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Marcos Ribeiro de Moraes
MUSICALIDADE MÉTRICO TONAL CONDIÇÕES PRIMEIRAS PARA A COMUNICAÇÃO VERBAL SOBRE A MÚSICA
Doutorado em Comunicação e Semiótica
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA
São Paulo 2003
Marcos Ribeiro de Moraes
MUSICALIDADE MÉTRICO TONAL
CONDIÇÕES PRIMEIRAS PARA A COMUNICAÇÃO VERBAL SOBRE A MÚSICA.
São Paulo
2003
Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Doutor em Comunicação e Semiótica, sob a orientação da Profª Drª Maria Lúcia Santaella Braga
Banca examinadora
Profª Drª Maria Lúcia Santaella Braga (orientadora)
Prof. Dr. Arthur Rosemblat Nestrovski
Prof. Dr. Sílvio Ferraz Melo Filho Prof. Dr. Fernando Henrique de O. Iazzetta
Prof. Dr. Edson Sekeff Zampronha
Resumo
Muitas das premissas em que se apoia a teoria elementar da música tonal têm raízes
num processo histórico já secular que consiste na descrição literal dos signos visuais
constitutivos da notação musical. Como que alçada à posição de signo musical, tal
notação tende a levar a crer que suas características constitutivas estão ali de fato
representando as características e propriedades musicais de seu objeto: os sons musicais.
Assim, os dois principais ‘atributos’ ou parâmetros do som representados na notação ,
i.e., altura e duração, passam a ser aceitos — no conjunto altura, intensidade, timbre e
duração — como parâmetros da música. Dessa forma, a teoria musical elementar tende
a reconhecer no vínculo som-notação (objeto-representamen) a própria semiose
musical, a qual somos propensos a completar com o lugar do interpretante, preenchido
muitas vezes com narrativas verbais. No entanto, os signos visuais são extra-musicais, e
assim, são, a rigor, externos ao escopo da investigação sobre o funcionamento sígnico
da música. Reduzidos, assim, ao som, podemos reconhecer seu status não de objeto
(objeto representado na notação), mas de signo (representamen), que exige para si um
objeto, ou seja, algo que esse som ‘representa’ (stands for). Nessa perspectiva, é
postulado neste estudo que aquilo que chamamos de notas de uma melodia são signos
do tipo indicial, que representam (stand for) localidades de tempo vs. espaço que, estas
sim, constituem os objetos na semiose musical. No que se refere às alturas (pitch), os
sons teriam a propriedade sígnica de indicar/representar vértices específicos de uma
espacialidade que, por homologia, representa-se na forma heptagonal de lados
proporcionais a 2-2-1-2-2-2-1, ou seja, a Forma Diatônica. No campo do ritmo, diremos
que o instante do ‘passar a ser’, i.e., o gesto incoativo que inicia um som — não a
duração do som — tem a propriedade sígnica de indicar/representar um ponto (um
quando, não um quanto) num campo de temporalidade instaurado por um conjunto
hierarquizado de pulsações. Dentro das condições adequadas, esse complexo
hierarquizado de pulsações poderá ser entendido como aquilo que dá conta da sintaxe
fundamental da música tonal.
Abstract
Most of the premises on which tonal music elementary theory is based are rooted in a
secular historical process which consists of a literal description of the visual signs of
music notation. Such notation tends to make us believe that its constitutive features are
there, virtually raised to the position of the musical sign, representing musical features
and properties of its object – the musical sounds. Thus, the two main attributes or
parameters of sound represented in the notation, i.e., pitch and duration, are then
accepted – inside the group pitch, intensity, tone color and duration – as parameters of
music. Thus, elementary music theory tends to recognize in the liaison sound-notation,
music semiosis itself, which we are inclined to complete with the locus of the
interpretant, which is often filled in with verbal narratives. Yet visual signs are extra-
musical, thus being, strictly speaking, external to the scope of the investigation on the
semiotic functioning of music. Once left with sound alone, we can recognize its status,
not as an object, but as a sign (representamen), which demands an object for itself, in
other words, something this sound stands for. Along these lines, it is claimed in this
study that that which are called notes in a melody are signs of an indexical kind, which
stand for time vs. space loci. It is these loci which are the objects in music semiosis. As
for pitch, the sounds would have the semiotic property of indicating/representing
specific vertices of an spatiality which, homologically, can be represented by a
heptagonal form whose sides are proportional to 2-2-1-2-2-2-1, that is, the Diatonic
Form. As for rhythm, we shall claim that the instant of the coming-into-being of, i.e.,
the inchoative gesture that initiates a sound – not the duration of the sound – has the
semiotic property of indicating/representing a point (a “when”, not a “how much”),
within a field of temporality inaugurated by a hierarchic set of pulsations. Given the
appropriate conditions, that complex of pulsations could be understood as that which
accounts for the fundamental syntax of tonal music.
SUMÁRIO
Introdução i - vii Capitulo I Duas Teorias Musicais
Teoria Musical 1 Teoria-Musical 8 Um artifício heurístico 14
Capitulo II Espaço Modal Da Classe à Forma 26 Schoenberg: Interlúdio 34 Parentescos 36 Intervalos 64 Capitulo III Modal/Tonal
Encerramento vs. encerramento 77 Do átono ao tônico 79 Reduzindo o escopo da busca 81 Leituras tensas 82 O caminho do apagamento 83 Pyen vs. Pyen 90 O caminho do não apagamento 96 A leitura um ponto três 97 O fim dos modos 100 Densidade tonal 103 Maior/menor: modo ou ‘modo’? 106 Algumas propriedades da forma menor 108 Bastidores da escala: busca do objeto do signo-altura 114 A insuficiência do espaço 119
Capitulo IV Tempo Tonal
O dilema de Agostinho 122 Os parâmetros da música 124 Aquém da duração 128 Duração como efeito 130
Mensurabilis, immensurabilis 131 Quandidade 134 Paidéia: Música e Ginástica 136 Duas Histórias das Músicas 138 Um testemunho histórico: desencontro dos acentos 140 Retomada das origens 141 Outro testemunho histórico: Tempus saltandi 143 Às 13:15’:17’’ em ponto 145 Pulsação 149 Pulsação e anáfora 152 Ponto no meio exato do caminho 153 Heidegger e o ponto final do/no caminho 157 Os pesos e sabores nunca iguais 159 Absorção e síncope 163 Condensação: ideograma/somatograma 169 Um escopo para uma história de sons 172 Bastidores do ritmo: busca do objeto do signo-ritmo 176 Ritmo tonal 177 Acoplamento tempo, espaço 178
Bibliografia 186
i
INTRODUÇÃO
Parece que não é só um, mas são dois os momentos mais marcantes do escrever.
O primeiro, mais explicitamente reconhecido, é aquele da página em branco diante de
nós — e, sobretudo, nós diante dela. Não queremos manchar o branco. Ele está muito
bem assim como está.
O segundo é aquele momento em que já estamos escrevendo, quebrando o
silêncio há um bom tempo — já nos acostumamos com o movimento desse caminho de
palavras — e percebemos que esse caminho, esse movimento, não tem fim. A situação
se inverte. O problema agora não é passar da página em branco para o escrever, mas do
escrever para a página em branco que vem depois do texto. Mas, assim como superamos
o primeiro desafio, também superamos o segundo, e ‘descobrimos’ um ponto final do
texto.
Ficamos agora com duas ‘páginas em branco’. Uma ‘antes’ do texto e outra
‘depois’ do texto. Poderíamos mesmo dizer que o texto está agora ‘entre’ duas páginas
em branco. A segunda delas, assim esperamos, será eventualmente preenchida por
algum leitor. Mas a primeira, permanece com o escrevedor. Em algum sentido, ela é o
escrevedor.
O que este escrevedor faz agora não é propriamente preencher aquela primeira
página em branco, aquele primeiro silêncio, pois este já estava pre-enchido antes do
escrever. Cabe apenas, à guisa de uma introdução ao texto — intitulado Musicalidade
Métrico-Tonal: condições primeiras para a comunicação verbal sobre a música —
tentar dar uma aparência narrativa àquele silêncio.
Como já sugere o título, o assunto de que vamos tratar não será exatamente a
música, que é, sem dúvida, um fenômeno de comunicação, de linguagem. Antes, o que
motiva este trabalho, i.e., o ‘objeto’ de nossa reflexão, vem da constatação trivial de que
há, de um lado, um fazer musical e, de outro, um fazer verbal que tem como alvo o
fazer musical: além de fazermos música, nós temos também o hábito de falar sobre
música.
Ademais, aqueles que, como eu, são professores de música, fazemos do falar
sobre música nossa profissão, e devemos ter cuidados adicionais nesse falar. Diferentes
do músico, que também devemos ser, temos de articular uma praxis musical com uma
praxis verbal, temos de articular ‘teoria’ e ‘prática’. Mas, dito num registro bastante
ii
coloquial, ronda-nos ainda o estigma de que ‘na prática a teoria é outra’, ou que ‘samba
não se aprende na escola’.
Essa questão, como sabemos, é muito antiga. Certo desencontro entre ‘teoria’ e
‘prática’ seria da própria natureza das coisas: o mapa não é o território. Mas, devemos
convir, há mapas e mapas. Se uma guilda de cartógrafos, por gerações e gerações, se
isolasse dos territórios, terminaria com mapas que de pouco serviriam aos navegantes
— mapas que mais desorientariam que orientariam os argonautas. Haveria aí não
aquela diferença irredutível entre mapa e território, mas uma ruptura indesejável entre
os dois universos: o dos mapas e o dos territórios. Em outras palavras, haveria um
desencontro entre ‘teoria’ e ‘prática’, entre a ‘teoria’ e seu ‘objeto’.
Esse tipo de desencontro me instigava quando estudante de música, e continuou
a me convidar à reflexão quando, em 1979, iniciava a carreira de professor de música.
No entanto, como não poderia deixar de ser, não instigava só a mim. Lindblom e
Sundberg (1976) se davam conta de que “traditionally, music theory works with
impressionistic, non formalizing methods”. Mais ainda: eu pude eventualmente me
identificar com Hackman (1975) que, em tom confessional, disse: “It took far too long
for me to realize that the methods of music analysis had to bear at least a superficial
resemblance to other methods of scholarly and scientific inquiry”. E Hackman, por sua
vez, lançava mão da declaração de Milton Babbit: “If scientific method is not
extensible to music theory, then music theory is not theory in any sense of the word”.
Esse sentimento, esse ‘diagnóstico’, tornou-se para mim ainda mais consistente,
ganhou novas dimensões, quando Jackendoff e Lerdahl (1983), após assistirem às
palestras de Leonard Bernstein na Universidade de Harvard (que, graças à tecnologia
das fitas cassete, guardo até hoje com muito carinho), decidiram realizar a já conhecida
iniciativa interdisciplinar, envolvendo a música e a lingüística. Também para esses
autores, a teoria musical tinha algo de insatisfatório no sentido de que tal teoria
“severs questions of art from deeper rational inquiry; it treats music as though it had
nothing to do with other aspect of the world”. Aqui — em que pese o argumento de
que a expressão “método científico” já implica um componente experimental ou
mesmo empírico — não só a questão do método, do rigor racionalista, é trazida à
cena, mas também o outro lado da moeda: uma certa relação da música com o mundo:
com o vigor, não apenas com o rigor.
iii
Mas, como dizíamos mais acima, essa questão, mesmo no campo específico da
música, é antiga. Por exemplo, no século XVIII, um importante homem da música,
pedagogo, um cronista da vida musical européia, dizia o seguinte: It seems as if theory and practice were ever to be at strife, for the man of science, who never hears music, and the musician, who never reads books, must be equally averse to each other, and unlikely to be brought to a right understanding (Charles Burney , apud. Allen , 1962).
Trata-se de um julgamento talvez demasiadamente severo da parte de Burney.
Poderíamos mesmo colocar em questão sua autoridade tendo em vista que, como lemos
em Grove 1, Burney declarava que a música não passa de “an innocent luxury,
unnecessary indeed to our existence”. E nesse aspecto, segundo a mesma fonte, Burney
se igualava a um certo Cardinal Newman, para quem a atividade musical seria “a
pleasant recreation but not educational since it did not ‘cultivate the intellect’”.
No entanto, mesmo que não possamos concordar com a idéia de que a música
‘não cultiva o intelecto’, devemos, assim penso, dar um crédito a Burney no que se
refere a sua percepção do desencontro ‘teoria/prática’.
Mais ainda — e isso também compõe o conjunto de inquietações que
motivaram a escrita do texto introduzido aqui — a questão teoria vs. prática, como
sugere Burney, remete à questão da leitura vs. não-leitura. Em outras palavras, remete à
questão da distinção entre uma cultura letrada e uma cultura iletrada, ou mesmo, em
última análise, ao contraste entre a escrita ou as notações em geral e a ausência destas.
A escrita, desnecessário dizer, é fundamental para a civilização tal como a
conhecemos. Num sentido geral, a escrita, entendida como algo que pertence ao
conjunto das notações, faz jus a declarações como esta abaixo (onde “symbol” deve
ser entendido como notação):
Let no one despise symbols! A great deal depends upon choosing them properly....And,
without symbols, we would scarcely lift ourselves to conceptual thinking. Thus, in applying the
same symbol to different but similar things, we actually no longer symbolize the individual
thing, but rather what [the similars] have in common: the concept. This concept is first gained
by symbolizing it; for since it is, in itself, imperceptible, it requires a perceptible representative
in order to appear to us (Gottlob Frege: Conceptual Notation, and Related Articles, citado na
página www do Notational Engineering Laboratory, dirigido por Jeff Long:
Jlong@seas.gwu.edu, George Washington University)
1 SADIE, Stanley (ed.) (2000). New Grove Dictionary of Music and Musicians. Macmillan
iv
O filósofo A. N. Whitehead (transcrevo da mesma fonte acima) afirma que “By
relieving the brain of all unnecessary work, a good notation sets it free to concentrate on
more advanced problems, and in effect increases the mental power of the race”. Ainda
na mesma fonte acima, i.e., o texto de apresentação do Notational Engineering
Laboratory, lemos outras declarações de teor semelhante. Por exemplo: o historiador
Eric Havelock afirma que o alfabeto grego é “a piece of explosive technology,
revolutionary in its effects on human culture, in a way not precisely shared by any other
invention”, ou ainda, nas palavras de um outro historiador, James Breasted: The invention of writing and of a convenient system of records on paper has had a greater
influence in uplifting the human race than any other intellectual achievement in the career of
man. It was more important than all the battles ever fought and all the constitutions ever
devised.
Não podemos senão concordar em linhas gerais com tais declarações. Por outro
lado, não deixam de ser também verdadeiras algumas considerações que, em certo
sentido, destoam do conjunto apresentado acima. Uma delas é do musicólogo François-
Bertrand Mâche.
Un certain culte de l’écriture semble promis à un déclin rapide. Beaucoup de musiques très
complexes (.......) fonctionnent trés bien sans notation, et les druides savaient déjà que l’écrit peut
favoriser la paresse spirituelle (Mâche, 1978).
A outra está no diálogo entre Thoth (ou Theuth, na figura), o deus egípcio
inventor da escrita, e Thamus, governante do Egito, tal como narrado por Sócrates a
Fedro (transcrevo da tradução para o inglês: The Dialogues of Plato, ed. Encyclopaedia
Britannica, 1952). Theuth apresenta sua invenção a Thamus.
Theuth: This will make the Egyptians wiser and give them better memories; it is a
specific both for the memory and for the wit.
Thamus: O most ingenuous Theuth, the parent or inventor of an art is not always the best
judge of the utility or inutility of his own inventions to the users of them (....)
this discovery of yours will create forgetfulness in the learners’ souls, because
they will not use their memories; they will trust to the written characters and not
remember of themselves.
Em 1987, com esse tipo de questões em pauta, fui estudar lingüística. No
entanto, pouco antes do início dessa incursão pela lingüística, tive a oportunidade de
freqüentar um seminário ministrado por Lúcia Santaella, em Vitória. Nessa época eu
v
concentrava meus interesses na questão do ritmo musical, em particular na idéia da
fundamentalidade do ritmo na música e numa presumível inadequação ou desencontro
entre a teoria musical que aprendera na infância e aquilo que eu ‘sentia’ ser o ritmo, o
operar ritmicamente. Isso, evidentemente, me criava um problema pois, na função de
professor, como poderia falar do ritmo com base nas premissas de uma teoria musical
da qual eu estava me distanciando? Algumas soluções para esse problema já se
delineavam na forma de algumas estratégias notacionais e conceituais (verbais) pouco
ortodoxas que, creio, funcionavam bem no processo didático-pedagógico.
Assim, foi em torno da questão da fundamentalidade do ritmo que, em rápidas
mas produtivas conversas com Santaella, pude associar essa noção de
fundamentalidade, que eu intuía, com o que a pesquisadora e professora me dizia sobre
seu grande interesse na música e, em especial, sobre a noção peirceana de primeiridade:
o ritmo como primeiridade na música.
Como estava iniciando meus estudos lingüísticos, anotei na memória essas
conversas e mergulhei no mundo, também fascinante, de Saussure e Chomsky, da
fonética-fonologia, da sintaxe e semântica. Dentre tantas coisas, impressionou-me em
particular a constatação de que, mesmo numa rápida inspeção longitudinal do percurso
de Chomsky, assistimos a um gradativo mas consistente ‘alçamento’ das categorias
vinculadas à temporalidade (Tense) desde os nódulos terminais de suas representações
arbóreas para nódulos cada vez mais ‘altos’ da Sentença. Em outras palavras, o escopo
de ‘Tense’ (T) tende a eventualmente abarcar o escopo total do que quer que seja uma
Sentença (v. p.ex Chomsky, 1995). Evidentemente, “Tense” não é sinônimo de “Time”.
Mas, em algum sentido, talvez o seja na música, na ‘frase’ musical. Dessas
especulações, podemos, já no campo do ritmo musical, pensar no ritmo como sintaxe.
Daí resultou o estudo Por uma Teoria do Ritmo: o caso da metáfora musical em
lingüística (Moraes, 1991).
Esse estudo se reflete em muitos pontos do texto que ora introduzo. É daí que
vem a noção de quandidade (d/t), que aparecerá no Capítulo IV. Como se trata de um
estudo voltado exclusivamente para o ritmo, ao terminá-lo, já tinha em mente dar
continuidade à pesquisa, agora abordando aquele outro aspecto da música: as ‘notas’, as
alturas e escalas. Mesmo porque, desde 1981, já tinha algumas hipóteses, elaboradas
diante do desafio de falar de música para estudantes de artes plásticas, naturalmente
‘visuais’, mentes e discursos ‘espacializantes’, ‘geometrizantes’ (e, desnecessário dizer,
‘colorizantes’). Isto, como verá o leitor, se reflete nos Capítulos de I a III.
vi
A oportunidade de dar essa continuidade veio em 1999, quando retomei o
contato com a semiótica, ou, já diria agora, com as semióticas, Peirce e Greimas. Em
certo sentido, isso significou para mim uma retomada do diálogo com Lúcia Santaella,
interrompido em 1987.
Mais ainda: com o lançamento de Matrizes da Linguagem e Pensamento:
Sonora, Visual e Verbal (Santaella, 2001), pude sentir a ressonância entre minhas livres
especulações sobre o “Tense” chomskiano e o seguinte: “onde houver tempo há sintaxe”
(op.cit. : 116). Ou ainda:
É certo que a sintaxe sonora é necessariamente uma sintaxe do tempo e no tempo, o que quer
dizer que sintaxe e tempo, em música, são inseparáveis, pois, conforme muitos já afirmaram (por
exemplo, Stravinki, Messian, etc.) o tempo é tudo na música (ibid. : 118).
A esse trecho segue-se imediatamente o seguinte:
Apesar de haver, sem dúvida, essa ligação umbilical entre tempo e sintaxe, tomar o tempo como
eixo das modalidades da sonoridade teria exigido o exame de fundamentos e implicações que lhe
são próprios. O eixo da sonoridade na sintaxe, por seu lado, justifica-se porque se trata aqui de
compreender o funcionamento da sonoridade como matriz de linguagem, no confronto e
complementaridade com outras duas matrizes também de linguagem, a visual e a verbal. (grifos
nossos).
Aqui, exatamente em “exame dos fundamentos e implicações” que são próprios
do tempo, pude ver delineado o espaço em que transitavam minhas inquietações. Por
outro lado, eu abdico, no estudo introduzido aqui, do exame do “confronto e
complementaridade com outras duas matrizes também de linguagem, a verbal e a
visual”, para me concentrar exclusivamente em algo que poderíamos chamar de ‘matriz
musical’, que, sem dúvida, está na matriz sonora, uma vez que se constate que a música,
enquanto signo (representamen) é irredutivelmente um ‘fenômeno do universo
acústico’.
Outra questão levantada em Matrizes — que também se vincula a uma questão
de importância capital no estudo que apresento — é a da escrita (escritura). “Na música,
segundo Springer, o código está para a escritura musical tanto quanto a mensagem está
para a performance” (op. cit. : 98). No entanto, problematiza a autora:
vii
Complicações evidentemente surgem aí, quando se trata de compreender músicas folclóricas não
escritas. Mais complicado, entretanto, é o problema tratado a seguir: o significado na língua e na
música, verdadeiro calcanhar de Aquiles na musicologia, especialmente quando esta se coloca
sob a tutela da lingüística. (ibid. : 98).
Reaparecem aqui as questões esboçadas mais acima, a saber, ‘teoria’ vs.
‘prática’, ‘teoria/objeto’, escrita/não-escrita, letrado/iletrado, ou, enfim, o signo e o
mundo. E me vêm já à mente, como um desafio, as palavras que leio na capa vermelha
de Fenomenologia da Percepção (Merleau-Ponty, 1945): “O verdadeiro Cogito não
substitui o próprio mundo pela significação mundo”.
Assim, concluo a ‘narração’ daquele primeiro silêncio, da página em branco
que estava e está antes do texto, i.e., o que se inicia a seguir, com algumas
considerações sobre a teoria musical.
