprojeto de
Mário de Andrade, que previa não apenas a existência de 4 Livros do tombo, mas que
também cada um desses livros deveria estar associado a um museu específico que
possuiria o papel de direcionar as práticas de salvaguarda desses patrimônios
classificados. Porém, Chuva ressalta que diferente das hierarquias presentes nas formas
de valoração e classificação do tombamento pelo SPHAN (onde o livro de tombo de
Belas Artes se sobrepunha ao livro Histórico), a proposta de Mário de Andrade não
apresentava uma hierarquia entre essas classificações e entre os livros de tombo.
Em relação à formação do corpo técnico da instituição de preservação, Mário de
Andrade defendia a atuação de profissionais de diversas áreas afins, a serem distribuídas
na sede da instituição e nas representações previstas para cada Estado da federação.
Esses profissionais deveriam partilhar todos os processos de atividades referentes à
organização, conservação, defesa e divulgação do patrimônio, como bem apresenta o
anteprojeto. No entanto, sabe-se que na prática, houve uma quase exclusividade de
atuação técnica por parte dos arquitetos modernistas envolvidos com a
institucionalização do SPHAN.
Ao comparar o anteprojeto de Mário de Andrade com o Decreto-lei do
tombamento legitimado pelo SPHAN, Chuva termina também por evidenciar as
diferenças entre um documento que apresentava mais um caráter acadêmico e quase
desinteressado de preservação (o anteprojeto de Andrade) e uma legislação de
tombamento construída e atravessada por determinadas relações de poder entre seus
agentes. Apesar do discurso dos modernistas do SPHAN prezar pela pretensão de uma
política de preservação marcada exclusivamente pelo rigor técnico de seus profissionais,
percebemos que as práticas de tombamento, por exemplo, se efetivam com base em
determinados interesses em jogo.
O anteprojeto sob outras análises: possibilidades para a preservação da
diversidade arquitetônica?
As análises do anteprojeto de Mário de Andrade conduzidas por Fonseca e
Chuva demonstram as complexidades de questões presentes e possíveis neste
documento, considerado um dos marcos fundadores das políticas de preservação em
âmbito federal no Brasil. No entanto, as pesquisadoras deixam em aberto muitas
possibilidades para pesquisas mais aprofundadas, como em relação a análises mais
demoradas sobre as construções das categorias de classificação previstas no documento,
os debates em torno das noções de valor artístico e valor histórico, além de se
vislumbrar até que o ponto o anteprojeto poderia contribuir para uma maior diversidade
na preservação do patrimônio arquitetônico no Brasil.
A proposta desse tópico em nosso artigo, portanto, é analisar mais diretamente o
documento do anteprojeto, pensando suas possibilidades para uma preservação da
diversidade arquitetônica produzida no Brasil, para além do que fora consagrado e
escolhido pelos intelectuais modernistas e técnicos à frente do órgão federal de
patrimônio pós 1937. Paralelo a essa análise, nos debruçaremos também em alguns
escritos de Mário sobre arquitetura brasileira ainda na década de 1920, a fim de
perceber como suas impressões puderam contribuir na definição do lugar da
preservação da arquitetura no futuro anteprojeto.
Antes de problematizarmos o lugar da preservação da arquitetura brasileira no
anteprojeto confeccionado por Mário de Andrade, pretendemos aqui perceber algumas
de suas impressões e importância conferidas à arquitetura a partir das viagens
empreendidas pelo intelectual: uma à Ouro Preto ainda em 1919, e outras duas
realizadas para as regiões Norte e Nordeste entre os anos de 1927 a 1929.
A primeira viagem, quando Mário se encontra com as arquiteturas coloniais das
cidades mineiras, rende em 1920 a publicação na Revista do Brasil de uma série de
crônicas com suas impressões acerta da arquitetura religiosa no Brasil. Esses textos se
revelam como importantes documentos acerca das interpretações do intelectual a
respeito do que se produzia de arte religiosa no Brasil naquele momento, então marcado
pela forte expressão das arquiteturas ecléticas e historicistas que prezavam pelo uso de
formas e soluções construtivas inspiradas em arquiteturas do passado europeu (do
greco-romano, ao gótico, passando por reinvenções barrocas, bizantinas, românicas,
dentre outras referências), contrapondo-se essas arquiteturas àquelas produzidas nos
passados coloniais. Sobre essas duas temporalidades observadas e contrapostas (passado
colonial e presente eclético/historicista), considerando suas construções religiosas,
Mário se revela categórico ao afirmar:
A arte religiosa vai-se exaurindo a pouco e pouco, para chegar aos tempos
modernos, inerme, cadáver (...) Se pelo estudo da iconografia se poderão
caracterizar o espírito, os sentimentos, a consciência religiosa das épocas
diversas; hoje, que se levantam: (...) o gótico de inúmeros templos ianques, e
mais particularmente entre nós o rococó –românico –bizantino, quiçá
secessionista, da igreja de Belo Horizonte, o gótico de N.S.da Conceição de
Botafogo (...) o gótico flamejante da nossa catedral (SP) (...) que divisar
senão uma parva desorientação. Há ainda artistas cristãos, não há mais arte
cristã, com normas exatas, com diretriz firme e determinada (ANDRADE,
1993, p. 42-43).