1
CAPÍTULO I
Duas Teorias Musicais
Teoria Musical
O que nos trás à mente a expressão teoria musical? Para delinear uma resposta, vamos considerar, numa aproximação esquemática,
que o que se quer saber com essa pergunta é o que é teoria musical. Nesse caso,
poderíamos iniciar, como de praxe, dizendo que para haver teoria musical há que
estabelecer dois domínios distintos. Um é o domínio do objeto, a música, ou o
fenômeno musical, outro é aquele domínio que se estabelece quando nos afastamos da
música, ou seja, quando cessamos aquele tipo de engajamento musical em que nos
encontramos quando estamos fazendo música — num sentido de “fazendo” que abarca a
o criar, o tocar e o ouvir música, — e, uma vez cessado tal engajamento, passamos a
operar, por assim dizer, no modo verbal.
Nessa situação, trazemos para diante de nós o que fazíamos, música, e podemos
então fazer outra coisa: falar sobre o que fazíamos. Assim, produziremos discursos
verbais sobre o musicalmente vivido. Evidentemente, devemos expandir esse universo
para além do âmbito restrito ao que é musicalmente vivido ou testemunhado por um
indivíduo e, idealmente, incluir aí todos os fazeres musicais, de quaisquer épocas e
lugares. Teoria musical, nesse sentido largo, pertence portanto à ordem do falar sobre,
do produzir discursos ou textos sobre, os fenômenos musicais.
Mas, com efeito, se imaginamos o conjunto total desses possíveis discursos,
devemos admitir que teríamos um universo vasto demais para que possamos chama-lo
todo ele de teoria musical. Sem dúvida, expressões como ‘essa execução da
Ressurreição de Mahler foi impactante’ ou ‘o samba estava animado’ pertencem a esse
vasto universo dos discursos sobre a música, habitado também pela teoria musical mas,
desnecessário dizer: a rigor, não são teorias.
Poderíamos então lançar mão das definições padrão do termo teoria. Mas talvez
não seja muito fácil, nem de nosso interesse imediato neste momento, determinar uma
fronteira categórica entre o que poderíamos chamar de território geral do discurso verbal
sobre a música, e a cidadela, interna a esse território, que chamaríamos de teoria
2
musical. E creio mesmo que o caráter não categórico dessa fronteira seja constitutivo da
teoria musical, e das teorias em geral, o que não significa dizer que não há tal fronteira.
Para termos um exemplo dessa espécie de fronteira imaginemos que, após o comentário
sobre Mahler, à saída da sala de concerto, segue-se todo um conjunto de ações na linha
de: poderíamos agora saborear um fondue no Le Fromage D’Or. Nesse caso,
evidentemente, não estaríamos caminhando em direção à teoria musical. A observação
inicial à saída do concerto, entendida como uma expressão fática, passaria a pertencer,
junto com tudo o mais, a uma outra categoria, que poderíamos chamar de discursos e
fazeres sociais em geral.
Mas em prosseguimento àquela observação inicial, poderíamos ter uma outra
fala, assim: interessante, há algum tempo eu ouvi – a orquestra era outra – uma
sinfonia de Mahler, com dois coros e órgão, acho que a Oitava. Eu saí com uma
sensação que, na época, não me preocupei em analisar ou ‘dar um nome’. Mas agora
que você disse “impactante”, acho que o termo se aplica bem ao que eu senti daquela
vez. Um terceiro interlocutor intervém: mas Mahler, assim como o romantismo tardio
em geral, tende a ser, em algum sentido, impactante. Ainda agora, como diria Blume,
[esse interlocutor acabara de ler Blume,1972: 191] “mesmo que os compositores tenham
abandonado o gigantesco aparato orquestral de Mahler e Strauss e tenham mostrado
preferência por agrupamentos camerísticos, o violino, o oboé, e as trompas são ainda
testemunhas dos mesmos sons e efeitos colorísticos de sempre”. Isso quer dizer que
Mahler usava os mesmos recursos básicos da música clássico-romântica que o
antecedeu e da música para instrumentos convencionais que o sucedeu, mas fazia isso
de maneira hiperbólica, intensificada, agigantada. As execuções a que vocês se
referem, aquela e a que acabamos de ouvir, foram simplesmente adequadas — se é que
cabe aqui o termo ‘simplesmente’ — ao ‘impactante’, que Mahler é, por definição.
Diante da explanação, o primeiro interlocutor pergunta: mas será que esse tipo peculiar
de grandiosidade em Mahler se deve apenas à massa sonora, ou, junto com ela, a
alguma coisa que ele faz com aquelas melodias e harmonias, com a forma toda da
sinfonia? Nesse caso, teríamos caminhado desde uma observação que antes soava
como algo fático para um território já francamente fronteiriço, senão interno, à teoria
musical
3
Da mesma forma, se depois de o samba estava animado, se seguisse uma fala do
tipo vamos agora para o Galeto de Ouro, lá tem um chopp ótimo, não estaríamos
caminhando em direção à teoria musical. Mas a fala seguinte poderia ser outra: é, estava
animado sim. Aliás, eu estava relendo “Samba o Dono do Corpo” , do Muniz Sodré, e
ele diz coisas muito interessantes. Por exemplo: “no sistema gêge-nagô ou iorubá, (...)
o som é condutor de axé, ou seja, o poder ou força de realização que possibilita o
dinamismo da existência (Sodré 1972: 22). Numa terminologia a que estamos mais
acostumados, podemos associar esse dinamismo da existência ao termo latino
‘animus’. Sim, esse termo está associado a ‘alma’ – “princípio espiritual da vida
intelectual do homem” (Houaiss 2000), mas também, e de forma paradoxal, a animal,
no sentido mesmo de um ser corporal vivo, dotado de movimento. E o aspecto rítmico
do samba é de tal modo articulado que faz mover não só o corpo, mas também o
‘espirito’, a vida intelectual – como se fossem uma coisa só. O fato de você ter-se dado
conta de que o samba estava animado eqüivale a ter percebido que ali havia samba
pois, do contrário, se não houvesse animus ou axé – comum a todas as músicas, mas
peculiarmente trabalhado no samba – não teria havido samba. Em resposta, o
interlocutor poderia dizer: de fato, o insight daquele outro compositor popular é muito
preciso; seu diagnóstico para quem não gosta de samba não se resume a uma patologia
‘dos pés’ (doente do pé), mas também a uma disfunção cognitiva (é ruim da cabeça). E
isso me põe a pensar: se o cara que não gosta de samba não é um bom sujeito, isso não
tem nada a ver com um julgamento moral do cara, mas tem a ver com sua competência
enquanto sujeito cognitivo-e-corporal. Nesse caso, como no anterior – a conversa sobre
Mahler – partimos de uma observação trivial e a integramos a um discurso que já pode
reivindicar algum lugar nos domínios da teoria musical.
A nós talvez coubesse perguntar se os eventos acima, entendidos nas suas
dimensões interdependentes, sociais e comunicativas, têm alguma verossimilhança. E a
resposta talvez seja que não: a menos que tivéssemos definido em algum momento os
personagens como cidadãos não comuns, praticantes de um discurso restrito, que se
aparta do universo dos fazeres comunicativos sociais em geral em razão de uma
fronteira agora categórica. Essa constatação teria algo de nostálgico? Talvez sim. Mas
nada impede que tal ‘nostalgia’ seja entendida, não como algo próximo de uma letargia
sentimental, mas como um componente necessário de uma atitude voltada para o
presente e para o futuro. E parece ser essa a atitude expressa por Laurence Kramer em
Classical Music and Postmodern Knoledge (1995). Nesse livro, ao refletir sobre o título
4
- “The strange new directions of Music Criticism” – dado a um texto que comenta um
de seus livros (junto com outros livros, de três outros autores), Kramer se pergunta:
But was this new direction really so strange? Was it even really new, or more like a renewal of
something lost or forgotten? From one standpoint, nothing could be more ordinary than what these
books have in common. The new direction in musicology as I understand and support it is simply a
demand for human interest.
E, explicitamente, Kramer propõe essa nova atitude para a musicologia em
contraposição a um isolamento da música, “scholastic isolation of music”, um
isolamento a ser quebrado a partir de uma outra maneira de falar sobre música: “Talk
about music, the demand might run, should bear the impress of what music means to
human subjects as thinking, feeling struggling parts of the world”.
Minha motivação ao escrever este estudo é em alguns aspectos análoga à
motivação de Kramer, em especial no que diz respeito à reintrodução da música e do
falar sobre música na “economia comunicativa” em geral (op. cit : 17). Mas aqui não
caminharemos, como faz Kramer, na direção macroscópica de uma hermenêutica que,
em certo sentido, expõe, no plano de o que a musica significa, a fragilidade das
fronteiras entre o intra- e o extra-musical, mas na direção microscópica de um como a
música significa, mediante uma análise que procura expor a ‘comunidade’ entre alguns
dos processos mais elementares que sustentam a inteligibilidade da música tonal e
alguns daqueles processos que garantem inteligibilidade em geral. É nesse sentido que,
para marcar uma diferença com o termo Música — entendido como o universo que, num
olhar horizontal, abarca o repertório das obras artístico-musicais: objeto típico da
Teoria da Música ou, mais particularmente, de uma hermenêutica da música —, optei
pelo termo musicalidade, entendido como o conjunto mínimo e elementar de operações
que, em tese, perpassa o universo que, num um olhar vertical, restrito ao tonalismo,
contempla o musical desde seu nível mais vernacular, incipiente, até o nível na arte
musical propriamente dita.
Em que pese essa diferença de interesse, assume-se de bom grado, neste estudo,
que: “The embeddedness of music in networks of nonmusical forces is something to be
5
welcomed rather than regreted. (Kramer, op. cit: 17). Ou ainda: “There has never been a
gesture that was purely musical” (Monelle, R., 1992)
Mas, como um complemento a essa postura — que contempla prioritariamente
(como é próprio de uma hermenêutica da música) um enredamento ‘horizontal’ do
domínio musical com um outro, de natureza verbal — talvez precisemos aqui adotar
uma premissa de maior generalidade, qual seja: “nenhum sistema dispõe de meios
suficientes para se explicar a si próprio” (Tarsky, apud Morin, 1999). Essa formulação
parece ser mais adequada no momento em que, ao caminharmos ‘verticalmente’ em
direção a alguns elementos da musicalidade, não estaremos delimitando a priori a
natureza da alteridade com que poderemos nos deparar.
Retomando nossa pergunta inicial, ainda entendida como o que é teoria musical,
cabe perguntar se não estaríamos usando uma acepção demasiadamente ampla de
Teoria Musical, ou seja: não estaríamos falando de musicologia? E na verdade esse
argumento terá a seu favor, senão a história dessa disciplina, a etimologia do termo.
Musicologia, um termo dicionarizado na língua inglesa (musicology) em 1916, absorve
o sentido do antecedente francês musicologie, que por sua vez, como sabemos, se nutre
no alemão musikwissenschaft (usado pela primeira vez em 1827), literalmente ciência
da música (Stevens, 1980; Kerman, 1985, The New Grove Dictionary of Music and
Musicians, 2000, doravante mencionado como Grove). De uma forma muito geral,
poderíamos dizer que esse surgimento de uma disciplina científica da música —
diferente da teoria musical —, normatiza, sistematiza e, mais que isso, institucionaliza
no âmbito acadêmico moderno o discurso ou discursos verbais sobre a música. Nessa
perspectiva, seríamos levados a admitir que a resposta à nossa pergunta inicial deve ser
mais restrita, dada a distinção entre teoria musical e musicologia, na linha, por exemplo,
posta por Joseph Kerman (1985: 7).
Musicologia, teoria e etnomusicologia não devem ser definidas (....) em função de seu objeto de
estudo, mas em termos de suas filosofias e ideologias. Mesmo sem entrar em detalhes,
provavelmente podemos discernir que, quando assim definidas, as disciplinas sobrepõem-se no
território musical que abrangem.
No que esse autor está dizendo, vale a pena observar duas coisas. Em primeiro
lugar, ele nos fala de três e não de duas disciplinas: musicologia e etnomusicologia
6
estão separadas, o que não é necessariamente uma posição unânime entre os
musicólogos. Isso nos dá bem a medida de que o que está em jogo nem sempre é um
‘puro’ mapeamento epistemológico do conhecimento. Pelo contrário: entremeadas a
essas questões, sempre há motivações fundadas em tenções institucionais e político-
acadêmicas. Em segundo lugar, Kerman já destaca algo que será de nosso interesse
mais abaixo, ou seja, a sobreposição das disciplinas no que se refere ao território
abrangido. De qualquer maneira, se adotamos a diferenciação de Kerman, deveríamos
definir teoria musical não pelo seu objeto mas por alguma especificidade na forma de
abordagem a esse objeto.
Mas a localização mais restrita da teoria musical pode se apresentar de outras
duas maneiras, que diferem da de Kerman no sentido da hierarquização dessas
disciplinas. De um lado poderíamos dizer que a teoria musical é uma sub-área da
musicologia — no interior da musicologia sistemática, tal como proposta por Guido
Adler, em contraste com a musicologia histórica. Por outro, poderíamos ver a teoria
musical ao lado da musicologia, como uma disciplina que, diferentemente da
musicologia (marcadamente envolvida com a história, a crítica e a estética da música),
se define nos seguintes termos: “[T]heory is now understood as principally the study of
the structure of music” (Grove).
Aparentemente, teríamos chegado aqui a uma delimitação razoável para o
território da teoria musical. No entanto, não podemos deixar de levar em conta a
expansão dessa disciplina na segunda metade do século XX. Vamos nos ater aqui a um
dos muitos possíveis indicadores desse processo expansivo: o artigo (29 pp) Theory,
Theorists (Grove).
A seção final desse artigo – New Theoretical Paradigms, 1980-2000 — tem
início com uma longa menção a Lerdahl e Jackendoff (1983)
Sem dúvida, o que pode ser tomado como marco inaugural desse período da
teoria musical é, como indicam os autores do artigo, a publicação em 1983 de A
Generative Theory of Tonal Music, já sintomaticamente escrito, em parceria, por um
músico, Jack Lerdahl, e um lingüista (mais precisamente um sintaticista da escola
chomskyana), Ray Jackendoff. Além da já amplamente conhecida iniciativa desses
autores, ou seja, uma exploração decididamente não trivial das aproximações entre a
sintaxe gerativa (verbal) e a estrutura da música tonal, esse trabalho traz à tona uma
motivação mais geral, que é a constatação de que a teoria musical “ treats music as
though it had nothing to do with other aspect of the world” (op. cit ), o que, em sentido
7
amplo, se põe em linha com a percepção geral de um isolamento das disciplinas
musicais, que precisa ser superado (como já vimos mais acima ao citarmos Kramer).
Na esteira de influência direta ou indireta desses autores, segue o artigo, são
incorporadas à teoria musical linhas de pesquisa em cognição, que trazem consigo todo
um aparato metodológico historicamente desenvolvido no campo da pesquisa em
psicologia experimental.
A esta tendência somam-se pesquisas de base matemática, envolvendo a noção
de classes de alturas, teoria dos conjuntos (set theory) e funções tonais (em alguns
aspectos semelhantes, mas não idênticas ao que proporemos no presente estudo), que
passam a ser identificadas como uma teoria ‘neo- riemaniana’(Hugo Riemann).
Registra-se também “a growing body of work on temporality in music” que,
ainda segundo o artigo, busca apoios diretamente na filosofia, física, psico-acústica,
etnomusicologia, alem da própria performance musical.
Além disso, a teoria musical, informa Grove, passa a abrir espaços,
principalmente na cena norte-americana, para estudos vinculados à hermenêutica, aos
estudos de gênero (gender), à mulher na música, ao feminismo, à narratologia, ao
posmodernismo, à recepção (reception), entre outros interesses.
O parágrafo conclusivo do artigo, que sintetiza por assim dizer o estado da arte
(em 2000) da teoria musical, merece ser transcrito aqui na íntegra:
Music theory in 2000 is a far more diverse, more interdisciplinary, and less balkanized
field the world over than it was in the 1970s. It is impossible to assess which of its recent
efflorescences will take hold and change the nature of the discipline. The programme for
the millenial joint meeting of the Society for Music Theory and 15 other American and
Canadian music societies, at Toronto in 2000, showed Schenkerian and set-theoretical
studies retaining their places in the world of English-language music theory, alongside
transformational theory, cognition-based studies, and temporal theory, together with the
history of music theory, which, already strong since the 1950s, experienced a rejuvenation
in the 1980s and 1990s.
O que salta à vista aqui é que, se tradicionalmente podíamos de maneira razoável
usar algum critério para distinguir musicologia e teoria musical, agora, ao cobrir esse
vasto espectro de interesses, abordagens e interações interdisciplinares, (exceto talvez a
historiografia geral da música), a teoria musical nos leva a perguntar: não seria ela a
musikwissenschaft, a ciência geral da música?
Mas, com certeza, nossa intenção não é sustentar aqui uma discussão dessa
natureza, o que, de resto, nos carrearia em direção a questões (talvez mais institucionais
que epistemológicas) que são estranhas aos objetivos do presente estudo. O que de fato
nos importa neste ponto é que delineamos acima uma resposta para a pergunta inicial.
A teoria musical — ou mesmo o conjunto dos falares acadêmicos sobre música,
entendido, se assim quisermos, como algo que abarca teoria musical e musicologia — é
uma vasta, multifacetada e dinâmica disciplina, que tem como interesse os fenômenos
musicais considerados em virtualmente todos os seus aspectos. É a essa disciplina, e
mais especificamente aos seus setores já mais estabelecidos e razoavelmente
consensuais, que estaremos nos referindo quando usarmos, ao longo deste estudo, o
termo Teoria Musical.
Teoria-musical Vamos mais uma vez voltar à nossa pergunta inicial. Só que agora devemos percebê-la com outro acento:
O que nos trás à mente a expressão teoria musical? Que experiências,
lembranças, sensações, talvez memórias da infância, essa expressão nos evoca a nós que
‘estudamos música’ quando jovens? Ou mesmo, que sentimentos e imagens essa
expressão deverá despertar no adulto que ‘não estudou música’ (o mesmo adulto que
entenderá a figura abaixo como “som”, talvez um som musical, talvez um assobio)?
Trata-se aqui da expressão que podemos ouvir com certa freqüência no contexto de falas como: Maria sabe teoria musical, Pedro não: ele toca de ouvido. Todos entendemos o que se quer dizer aí, mas devemos concordar que essa fala não faria qualquer sentido se teoria musical tivesse ali a acepção científica dada mais acima. Naquela acepção, ninguém sabe teoria musical, mas alguns praticam a teoria musical,
9
pesquisam no campo da teoria musical, exercem a profissão de teóricos da música. Mas
o que se quer dizer com essa teoria musical que Maria sabe (e Pedro não)?
O que Maria sabe — é isso que podemos entender daquela fala — é ler e
escrever música. Se transpusermos a situação para o âmbito do verbal, diríamos que
Maria é letrada e Pedro é iletrado (usaremos esse termo sem fazer a distinção entre
letrado e alfabetizado, às vezes feita no campo da pedagogia). Mas essa analogia tem
suas limitações, e limitações bastante significativas.
Por exemplo: o fato de uma pessoa ser letrada (no campo das palavras) não
justifica que se diga, em linguagem vernacular, que essa pessoa sabe teoria da
linguagem ou teoria das palavras, etc. (muito embora se possa falar de uma teoria ou
teorização, digamos, ‘espontânea’, o que nos levaria a uma discussão no campo da
aquisição da linguagem e da escrita envolvendo provavelmente a noção chomskyana de
gramática em interação com processos de elaboração infantil de hipóteses sobre
linguagem verbal e escrita).
De outro lado, um análogo, no campo verbal, da expressão tocar de ouvido
causa estranhamento: diríamos que o não letrado fala de ouvido? . No campo musical
sabemos o que é tocar de ouvido, freqüentemente em oposição a tocar por música, onde
o termo música vale por aquilo que nós vemos impresso no papel. Trata-se,
evidentemente, de uma operação metonímica, do mesmo tipo que encontramos em
Maria sabe música, uma variante de Maria sabe teoria musical.
Neste ponto podemos dar uma parada para nos perguntar qual o elemento
comum às situações descritas acima. Para onde convergimos quando evocamos a
expressão teoria musical, não naquela acepção formal, mas no uso vernacular e, a rigor,
extra-acadêmico?
O que constatamos é que convergimos nas feições visíveis da musa, na imagem
quase táctil que o rosto da Música ela própria deixaria marcada no suporte de papel.
Mesmo o adulto musicalmente não letrado, como vimos acima, é, a seu modo, solidário
nesse gesto, na medida em que reconhece naquela colcheia um ícone de música. O que
teoria musical nessa segunda acepção (que grafaremos daqui em diante teoria-musical)
nos evoca, o seu núcleo, sua expressão mais sintética, é pois a notação musical. É a
experiência primeira com os manuais que, tipicamente, trazem na capa a expressão
Teoria Musical.
Evidentemente, não podemos ignorar que, após as primeiras lições, após as
primeiras páginas de um típico “Método de Teoria Musical”, temos lições mais
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complexas, mais conectadas a práticas musicais mais consistentes (ou, alguém diria,
mais musicais!). Teremos escalas, tonalidades, melodias para serem solfejadas, acordes
que prometem um futuro estudo de harmonia, contraponto, formas musicais. Sem
dúvida tais métodos são “o primeiro chão do músico” (nas palavras do compositor
Aylton Escobar ao prefaciar Elementos de Teoria Musical, de Esther Scliar, 1985).
Mas, como um componente privilegiado desse primeiro chão, o que nos interessa aqui é
o encantamento inaugural de enfim ver e acompanhar visualmente aquelas figuras que
‘sobem e descem’ no papel em correspondência com a melodia que se está ouvindo.
A isto se alia indissoluvelmente um discurso verbal sobre a música, no momento
em que, oralmente e no texto verbal escrito, nos é explicado que aquelas figuras, quanto
mais acima, mais agudos são os sons, e quanto mais abaixo, mais graves são os sons;
quanto mais fechadas e escuras, mais curtos são os sons, e quanto mas abertas e claras,
mais longos são os sons. Em suma, fala-se aqui de Altura/Duração: a face verbal do
ícone gráfico.
Dessa forma, podemos dizer que o que primeiro nos evoca a expressão teoria-
musical é esse complexo, ou mesmo núcleo, verbo-visual. Aí se institui uma axiologia,
um acordo que se torna tácito e se projeta, se naturaliza, no próprio lexicon dos
discursos sobre música. Mas não podemos nos esquecer de que esse núcleo verbo-
visual se reporta a algo, ou, melhor dizendo, mais que se reportar a, é aderido a, algo
que é o Som: “Elemento praticamente indissociado da música quase como um
sinônimo” (Tomás, Lia 2002 : 17). O que passamos a ter, então, é um coeso amálgama
verbo-visual que, situado em algum lugar entre a sinonímia e a metonímia, chama para
si tanto a noção de teoria-musical quanto a de música ela mesma. Conseqüentemente, a
distância entre teoria e ‘teorizado’ (objeto) tende ao zero; nesse caso, há um hífen, não o
necessário hiato, entre a representação verbo-visual da música e a música ela mesma, de
tal forma que, ‘tecnicamente’, teoria-musical não faz plenamente jus à designação
Teoria (daí exatamente usarmos as grafias Teoria Musical e teoria-musical).
O próprio movimento inicial de pensar sobre música, embora possa não ser
gerado nesse núcleo, tende a transportar esse amálgama ‘primitivo’ para patamares mais
elaborados e complexos dos discursos sobre a música.
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Assim, poderíamos, em tese, detectar a presença desse complexo verbo-visual
em toda a gama de discursos sobre música, desde o primeiro chão do músico até a
Teoria Musical, na primeira acepção dada mais acima.
Não caberia aqui fazermos uma documentação de toda essa trajetória, a saber,
desde a axiologia, ou desde as premissas que se instauram já nos primeiros momentos
do processo de letramento musical, até o universo de textos acadêmico-científicos que
constituem a Teoria Musical. Seria suficiente, e em certo sentido mais revelador para
nossos objetivos, se pudéssemos localizar um texto cujo interesse seja discutir outra
música, outra teoria, diversa daquela que se conecta de forma umbilical com a teoria-
musical. Em outras palavras, um texto de ruptura com um passado, no qual a eventual
menção a esse passado se apresente exatamente como uma memória. E nossa questão é
precisamente flagrar, numa tal situação, como se apresenta essa memória; aquilo que,
em última análise, foi retido e permanece como representante sintético do universo
musical anterior. E parece ser precisamente isso o que encontramos no que se segue.
Em 1996, o compositor e teórico Trevor Wishart publica On Sonic Art, uma
estimulante discussão ou mesmo defesa teórica do universo daquelas músicas,
principalmente da segunda metade do século 20, que abandonam toda a discretude —
como sabemos, essencial na música tonal — em favor do continuum, The Sonic
Continuum, título da Parte I do livro.
Para caracterizar o contraste entre o que aquele autor apresenta como o novo
paradigma musical — sonic art, continuum — com o que, conseqüentemente, passa a
ser, o antigo paradigma, ou por assim dizer, uma Ars Anticqua em oposição a uma Ars
Nova, Wishart inicia a Parte I do estudo com o capítulo “Beyond The Pitch/Duration
Paradigm”.
A concisão de Whishart é irretocável, precisa e, em mais de um sentido, lapidar:
Pitch/Duration, altura/duração. Aqui vemos a evocação a que nos referimos mais
acima. A síntese ‘final’ das músicas feitas de notas musicais espelhando a síntese inicial
da teoria-musical.
Naturalmente aquele autor mostra-se ciente de que se trata de uma redução
sumária de todo um universo ao que percebemos como seus traços mínimos essenciais,
o que não deve ser tomado, adverte ele, como uma atitude que deprecia ou subestima tal
universo.“……I am not underrating the organization of pitch and duration parameters as
discussed in conventional theories.” (op. cit p. 8)”. Mas o que imediatamente se segue a
12
tal afirmativa é o que de fato traz à cena o núcleo motivador do presente estudo. “ I am
merely assuming that all this is by now common knowledge” .
Generalizações, como sabemos, são arriscadas, não podemos nos precipitar ao
fazê-las. Mas, nesse caso, devo correr esse risco. Vou assumir que, de maneira geral,
Wishart está vocalizando aí aquilo que é consensual, mas que muito raramente é dito.
Ou seja: tudo o que precisa ser conhecido, ou que vale a pena ser investigado no
campo dos princípios elementares da música tonal (ou das músicas feitas com
notas/ritmo) já é suficientemente conhecido. E, de fato, se nos restringimos ao que
chamamos acima de amálgama verbo-visual, aos parâmetros altura/duração, podemos
ter a confirmação ‘positiva’ de que a música opera com a discretização do continuum
grave/agudo e com uma discretização ou quantização do continuum temporal. A análise
instrumental, objetiva, do sinal acústico confirma isso. A notação musical, com base em
uma transferência de fundo iminentemente analógico, nos ‘fala’ de alturas/durações. E,
mais recentemente, a interface gráfica de um seqüenciador MIDI nos faz ver, em
coordenadas “x/y”, os ‘elementos da música’, os traços, que editamos, para cima ou
para baixo, com feedback acústico em tempo real, e cujos comprimentos, na dimensão
horizontal, nos confirmam com ‘realismo’, com uma concretude quase palpável, as
durações de que nos fala a teoria-musical. Todos esses elementos corroboram aquele
amálgama verbo-visual que, em boa medida, nos condiciona o próprio pensar sobre
música.
No entanto, o que faremos neste estudo será exatamente uma retomada, um
retorno a esse “common kowledge”, a esse “primeiro chão do músico”. Assim,
voltaremos a perguntas como: que tipo de operações mentais, ou, poderíamos dizer, que
procedimentos da ordem da cognição, se situam ‘abaixo’ ou aquém daquela axiologia?
Ou, em um registro mais vernacular, o que é que eu faço quando entendo uma melodia?
‘Estou percebendo alturas e durações’ é uma resposta suficiente? Ou ainda — se penso
em processos que devem estar em operação ali sem que eu me dê conta disso —, a
pergunta poderia ser formulada assim: o que é que eu faço sem saber que faço quando
entendo (canto, toco, ouço, crio) uma melodia?
Evidentemente, essa espécie de fazer sem saber, ou, fazer sem ter a imediata
consciência do como faço, nos remete ao tipo geral de procedimentos lógicos,
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subjacentes à conduta; procedimentos tais que, no domínio lingüístico-verbal, nos
permitem, por exemplo, usar uma anáfora sem a ‘ocupação’ (preocupação) “há uma
anáfora no que estou dizendo”. De forma análoga, nos permitem cantar sem a ocupação
“há potencialmente uma sexta napolitana ‘sob’ a nota que estou entoando” ou “estou
entoando uma supertônica bemolizada”. Pois essas ocupações ‘interceptam’ a ação seja
verbal-lingüística, seja musical, e transferem essa ação, esse saber fazer, desde uma
posição de junção com o sujeito-agente (o que informalmente associaríamos à noção de
‘eu simplesmente faço’) para o lugar do ‘objeto’ (ou sujeito gramatical) de uma
predicação.
Em outros termos, podemos dizer que o exercício da fala, de uma linguagem, da
música, não ‘coexiste’, não co-ocorre, com a metalinguagem verbal que procura, muitas
vezes de forma indireta, descrever os bastidores estruturais e processuais daqueles
exercícios. No entanto, esses mecanismos de bastidor (o que faço sem saber que faço),
quer os chamemos, em sentido amplo, de lógica, sintaxe, gramática, sejam ou não
conhecidos e descritos, eles ‘estão lá’, em operação, a cada ocorrência musical, ‘sob’
cada evento que reconhecemos como pertinente à chamada percepção musical (na
acepção dada a essa expressão nos currículos de música).
É nesse contexto que podemos dizer que a teoria-musical, que em certo sentido
define os conteúdos de percepção musical, trata de uma das faces da moeda: a face, por
assim dizer, sensorial, da percepção. Mas parece deixar lacunas importantes no que se
refere à outra face da mesma moeda: a face ‘lógica’ (mas não verbal), aquela dos
mecanismos de bastidor, sem os quais a percepção seria, no limite, o ricochetear da luz
num espelho, e não “uma porta de entrada para o conhecimento” (Santaella, 2000 : 49)
— (ao que se segue a seguinte observação: “nunca estamos em situação de corpo e
mente imediatamente colados a um objeto que possa ser tomado como sendo originário
de uma semiose”, o que corrobora a argumentação mais acima, alusiva ao necessário
hiato entre a teoria e o teorizado).
A investigação dessa outra face se torna necessária diante de perguntas como: O
que me leva a escutar, não simplesmente uma altura, mas a efetivamente escutar esse
som como subdominante (ou, diríamos, escutar ‘subdominantemente’ esse som)? Qual
a diferença – (trata-se de uma diferença acústica?) – entre esse som, que escuto
‘dominantemente’ (i.e. como dominante) e aquele outro, desta mesma melodia, que
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escuto ‘tonicamente’? Como faço para perceber que este som dura o dobro daquele
outro; ou: se ‘percebo’, dada a ‘unidade de tempo’, que este dó dura um tempo, como
percebo que este mi dura três quartos de tempo?
O problema que se coloca, então, é: como proceder para que obtenhamos um
distanciamento em relação à teoria-musical, ou seja, em relação àquele amálgama
verbo-visual — altura / duração — que tende a se interpor entre nós e os bastidores aos
quais gostaríamos de ter acesso?
O que faremos aqui, nesse sentido, será, em primeiro lugar, tentarmos nos
‘esquecer’ da música e dedicarmos por uns instantes nossa atenção a algo que
poderíamos chamar de um artifício heurístico, após o que retornaremos nossa atenção
para a música em busca de homologias entre tal artifício e o que suporei serem as já
aludidas operações de bastidor que, sem que o saibamos, sem que sejam um dado da
nossa percepção consciente, estariam ‘sob’ nossa capacidade de entender uma melodia.
Um artifício heurístico Ao narrar sua experiência salutar com a matemática — uma experiência descrita
como afetiva e corporal —, Seymour Papert analisa a origem de sua facilidade com as
relações geométricas e com as equações na perspectiva da epistemologia genética de
Piaget, a quem conheceu pessoalmente em virtude de seu trabalho no Laboratório de
Inteligência Artificial do Massachussets Institute of Technology (MIT):
Os trabalhos de Piaget me deram uma nova perspectiva para olhar as engrenagens de minha
infância. Elas podem ser usadas para ilustrar muitas idéias matemáticas poderosas e avançadas,
tais como teoria dos grupos e movimento relativo. Mas elas fazem ainda mais que isso. Assim
como as engrenagens estão relacionadas com o conhecimento matemático formal, relacionam-se
também com o conhecimento corporal, com o esquema sensorimotor de uma criança. Você pode
ser a engrenagem, você pode entender como ela se movimenta projetando seu próprio corpo em
seu lugar e girando com ela. Essa dupla relação — tanto abstrata quanto sensorial — é que dá à
engrenagem o poder de suscitar inúmeras idéias matemáticas na mente. (Papert, 1980).
15
Convido, pois, o leitor para vivermos uma experiência análoga em alguns
aspectos à de Seymour Papert, colocando-nos ‘corporalmente’ no centro desse quadrado
(Figura 1.1). Figura 1.1
Observe que, estando no interior do quadrado, não desfrutamos mais da
confortável posição propiciada pelos livros colegiais de geometria, que nos põem do
‘lado de fora’ das figuras, e que, de forma sempre visível para nós, nomeiam os seres e
‘eventos’ geométricos. Em outras palavras, as letras que nomeiam os vértices do nosso
quadrado são nomes externos à coisa em si e, como neste momento ocupamos uma
posição interna à coisa, tais nomes não nos são mais visíveis.
Movidos talvez por nossos instintos mais primitivos, gostaríamos de saber, de
início, onde estamos; como poderemos nos orientar dentro desse ‘compartimento’.
Podemos começar nos perguntando em que sentido se dirige nosso olhar, se para este ou
aquele ‘canto’ do compartimento. O ‘mundo externo’ agora não nos valerá. A partir do
‘mundo externo’ saberíamos, por exemplo, que ‘ao noroeste’ está o vértice “A”, ‘ao
sudeste’ está “C” e assim por diante. Mas nossa situação é diferente: não temos as
marcas diferenciadoras e orientadoras que eram visíveis quando estávamos fora da
figura. Agora, sem etiquetas de endereço, tudo que vemos, tudo que conhecemos, são
propriedades intrínsecas ao nosso ambiente.
Na verdade, como veremos a seguir, poderíamos estar numa situação análoga
àquela do labirinto (pan-semia), que nos desorienta com sua contínua irregularidade;
mas a rigor estamos num anti-labirinto (a-semia): a regularidade absoluta é o que aqui
não nos orienta.
Mesmo desorientados, lançaremos um olhar formalizante em direção aos
elementos discretos que compõem nosso ambiente, na esperança de construir um
sistema de referências cartográficas que nos possa auxiliar.
A
C
B
D
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Representamos, então, cada vértice do quadrado por um ponto “ • ” e, dentro
do espírito matemático, representamos cada lado pela unidade “ 1 ” . Em seguida,
olhamos para um vértice, escolhido aleatoriamente, nomeando-o “A”, e vemos que “A”
pode ser representado da seguinte maneira: “ 1 • 1”. Ou seja, vemos um ponto (o
vértice) ladeado, à nossa esquerda e à nossa direita, por lados ou ‘paredes’ idênticas em
seu tamanho. Ou melhor, trata-se de lados em si mesmos idênticos. Entretanto — e aqui
um fato importante — trata-se de elementos topologicamente diferentes, se
considerarmos uma topologia dependente da inserção do sujeito na figura. Assim, para
cada vértice considerado, o lado ‘à esquerda do vértice’ é topologicamente diferente do
lado ‘à direita’.
Girando nosso olhar no sentido horário encontramos um outro vértice, que
chamaremos de “B” — e sua descrição será, é claro, igual à descrição de “A”. Após
repetidas mais duas vezes a operação, temos uma tabela completa, como abaixo:
A 1 • 1
B 1 • 1
C 1 • 1
D 1 • 1
Ou seja, todos os vértices são idênticos: A≡ B ≡ C ≡ D. Prova disto é que, se o
quadrado for girado à nossa volta como uma roleta, não mais saberemos — com base
em propriedades intrínsecas ao quadrado — ‘quem’ é o “A”, o “B” e assim por diante.
Sempre estaremos vendo “ 1 • 1 ”.
Para prosseguirmos no nosso raciocínio, passaremos para uma outra figura
próxima ao quadrado: o retângulo, como na da Figura 1.2.
Figura 1.2
A
C
B
D
17
Aqui, a geometria escolar mais comum — que, não nos esqueçamos, tem o
sujeito observador numa posição externa à figura — diria que temos lados iguais dois a
dois, ou seja, AB = DC e AD = BC. Diria também que há quatro ângulos retos, o que
faz da figura aquilo que chamamos de retângulo. Essa geometria, no entanto, nada dirá
sobre os vértices da figura — não dirá nada sobre a estrutura desses ‘pontos’. No
entanto, é exatamente aquilo que podemos chamar de estrutura de um ponto (entendido
como uma entidade pertinente a uma forma) aquilo que nos interessa aqui. Vamos,
então, retomar os mesmos procedimentos adotados no caso do quadrado.
Naquele caso, representamos os lados com uma unidade “1” a partir da qual
expressamos a igualdade entre os lados da figura. Lá, consideramos a igualdade como
um dado primitivo, auto-evidente, uma realidade intuitivamente captada e aceita como
verdadeira (como, por exemplo, a isocronia no âmbito temporal), daí podermos
representá-los com a unidade. No presente caso, no entanto, não poderemos representar
os lados de forma quantizada ( 1, 2 ..etc.), pois trata-se de um retângulo genérico, ou
seja, qualquer ‘tipo’ de retângulo — ou mais ou menos ‘alongado’ — satisfaz nossa
idéia de retangularidade
Assim, podemos dizer que os lados do retângulo dentro do qual nos encontramos
são diferentes em tamanho, mas não podemos dizer de forma categórica quantas vezes
um é maior que o outro. Usaremos então o que de mais elementar dispomos no nosso
aparato cognitivo: a categoria Grande x Pequeno, a ser representada por “G” e “p”.
Vamos assumir que nossa posição é tal que o lado chamado AB (visível para um sujeito
externo ao “retângulo”), está à nossa frente e é igual em tamanho ao lado DC que está às
nossas costas. À nossa esquerda temos AD, que é igual em tamanho a BC à nossa
direita. De forma mais rigorosa, podemos agora dizer — assumindo nossas limitações
no interior da figura — que à nossa frente e às nossas costas encontram-se lados G, e
que à nossa esquerda, bem como à nossa direita, encontram-se lados p.
Repetiremos agora o procedimento adotado quando estávamos no quadrado, i.e.,
olharemos para cada ‘canto do compartimento’ descrevendo-os com o instrumental
elementar de que dispomos. A tabela daí resultante será a seguinte (Figura 1.3 ):
18
Figura 1.3
Ou seja, os vértices A e C são idênticos (p • G) — assim como B e D (G • p). A
situação aqui é fundamentalmente diferente daquela do quadrado. Lá, dois indivíduos
jamais poderiam dizer este é o ‘meu canto’, aquele é o ‘seu canto’, pois, depois de
girada a figura (lembremo-nos da imagem da roleta), eu nunca estaria seguro de estar no
‘meu canto’, e poderia muito bem estar no ‘seu canto’ e vice-versa. Provavelmente
seríamos tentados a deixar marcas específicas e pessoais cada um no ‘seu canto’. Mas
isto estaria infringindo as regras de nosso jogo, que trata de buscar marcas intrínsecas à
figura (ao objeto) sem que se lancem projeções do sujeito aderentes ao objeto.
No retângulo, o jogo funcionará da seguinte maneira: digamos que o sujeito X
(eu) escolha o canto A e o sujeito Y (você) escolha o canto B. Obviamente, estamos nos
referindo às letras de um ponto de vista externo à figura. Na verdade, eu escolhi um
canto que está à minha frente e esquerda, dada minha orientação original e você
escolheu um canto que está à sua frente e direita. Sabemos que meu canto é p • G e
que seu canto é G • p.
Em seguida, o compartimento é girado, e pára de girar em uma posição
qualquer, como na Figura 1.4 abaixo.
Figura 1.4
A B
D C
A p • G
B G • p
C p • G
D G • p
m = meu canto, s= seu canto.
m?
s?
m?
s?
19
Nesse momento, não sei exatamente qual o ‘meu canto’, mas — e aqui a grande
diferença em relação ao compartimento quadrado — estou seguro de que não invadirei
o ‘seu canto’, pois o ‘meu canto’ poderá ser qualquer um dos dois que têm a estrutura p
• G, ao passo que o ‘seu’ é um dos outros dois que têm a estrutura G • p. Posto de
outra forma, tenho 50% de chances de acertar o ‘meu canto’ e 100% de chances de não
confundi-lo com ‘seu canto’. O importante aqui é salientar que já temos estabelecida a
diferença ou a disjunção “um” vs. “ outro”. Temos já alguma orientação, algum
sentido.
Vamos agora dar mais um passo em direção ao que poderíamos chamar de
condições plenas de identificação — ou individuação — de cada vértice de uma figura.
Examinemos a Figura 1.5:
Figura 1.5
A despeito do que poderia dizer a geometria colegial sobre esse quadrilátero,
diremos que se trata de um quadrado que ganhou uma distorção. O vértice “B” foi
deslocado ‘para fora’ exatamente ao longo da direção definida pela diagonal DB.
A princípio, poderíamos descrever essa figura como um quadrilátero simétrico
onde os lados são iguais em tamanho, dois a dois: AB e BC — os lados grandes
(usemos essa noção propositalmente ‘primitiva’) — completados por AD e DC — os
lado pequenos. Conseqüentemente, temos um ângulo reto, cujo vértice é D, dois ângulos
obtusos (>90°) com os vértices A e C, e um ângulo agudo (<90°) em B. E estaríamos já
tentados a resolver nosso problema de orientação com base nesses diferentes ângulos,
ou seja, um vértice ou ‘canto’ identificável pelo ângulo reto, dois pelo ângulo obtuso, e
um pelo ângulo agudo. Assim, se no quadrado não tínhamos nenhuma diferença entre
os vértices e no retângulo tínhamos já condições de diferenciar os vértices dois a dois
(i.e. duas classes de objetos), aqui teríamos três classes de objetos: 1ª {D}, 2ª { A, C}
A
C
B
D
20
e 3ª{B}. No entanto, não estaríamos usufruindo as vantagens oferecidas pela inserção
do sujeito-corporal na figura, como vínhamos fazendo até há pouco. Pois vejamos:
Estamos agora no interior da figura 1.5 Repetimos aquele procedimento que
consiste em dirigir o olhar para cada ‘canto’ do compartimento e descrevê-los conforme
o que já foi estabelecido. O resultado será a leitura de quatro identidades distintas, i.e.,
sem a ambigüidade A, C. Como abaixo (Figura 1.6):
Figura 1.6
Nesse ponto será de fundamental importância — senão um evento
emocionante, se podemos falar de algo como emoções geométricas — constatarmos o
imenso salto que demos em relação ao quadrado (ou, diríamos, em relação ao quadrado
perfeito, não distorcido). Estamos certamente roçando — tocando, embora
tangencialmente — num dos axiomas fundamentais da significação, ou seja, a gênese
(gênese da diferença, da orientabilidade, do sentido) precipitada por uma distorção, por
uma perturbação de um sistema. Deve-se observar que o uso da palavra “salto” é
proposital, pois se trata de uma resposta não linear onde uma pequena e simples
alteração do sistema acarreta a passagem do nível zero da orientabilidade (no quadrado)
para as condições de plena orientabilidade.