Neste trecho, Mário parece se aproximar das perspectivas dos arquitetos e
intelectuais modernistas naquele momento, que denunciavam as arquiteturas
historicistas, acusadas de se valerem de formas de outros tempos e culturas, estranhas
nas terras e experiências brasileiras. Na ânsia modernista pela busca e definição de uma
tradição brasileira, que garantiria a base e os direcionamentos para os projetos modernos
de uma cultura e sociedade nacionais, estes intelectuais encontraram nas arquiteturas
coloniais (sobretudo mineiras), o lócus de possibilidades de se definir uma espécie de
patrimônio nacional.
Mário de Andrade parece corroborar com esses ideais modernistas, ao definir o
barroco mineiro como dotado de “proporção dum verdadeiro estilo, equiparando-se, sob
o ponto de vista histórico, ao egípcio, ao grego, ao gótico. E é para nós um motivo de
orgulho bem fundado que isso se tenha dado no Brasil.” (ANDRADE, 1993, p. 80).
Neste sentido, a arquitetura colonial brasileira ganhou status de estilo artístico, a figurar
entre os outros estilos, nos manuais de uma História ocidental da arte.
Tais impressões modernistas de Mário acompanharam também suas viagens ao
Norte e Nordeste do Brasil entre os anos de 1927 a 1929. As críticas aos historicismos
na arquitetura são constantes, presentes em seus escritos sobre as suas consideradas
viagens de “descobertas” de um Brasil a ser desvendado. Presentes nas paisagens
urbanas das diversas capitais brasileiras, essas arquiteturas de fins do século 19 e início
do século 20 não passam despercebidas do intelectual, que na maioria das vezes não
poupa esforços para criticá-las. No entanto, pode-se perceber que em alguns cenários,
tais arquiteturas poderiam apresentar alguma importância (de ordem social ou
simbólica) no conjunto das percepções de Andrade.
Ao visitar Belém do Pará, por exemplo, uma cidade marcada por projetos e
edificações do século 19, Mário analisa alguns de seus exemplares arquitetônicos
historicistas: “O Teatro da Paz é bom. Nazaré (a catedral) é admirável no seu luxo,
embora não seja nada brasileira. Em todo caso, antes ela que a catedral gótica pavorosa
que estão construindo em São Paulo” (Andrade, 2015, p. 398). Aqui, parece que outros
valores, para além do artístico acadêmico podem ser considerados e conferidos a essas
arquiteturas acusadas de estrangeiras ou estranhas ao Brasil.
São esses valores, próximo a sentidos simbólico-culturais, que acompanham a
categoria de arte patrimonial apresentada por Mário de Andrade em seu anteprojeto de
1936 para a criação de um Serviço de Proteção do Patrimônio Nacional. (ANDRADE,
1981). Para além de um mero papel de proposta legislativa, o texto de Mário se
apresenta também como um espaço de discussões conceituais do que poderia ser
tomado ou não, diante da diversidade de bens culturais no cenário brasileiro, como
patrimônio nacional.
Sua proposta de considerar oito categorias diferentes a contemplar a diversidade
e as especificidades da cultura brasileira, possibilitaria contemplar não apenas a
arquitetura colonial, (como fora de fato escolhido e conduzida a sua preservação quase
exclusiva, pelos arquitetos modernistas nas primeiras décadas de funcionamento do
órgão federal de preservação), mas também as expressões acadêmicas das escolas
brasileiras de belas artes no século XIX e as produções arquitetônicas ecléticas do início
do século XX.
Nesse sentido, podemos considerar as categorias propostas por Mário,
(sobretudos as de arte histórica, arte erudita estrangeira e artes aplicadas
estrangeiras), como possíveis a contemplar outras arquiteturas que não a arte colonial.