Com efeito, se voltarmos aos nossos procedimentos padrão, constataremos que
essa figura suporta o ‘teste da roleta’, pois agora cada ‘canto’ tem sua identidade única e
exclusiva derivada tão somente das propriedades intrínsecas ao polígono (Figura 1.7).
A p • G
B G • G
C G • p
D p • p
A
C
B
D
21
Figura 1.7
Mas qual seria o polígono mínimo que oferece plenas condições de orientação?
Certamente o triângulo, mas não o triângulo equilátero. Já a partir do triângulo
isósceles teremos tais condições, como abaixo (Figura 1.8). Ou, de forma genérica,
podemos dizer: qualquer triângulo não equilátero satisfaz nossas condições.
Figura 1.8
Mas, se ainda assim, quiséssemos sempre algo ainda mais simples; mais simples
que o triângulo, chagaríamos a um ponto, ‘excessivamente’ representado abaixo.
Mas esse ponto, como ensinou Euclides, é ‘aquilo que não tem partes’, definição
que é refinada por outros como ‘pura posição’ (Kline, 1977). Mas não uma posição em
relação a ele mesmo, ou seja, não é uma ‘posição intrínseca à figura’. O ponto
visualizado acima, pois, ‘é’ ou ‘tem’ uma posição que é necessariamente definida em
relação, por exemplo, a esta página. Um referencial externo à ‘figura’. Ou talvez o
termo “figura” só se aplique ao caso de forma muito precária.
A roleta
A p • G
B G • G
C G • p
D p • p
A
C B
A G • G
B G • p
C p • G
22
Pensemos então em dois pontos. Dois pontos constituem um segmento de reta
que tem uma direcionalidade, mas, ainda, tal direcionalidade só pode ser expressa em
relação a um universo externo ao sistema ‘segmento de reta’ (duplamente limitado)
(Figura 1.9). Figura 1.9
Esse ‘sistema’, poderíamos dizer, define uma direção |sudoeste/nordeste|, ou
mesmo um sentido sudoeste nordeste, mas isto é correto apenas em relação a esta
página — consideradas as convenções cartográficas. Da mesma forma, estaríamos
recorrendo ao universo externo “esta página” e à nossa leitura/escrita da esquerda para a
direita para dizermos que o desenho é ascendente ou ‘crescente’, etc. Essas
características, com efeito, não se mantêm inalteradas quando a figura é submetida a
uma rotação, i.e., ao nosso teste da roleta (essa questão do segmento de reta será
importante no exame dos intervalos).
Devemos concluir que os ‘pontos’ que nos interessarão serão sempre e
necessariamente vértices (e nos dois últimos casos não temos vértices).
Podemos agora inverter nossa questão: do mínimo para o máximo. Teríamos
condições de nos orientar, identificando cada um dos vértices, dentro de um polígono
(inscrito em um círculo) de 50 lados? Provavelmente sim, num sentido bastante geral, e
no caso de um polígono necessariamente irregular com poucos ‘tipos’ de lados, i.e.,
como G e p. Mas o ‘custo’ dessa operação, ou a demanda cognitiva/perceptual seria
talvez mais alta do que nossa capacidade normal. Não teríamos como ter um
mapeamento exaustivo e continuamente presente em nossa mente, com todas as
‘identidades posicionais’ de todos os pontos. Provavelmente, alguns vértices se
sobressairiam do conjunto por terem ‘formatos’ (i.e. endereços topológicos)
excepcionalmente diferentes dos demais. Com base nesses pontos excepcionais,
começaríamos a operar ordinalmente, ou seja, dado um vértice excepcional “x”,
identificaríamos um vértice menos ‘característico’ como ‘o quinto vértice à esquerda de
“x” Mas tal operação já estaria quebrando um dos princípios básicos do processo de
23
orientação tal como entendido aqui. Ou seja, seria uma operação ordinal (ou serial,
linear), ao passo que nas situações que examinamos mais acima o ordinal é radicalmente
excluído.
Se levarmos ao ponto limite nosso movimento em direção ao máximo, teremos
um polígono (sempre inscrito num círculo) de infinitos lados (que, como sabemos, se
confunde com o próprio círculo). Nesse caso, cessam todas as possibilidades de
orientação. A rigor, voltamos ao mesmo caso geral do quadrado ou do triângulo
equilátero que vimos mais acima. Ou seja, como na figura 1.10, todos os polígonos
regulares inscritos em um círculo — desde o triângulo equilátero até o polígono de n
lados (para um n = ∞), i.e., o próprio círculo — compartilham dessa mesma propriedade
ou qualidade da não-diferença, da não-orientação ou, em suma, do não-sentido (na
acepção que demos ao termo “sentido” mais acima).
Figura 1.10
Deve-se ressaltar, em favor de nossa argumentação, que não estamos enfatizando
aqui o contraste discreto vs. continuum (polígono vs. círculo), pois toda a ‘progressão’
representada acima constitui uma só classe, ou seja, a classe dos polígonos que
compartilham a propriedade, ou traço, da regularidade e não-diferença. Dentro dessas
condições, poderíamos destacar o círculo como o caso-limite dessa ‘família’ de
polígonos. Se, no entanto, consideramos que não há um salto de dimensão significativa
entre esse limite, ou seja, o último membro ‘à direita’ dessa progressão, e o penúltimo
membro, podemos dizer que o círculo é pertinente – é interno - à ‘família’. Num sentido
mais geral, podemos dizer que essa é uma família de formas ou grandezas. Vamos
representar essa noção de grandeza com o dígito “1”.
Por outro lado, se ‘regredirmos’ (para a esquerda, na figura acima), só
poderemos pensar em algo à esquerda do triângulo por meio de uma ruptura, ou seja,
etc.
24
um salto de dimensão significativa para antes do início ‘real’ dessa progressão (o
triângulo). Chegaríamos, assim, a algo como um ‘polígono’ de zero lados, ou seja, um
ponto. Mas aí já não teríamos mais uma forma ou uma grandeza no sentido em que
dizemos que um triângulo delimita uma área ou ‘espaço’ triangular. E, como já vimos, o
ponto ‘em si mesmo’, é uma ‘posição’, uma não-forma ou não-grandeza, que podemos
representar com o dígito zero “0” (e nos sistemas numéricos o zero é, como sabemos,
uma posição vazia). Mas será ele, esse zero, interno ou externo a aquela progressão? De
um lado, podemos dizer que é interno, pois pudemos pensá-lo ainda como um membro
‘antes do início’ daquela progressão. Por outro, é externo, no sentido de que é uma
negação da forma, em contraste com os demais membros da progressão.
Deixo aqui em aberto essa questão, que será retomada, tanto nos Capítulos II e
III, para analisarmos certas questões referentes às estruturas de alturas (pitch) dos sons
musicais, quanto no Capítulo IV, quando falarmos de ritmo e temporalidade Por ora,
ficaremos apenas com as noções complementares de forma e não- forma, que podem
ser representadas respectivamente como “1” (interno) e “zero” (ambivalentemente
interno e externo).
Voltemos então para o caso dos polígonos não regulares, ou seja, aqueles que
permitem a identificação inequívoca de seus vértices. A questão relevante aqui estará
relacionada com uma ‘economia da informação’. Ou seja, quando aumentamos a
quantidade de lados do polígono, estamos aumentando a quantidade de informações.
No entanto, para além de algum limite, uma grande quantidade tende a não se realizar
plenamente na forma de produção de ‘sentidos’, pois o ‘custo operacional’, em termos
de investimento cognitivo, é demasiado para nossa capacidade humana normal.
Por outro lado, quando reduzimos a quantidade de lados ao seu mínimo (v.
triângulo isósceles, mais acima), temos, com efeito, um custo operacional mínimo. No
entanto, os benefícios são muito parcos, ou seja, o potencial de geração de diferenças,
relações e, enfim, de ‘sentidos’, torna-se muito pequeno face a nosso objetivo de
descrever uma linguagem ou sistema sígnico como a música.
A questão que se coloca, então, é se haverá um polígono (ou polígonos) que,
demonstravelmente, tenha uma relação custo/benefício adequada ou ótima. Em outras
palavras, trata-se da pergunta: haverá um polígono que, de um lado, tenha uma
25
quantidade de lados (i.e. informações) pequena o suficiente para ser processada (ou
processável) e, de outro, um potencial de geração de ‘sentidos’ grande o suficiente para
ser explorado como sistema de linguagem? Mais ainda: poderemos, com esse polígono,
explicitar diferenças, relações, ‘sentidos’, homólogos a aqueles, nos ‘bastidores da
musicalidade’, que queremos descrever?
É essa a questão que passaremos a examinar ao longo dos Capítulos II e III, a
seguir.
26
Capítulo II Espaço Modal
Da Classe à Forma
Podemos agora nos aproximar de estruturas mais familiares à música tonal que
estamos acostumados a ouvir e a fazer. Iniciaremos com aquilo que constitui, para nós,
a estrutura padrão. Em outras palavras, o conjunto de sons que, dado a ouvir hoje a um
grupo de indivíduos não músicos imersos na cultura ocidental, será identificado como
“o dó, ré, mi, fá, sol, lá, si, dó”. Sabemos, no entanto que, nesse caso, esses sete nomes
não se referem a sinais acústicos de freqüências fixas, calculadas a partir do Lá
convencional de 440 Hz, mas a um conjunto de classes de alturas (pitch class).
Como sabemos, uma classe de alturas pode, de maneira simples, ser entendida
como o conjunto de todos os sons que reconhecemos como ‘o mesmo’ em virtude de
serem todos eles distribuídos ‘sobre’ um continuum grave-agudo segundo uma
constante intervalar (ver K12 mais abaixo) que denominamos intervalo de oitava. Em
outros termos, podemos dizer que, diante do conjunto de alturas {A1 A2 A3 .... An-
1 An } ( = uma oitava acima), chamaremos esse conjunto de “A”, ou seja, a classe de
alturas “A”. Naturalmente se, no lugar de “A”, lemos “dó”, o conjunto inteiro, ou seja,
‘todos os dós’, será a classe de alturas “Dó”.
Para efeitos ilustrativos, podemos ‘gerar’ o conjunto de classes (“o Dó, Ré,
Mi..etc”) a partir de um som de freqüência qualquer “f”, como abaixo (com a ressalva
de que todos esses ‘cálculos’ serão externos ao que entenderemos, ao longo de nossa
argumentação, por percepção e cognição musical): f x K0 = f 1 donde se constitui a Classe I
f x K2 = f 2 donde se constitui a Classe II
f x K4 = f 3 donde se constitui a Classe III
f x K5 = f 4 donde se constitui a Classe IV
f x K7, = f 5 donde se constitui a Classe V
f x K9, = f 6 donde se constitui a Classe VI
f x K11 = f 7 donde se constitui a Classe VII.
f x K12 = f 8 donde se constitui a Classe VIII? Onde:
‘O dó, ré, mi, fá, sol, lá, si, dó’
(1) O símbolo K representa 12 2 , ou seja, o incremento de semitom na afinação de temperamento igual. Como sabemos, K0 (=1) é um incremento nulo, assim como K12 (=2) é o incremento de oitava, pois duplica a freqüência f.
(2) A seqüência f 1, f 2, f 3..... f 8, representa as oito alturas dadas, identificadas como ‘dó, ré, mi......’ (3) Cada Classe é constituída de uma dada altura, seja f 1, e suas recorrências nas oitavas superiores (f 1 x 2n) e
inferiores (f 1 x ½n), para “n” igual a 1; 2; 3; ......
27
Assim, diremos que aquilo que o leigo chama, no singular, de “o dó, ré, mi ....”
pode ser expresso em qualquer altura, ou, nos termos esboçados aqui, “f” pode ser
expresso por qualquer ponto do contiuum grave-agudo. Nossa questão será: o que é
‘isto’ a que ‘o leigo’ se refere quando, no contexto delineado acima, afirma “isto é o
dó”, ou “isto é o lá”, etc.? Vejamos:
Os expoentes de K (0; 2; 4; 5; 7; 9; 11; 12) refletem, como é já usual na
literatura, os intervalos, em quantidade de semitons, entre a freqüência dada e as
demais freqüências, conforme são distribuídas no âmbito da oitava. Ou seja, trata-se
daquela configuração que, de modo ‘ingênuo’, será reconhecida como ‘o dó, ré, mi, fá
sol, lá, si, dó’ (nomenclatura que o ouvinte médio bem informado saberá referir, neste
caso, ao chamado dó móvel, i.e, “f” pode ser qualquer altura, como já estabelecido
acima).
Naturalmente, as diferenças entre cada par de expoentes consecutivos (2 – 0 =
2; 4 - 2 = 2; 5 – 4 = 1, etc.) expressam a conhecida fórmula que regula os ‘passos’ ou
‘degraus’ (scale steps) da escala maior moderna: 2212221, onde 2 = tom e 1 = semitom,
como abaixo: I II III IV V VI VII VIII?
0 2 4 5 7 9 11 12
2 2 1 2 2 2 1
As sete Classes (sete, não oito: ver abaixo) são indicadas acima com os
algarismos romanos, ou seja, a maneira padrão de indicar os Graus da Escala. E é
importante salientar o uso do termo “Grau” – entendido como “Classe” - em vez de
“degrau”, “passo” ( como em ‘scale step), pois queremos preservar a noção de
cardinalidade de “Grau - Classe”, em contraste com a ordinalidade implícita em degrau
ou passo, onde sobreviveria a idéia de que, por exemplo, o terceiro ‘degrau’ seria
resultante de um percurso linear ‘primeiro, segundo, terceiro’.
Observe-se que as Classes I e VIII constituirão uma mesma classe, visto que f 8
está uma oitava acima de f I (f 8 já está na Classe de f1), donde decorre que a Classe I e
aquela que chamaríamos de Classe VIII se fundem em uma só: Classe I. Isto significa
que teremos uma circularidade que nos interessa aqui. A escolha de f1& f8 (i.e. ‘dó)
como ‘ponto de fechamento’ dessa estrutura deve ser vista, em que pese a motivação
28
obviamente ‘tonal’ – não ‘modal’ – de minha escolha, como uma escolha arbitrária,
pois quaisquer outras escolhas seriam válidas.
Temos então a forma 2212221 que, por ser uma forma circular, poderia ser
expressa em qualquer ordem: 2212221 –1 222122 – 2221221 – 2212212, etc. Assim,
quando necessário, representaremos essa forma com a notação /2212221/.
A questão de se saber da origem dessa forma — se a série harmônica bastante em
si mesma, se um ciclo de intervalos como o de quinta, etc — é rigorosamente
irrelevante aqui, pois nosso interesse é tão somente examinar a escala como uma
coletividade de sete classes de alturas a partir do momento em que se apresenta como
um dado. Para a abordagem adotada aqui, serão irrelevantes, por exemplo, as diferentes
afinações, de temperamento igual ou outras, pois cada freqüência, f1, f2, f3 etc., se
reporta, no sentido de uma psicoacústica musical, a uma nucleação que abarca uma
faixa de freqüências suficientemente próximas entre si. Nesse sentido, haverá aqui uma
aproximação com uma ‘fonologia’, sem que, no entanto, se descartem os necessários e
profundos vínculos com uma ‘fonética’ e uma ‘física’ musicais.
Com o mesmo objetivo que nos leva às representações numéricas acima, podemos
recorrer à intuição geometricamente orientada que é usada com freqüência para
representar a ‘recorrência’ dos sons a cada oitava, como na figura 2.1:
Figura 2.1
29
Na hélice2 acima, há diferentes pontos que compartilham a mesma posição
angular, ou, na terminologia musical padrão, diferentes oitavas da mesma ‘nota’. A
coluna de pontos assim obtida reduz-se, na sua projeção sobre o plano horizontal, a um
ponto somente, que representa, então, uma classe de alturas. Consideradas sete colunas
de pontos/sons espaçadas angularmente entre si de acordo com a forma /2212221/,
onde 2 = 60º e 1 = 30º , obtemos a projeção abaixo (figura 2.2).
Figura 2.1
Assim, obtemos um heptágono cujos lados, dados seus tamanhos relativos, se
reportam à forma /2212221/, numa leitura de 360º, sentido horário, iniciada
arbitrariamente nas ‘12 (ou zero) horas’ (Classe I). Trata-se, a rigor, de uma hiper-classe
constituída de sete classes; ou ainda, de uma Classe de Classes ou Forma que se
reportará, numa perspectiva musical-tonal, à Forma Diatônica. Nossa questão, portanto,
será saber como um sujeito-corpóreo interno à figura pode se orientar nesse espaço
heptagonal.
Neste ponto, se nos inclinamos por uns instantes para uma fenomenologia da
percepção tonal, é relevante saber se a representação /2212221/ é pertinente, pois trata-
se de saber se a relação de dobro ou metade expressa em 2 e 1 (tom / semitom) é
inerente ao signo musical que se instituirá em virtude de sua pertença àquela Forma. O
que será sustentado aqui é que não há qualquer sentido, para a percepção ou cognição
musical, na expressão “um semitom é a metade de um tom”, pois esta é uma
predicação que incide sobre a música a partir de um processo externo ao fato musical, 2 Krumhansl (1990) informa que, desde 1926, (Ruckmic, C.A: A new Classification of tonal qualities. Psychologycal Review), a metáfora helicoidal é registrada na literatura. Deutch, D. (1999), que cita Drobisch (1855), lança mão da mesma metáfora. Via de
I
IV
VII
II
III
V
VI
30
uma mensuração ex post facto, de interesse do físico ou do fabricante de instrumentos,
ao passo que, para o sujeito musical, o contraste tom/semitom decorre, e aqui uso a
expressão de Merleau-Ponty (1945), de um processo ante-predicativo (aquém de
qualquer predicação), que reconhece nesse contraste algo da ordem do grande vs.
pequeno — G/p.
Em outras palavras, “um tom é o dobro de um semitom” não corresponde a
qualquer operação ou fato pertinente ao campo da percepção musical. Assim, é G/p, não
inteiro/metade, que, prescindindo de quaisquer operações que requeiram unidades de
medida, ingressa na linguagem musical. Desdobramentos posteriores ao presente estudo
poderão refinar e dar maior rigor a esta questão, ao considerar a hipótese de que, do
ponto de vista lógico, o contraste G/p poderá ser expresso como x/y. Ou seja: a forma
/GGpGGGp/ seria melhor expressa, para a competência musical, como /xxyxxxy/, onde
“y” (duas ocorrências em sete) teria o sentido do marcado (ou ‘o marcador’), em
contraste com o não marcado “x” (comum, ‘neutro’). Evidência disso é que o leigo em
geral (i.e. a ‘musicalidade’) dá sinais de que prescinde de operações do tipo “mi-
fá”=“si-dó”< “dó-ré”.
Nos limites do presente estudo, no entanto, manteremos para a forma diatônica a
notação /GGpGGGp/. Mais abaixo incorporaremos a esse recurso notacional o ponto
“•”, para indicar, quando necessário, um vértice específico do heptágono, ou seja, um
grau ou classe (diatônica) de alturas.
Cabe dizer que, ao descartamos aqui a ‘exatidão’ predicativa de inteiro/metade
em favor do ante-predicativo, não estamos dizendo que entenderemos o processo
instaurador dos signos “alturas musicais” (ou graus de uma escala) como algo da ordem
de uma intuição difusa, freqüentemente associado à expressão “percepção musical” no
contexto escolar. Muito ao contrário, estaremos falando de um processo que, a despeito
de sua ‘invisibilidade’ no ato da percepção musical-tonal, é um processo presidido por
uma lógica, uma racionalidade, passível de ser trazida à luz nos termos do que
chamaremos de processo de orientação tonal - entendido como um homólogo do
processo de orientação espacial.
É oportuno, pois, observar que, se a música é, por excelência, a arte do tempo,
ao buscarmos uma descrição formal de questões musicais em termos de uma metáfora
geométrica, gráfica, poderíamos estar indevidamente inoculando na música aquilo que regra, usa-se essa metáfora gráfica para a representação dos doze sons ou classes de alturas, não para a representação da hiper-classe
31
ela não teria, ou seja, o espaço, a espacialidade. Mas não será exatamente este o caso
pois, ao concordarmos com S. Langer (1953), vemos que:
As referências freqüentes a “espaço musical” na literatura técnica não são puramente
metafóricas; há ilusões definitivamente espaciais criadas na música, (...). “Espaço tonal” é (...)
uma semelhança genuína de distância e alcance. Deriva da harmonia, (...) A razão disso, creio, é
que a estrutura harmônica dá, à nossa audição, uma orientação no sistema tonal, a partir da qual
percebemos os elementos musicais como ocupando lugares numa gama ideal. Mas o espaço da
música nunca se faz totalmente perceptível, como o é a textura do tempo virtual; é realmente um
atributo do tempo musical, uma aparência que serve para desenvolver a esfera temporal em mais
de uma dimensão. O espaço, na música, é uma ilusão secundária. Mas, primária ou secundária,
ele é completamente “virtual”, isto é, não relacionado ao espaço da experiência real. (grifos
nossos)
A respeito dessa análise de Langer, a meu ver de grande insight musical, devo
apenas fazer a ressalva de que a negação do relacionamento entre a ilusão espacial em
música e o “espaço da experiência real” pode ser reconsiderada, pois é inerente à
argumentação que desenvolvemos aqui a idéia de que, em algum sentido, o que quer
que chamemos de espaço musical pressupõe uma experiência real de espaço que se dá
em um domínio mais geral que o domínio musical stricto sensu.
Assim, junto com Langer, podemos dizer que entender musicalmente um som
“a” de uma melodia tonal eqüivale a ‘ver’ a Forma Diatônica, toda ela, tendo como
ponto focal o ‘vértice’ (i.e., classe) da forma diatônica em que se localiza “a”. Essa
afirmativa, é bem verdade, tem algo da generalidade ou de certo ‘impressionismo’ da
teoria Gestalt que nos levaria a dizer não muito mais que: a figura “a” se instaura em
relação a um fundo, representado aqui pela totalidade diatônica. O que proponho aqui,
no entanto, não deverá necessariamente se pôr em contradição com a teoria Gestalt, de
inegável interesse psicológico (v. Wertheimer, 1924). Por outro lado, diferentemente de
uma psicologia, o esforço aqui se dá na direção de uma busca de formalizações das
condições lógicas que, dos bastidores da assim chamada percepção musical, garantem
o reconhecimento de gestalten – ou já signos – que designamos com nomes como
tônica, dominante, etc.