As categorias estrangeiras, que pela suas propostas já se dispunham a preservar obras de
arte e artistas não brasileiros presentes e atuantes no Brasil; e a categoria de arte
histórica, compreendendo aqui o “histórico” como um valor associado aos fatos,
personagens e acontecimentos de um passado nacional. Destacamos que no texto de
cada uma dessas categorias, Mário se dispôs também a enunciar exemplos de possíveis
bens que poderiam ser preservados sob a acunha da categoria em questão.
A respeito da categoria de arte histórica, por exemplo, Mário apresenta o prédio
da Ilha Fiscal no Rio de Janeiro como um possível monumento a ser preservado. Não
tanto pelos seus aspectos artísticos (trata-se de uma construção neogótica de fins do
século XIX), mas pelo seu valor histórico de ter sediado o último baile da monarquia
brasileira. Ainda sobre o valor histórico, o literato também defende que se preservem
exemplares de cada uma das escolas e estilos que se fizeram produzir no país (não
descartando assim as expressões ecléticas e historicistas).
Um aspecto importante a ser percebido no anteprojeto de Mário de Andrade é a
inexistência de uma hierarquia entre os valores patrimoniais (históricos ou artísticos).
Todos os bens preservados deveriam ser protegidos com as mesmas garantias e
prerrogativas, assumindo o status único de arte patrimonial. “Arte” aqui compreendida
numa proximidade do sentido de “cultura” (como já revelaram as análises de Chuva).
Assim, sob a ótica do anteprojeto, um bem de arquitetura eclética preservado sob uma
categoria de “histórico”, não possuiria menos valor que uma igreja do século 18
preservada como “arte nacional”.
Tal ausência de hierarquias de valores deveria ser posteriormente prezada pelo
decreto-lei do tombamento de 1937. No entanto, como bem analisou a historiadora
Márcia Chuva (2009) ao se debruçar sobre as práticas cotidianas da instituição SPHAN,
tal hierarquia e diferenciação de valores foram praticadas entre os arquitetos
modernistas que conduziram o órgão ao longo das décadas no século 20.
Na lógica modernista de atribuição de valores, o valor artístico, conferido quase
que exclusivamente aos bens coloniais (com destaque às construções religiosas
mineiras, cariocas, baianas e pernambucanas), ganharia maior importância que o valor
histórico (este muitas vezes aplicado como de forma compensatória, em regiões que não
apresentassem arquiteturas coloniais de maior expressão). No meio dessas práticas e
atribuições de valores, as arquiteturas historicistas (ecléticas) ficariam de fora dessas
seleções e recortes.
Sobre as escolhas e valorações que compõem os discursos e práticas em torno da
preservação do patrimônio cultural, é necessário estar atento às diferenças, aos desvios e
conflitos existentes entre as legislações, (suas normas e diretrizes) e as práticas
cotidianas daqueles que conduzem as políticas preservacionistas. No caso brasileiro, por
exemplo, documentos como o anteprojeto, e mesmo o posterior decreto-lei do
tombamento, não hierarquizaram em seus escritos valores e escolhas daquilo que
deveria ou não ser preservado enquanto patrimônio (sejam bens arquitetônicos ou não).
As contradições e conflitos emergiam, sobretudo nas práticas institucionais, nas
tomadas de posição dos técnicos, nas rotinas e valores que se construíam e se
reafirmavam no dia-a-dia.
Daí a importância do pesquisador interessado no objeto do patrimônio cultural
investigar não apenas os documentos oficiais e regimentos das instituições de
preservação, mas também perscrutar as práticas rotineiras, as decisões cotidianas, os
relatórios, correspondências, trocas de bilhetes e visitas de campo. São nessas ações que
emergem muitas das contradições do fenômeno-patrimônio, tão caras aos objetivos da
pesquisa histórica.
No caso do anteprojeto de Mário (e até mesmo do decreto-lei de 1937), as
possibilidades para a preservação dos bens arquitetônicos em sua diversidade eram
amplas, porém, estas devem também ser investigadas em paralelo com as práticas
institucionais, evidenciando-se os conflitos, as dissonâncias, os alinhamentos e
conflitos, entre aquilo que se escreve e se firma e o que se pratica e rotiniza. Sobre esses
aspectos, a socióloga Nathalie Heinich (2009) teceu importantes considerações em não
se deixar de evidenciar os abismos, as diferenças e desvios presentes entre as normas e
as práticas. Para tanto, Heinich apresenta uma espécie de sociologia dos valores, cuja
construção, definições e limites dos mesmos se definiriam nas rotinas institucionais.
Conclusão
Após esta breve problematização, tanto de trabalhos historiográficos que se
dispuseram a analisar o anteprojeto de Mário de Andrade, quanto do próprio documento
em si, percebemos que algumas imagens e representações do anteprojeto foram sendo
construídas e reproduzidas ao longo das pesquisas.
Uma das principais imagens diz respeito à proposta de diversidade de bens
patrimoniais a serem preservados e contemplados pelo projeto de Mário, incluindo-se aí
não apenas bens de natureza material como também os bens imateriais, aproximando as
noções de cultura e patrimônio de uma perspectiva antropológica. No entanto, deve-se
ter o cuidado ao operacionalizar com esses conceitos e problematizações, evitando-se
cair numa espécie de anacronismo, já que noções como de “cultura imaterial” e mesmo
os debates antropológicos mais recentes, ainda eram limitados nos círculos intelectuais
no Brasil em tempos de Mário de Andrade.
Já em relação às possíveis contribuições do anteprojeto para com a preservação
de uma pretensa diversidade arquitetônica na época de definições das políticas de
patrimônio no Brasil (então temática de maior interesse em nossas pesquisas),
percebemos que nenhum desses trabalhos historiográficos se dispusera a problematizar
esse aspecto, sinalizando, pois, ainda a necessidade de uma análise crítica direta na
fonte documental, sobretudo nas categorias de bens patrimoniais propostas por Mário.
Para uma compreensão mais apurada dessas categorias, visando perceber as
possibilidades para uma preservação do patrimônio arquitetônico, foi necessário
verificar e analisar também as impressões de Mário de Andrade em relação a essa
diversidade arquitetônica, tanto as arquiteturas de tempos coloniais, quanto às
produções recentes dos séculos 19 e 20. Além de se evidenciar e problematizar de que
forma o intelectual construía e operacionalizava os valores artístico e histórico, quais
correntes teóricas o orientariam, e como as mesmas se fizeram percebidas na redação do
anteprojeto e nas correspondências e relações de Mário de Andrade com Rodrigo Mello
Franco de Andrade e os arquitetos modernistas posteriormente arregimentados pelo
SPHAN.
Não se esgotam, pois, as possibilidades de pesquisas e problematizações para
com o anteprojeto de Mário de Andrade, inclusive no campo da História. Cabem,
portanto, novas análises historiográficas que se disponham a superar determinados
lugares comuns estabelecidos pela historiografia clássica do patrimônio, confrontando o
anteprojeto com outros textos, discursos e propostas da época, além de revelar o lugar
de Mário de Andrade e suas relações com outros agentes dentro das mobilizações para a
construção de uma política do patrimônio. A escrita dessas histórias, portanto, se
apresentam em suas infinitas possibilidades.
Referências
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_________________. Cartas de Trabalho: Correspondência com Rodrigo Mello
Franco de Andrade (1936-1945). Brasília: Sphan/Pró Memória, 1981.
_________________. O turista aprendiz. Brasília: Iphan, 2015.
CHARTIER, Roger. História Cultural – Entre Práticas e Representações. Algés:
Difel, 2002. Primeira Edição, 1988.
CHUVA, Márcia. Os arquitetos da memória: a construção do Patrimônio Histórico
e Artístico Nacional no Brasil (anos 1930 e 1940). Rio de Janeiro: Editora UFRJ,
2009.
FONSECA, Maria Cecília Londres. O Patrimônio em processo: trajetória da política
federal de preservação no Brasil. 2ª Edição. Rio de Janeiro: UFRJ/MinC-IPHAN,
1997
HEINICH, Nathalie. La fabrique du patrimoine: De la cathédrale à la petite
cuillère. Paris: Éditions de la Maison des Sciences de l'Homme, 2009
LAHIRE, Bernard. CAMPO (Verbete). In: CATANI, Afrânio Mendes [et al].
Vocabulário Bourdieu. Belo Horizonte: Autêntica, 2017. p. 64-66.
NATAL, Caion Meneguello. Da casa de barro ao palácio de concreto: a invenção do
patrimônio arquitetônico no Brasil. (1914-1951). Campinas: Unicamp, 2013. Tese de
Doutorado em História.
PUPPI, Marcelo. Por uma História não moderna da Arquitetura Brasileira. Rio de
Janeiro: Pontes, 1998.