Podemos, então, retomar o procedimento ‘geometrizante’ já demonstrado mais
acima, ou seja, a exploração da metáfora geométrica como catalisador heurístico. Mais
de sete classes de alturas, como fazemos aqui.
32
precisamente, estarei agora administrando um processo de análise com base na tensão,
ou, nos movimentos de ida e vinda, entre dois pólos. De um lado, teremos um pólo
geométrico, que nos favorece o necessário afastamento em relação a um ‘letramento
musical’ (que, este sim, pode reduzir a música à espacialidade da litera), muitas vezes
introjetado (na acepção psicanalítica – cf. Houaiss, 2001) e tornado não distinguível do
fenômeno, da experiência musical. De outro lado, teremos um pólo tanto quanto
possível musical, ou seja, meu próprio repertório de conhecimento e experiência no
campo da música, ao qual recorrerei nos momentos de reconhecimento de homologias
entre o musical e aquilo que, passo a passo, a análise do geométrico irá sugerindo.
Desnecessário dizer que não se pretende aqui a integral redução do musical ao
geométrico, pois estará sempre presente a ressalva de que o musical, em última análise,
ultrapassará o estritamente geométrico (em que pese a possibilidade de um alargamento
tal de “geometria”, “matemática”, “física”, que possa, enfim, abarcar a música e as
linguagens em geral).
Passamos então a examinar a Forma Diatônica, já representada como um heptágono
não regular, como abaixo (Figura 2.3).
Figura 2.3
.
Como podemos ver acima, o sujeito cognitivo corpóreo (ao qual, como já vimos,
é inerente a distinção esquerda/direita) postado ao centro da ‘sala’ heptagonal, volta-se
sucessivamente para cada um dos cantos da sala e, arbitrariamente, lê três lados à
esquerda e quatro à direita de cada um dos cantos. Chamemos a esse procedimento de
VI III
II
VII
V IV
I
I GGp • GGpG II GpG • GpGG III PGG • pGGG IV GGp • GGGp V GpG • GGpG VI PGG • GpGG VII GGG • PGGp
33
‘leitura 3•4’. Vemos assim (v. tabela) que a Forma em questão permite a completa e
inequívoca individualização de cada vértice (falemos indistintamente de vértices,
classes, cantos ou graus). Ou seja, o vértice I, por exemplo, tem a estrutura
GGp•GGpG, que não se confunde com qualquer outra; e o mesmo pode ser dito de
todos os pontos, ou seja, temos sete vértices diferentes na medida em que sejam
entendidos como sete diferentes endereços estruturais ou identidades topológicas.
Um indivíduo que, estando dentro de um recinto com esse formato, escolha o
‘canto’ I como ‘seu canto’, poderá se retirar desse recinto; esse recinto poderá ser girado
em relação a qualquer referencial externo; ao retornar ao recinto, esse indivíduo poderá
identificar inequivocamente o ‘seu canto’. Esse processo de localização não tem
qualquer relação com um sistema de endereçamento serial ou ordinal (como ‘sala 512’,
i.e., quinto andar, décima-segunda sala) e tampouco com quaisquer atributos intrínsecos
ao ponto I em si mesmo ou com quaisquer ‘etiquetas’, nomes ou símbolos externos ao
‘universo heptagonal’ do qual I faz parte.
A expressão ou valor posicional GGp•GGGp, que confere uma individualidade
única e diferenciada ao vértice I, reflete exclusivamente propriedades intrínsecas ao
todo ao qual I pertence. De um ponto de vista musical-tonal, GGp•GGGp expressa
formalmente aquilo que, esteticamente (aisthesis, estese) poderíamos chamar de sabor
da tônica, o ‘sentir’ uma tônica. Ou ainda, para empregar o termo usado pelos antigos
gregos, GGp•GGGp é uma expressão formal sem a qual não se poderá falar de qualquer
ethos peculiar àquele vértice. Mas já aí estamos comprometidos com a idéia de que esse
sabor, esse ethos, do vértice I corresponde a uma ‘visão’ do todo (a classe de classes),
considerado o I como ponto focal. Em outros termos, podemos também dizer que
perceber ou cantar I implica, necessária e inevitavelmente, perceber ou ‘cantar’ a Forma
Diatônica, toda ela, ‘em’ I. Ou ainda: I é a Forma Diatônica na perspectiva I, de
maneira que a Forma Diatônica é sempre ‘convocada’ inteira a cada nota de uma
melodia.
Portanto, o próprio conceito de classe de alturas precisa ser melhor qualificado,
ou seja, uma classe da alturas, a partir daqui, não é somente a projeção, no plano
horizontal, de uma coluna de pontos, ou um som ‘em todas as oitavas’. Mais que isto,
uma classe, ou o símbolo I (assim como os demais) é uma classe em virtude de se
diferenciar de outra(s) classe(s) num mesmo nível de análise. E, com efeito, o próprio
conceito geral de classe só é logicamente sustentável quando no escopo de uma
34
operação de ‘classificação’, i.e., de diferenciação entre classes (que podem ser
convenientemente chamadas de grandezas- v. Greimas, 1979) que, por compartilharem
caracteres, podem ser, em conjunto, reconhecidas como uma classe de classes ou hiper-
classe (que chamamos, acima, de Forma). Nesse sentido, vale lembrar que não há a
classe ‘tudo’ ou a classe dos seres (pois nesse caso não há hiper-classe), mas há a classe
de tudo que.., ou dos seres que... onde o partitivo “que...” já indica a operação
‘classificatória’, ou seja: tudo-que-“x” (diferente de tudo-que-“y”), onde “x” e “y” são
dois diferentes conjuntos de traços distintivos compartilhados ou numa ou noutra classe.
Schoenberg – interlúdio, inter ludus, ludus a-tonalis
Para efeito de contraste, cabe observar que, de fato, a técnica composicional
serial-dodecafônica, ao abolir deliberadamente as condições lógicas de orientação em
um espaço diatônico, por via da equalização de todos os valores posicionais, abole, a
rigor, a própria noção de classes de altura. Não havendo ali classes de altura (na
segunda acepção que utilizamos aqui), extingue-se, por necessidade lógica, qualquer
possibilidade de existência de uma Forma, entendida, no nosso sentido restrito, como
classe de (diferentes) classes.
Nesse sentido, o rigor a e coerência de Schoenberg são cristalinos: se não
queremos mais ouvir o ‘dó, ré, mi...’ temos de abolir as condições de orientação; temos
que trabalhar num ‘espaço’ tal que não permita ao sujeito interno a tal espaço
reconhecer qualquer vértice como diferente de quaisquer outros. O sujeito deve sempre
‘ver’ ..111•111... Em tais circunstâncias, os sons ganham a ‘liberdade’: uma autonomia
individual; são desconectados daquele território, /GGpGGGp/ que, como sabemos, não
é controlado pelo compositor individual.
Por outro lado, há que se considerar que Schoenberg, sim, apagou a demarcação
diatônica que sempre estivera presente no papel sobre sua prancheta. Mas esse papel
tinha já uma marca d’água: um polígono de 12 lados iguais. Como um Moisés —
persona cara ao compositor (v. Moisés e Aarão, sua ópera inacabada!) —, Schoenberg
vive pessoalmente a contradição do libertador que, por trazer a marca do antigo habitat,
35
delega a outros a conquista de novas terras (sobre Schoenberg, veja-se p. ex. Leibowitz,
1981).
Tipicamente, Schoenberg não se perguntava seriamente: porque 12 sons e não
um número diferente deste? Mas ainda se perguntava: “pode-se colocar a questão de se
saber se é possível atingir-se a unidade e a solidez formal sem o auxilio da tonalidade”
(artigo publicado em 1925 no Almanaque das Edições Universal, apud. Leibowitz, op.
cit. : 95).
Mas a pergunta sobre os 12 sons ou ‘tons’ é essencial, pois, se acatamos a idéia,
apresentada mais acima (Cap. I. fig. 1.10), de que desde o mínimo (ponto ‘não real’,
Cage) até o máximo (círculo, músicas do continuum eletroacústico) passando por todos
os poligonos regulares (inclusive o de 12 lados), expressam, em conjunto, uma
topologia da não-diferença; se acatamos esse raciocínio, Schoenberg, a despeito de si
próprio, foi autor do gesto inaugural tanto das músicas discretas não diatônicas — e daí
marcadamente timbrísticas — quanto das músicas do continuum do século vinte. A
‘desterritorialização’ do som, já logicamente presente na proposição original do
dodecafônico, aguardava apenas a total exeqüibilidade, o que veio a ocorrer com o
advento das tecnologias de que dispomos hoje.
Mas esse processo parece, com efeito, ter raízes anteriores a Shoenberg. Nesse
diálogo entre Glen Gould (GG) e Yehudi Menuhim (YM)* isso transparece de forma
bastante clara:
GG — Schoenberg é um homem que obviamente tem um interesse nos instrumentos per
se. Toda sua linhagem, desde Mahler, Strauss, Wagner (.....) foi uma linhagem
do cultivo da ‘cor’ dos instrumentos.
YM — Mas é curioso como essa música evolui na música puntilhista, com tantas
pausas. É uma música entremeada de silêncios. E eu acabei de pensar numa
teoria, que pode ser verdadeira ou não: (...) é o fato de o som ser como que mais
ou menos o mesmo. Quero dizer: não há grandes contrastes. (......) Então, o
único contraste que pode haver é entre o som e a ausência dele.
E, sem dúvida, esse diálogo nos remete à nossa conversa inicial (Cap. I). Em boa
medida, o impacto de Mahler é o impacto da ‘sonoridade’, entendida tanto como
‘quantidade’ quanto como ‘timbricidade’ Trata-se de algo que, como sabemos, já se
manifesta em Wagner sob a égide de uma ‘des-tonalização’ da música.
* The Glenn Gould Collection: Vol. 2, Sonatas and Dialogues. Estúdio: Sony Classics (vídeo). Lançamento: 13 de outubro de
1992. Exibido no Brasil pela TV Cultura de São Paulo, Fundação Padre Anchieta, em 15 de outubro de 1997.
36
Parentescos Retomando nossa análise da forma diatônica, podemos agora seguir para além
das identidades formais de cada vértice em particular e examinar as possíveis relações
entre os vértices. Ou seja, podemos examinar os parentescos estruturais entre os
vértices.
Para fazer isto, entenderemos que um parentesco entre dois vértices é
estabelecido quando há uma identidade parcial entre as formas dos vértices, ou, mais
exatamente, quando dois vértices compartilham uma mesma leitura à esquerda ou uma
mesma leitura à direita.
Adotado esse critério, podemos observar que os vértices I e V (Figura
2.4):deverão ter algum parentesco, alguma semelhança em ‘sabor’, pois ambos
pertencem à ‘família’ •GGpG. Com efeito, um indivíduo no interior daquela sala pode
confundir I e V, se privilegiar a leitura à direita desses vértices, ou seja, vértices que
compartilham o ‘sabor’ •GGpG, como abaixo
Figura 2.4
Para desfazer a confusão I x V, bastará que o observador, postado no centro do
heptágono, se volte para o I e leia à sua esquerda GGp• , e para o V, cuja leitura à esquerda será diferente: GpG•. Ou: •
Da mesma forma (Figura 2.5), os vértices I e IV terão uma relação de
parentesco, na medida em que, a partir da leitura de três lados à esquerda, pertencem à família GGp •. Figura 2.5
As leituras à direita estabelecerão a diferença entre I e IV. Ou:
I
V
GGp GGpG - I GGGP - IV
IV
I
I- GGp GGpG V- GPG
37
Assim, vemos logo que estamos explicitando possivelmente uma rede de
relações, pois o vértice I tem uma relação com V e uma relação com IV . De certa
forma, IV e V serão ‘primos’ através do vértice I. Tal relação pode ser expressa na
seguinte expressão:
IV I V,
que se lê como: I e V são idênticos à direita; I e IV são idênticos à esquerda; I é o
vértice comum a ambas as relações, ou o ‘eixo’ dessa relação. Devemos, portanto, levar
mais longe a exploração desses parentescos. Vejamos então(Figura 2.6) o resultado de
um mapeamento completo desses parentescos:
Figura 2.6
.
Familia Vértices
• G G p G
I e V
G G p •
I e IV
G p G • II e V
• G p G G II e VI
p G G • III e VI
GGG• •pGGp
VII
O exame paciente da figura e tabela acima nos mostrará uma coleção de relações
‘musicalmente evocativas’. Por exemplo: o tipo de relação apontado mais acima ocorre
na realidade em mais três situações, a saber: V II VI ; I V II e II VI III.
I
II
III
IV V
VI
VII
38
Já temos, portanto, as seguintes relações:
IV I V I V II V II VI II VI III
Em cada uma das quatro situações, temos um vértice com função cardinal (cardinalis; relativo a gonzo, eixo), a saber: I, V, II, VI, destacados acima em negrito.
No pólo musical, já estaríamos vendo aí, com toda a razão, a óbvia relação de
quintas, de dominantes e subdominantes, etc. No entanto, é preciso lembrar que essas
relações emergem aqui de uma geometria, independentemente de propriedades
acústicas, exclusivas do som, que costumamos invocar para, diretamente, justificar as
relações. Não se trata, pois, de uma mera mudança terminológica (dizer exatamente a
mesma coisa com outras palavras) mas de ‘encontrar’, ‘justificar’, num domínio que é
mais genérico que a música, os fatos e relações musicais. E é exatamente esse
procedimento de ‘afastamento do musical’ (ou da musicoteoria) que nos permitirá, de
volta à música, afirmar aquilo que a teoria musical padrão não afirma de maneira mais
clara.
Por exemplo: já dizíamos acima que um grau “x” é a forma diatônica, toda ela,
com um foco em “x”. Agora podemos acrescentar que a relação do tipo IV I V é
constitutiva dos vértices aqui chamados de cardinais (I, V, II, VI); que tal relação é
inerente ao perceber (musicalmente) cada um esses graus, é inerente ao ‘sentir’ tais
‘vértices’.
Num primeiro momento, pois, as ‘descobertas’ que faremos no decorrer dessa
‘vida no interior dos polígonos’ revelarão aquilo que, pela via interna da teoria padrão,
‘já sabíamos’. E isso nos interessa, pois a confirmação, n’o musical, das relações que
vamos estabelecendo tem exatamente o sentido de validar o procedimento adotado.
Mas o que constatamos é que o procedimento efetivamente favorece insights
potencialmente novos em relação à teoria musical padrão, o que significará que
estaremos explorando produtivamente o potencial heurístico que está sempre presente
na metáfora (cf. p.ex. P. Ricoeur, 1975).
39
Vemos também que os dois vértices que não contraem dupla relação de
parentesco — III e IV — delimitam um dos lados pequenos do heptágono. Vamos
chamá-los provisoriamente de vértices ‘terminais’ (Figura 2.7).
Figura 2.67
Observamos ainda que resta um vértice órfão, único representante em duas
famílias, GGG • e • pGGp : o vértice VII (v. tabela mais acima). Também aqui, o
músico não deixará de anotar que o modo Lócrio (‘de si a si’ - já falaremos dos modos)
vem a ser exatamente o modo ‘discriminado’, ou seja, um modo apenas teórico, sem uso
prático na música modal. Desnecessário anotar que /GGG/ e /pGGp/ corresponderão,
n’o musical, ao trítono.
Prosseguindo, então, nós, como sujeitos habitantes do interior do heptágono
/GGpGGGp/, decidiremos experimentar um outro modo de localização. Leremos
quatro lados à esquerda e três lados à direita de cada ‘canto da sala’ (4•3). Ou seja, se
antes identificávamos I como GGp•GGpG, agora esse canto lerá GGGp•GGp. A
questão é verificar que conseqüências essa mudança no critério de leitura trará para a
rede de parentescos que se estabelecerá a partir daí. O resultado está sintetizado mais
abaixo (Figura 2.8).
III
IV
VII
40
Figura 2.8
I GGGp • GGp
II GGpG • GpG III GpGG • pGG IV pGGp • GGG
GGpG • GGp VI GpGG • GpG
VII pGGG • pGG
GGpG • II e V GpGG • III e VI pGGp • • GGG
IV
• GGp I e V • GpG II e VI • pGG III e VII
Lembremos que, com a leitura 3•4, os graus que contraíram duplo parentesco
(eixos de relações) foram I, V, II, VI. Agora, com a leitura 4!3, esses graus são V, II,
VI, III. Antes, os vértices ‘terminais’ eram III e IV, que delimitavam um dos dois lados
pequenos do heptágono. Agora os vértices terminais são VII e I, que delimitam o outro
lado pequeno do heptágono. (O músico, sempre com razão, verá aí os graus que operam
a resolução do trítono, ou ‘notas atrativas’. Lembremos: VII (vértice isolado na leitura
3!4 ) ‘resolve’ no I, e IV (vértice isolado na leitura 4!3) ‘resolve’ no III.)
Vemos também que, antes, o vértice isolado era o VII, que era membro único
em duas famílias GGG • e • pGGp. Agora o vértice isolado é o IV, também sui
generis em duas famílias: • pGGp e GGG •. Podemos representar isto assim:
(3!4) VII GGG• pGGp
(4!3) IV pGGp• GGG
Ou seja, dada uma leitura pendente à direita, explicita-se o isolamento de VII,
com a identidade GGG• pGGp, e, dada uma leitura pendente à esquerda, explicita-se o
isolamento de IV, com a identidade pGGp•GGG.
I
II
III
IV V
VI
VII
41
Neste caso, diferentemente de todos os demais, as imagens especulares VII e IV
nos deixam diante de uma especial ambigüidade. Se, no mesmo critério de leitura (3•4),
a potencial confusão entre I e V (ver acima) se resolve com a constatação de que as suas
leituras à esquerda são diferentes, aqui temos um confronto entre dois critérios de leitura
(3!4) vs. (4!3), que dependerá inteiramente da noção em si mesma de lateralidade
direita/esquerda.
Nesse sentido, VII é igual a IV com sinais trocados (+/- -/+). Um se converte
no outro pela mera troca de sinais. Confundir esses dois vértices não decorrerá de
insuficiência de dados (leitura parcial de I e V p. ex), mas de um certo ‘excesso’ de
simetria que leva a uma ‘crise de lateralidade’ no sujeito: “esta direção é direita ou
esquerda?” Em termos musicais, já podemos supor que o trítono apresenta um problema
de percepção — não um problema acústico, mas um problema de identidade estrutural e
lateralidade.
Bem, experimentamos dois critérios de leitura - (3•4) e (4•3) -, que incluem a
quantidade total de lados do polígono. Podemos agora nos perguntar se um critério de
leitura que leve em conta uma quantidade menor de lados do polígono mantém a
possibilidade de identificação inequívoca de todos os vértices. E mais: que rede de
parentescos emerge desse outro critério de leitura.
Experimentemos o critério 3!3, ou seja, leremos três lados à esquerda e três
lados à direita de cada vértice. Naturalmente, a exclusão de um lado, embora reduza a
‘capacidade de visão’ do observador, ainda não retira de seu campo visual a totalidade
dos vértices (figura 2.9). Nesse caso, a leitura, por exemplo, do vértice I, passa a ser
GGp!GGp.
Figura 2.9
I
I
VI
II
II
V
V
42
Nunca é demais voltarmos à idéia de que a indisfarçável inspiração musical
desses desenhos não invalida o fato de que as propriedades e relações que, passo a
passo, vamos explicitando, seriam válidas como propriedades geométricas mesmo se a
música não existisse. Assim, o sistema de localização e de (re)conhecimento de cada
ponto da forma é comum tanto à música quanto àquilo que fazemos para nos orientar
em nossa própria casa, ou ao que um pássaro faz para ‘conhecer’ cada ponto e direção
da região de floresta que habita.
Tendo isto em mente, prosseguimos com a leitura 3!3. Temos abaixo (Figura
2.10 ) a identificação estrutural de cada vértice na leitura (3!3) e a rede de parentescos
daí resultante. Figura 2.10
Neste caso, vemos que a pequena diminuição do número de informações sobre
cada vértice (de sete para seis lados) não impede que tenhamos a completa e inequívoca
identificação dos sete vértices. Não há duas identidades estruturais ou endereços
topológicos iguais.
Diferentemente das leituras anteriores, a leitura 3•3 não exclui qualquer vértice
da rede de parentescos (IV e VII não são isolados) e explicita simultaneamente: (a) o
conjunto de cinco vértices Cardinais, e (b) os dois vértices Terminais, como abaixo.
IV I V I V II V II VI II VI III VI III VII
IDENTIFICAÇÃO - leitura 3•3 I G G p • G G p II G p G • G p G III p G G • p G G IV G G p • G G G V G p G • G G p VI p G G • G p G VII G G G • p G G
V
I
II
III
IV
VI
VII
43
Dado que não temos mais vértices excluídos da rede de parentescos, podemos dar
mais um passo em resposta à pergunta: o que é perceber um grau de escala? Se dizíamos
antes que I (usado como exemplo) é a forma diatônica, toda ela, ‘vista’ com o ponto
focal I; e se já dizíamos que certas relações imediatas de parentesco são também
inerentes ao perceber I (IV I V), agora podemos fazer uma vasta generalização: I
é a forma diatônica e todas as relações e propriedades inerentes a esta forma vistas com
o ponto focal I (e isto é analogamente válido para qualquer grau). Isso implica que, não
só a forma diatônica, mas todo o sistema — quer o chamemos de tonal ou modal, etc. —
é convocado a cada nota de uma melodia: implica que o sistema estará implícito,
inteiro, em cada som que reconheçamos como som musical.
Tal generalização, no entanto, não impedirá que diferenciemos cada vértice da
forma diatônica segundo propriedades que os tornam mais ou menos ‘centrais’ ao
sistema. Veremos isto (Figura 2.11) no decorrer das observações a seguir.
Figura 2.11
FAMILIA Vértices G G p • I e IV G p G • II e V p G G • III e VI
G G G • VII • G G p I e V • G p G II e VI • p G G III e VII
• G G G IV
Aqui, vemos com mais detalhes a rede de parentescos que emerge da leitura 3•3.
Observado o critério que temos adotado, o parentesco entre IV e VII, os terminais,
vistos agora simultaneamente, é o parentesco mais distante. Trata-se de um parentesco
de sexto grau (no desenho, seis retas pontilhadas). Se quisermos, na leitura 3•3,
descrever formalmente uma relação direta entre IV e IV, esta será uma representação de
V
I
II
III
IV
VI
VII
44
instabilidade, ambivalência, antagonismo, ou seja: os vértices IVe VII constituem a
família “(GGG) ou à esquerda ou à direita” (adiante, veremos mais sobre o trítono).
Naturalmente, o músico letrado já perceberá também que a representação ‘em
arco’ da rede de parentescos espelha um ciclo de sete ‘tonalidades’ que — escolhido I
como referência principal (?) — é mais ‘produtivo’ na direção das dominantes que na
direção da subdominante (Figura 2.11b).
Figura 2.11b
Esse fato é reconhecido na Teoria Musical, ou seja: a pequena forma musical
tende a ‘modular’ para a subdominante (à esquerda de I, acima) , ao passo que a
expansão e extensão do discurso musical, nas ‘grandes formas’, tende a modular na
direção das dominantes (à direita de I, acima). A explicação ‘fisicalista’ dessa assimetria
é normalmente expressa assim:
The structure is unbalanced, because the harmonics all rise from a note [i.e. harmônicos de
“dó” = I] and the dominant or sharp direction, based on the successive second overtones of
the previous note, outweighs the subdominant direction, which descends. The subdominant
weakens the tonic by turning it into a subdominant. [....] This imbalance can be perceived
immediately in the formation of the diatonic scale [...] which uses the root of only one triad in
the subdominant direction, but of the first five triads on the sharp or dominant side. (Rosen,
1976 – 24) (grifo nosso).
Deve-se notar que nossa perspectiva aqui é inversa: enquanto Rosen vê a escala
como derivada do ciclo de quintas (“second overtones”), nós vemos um potencial ciclo
de quintas como ‘propriedade’ da Forma Diatônica /GGpGGGp/ (não dos ‘harmônicos’
do sinal acústico).
VII
IV
I
V
II
VI
III
?
45
Mas neste momento (lembremos: ainda não ‘descobrimos’ a “tônica”), só
podemos dizer que essa assimetria decorrerá de uma leitura 3•3 do heptágono diatônico
e dos parentescos que aí se estabelecem, ou ainda, é uma propriedade, uma
potencialidade da forma /GGpGGGp/, que se manifestará quando e se o vértice I for
eleito como ‘principal’.
Neste momento, pois, seria precipitado saltarmos diretamente da forma
diatônica para o domínio do sistema tonal moderno tal como o conhecemos. Por outro
lado, as anotações que reunimos até aqui já serão suficientes para examinarmos a
seguinte questão: a forma /GGpGGGp/, que trouxemos à cena a partir da pergunta
ingênua “o que é dó, ré, mi, fá, sol, lá, si, dó”, será ela privativa da cultura musical
européia moderna? Ou ela poderá ser subjacente a outras músicas?
Essa questão, naturalmente, não se esgota em sabermos se a forma em questão,
incluídas aí as propriedades a ela inerentes, tem uma generalidade que ultrapassa as
fronteiras do tonalismo europeu, mas, em última instância, já apontaria para uma
questão talvez mais importante, que é a de saber se os processos cognitivos implicados
na orientação dentro de qualquer espaço escalar-musical serão mais genéricos que a
música. Por ora, restritos ao musical, podemos já explorar algumas propriedades do
nosso heptágono tendo em vista sistemas musicais menos próximos de nós.
Acima, como já vimos, são explicitados dois tipos de vértice: os terminais IV e
VII (que, em certo sentido, são os ‘limites’ daquela progressão) e os vértices cardinais,
i.e., aqueles que contraem relações diretas de parentesco com dois outros. Organizados
segundo um seqüenciamento linear, os cinco cardinais são I; II; III; V; VI. Ao cantar
esse ‘conjunto cardinal’, o músico ocidental prontamente reconhecerá a escala
pentatônica (se podemos usar esse termo na sua acepção mais genérica e trivial, as
teclas pretas do piano: fá, sol, lá, dó, ré sustenidos). Nos nossos termos, diremos, não
que a escala pentatônica desconhece os graus IV e VII, mas que resulta da leitura 3•3 da
Forma Diatônica.
A pentatônica é, nesse caso, a Classe das Classes cardinais de /GGpGGGp/.
Assim, a correlação que fazemos entre a ausência de IV e VII na escala pentatônica e
uma ‘aversão’ à instabilidade e antagonismo pode ser associada a questões mais amplas.
Vejamos:
46
Numa outra ‘leitura’ (Figura 2.12), podemos privilegiar os dois lados pequenos do
heptágono, ou seja, os quatro vértices já vistos provisoriamente como terminais nas
leituras 3•4 e 4•3, ou seja: VII & I e III & IV.
Figura 2.12
Com base nesses lados pequenos, e com a adição da classe VI, é construída uma
das formas pentatônicas importantes para a música japonesa, mostrada, acima, na
forma pentagonal inscrita no heptágono, que se leria Kyu, Sho, Kaku, Chi, U (III, IV,
VI, VII, I). Podemos dizer que essa escala tem como base a Classe das Classes terminais
nas leituras 3•4 e 4•3 da forma /GGpGGGp/.
Deve-se anotar o fato de que a soma dos dois conjuntos de classes, o ‘genérico’
e o japonês, reconstitui a forma diatônica de sete classes, como abaixo [os índices são: c
= comum a ambos; G = exclusivo do ‘genérico’; JP = exclusivo japonês]3:
I c II G III c V G VI c I c III c IV JP VI c VII JP
I c II G III c IV JP V G VI c VII JP
Naturalmente, não se quer aqui afirmar que há uma relação de derivação desde a
escala musical de sete classes até as escalas pentatônicas, ou o inverso, que seria
aparentemente mais ‘natural’. Tais questões seriam pertinentes aos campos da
etnomusicologia, da antropologia, ou mesmo de uma “Evolutionary Musicology”, na
expressão proposta em Wallin & Merker & Brown (2001).
3 Não se pode deixar de anotar que o exclusivo japonês é a Classe das Classes terminais na leitura 3•3, o que terá ressonâncias com o que veremos mais adiante sobre Thats indianos e sobre o trítono em geral.
I
III
IV
VII
47
Tampouco faz-se aqui qualquer reivindicação no sentido da busca de universais
em música. Embora tal busca possa estar presente no conjunto das motivações deste
estudo, uma busca de tal magnitude estará aqui, como já temos afirmado, condicionada
à idéia de que quaisquer que sejam os eventuais universais ou ‘arquétipos’ musicais,
eles serão sempre mais gerais, ou mesmo mais ‘profundos’, que o domínio estritamente
musical. E é precisamente nesse sentido que mostramos acima que elementos estruturais
das duas configurações pentatônicas podem ser vistos como propriedades da figura
geométrica que tomamos como ponto de partida.
Vamos voltar agora ao quadro de identidades topológicas resultantes da leitura 3•3 (Figura 2.13) para relacioná-lo com um sistema musical culturalmente mais próximo de nós Figura 2.13.
IDENTIFICAÇÃO – leitura 3•3 I G G p (C) • G G p (C) II G p G (B) • G p G (B) III p G G (A) • p G G (A)
IV G G p • G G G V G p G • G G p VI p G G • G p G VII G G G • p G G
A razão de eu ter destacado as classes I, II e III é a simetria. Ou seja, lidos da esquerda para a direita, os braços esquerdo e direito dessas classes são idênticos: III = (A)•(A), II = (B)•(B), I = (C)•(C), como abaixo (Figura 2.14):
Figura 2.14
I
II
III
A
A
B
B
C C
48
Ora, consideradas em si mesmas, as configurações (A) /pGG/, (B) /GpG/ e (C)
/GGp/ correspondem às estruturas intervalares dos três tetracordes elementares da
música (e da teoria musical) da Grécia Antiga. Essas seriam as configurações
resultantes das três afinações ‘possíveis’ do tetrachordon, a lira grega de quatro cordas.
Não nos importará aqui a discussão da ‘verdade histórica’ mas, sobretudo, a
verosimilhança da narrativa histórica que localiza na prática dos tocadores de lira a
descoberta, ou o exercício, da lógica subjacente aos assim chamados modos musicais
da Grécia Antiga.
No tetrachordon , as cordas extremas, a mais grave e a mais aguda, eram
mantidas em afinação fixa a um intervalo de quarta justa (total equivalente a 5
semitons). As duas cordas intermediárias eram de afinação variável, e as afinações eram
limitadas ao uso de um contraste apenas: tom/semitom, ou, nos nossos termos, G/p. Ou
seja, a inclusão de outras afinações possíveis, como 1+3+1 (semitom + um tom e meio
+ semitom = 5) e suas combinações, como 1+1+3, etc. era vetada, pois isto implicaria
em um sistema de dois níveis de contraste: 3>2>1, ou X>G>p (onde X= extragrande).
Em outras palavras, as afinações obedeciam a um princípio binário — ou seja, baseado
em um nível de contraste (uma diérese) entre duas grandezas — ao passo que X>G>p
reflete um princípio ternário, com dupla diérese (não tripla, se consideramos X>p
redundante) entre três grandezas.
Dado que ambos, binário e ternário, são, a rigor, diatônicos (na acepção de
dissociação, separação, diérese, categorização, v. prefixo “di(a)-”, Houaiss 2000)
diferenciaremos um do outro com as expressões diatônico2 (ou simplesmente diatônico)
e diatônico3, reservando diatônicon como conceito genérico.
As afinações diatônicas2, portanto, eram três, como ilustradas abaixo (Figura 2.15 ) (as
setas indicam elevação de um semitom na afinação da corda):
Figura 2.15
G
G
p
A-FRIGIO
G
P
G
B-DÓRICO
p
G
G
C-JÔNICO AGUDO
GRAVE
49
Para efeito de simplicidade, usamos os nomes ‘modernos’ (nomenclatura de
Glareanus, mantida esquematicamente na didática do Jazz), e não os originais gregos,
que como sabemos, passaram por erros de interpretação ao longo dos tempos. Assim,
temos as afinações elementares: os tetracordes A-Frígio, B-Dórico e C-Jônico (A-
Dórico, B-Fígio e C-Lídio, para os gregos).
Para recobrir todo o âmbito da oitava, bastava projetar duas cópias de um
tetracorde de modo que o intervalo entre a base do tetracorde inferior e o topo do
tetracorde superior fosse de uma oitava. A separá-los, o intervalo de um tom, como
abaixo (ver modos homogêneos).
Figura 2.16
M O D O S H O M O G Ê N E O S MODOS HETEROGÊNEOS
FRÍGIO DÓRICO JÔNICO EÓLIO MIXOLÍDIO
A B C A B
A B C B C
Aos três modos homogêneos, formados dos tetracordes AA, BB e CC, dois
modos heterogêneos eram acrescentados, construídos com os tetracordes AB e BC.
Podemos agora voltar a relacionar esses resultados com a leitura do heptágono,
como vínhamos fazendo (Figura 2.17 ).
50
Figura 2.17
Prontamente observamos que as etiquetas ao redor do heptágono trazem, não
mais os algarismos I, II, etc., mas nomes dos modos. Uma questão importante, a ser
tratada mais abaixo, é saber se tais nomes, enfim, se referem aos vértices ou aos modos.
Desde já, aproveito para inserir aqui a informação de que, após ter concluído
uma primeira versão completa dos Capítulos II e III, tive a grata surpresa de encontrar
na Grove a seguinte passagem (ver Grove, “Mode, 3: Scale and Melody type”):
“The first mode A and the fourth, D, are alike and are designated ‘of a single mode’ because
both have a tone beneath and [have] tone-semitone-tone-tone above. And this is the first
‘similarity in scale degrees’, that is the first mode” (Guido: Epistola de ignoto cantu, Garbert S,
ii, 47) (......) Guido here stressed the scalar melodic environment of any scale degree, thus
providing a structural definition for mode.
Trata-se, se adotamos a notação que temos usado aqui, de uma leitura 1•4, a
‘leitura de Guido’, como abaixo:
JÔNICO
DÓRICO
FRÍGIO
EÓLIO
MIXOLÍDIO
IDENTIFICAÇÃO – leitura 3•3 HOMOGÊNEOS
I (JONICO) G G p © • G G p © II (DORICO) G p G (B) • G p G (B)
III(FRIGIO) p G G (A) • p G G (A)
HETEROGÊNEOS
V(MIXOLIDIO) G p G (B) • G G p © VI(EÓLIO) p G G (A) • G p G (B)
51
Feita a inserção ou relato acima, voltamos ao curso de nossa argumentação:
importa observar que as leituras que temos feito do heptágono refletem, ou explicitam,
características daquilo que, em sentido amplo, chamamos de sistema modal.
As identidades dos vértices I, II, III espelham, como já vimos, a estrutura
intervalar dos modos homogêneos: Jônico Dórico e Frígio. As identidades dos vértices
V e VI refletem os modos heterogêneos: Mixolídio e Eólio. O status especial dos
modos homogêneos, bem como a ordem em que são apresentados aqui, espelham
formalmente o núcleo da questão dos ethos atribuídos pelos gregos a esses modos.
Assim, Platão (República - cf. Jaeger) entenderá que se deve “prescindir da melodia
lídica-mista (sic) e lídica-tensa (sic), por serem próprias para a lamentação e o duelo
[....]. “Igualmente se reprovam as melodias lânguidas, quer jônicas [BC- mixolídias]
quer lídias [CC - jônicas], boas para orgias, mas inaceitáveis aqui, porque nem a
embriaguez nem a languidez ficam bem aos “guardiões”. Gláucon, interlocutor de
Sócrates (ibid) “Dá-se conta de que, nestas condições, prevalecerão as melodias Dórica
[AA- Frígia] e Frígia [BB Dórica]”.(Acrescentei colchetes com a nomenclatura
moderna que usaremos aqui)
Temos, portanto, que AA, BB e CC recobrem o espectro dos ethos desde seu
máximo positivo — AA seguido de BB — até seu máximo negativo — CC.
No entanto, vejamos o seguinte experimento (em Carterette, E. C. & Kendall, R.
A 1999, p. 733). Hill, Kamanetsky, and Trehub (1996) using historical and empirical methods examined the
relations among positive and negative texts, Ionian [CC] and Phrygian [AA] modes, as well as
organ and vocal mediums in settings of a popular Christian melody of the baroque. Based on the
analysis of 51 representative settings, they showed that the baroque composers tended to link
Ionian [CC] settings of the melody to a salvation text and Phrygian [AA] settings to a
condemnation text. Also vocal pieces tended to be set in Ionian [CC] mode and organ pieces in
Phrygian [AA] mode. From four rating experiments, they confirmed that contemporary adult and
children listeners linked reward texts to the Ionian [CC] mode and punishment texts to the
Phrygian [AA] mode.
1•4 - Leitura de Guido C p•GGpG D G•GpGG E G•pGGG F p•GGGp G G•GGpG A G•GpGG B G•pGGp
52
Muito longe de desautorizar qualquer hermenêutica para-musical, o que vemos aqui
é que, ao longo do tempo histórico que vai desde a Grécia de Platão até a Europa por
volta Barroco, houve uma inversão, que se mantém até a atualidade, como
esquematizamos abaixo.
De nosso ponto de vista, é relevante assinalar que atribui-se, consistentemente,
uma distribuição polar no que se refere aos modos Jônico e Frigido; modos que, como
veremos abaixo, serão os dois pontos extremos do que chamaremos de hiper-cardinais.
O conjunto dos cinco vértices cardinais — I, II, III, V, VI, que já explicitavam a
configuração pentatônica — espelham agora os cinco modos que obtivemos mais
acima, com base nos tetracordes elementares. Neste caso, poderemos chamar esses
modos de modos cardinais.
E não é de todo improdutivo fazermos aqui um paralelo com a fonologia. Se
reduzimos o número de fonemas vocálicos de uma língua a três fonemas, esses tenderão
a ser os de maior contraste entre si, i.e., aqueles que expressam de forma ótima as
diferenças possíveis dentro de um espaço acústico-articulatório. Conforme
estatisticamente comprovado, todas as línguas têm as vogais /u/, /i/, /a/, e nas línguas
cuja fonologia opera com apenas três vogais, essas vogais são, naturalmente, /u/, /i/, /a/
(Crothers, 1978). Este seria o caso dos modos/vértices homogêneos I-Jônico, II-Dórico,
III-Frígio, (de constituição homogênea, ‘pura’, quanto aos tetracordes), que ocupam
posições de fato ‘cardinais’ no ‘espaço modal’. Esses seriam portanto modos que, como
um subconjunto ótimo dos cinco cardinais, serão chamados aqui de modos hiper-
cardinais (Figura 2.18).
Figura 2.18
Grécia Barroco
Frigio (AA) positivo negativo
Jônico (CC) negativo positivo
LOC
LID
JON
MXL
DOR
EOL
FRI
53
Observamos, como já se poderia prever, que V-Mixolídio e VI-Eólio (de
constituição híbrida quanto aos tetracordes) ocupam posições intermediárias no ‘espaço
modal’. Aqui, o lingüista prontamente verá as posição de /e/ e /o/, completando o
conjunto /i/, /e/, /a/, /o/ /u/. Esses cinco cardinais vocálicos, acrescentará o lingüista, são
os mais freqüentes naquelas fonologias que operam com cinco valores vocálicos; e as
línguas que poderíamos chamar aqui de ‘pentavocálicas’, constituem a maioria das
línguas. Ao que o músico, por seu lado, responderá com o fato homólogo, a saber, que a
escala pentatônica está presente na grande maioria das culturas do globo. Numa síntese
daquilo que é copiosamente registrado pela comunidade etnomusicológica, Mâche
(2001) apresenta “a series of sampled universal features: the first one (.........)
encompasses the whole world. It can be defined as pentatonic poliphony on a drone.”
De uma maneira geral, podemos dizer que deparamo-nos, no nosso percurso de
investigação, com aquilo que Burns (1999) chama de “intriguing similarities between
musical scales and speech continua in the relationship between identification and
discrimination and in the separation of categories along their respective continua”.
Desnecessário lembrar que a analogia com o domínio da fala deve respeitar
diferenças importantes. Nos sons e fonemas da fala tratamos de nucleações timbrísticas,
cujas diferenças espelham diferentes configurações de formantes (f1, f2, f3) não
importando a freqüência fundamental f0. Na música, tratamos de nucleações de alturas
(f0) não importando a ‘qualidade timbrística’ (configurações de harmônicos). Decorre
daí que, a rigor, o verdadeiro análogo de “melodia” (mús.), na fala, i.e., a ‘verdadeira’
melodia da fala, é a klangfarbenmelodie, não a sprechgesang. Em outras palavras, um
sistema (discreto) de timbres (formantes) está para a fala assim como um sistema
(discreto) de alturas-classe está para a música. Inversamente, o continuum de alturas (f0)
está para a fala (em que pesem os ‘tonemas’ das línguas ‘tonais’) assim como um
continuum timbrístico está para a música. Naturalmente, estou colocando em segundo
plano a aproximação icônica (também importante) entre a curva intonacional da fala (o
perfil dos f0 ao longo da dimensão temporal) e o contorno de alturas (pitch contour) na
música.
54
Devemos, portanto, ter claro que o que buscamos pôr em evidência aqui não é a
aproximação ‘horizontal’ música / linguagem-verbal, mas o fato de que essa
aproximação (de tantas outras possíveis) é, aqui, mediada pela análise de uma Forma
que não é nem musical nem lingüística (verbal).
Voltando agora ao nosso heptágono, podemos observar que, na leitura 3•3, a
rede de parentescos entre os vértices explicita simultaneamente a terminalidade dos
vértices IV e VII. Na homologia com o ‘espaço modal’ que estamos agora apontando,
isto significa que os modos Lídio e Lócrio serão, em algum sentido, terminais. Vejamos
abaixo (Figura 2.19):
Figura 2.19
Na rede de parentescos, podemos observar que os vértices (ou modos) I, II, III são
exatamente aqueles que, no conjunto de seus parentescos imediatos, abarcam a
totalidade da forma diatônica, ou seja, os modos hipercardinais I, II, e III — também
representados como IV I V, V II VI e VI III VII — constituem como
que o conjunto mínimo de ‘indivíduos’ que portam a totalidade das ‘informações
genéticas’ da comunidade diatônica. Essa propriedade, entendida aqui como uma
propriedade de percepção (percepção de ‘sabores’, no sentido que temos usado),
reconfirma o status especial que chamamos de hipercardinalidade. Por outro lado, os
vértices V e VI, que têm as relações diretas I V II e II VI III, definem um
escopo restrito ao conjunto dos cinco cardinais.
LÓCRIO
LÍDIO
FAMILIA Vértices G G p • (C ) I (JONICO) e IV(LIDIO) G p G • (B ) II (DORICO) e V(MIXOLIDIO) p G G • (A) III (FRIGIO) e VI (EOLIO)
G G G • (¿) VII (LOCRIO) • G G p (C ) I (JONICO) e V(MIXOLIDIO) • G p G (B) II (DORICO) e VI(EOLIO) • p G G (A) III (FRIGIO) e VII (LOCRIO)
• G G G (?) IV (LIDIO)
55
Já os vértices que nos interessam agora, IV e VII, serão elementos aos quais
podemos associar as noções excêntrico ou centrífugo. Ou seja, para mantermos o
mesmo procedimento acima, teríamos que testá-los quanto a uma suposta cardinalidade
(contrair duplo vínculo que, de fato, não contraem). Assim, teríamos: ? IV I e III
VII ?. Acompanhando a notação usada (Figura 2.20), somos levados a supor que
IV apontará um elemento “?” não pertinente à forma diatônica (algum ponto ‘à
esquerda’ de VII, i.e. VIIb). Da mesma forma, VII apontará algum ponto ‘à direita’ de
IV, i.e., IV#). O músico, sem dúvida, já verá nessa propriedade excêntrica aquilo que
virá a ser, no discurso tonal, a modulação, que já se insinua nesses dois vértices de
escape, vértices terminais, da forma diatônica.
Figura 2.20
Na perspectiva modal que estamos explorando agora, podemos ver que os modos ‘anômalos’, Lócrio e Lídio, não se submetem à ‘economia’ ou ‘ergonomia’ da lira, ou seja, não são deriváveis da regra construtiva simples baseada em ‘cópias’ de três tetracordes elementares, pois ‘explodem’ o gabarito lírico. Como abaixo (Figura 2.21): Figura 2.21
LOCRIO
LIDIO
LOCRIO A
?
LIDIO
C
?
HOMOGÊNEOS FRIGIO DÓRICO JÔNICO
A
C A
A
B
B
C
C
A
B
B
C
HETEROGÊNEOS EOLIO MIXOLÍDIO
ANÔMALOS LÓCRIO LIDIO
56
Como vemos, há razões suficientes para que chamemos os modos Lócrio e Lídio
de anômalos, ou seja, anômalos em relação a um princípio construtivo que é bastante
evidente nos demais modos. Nesse sentido, a busca de simplicidade, simetria, equilíbrio,
entendidos como atributos que, de fato, são ergonômicos, parece, sim, estar presente no
processo de formação dos modos e escalas. Para o tocador da lira, a escolha de
determinados tetracordes está relacionada com a preferência ‘natural’ por objetos cujo
design é adequado ao uso e à manipulação combinatória.
Por outro lado, a presença, ou a mera possibilidade de existência, dos modos
Lócrio e Lídio exige a presença de algo que é mais geral que um princípio ergonômico,
no sentido ‘antropométrico’ desse termo; algo mais poderoso que um algoritmo, um
procedimento modular-combinatório. Ora, esse algo vem a ser a forma diatônica, em
relação à qual esses dois modos não são anômalos, mas tão somente ‘pontos limite’ ou
terminais. A instabilidade estrutural, as expressões de antagonismo e ambivalência que,
repetidas vezes, vimos registrando mais acima com relação a esses dois vértices (e
agora, dois modos) são intrínsecos ao sistema. Ou, se quisermos, inerentes à forma
diatônica tal como vem sendo analisada até aqui.
Assim, já devemos anotar aqui um dado de importância fundamental para o
prosseguimento deste estudo. Ou seja, aquilo que conhecemos como trítono não se
esgota em uma descrição acústica, ‘fisicalista’ do fato acústico-musical; não se revela
na simples medida de duas freqüências cuja relação não é ‘simples’ (1/2, 2/3, ¾); de
outro ponto de vista, não se resume a uma qualidade sensorial tensa, dissonante; mas se
revela, pela análise, como uma tensão ou ‘dissonância’ estrutural e, poderíamos dizer,
um caso de peculiar ‘dissonância cognitiva’.
Devemos ter claro também que, ao redefinirmos o conceito de classe de alturas e
ao associarmos as sete classes diatônicas aos sete modos, somos levados a entender que
aquilo a que se refere a expressão modo não se refere exatamente a um conjunto de sete
diferentes elementos em uma combinatória linear e ordinal característica (arranjo),
como no expediente didático do tipo “dó2 dó3 = Jônico; ré2 ré3 = Dórico, etc. Em
outras palavras, se agora podemos dizer que o modo Jônico é a forma diatônica com um
ponto focal no vértice Jônico, estamos tornando idênticas as definições de modo Jônico
e Classe I. Portanto, nos termos propostos aqui, Grau I e modo Jônico são sinônimos e,
57
de maneira genérica, Grau, Classe, Vértice e Modo passam a ser sinônimos. Decorre
daí que perceber um grau de escala musical é perceber um modo.
Evidentemente, quando falávamos de ‘sabores’ peculiares a cada vértice do
heptágono diatônico, estávamos já abordando por extensão a questão dos ethos
associados aos modos. Mais acima, falávamos da distribuição polar dos modos Jônico e
Frígio, associando tal polaridade tanto ao ethos a eles atribuídos quanto às suas posições
extremas no grupo dos três modos hiper-cardinais. Voltamos agora à questão do ethos
como uma preparação necessária para nos afastarmos mais uma vez do âmbito musical
ocidental ( antes, abordamos brevemente duas escalas pentatônicas, uma delas
japonesa; e as escalas pentatônicas em geral não são, digamos, parte do cânone
moderno ocidental).
Como sabemos, esse tipo geral de associações entre música e ethos se
manifestará, das mais diversas maneiras, em um grande número de outras situações
além das harmoniai e modos da Grécia. Pensemos na música programática européia do
Século 19; nas trilhas musicais cinematográficas; nos produtos da indústria fonográfica
rotulados “música para....”, i.e. “para sonhar”, “para um bom despertar”, “para os
amantes”, etc. nos diversos campos da musicoterapia; Ou ainda toda a linha de
produção fonográfica de rótulo “new age”. Na verdade, seria redundante listar todas
essas situações, pois, o que se constata, enfim, é que se está diante de um universal que,
devemos admitir, é empiricamente inquestionável.
Esses dados devem ser, por cautela, remetidos primeiramente ao repertório das
hermenêuticas para-musicais. Mas não se deve descarta-los a priori, pois poderão ser
metáforas produtivas numa semiótica da música, na medida em que não nos deixemos
seduzir pela aparência de referencialidade do que quer que chamemos de ‘sabor’ ou
ethos Nesse sentido, deve-se sempre ter à mão a atitude cautelosa, senão crítica,
observação de Peter Crossley-Holland4.
Crossley-Holland fala da “clivagem” entre o cidadão grego e o músico
profissional-especialista e da conseqüente proliferação dos ‘discursos sobre a música’:
4 Responsável pelos capítulos em músicas não-ocidentais em Robertson e Stevens (eds.) – 1960.
58
This cleavage between citizen and professional brought about a divorce from which musical
Europe suffers at the present time. And the snobbery which attended it is still a familiar feature
of our musical life. [……] it was very fashionable to talk about music. If he were incompetent in
practice, he could nonetheless expound the theory, and under this vogue extravagant notions
were developed about musical ethos which could never have been countenanced in Plato’s day.
É dentro desse espírito que podemos agora testar nossa metáfora geométrica em mais um domínio musical não ocidental, a saber a música do norte da Índia. Trata-se de um campo musical, tanto ou mais que o grego antigo, dotado de uma ‘referencialidade’, em especial no que se refere aos vínculos de determinadas ragas a determinados períodos do dia, etc. Mais ainda, a própria estrutura escalar, preconizada pela teoria musical clássica indiana, tende a lançar um véu de impenetrabilidade ao olhar ocidental na medida em que, em princípio, divide o módulo de oitava não em 12 mas em 22 partes (srutis). No entanto, desse dado não decorre uma diferença perceptual que impeça as aproximações que nos interessam aqui, pois, conforme Carterette, E. C. & Kendall, R. A. (op. cit. p. 734)
Sampat (1978) compared Western and Indian musicians on three tasks, interval identification, interval discrimination and, categorical perception of pitch. In particular, it has been expected that Indian musicians, “having more categories in their musical pitch scales would exhibit finer discrimination” in categorical perception of pitch. But the outcome was [that] Indian musicians could do no better than identify an interval as one of the notes of the 12-note chromatic scale.
Dado, pois, que podemos considerar que ‘o dó, ré, mi, fá sol, lá, si, dó’ e o
indiano ‘sa, re, ga, ma, pa, da, ni, sa’ — embora afinados diferentemente, se referem
fisicamente, não a sete pontos precisos do continuum acústico, mas a sete nucleações de
altura comuns a ambos — podemos assumir que, tanto numa como noutra música, as
classes de alturas são equivalentes. Isso significa que, rigorosamente, podemos dizer
que a forma /GGpGGGp/ está presente também na música indiana. Podemos então
prosseguir.
A leitura 3•4 do heptágono diatônico explicita 6 das 10 principais escalas —
thats — subjacentes às ragas praticadas no norte da Índia. Há, assim, a igualdade
estrutural entre esses seis thats e os 6 modos ocidentais correspondentes a cada um dos
vértices indicados abaixo. Deve-se observar também que, da mesma forma que a leitura
3•4 excluía o vértice VII , também no sistema indiano (considerados os 10 thats, como
59
veremos) não há um that correspondente ao vértice VII (assim como não há um nome
original grego para esse modo, que chamamos de Lócrio). Como abaixo:
Figura 2.22
As linhas de parentesco, reproduzidas da leitura 3•4, espelham aqui a
organização dos thats em um ciclo de quintas a partir de Kalyan (that nº 1) até Bhairvi
(that nº 6) (Castellano, Bharucha & Krumhansl, 1984; Jairazhboy 1971; apud
Carterette & Kendal, op. cit). Pode-se contrapor o argumento de que essas
aproximações se dão no plano de uma sistematização teórica abstrata da música indiana,
sem contrapartida efetiva no plano da percepção, que é o que, enfim, nos interessa aqui.
No entanto, vários experimentos no campo da percepção envolvendo músicos ocidentais
e músicos indianos atestam a correspondência perceptual de pares that-modo (Vaughm
1991; Aoyagi, 1996, apud Carterette & Kendal, ibid), como abaixo:
Figura 2.23 Nº That Estrutura diatônica Modo 06 BHAIRVI pGG G pGG III - FRÍGIO 05 ASAVRI GpG G pGG VI- EOLIO 04 KAFI GpG G GpG II - DÓRICO 03 KAHAMAJ GGp G GpG V- MIXOLÍDIO 02 BILAVAL GGp G GGp I- JONICO 01 KALYAN G G G p G G p IV- LIDIO
Ainda que de maneira incipiente, podemos agora ampliar essas relações de forma a abarcar o conjunto dos 10 thats , da seguinte forma:
2- BILAVAL
1-KALYAN
[?]
4 - KAFI
6 - BHAIRVI
3 - KHAMAJ
5 - ASAVRI
1
2
3
4
56
60
Figura 2.24
Thats 54 2 54 ↓ Modos BHAIRVI 06 pGG G pGG III - FRÍGIO ASSAVRI 05 GpG G pGG VI- EOLIO KAFI 04 GpG G GpG II - DÓRICO KAHAMAJ 03 GGp G GpG V- MIXOLÍDIO BILAVAL 02 GGp G GGp I- JONICO
(A)GGG p G G p KALYAN
1
(B)GGG p G G p IV - LÍDIO
MARVA 10 p X G p G G p PURVI 09 p X G ppXp TODI 08 p G X ppXp A 7 07 p G X ppGG 64 65 ↑
BHAIRAV pXp G pXp A ser visto mais adiante
No esquema acima adicionamos os thats numerados de 7 a 10 (como em
Carterette, op.cit) representados por suas estruturas intervalares (a partir da
representação dos thats por seqüências de nomes “dó, ré, mi,......si” modificados
adequadamente com bemóis e sustenidos, em Krumhansl 1999). O nosso símbolo “X”,
extra-grande, representa, nos termos perceptuais que adotamos, a medida de intervalo
segunda aumentada (3 semitons).
Dessa forma, podemos distinguir dois domínios. O primeiro deles é o familiar
domínio diatônico, no sentido estrito que demos a esse termo, relativo a um contraste
G>p. Nesse domínio, os modos/thats se conformam ao gabarito ‘lírico’, 54/2/54, ou
seja, dois tetracordes (4) com o escopo guarta justa (5) separados por um tom (2), com a
exceção do Lídio/Kalyan, anômalo em relação a esse gabarito por ter a estrutura
tetracordal 64/1/54, onde “6” representa o trítono, que, como vimos, ‘explode’ o âmbito
da lira grega (ver leitura A de Lídio/Kalayan: GGG/p/GGp).
O outro domínio pode ser entendido como ‘não-lírico’, no sentido de ter como
característica modular comum a todos o gabarito 64/65, ou seja, a junção direta (sem
separador) de um tetracorde (4) e um pentacorde (5) idênticos entre si no que se refere ao
âmbito trítono (6). Outra característica desse domínio é o fato de não ser diatônico2 (no
sentido usado aqui), pois insere um terceiro elemento distintivo e assim passa a operar
Domínio Diatônico2 (gabarito lírico)
Domínio diatônico3
Obs: Na verdade, há aqui uma circularidade. That 6, pGGGpGG, com a transformação “ma #” (elevação da quarta nota), lê-se pGXppGG, i.e., that A7. Observe-se que, diferentemente da nossa classe I, “Sa” refere-se sempre ao vértice focal de um that, independentemente de sua forma. Portanto “as, re, ga, ma, etc, (com as devidas alterações #/b) se reportam a 1º, 2º, 3º, 4º etc. em todos os thats
61
com dois níveis de contraste X>G>p. Novamente, o Lídio/Kalayan é anômalo em
relação a essa característica, pois opera apenas com G>p (ver leitura B de Lídio/Kalyan:
GGG/p/GGp).
Assim, num sentido mais geral, podemos lançar mão da notação já usada mais
acima para representar vértices cardinais:
Domínio diatônico3 Lídio/Kalyan Domínio diatônico2
Ou seja, o Lídio/Kalyan, deixa de ser exatamente uma anomalia, mas, por reunir
características de um e de outro domínio, passa a traduzir um parentesco entre ambos os
domínios (que, nos termos estabelecidos aqui, são internos a um superdomínio
diatônicon )
Ora, podemos ter duas formas de entender a expressão diatônico3. Ambas terão
em comum a idéia de ‘aquilo a que somos potencialmente conduzidos através de um
vértice ou modo terminal’. Na música européia, como vimos mais acima, a
‘regularização’ de um vértice terminal conduziria potencialmente à chamada
modulação, ou seja, a uma deformação da forma /GGpGGGp/ que tem como resultado a
mesma forma /GGpGGGp/, uma vez reinterpretados todos os vértices (p. ex. Vpré-
deformação I pós-deformação)
Na música indiana, por outro lado, é dado pleno curso à propriedade centrífuga
do vértice terminal, de tal maneira que somos efetivamente transportados para outro
domínio, cujas novas formas, no entanto, seriam geradas por uma única operação de
transformação que, por via do Lídio/Kalyan, incide sobre a forma diatônica
/GGpGGGp/. E, com efeito, uma das maneiras de caracterizar o Lídio do ponto de vista
da percepção ocidental moderna se faz por contraste com o padrão ‘Escala Maior’, ou
seja, o Lídio é a Escala Maior com o quarto grau elevado de um semitom. Da mesma
forma, os 6 thats do domínio extra-diatônico podem ser representados como ‘thats que
têm o quarto grau elevado’ (operação que é reconhecida nos termos próprios da tradição
musical indiana, cf. Candé 1994, p. 135). Em outros termos, diríamos que os thats extra-
diatônicos2 são ‘Lídios’ no que se refere a essa característica perceptual/estrutural do
Lídio. (cf. Candé, 1994; Krumhansl, 1999). Nesse sentido, o domínio que chamamos
aqui de diatônico3 pode muito bem ser visto, numa perspectiva ocidental, como um
domínio Pan-Lídio. Por outro ângulo, poderia ser chamado também de domínio Pan-
Lócrio, já que, como vimos, é a ‘regularização’ do vértice VII ( lócrio ) que ocasionaria
um ‘deslocamento positivo’ do vértice IV.
62
Outra diferenciação importante entre os domínios diatônico2 e diatônico3 se refere à noção de
invariante num e noutro, como se segue.
Figura 2.25
O domínio diatônico2 tem a topologia ‘lírica’ 54/2/54 (caso limite: 64/1/54),
com a invariante /GGpGGGp/ . Ou seja, no domínio diatônico2 a Forma
heptagonal é única, invariante: aqui o sujeito visita somente uma sala.
O domínio diatônico3 indiano tem a topologia 65/64 . No entanto, sua forma
invariante, ‘implodida’, se resume ao eixo de trítono /6/. Esse espaço
unidimensional tritônico é expandido, para a direita e para a esquerda, com a
geração de seis diferentes espaços tritônicos bidimencionais que,
combinados, como mostra a figura, resultam em cinco Formas heptatônicas
diferentes. Aqui o sujeito visita cinco diferentes salas.
Uma conseqüência importante que se extrai daqui é que o termo modal se
aplica em geral a diferenças que se estabelecem com base em diferentes
vértices de uma invariante, no nosso caso, /GGpGGGp/. Isso se aplica ao
domínio diatônico2 (thats 1 a 6) do sistema indiano. No entanto, essa
definição não se aplica no domínio diatônico3 indiano (thats 6 a 10) pois,
nesse caso, a invariante é um intervalo, um eixo (que forçosamente não tem
vértices) e a variação se dá por via das diferentes classes de classes (formas)
que se expandem do eixo tritônico. Nesse sentido, um maior
aprofundamento nesta questão (que não será feito aqui) poderá mostrar uma
semelhança com o que chamamos de tonal, onde o contraste também se faz
entre duas formas: Maior e Menor (que se compara aqui com o contraste
diatônico2 / diatônico3).
Voltamos agora para observar que o that Bhairav, tradicionalmente não numerado (ver mais acima), constituiria um fato isolado em relação ao espaço escalar indiano (tanto quanto o Lócrio, na nossa leitura 3•4). No entanto, há que se anotar o fato de que esse that, pXp/G/pXp, se conforma, num sentido, à topologia lírica 54/2/54 e, noutro, ao domínio diatônico3 (X>G>p). Nesses termos, temos a seguinte simetria (• = 1ª nota, i.e., sá):
Diatônico2 Lírico Kalyan pGGp•GGG + -Bhairav pXp•pXpG - +
12
34
5
6
2 3
4
5
KALYAN
MARVA
PURVI
TODI
A7
63
Esse espelhamento, uma vez melhor analisado, poderia revelar uma aproximação entre
esses dois thats; uma aproximação de tensão, ambivalência, ou polaridade, tal como já
vimos nos vértices IV & VII e I & III. No entanto, dificilmente poderíamos dizer que a
forma /pXpGpXp/ (Bhairav) é uma propriedade ou um ‘leitura’ da forma /GGpGGGp/
com que iniciamos.
Podemos apenas sugerir, como acima, alguma via de conexão entre uma e outra
forma. Isso nos dá a entender que a ‘nossa’ forma diatônica não existe em isolamento.
Não é ‘absoluta’. Mesmo porque, dentre suas propriedades intrínsecas, está a
propriedade de se conectar (de alguma maneira) ao que provavelmente seja uma Rede
de Formas. E uma tal Rede, nunca seria uma rede exclusivamente ou estritamente
musical pois, ou a música (tonal ou outra) compartilha certas processos e operações
com domínios mais gerais que ela mesma, ou a música não é, em nenhum sentido, uma
linguagem, ou uma semiótica.
Penso que não é outra a direção geral apontada por algumas pesquisas
experimentais, como em Krumhansl (1990), que, ao sintetizar um conjunto de
experimentos na área de percepção e cognição musical, conclui afirmando:
These results indicate that certain basic perceptual and cognitive abilities underlie our musical
capacity, abilities that are shared to some extent with other domains of complex human activity.
(op. cit. p. 271).
Nessa mesma direção, não se pode deixar de mencionar as descobertas de
Balzano (1980) apud Carterette, E. C. & Kendall, R. A. (1999). Balzano lança mão da
teoria matemática dos grupos para gerar, por operações de transformação, três
subgrupos do conjunto cíclico de 12 pontos – C12. Um dos resultados obtidos mostra
que uma das três representações de C12 , a saber, o produto direto dos subgrupos C3 e C4
(uma operação consistente nos termos da teoria dos grupos, visto que 12 é
decomponível em 3 x 4), corresponde à forma cíclica que aqui representaríamos de
maneira simplificada como 2212221, ou, nos nossos termos, /GGpGGGp/. Mas não
seria essa apenas uma dentre tantas representações de C12?
Segundo Balzano, esse não é o caso, pois o subconjunto diatônico é o único a
apresentar simultaneamente as propriedades de ser convexo, compacto e abranger
maximamente o espaço (“spans the space maximally”). Em termos mais genéricos,
64
seria, nos critérios da teoria dos grupos, o subconjunto ótimo do espaço C12. Carterette.
& Kendall (op. cit) comentam a descoberta de Balzano assim:
Balzano concludes that these three isomorphic representations of C12 “bear striking parallels to
the melodic, harmonic, and key relations as exhibited in tonal music, and the diatonic scale is
revealed as a special subset of C12 that is in fact the simple embodiment of the abstract relations
given in two of the three representations.” (p. 83). These representations are purely
mathematical with no assumptions about ratios, albeit with some compelling interpretations for
our classical 12-tone system. Pythagorean, just- and equal-temperament tuning systems are
heard and composed for in much the same way, yet the tuning systems are all different. Hence,
suggests Balzano, the ratios are not the basic descriptions and may even be inappropriate;
perhaps all along, group-theoretic properties were the more perceptually important. He hastens
to add that without ratios “we would have never discovered and refined the 12-fold system.
But let us not confuse historical importance with perceptual importance.” [grifos
acrescentados]
Com a ressalva de que Balzano, diferentemente do que é feito no presente
estudo, toma como ponto de partida, como ‘dado’, exatamente uma ‘figura’ regular,
isotrópica (C12 é o conjunto cíclico de 12 intervalos iguais), deve-se admitir que o fato
em si de que é possível, com um método mais geral que a música, justifica um status
especial para a configuração diatônica /GGpGGGp/. Isso corrobora, num sentido
bastante geral, o que tem sido postulado aqui. Por outro lado, não será o caso de
abandonar a hipótese inicial, qual seja, a idéia de que para todas as grandezas
envolvidas na morfogênese das configurações escalares musicais, a não regularidade
deve ser uma condição seminal. Em outras palavras: orientabilidade, a anisotropia,
estará presente em todos os níveis da morfogênese.
Intervalos Até este momento, analisamos algumas propriedades de uma forma dada, ou
seja, a forma diatônica posta como integralmente visível para o sujeito. Vamos passar
agora a uma questão que, em certo sentido, se põe na tradição dos estudos que
procuram descrever o processo que permite ao ouvinte de uma melodia extrair uma
‘tonalidade’ das informações acústicas que vão gradativamente se apresentando. Nosso
objetivo, no entanto, será diferente em alguns aspectos importantes.
65
Em primeiro lugar, não estaremos usando ainda a idéia de tonalidade: como já
foi dito mais acima, só estamos aptos até aqui para falar de um espaço modal. Nesse
sentido, nossa pergunta é: como um sujeito pode fazer presente a forma diatônica a
partir de dados acústicos? Mais precisamente, em que condições o sujeito concretizaria
(realizaria, atualizaria) a forma diatônica com um e somente um conjunto de oito sons
a partir de uma pequena quantidade de sons dados.
Em segundo lugar, não estaremos comprometidos a priori com a completa
solução do problema, qual seja, a completa indução ou inferência de uma forma
diatônica concreta, seja qual for a quantidade de informações necessárias para tanto.
Pelo contrário, estaremos limitados a priori a um número mínimo possível de
informações, a saber, pares de alturas (pares de ‘notas’), com o objetivo de examinar
em cada caso suas propriedades diatônicas. Do ponto de vista da teoria musical padrão,
estaremos retomando a noção de intervalo e, por extensão, abordando questões de
interesse para aquilo que se convencionou chamar de percepção e classificação de
intervalos (v. questão do segmento de reta, figura 1.9, Capítulo I).
Vamos, assim, considerar um observador, conhecedor (i.e. usuário) da forma
diatônica, ao qual serão dados pares de sons que delimitam cada um dos seis intervalos
que classificamos musicalmente como segunda menor (01 semitom), segunda maior (02
semitons), terça menor (03 semitons), terça maior (04 semitons, quarta justa (5
semitons) e quarta aumentada (6 semitons), como abaixo:
2m (1) 2M (2) 3m (3) 3M (4) 4J (5) 4A (6) 7M (11) 7m (10) 6M (9) 6m (8) 5J (7) 5dim(6)
Como é usual, os intervalos listados na linha sombreada são, em princípio, redundantes em relação aos seus correspondentes na mesma coluna, pois segunda menor já implica seu complemento (chamado ‘inversão’) sétima maior e assim por diante. Vale enfatizar o fato de que o dado é constituído de ‘notas’, não de classes de alturas (na segunda acepção) , pois trata-se aqui da pergunta: como um sujeito ao qual é dado um par de notas (sem qualquer outro contexto dado) poderia fazer a passagem de som (sinal acústico) para classe de alturas. Lembremos que, na nossa segunda definição, classe de alturas não se resume a uma generalização em oitavas, mas implica já na percepção da totalidade da forma diatônica e, conseqüentemente, na percepção da classe ( se I ou II etc) a que pertence aquele som5.
5 A rigor, experimentos desse tipo pressupõem que os sinais acústicos sejam sinais complexos, de várias oitavas, dentro de um envelope de amplitudes desenhado segundo dados da psicoacústica experimental. Esses sinais mascaram a ‘sensação de altura’ e efetivamente produzem o efeito de uma ‘classe de alturas’ na primeira acepção. Ver http://www.noah.org/science/audio_paradox/ para implementação em software (MIT) dos efeitos paradoxais estudados por Risset, J.C e Shepard, R N.
66
Não percamos de vista também o fato de que, nos termos da nossa metáfora
heptagonal, o desafio posto ao sujeito é, em princípio, ‘como desenhar em torno deste
segmento de reta dado (o intervalo) um heptágono diatônico de tal forma a fazer
coincidir as extremidades desse segmento com dois vértices do heptágono?’.
Vamos então descrever o experimento hipotético, que se inicia com os dados
segunda menor (2m) e segunda maior (2M). Veremos isso com auxílio de figuras
(nesses dois casos, temos exatamente o contraste primitivo p/G, agora analisados, como
“p” e “G”, nos termos da própria forma diatônica).
A segunda menor (Figura 2.26) ocorre duas vezes na forma diatônica.
Figura 2.26
Isso significa que o ouvinte tem duas alternativas (que poderíamos comparar
com as sete alternativas, caso o dado fosse um som apenas). Ou o ouvinte estará
percebendo esse intervalo ou como VII-I ou como III-IV. Se supomos que o dado foi
‘sí’ – ‘dó’ as respostas possíveis — não se trata de probabilidade —, que só deverão
ser cantadas pelo sujeito (ao qual naturalmente não são informados os ‘nomes das
notas’) serão dois conjuntos de sete sons que nós, numa perspectiva tonal, saberemos
pertencer ou à escala de Dó Maior ou à de Sol Maior. Ou seja, o problema aqui tem
duas soluções (dentro de sete) que satisfazem à condição de servir de contexto diatônico
para os sons dados. Isto implica também em que a sétima complementar seja
presumida, no primeiro caso, como \GGpGGG\ e, no segundo caso, como \GGGpGG\.
Como um parêntesis, é oportuno salientar que a pedagogia dos intervalos não leva em
conta o fato de que não existe, para a percepção diatônica, algo como o intervalo de
sétima maior, mas ou este \GGpGGG\ ou aquele \GGGpGG\ intervalo de sétima maior,
o que não impede que um deles seja inconscientemente eleito como ‘típico’ (esse
parece ser o caso na maioria das vezes. Voltaremos a isto mais abaixo).
SI
DÓ
SI
DÓ
SOL
67
A segunda (Figura 2.27 ) maior ocorre cinco vezes:
Figura 2.27
Se supomos que o dado acústico corresponde a ‘lá’, ‘sí’, os contextos possíveis
são Dó Maior, Sol Maior, Ré Maior, Lá Maior, Mi Maior, ou seja, temos aqui cinco
(dentro de sete) maneiras de contextualizar diatonicamente o dado acústico. Mais uma
vez, destaque-se que há cinco diferentes complementos de sétima menor: \pGGpGG\ -
\pGGGpG\ - \GpGGpG\ - \GpGGGp\ - \GGpGGp\ - com as implicações apontadas
acima.
A terça menor (Figura 2.28 ) ocorre quatro vezes:
Figura 2.28
Dados ‘si’ e ‘ré’, os contextos diatônicos possíveis correspondem a Dó Maior,
Sol Maior, Ré Maior, Lá Maior: quatro maneiras de entender diatonicamente o dado
sonoro. No caso da terça menor, há uma peculiaridade. Ou seja, suas estruturas internas
se classificam em dois grupos. Acima à esquerda estão as terças de estrutura \pG\ e, à
direita, as de estrutura \Gp\. Poderíamos dizer que as terças menores são ‘em si
mesmas’, ambíguas duas a duas.
Evidentemente (Figura 2.29), tais ambigüidades são desfeitas com a necessária
entrada em cena dos seus complementos.
LÁ
LÁ
SI DÓ
LÁ
LÁ
LÁ SI
SI SI
SI
SOL RÉ MI
RÉ
RÉ
SI
SI
SI
SI
RÉ
RÉ
SOL DÓ LÁ
68
Figura 2.29
• Com a primeira disjunção obtemos: (DóM e Sol M) ou (RéM e Lá M) • Com a segunda disjunção obtemos: ou Dó M ou Sol M ou Ré M ou Lá M
A Terça maior (Figura 2.30)permite três soluções: Figura 2.30
Para ‘sol’ – ‘si’ dados, os três contextos possíveis são Dó Maior, Sol Maior, Ré
Maior. Os seus complementos são as três diferentes sextas maiores \pGGpG\ , \pGGGp\
, \GpGGp\, o que garante que as terças maiores, internamente idênticas \GG\, sejam, a
rigor, três diferentes terças, três ‘sabores’ de terça maior.
Passemos agora (Figura 2.31 ) para a quarta justa e seu complemento, a quinta justa:
Figura 2.31
Neste caso, para os dados ‘mi’- ‘lá’ (quarta justa), temos seis soluções: Fá
Maior, Dó Maior, Sol Maior, Ré Maior, Lá Maior, Mi Maior. Como já prevíamos, as
quartas são idênticas duas a duas: \pGG\, \GpG\ e \GGp\ . Em outras palavras, no que se
COMPLEMENTOS \GpGGG\ \GGpGG\ \GGpGG\ \GGGpG\
TERÇAS MENORES \pG\ \Gp\
Terça menor (3 semitons)
SOLSOL
SOL
SI
SI
SI
DÓ RÉ
DÓ RÉ SOL MI
MI
MI
MI
MI
MI
LÁ
LÁ
LÁ
LÁ
LÁ
LÁ
FÁ
69
refere às suas estruturas internas, só há três ‘sabores’ de quarta justa: o Frígio, o Dórico
e o Jônico. Como já vimos, uma outra alternativa — \pXp\ Bhairav — não pertence, a
rigor, ao domínio diatônico2.
O ouvinte em teste, no entanto, terá à sua disposição (Figura 2.32) os
complementos dessas quartas justas (quintas justas), o que garantirá para esse intervalo
seis ‘sabores’ diferenciados. Figura 2.32
• Com a 1ª disjunção o ouvinte tem as hipóteses (Fá e Dó) ou (Sol e Ré) ou (Lá e Mi) • Com a 2ª disjunção o ouvinte tem as hipóteses ou Fá ou Dó ou Sol ou Ré ou Lá ou Mi
Desnecessário lembrar que os nomes de notas e tonalidades usadas aqui são meramente
um expediente didático que aproxima o discurso de nós, tonais. Na verdade a tarefa do ouvinte
não é atribuir uma tonalidade, mas tão somente ‘reconstruir’ a forma diatônica a partir de dois
sons e, assim, fazer a passagem de sons para classes de alturas. Na linguagem geométrica,
como vimos, a pergunta feita pelo ouvinte é ‘onde – em que posição angular está a figura
heptagonal de tal forma que eu possa encaixar esta reta (esse intervalo) em dois de seus
vértices?’
Devemos observar que a expressão intervalo deixa de se referir a uma razão
entre duas freqüências e passa a designar um complexo perceptual constituído de dois
sub-espaços diatônicos complementares.
Assim, para uma mesma razão de freqüências ≅1,05946 [K1] (semitom, segunda
menor) temos dois complexos perceptuais (intervalos) distintos: p\GGpGGG (VII-I) e
p\GGGpGG (III-IV). Da mesma forma, para a razão ≅1,26 [K4] (terça maior), temos
três intervalos perceptualmente distintos: GG\pGGpG (V-VII), GG\pGGGp (I-III) e
GG\GpGGp; — e assim por diante para as demais razões de freqüências. Como vemos
na figura abaixo, temos até agora vinte diferentes complexos perceptuais (intervalos),
\pGG\ \GpG\ \GGp\
\pGGG\ \GpGG\ \GpGG\ \GGpG\ \GGpG\ \GGGp\
Quarta (5 semitons)
70
vinte diferentes ‘sabores’ (Figura 2.33 ). Isto decorre de um fato de importância
fundamental aqui, qual seja, o fato de estarmos usando, tanto para a definição de Grau
de Escala quanto para Intervalo, uma mesma ‘metalinguagem’.
Figura 2.33
VÉRTICES (01) VII-I (02) III-IV 1 2m p p 11 7M GGpGGG GGGpGG VÉRTICES (03) V-VII (04) I-III (05) IV-VI4 3M GG GG GG 8 6m pGGpG pGGGp GpGGp VÉRTICES (06) VII-II (07) III-V (08) VI-I (09) II-IV 3 3m pG pG Gp Gp 9 6M GpGGG GGpGG GGpGG GGGpG VÉRTICES (10) VI-VII (11) II-III (12) V-VI (13) I-II (14) IV-V 2 2M G G G G G 10 7m pGGpGG pGGGpG GpGGpG GpGGGp GGpGGp VÉRTICES (15) VII-III (16) III-VI (17) VI-II (18) II-V (19) V-I (20) I-IV5 4J pGG pGG GpG GpG GGp GGp 7 5J pGGG GpGG GpGG GGpG GGpG GGGp
Voltando aqui ao nosso parêntesis pedagógico, devemos concluir que toda
pedagogia do intervalo, mesmo aquela que se diz ‘atonal’, se resolve em última
instância na percepção de Graus (e, conseqüentemente, na percepção do todo diatônico).
Na situação de treinamento auditivo (ear training) fora de contexto tonal, em que o
aluno é perguntado ‘que intervalo é este’, o aluno responderá com base em seu
‘intervalo típico’, i.e., um dos complexos perceptuais diatônicos que correspondem
àquele intervalo nominal. No entanto, se o intervalo-teste é apresentado em contexto
tonal, i.e., como um recorte (duas notas) de uma melodia tonal, nós já podemos prever
que haverá eventualmente um conflito entre o ‘intervalo típico’ e o intervalo dado (NB.
neste caso, trata-se de um complexo diatônico específico dado). Em outras palavras: um
conflito entre um ‘sabor’ A e outro ‘sabor’ B. E isto é consistente com as pesquisas
experimentais em percepção de intervalos. Burns (1999), após ampla revisão das
pesquisas experimentais no campo da percepção de intervalos, declara:
2 SEGUNDAS MENORES
3 TERÇAS MAIORES
4 TERÇAS MENORES
5 SEGUNDAS MAIORES
6 QUARTAS JUSTAS
71
Among the obvious questions regarding perception of tuning in a musical context is whether this
recognition of diatonic structure also affects the accuracy with which intervals are recognized
and discriminated.
Não é surpreendente constatar que os experimentos em contexto musical
descritos por Burns mostram que, sim, o reconhecimento da estrutura diatônica afeta a
capacidade de reconhecimento de intervalos, e afeta negativamente. O mesmo autor
narra um caso (“one of the most intriguing cases of context effect”) em que um
competente músico vietnamita teve um desempenho medíocre na identificação de
intervalos isolados (extraídos da escala que o próprio músico acabara de mostrar no
instrumento muito bem afinado por ele mesmo).
Do ponto de vista adotado aqui, é relevante lembrar que, obviamente, esse
músico não fora treinado no letramento musical do gênero ‘ear training’, i.e., não tinha
um ‘intervalo típico’ preparado exatamente para sair-se bem em tais testes. No entanto,
seu desempenho melhorou substancialmente quando, antes de ouvir o intervalo-teste,
foi estimulado a “contemplate the sentiment associated with a particular scale” e, só
então, perguntado o quanto intervalos-teste ‘ficavam bem’ naquela escala (“how well
isolated intervals fit that scale”).
Neste caso, houve correlação positiva entre a presença de uma forma escalar e a
identificação de intervalos, pois, a rigor, não se tratava mais de ‘identificar intervalos’,
mas de julgar ‘sabores’ ou complexos perceptuais. Cabe, de nossa parte, apenas
observar que não precisaríamos projetar essa ‘intrigante não-competência’ num músico
vietnamita, pois essa situação se reproduz no dia-a-dia do treinamento musical
ocidental, com a diferença que nossos alunos nunca são instados a “contemplate the
sentiment associated with a particular scale”, e os erros são computados na lista das
‘incompetências’, a serem corrigidas com ‘treinamento auditivo intervalar’.
Um outro conceito que emerge da tabela mais acima é o de diferença de
potencial. Se nos perguntamos o que há de comum às diferentes segundas menores, ou
às diferentes segundas maiores, e assim por diante, veremos, na primeira coluna, os
números 1\11 (para 2m), 2\10 (para 2M), etc. Obviamente, esses números expressam em
semitons, o ‘tamanho’ do intervalo nominal (p.ex. 2m, 1) e de seu complemento ( 7M,
11). Naturalmente a soma dos dois tamanhos resultará no módulo de oitava, i.e., 12.
72
Assim, a expressão genérica do intervalos nominais será 2m = 1\11; 2M = 2\10 ..... 4J=
5\7. No entanto, o que nos interessará é o que todas essas expressões têm em comum, ou
seja Pn < Pc , que se lê: a potência do intervalo nominal é menor que a potência de seu
complemento. Nos termos de nossa metáfora espacial, podemos generalizar essa
expressão como Pe ≠ Pd , ou seja, a potência do sub-espaço diatônico à esquerda é
necessariamente diferente da potência do sub-espaço diatônico à direita.
Desta forma, absorvemos para nosso interesse específico o princípio perceptual
da teoria Gestalt que trata da diferença figura x fundo (nos nossos termos, intervalo
nominal x complemento, respectivamente). Assim, nossa definição de intervalo
expressa mais acima deve incorporar esse aspecto, ou seja, um intervalo é um
complexo perceptual constituído de dois sub-espaços diatônicos de potências diferentes.
Já vimos que os diversos intervalos variam na dimensão da menor ou maior
indeterminação, o que pode ser diretamente expresso pelo número de ocorrências na escala
subtraído de 1 (ver mais abaixo), ou seja, desde 1 (menor indeterminação, 2m, duas
ocorrências) a 5 (maior indeterminação, 4J, seis ocorrências).
Vimos também que as soluções possíveis (não mais ou menos prováveis, pois
essa seria uma outra investigação, no campo da psicologia experimental) se distribuem
em um arco de quintas. Um arco de 6 quintas, não um círculo de 12 quintas. De
maneira a desvincular essas operações de nomes de notas e tonalidades, como fizemos
provisoriamente mais acima, podemos sintetizar os resultados obtidos até agora nos
desenhos abaixo (Figura 2.34), ordenados desde a segunda menor, que é o intervalo que
propicia as melhores condições para a ‘reconstituição’ do espaço diatônico (maior
restrição do campo: 1 grau), até a quarta justa, que proporciona as piores condições
(menor restrição do campo: 5 graus). Figura 2.34
2m [1] 3M [2] 3m [3] 2M [4 ] 4 J [5]
73
Quanto ao problema proposto, vemos que nenhum dos intervalos dados limita
o sujeito a ‘cantar’ como resposta um e somente um conjunto de sete sons que instancie
a forma diatônica. Há sempre uma indeterminação desde “1”, i.e., dois diferentes
conjuntos de sete sons, até “5”, i.e., seis diferentes conjuntos de sete sons.
Resta examinar a quarta aumentada. Nesse caso, se pensarmos em uma simples
continuação ou extrapolação da série que obtivemos até agora, na qual há de fato uma
relação direta entre o número de ocorrências de um par de sons e seu grau de
indeterminação, pensaremos ter chegado ao intervalo que tem as condições ótimas para
a ‘reconstituição’ da forma diatônica. A saber, se 4A/5dim ocorre apenas uma vez,
teríamos enfim a indeterminação de grau zero (1 – 1 = 0). No entanto, devemos
observar que, também quanto à propriedade em questão, o complexo perceptual ‘quarta
aumentada/quinta diminuta’ se distingue dos demais. Vejamos:
Há apenas uma quarta aumentada (Figura 2.35) no heptágono diatônico:
Figura 2.35
Em nosso hipotético experimento, é dado o par que ‘sons’ (freqüências) de razão
≅1,414 [K6]. Que sejam os sons que chamaríamos de fá e si. Nosso sujeito ouvinte
poderá perceber ‘fá’ como vértice IV e ‘si’ como vértice VII. Nesse caso, cantará como
resposta os sons com freqüências convencionalmente fixadas a ‘dó, ré, mi, fá, sol, lá, si,
(dó), onde ‘fá’ tem o sabor pGGp•GGG (IV) e ‘si’ o sabor GGG•pGGp (VII)
No entanto, a resposta poderá também ser ‘fá#, sol# lá#, si, dó#, ré# mi# (fá#)
[ou o equivalente enarmônico], o que significa que o ouvinte atribuiu a ‘si’ o sabor
pGGp•GGG (IV) e a ‘mi#’ (fá) o sabor GGG•pGGp (VII).
Manifesta-se aí, no campo empírico, concreto, aquilo que já havíamos previsto
formalmente. Ou seja, o paradoxal espelhamento formal entre as classes IV e VII.
74
Nos termos da metáfora espacial (Figura 2.36), podemos analisar tal situação da
seguinte forma:
Figura 2.36
Em α e β, em razão das propriedades a que aludimos mais acima, os sub-espaços
não apresentam diferença de potencial Pe ≠ Pd, mas uma equipotência Pe = Pd ou \6\ ↔
\6\. Em tais circunstâncias, os sub-espaços \GGG\ e \pGGp\ poderão ser projetados ora
à esquerda, ora à direita do sujeito (corpóreo) postado no solo do espaço diatônico. Em
α, como indica a seta, o observador verá o vértice indicado como VII, tendo IV às suas
costas e terá o intervalo (complexo perceptual) GGG\pGGp. Em β, dá-se o inverso: IV
está à frente e VII às costas, donde resulta o complexo perceptual pGGp\GGG. Ora, nos
termos de nossa metáfora, esse instantâneo giro de 180º do espaço constitui uma
anomalia de fundamentos, pois, na normalidade, uma vez postado no solo, o sujeito gira
junto com o espaço. Do ponto de vista fenomenológico, a anomalia que ocorre nesta
instantânea ‘troca de sinais’ corresponde à perda de contato com o solo (perda de solo,
no jargão aeronáutico). Ou seja, trata-se de uma perda de referenciais de espaço que é
introjetada; a des-orientação, a vertigem.
Do ponto de vista da teoria Gestalt, o que se passa é análogo à conhecida
‘armadilha’ perceptiva/cognitiva mostrada em ψ. Ou seja, como as imagens α e β têm
a mesma ‘potência’, seja como figura, seja como fundo, a síntese de ambas é análoga ao
‘cubo’ representado por arestas no centro de ψ. Nenhum dado intrínseco ao conjunto de
arestas determinará uma estabilização do cubo ‘descendo desde esta página para nossa
esquerda’ ou do cubo ‘subindo para nossa direita’. É sabido que nós tenderemos a ver
VII IV
β γ
ψ
ω
α
75
ou a solução da esquerda ou a solução da direita, que passam a ser, ou uma (1), ou outra
(2), a imagem estável. No entanto, a síntese representada pelas arestas explicita a
existência, ainda que instável, de um momento de indefinição, de vertigem, em que
coexistem, em conflito, (1) e (2). O análogo musical pode ser experimentado com as
cadências G7 C e C#7 F# (ambas V7 I). [mas ver Necker’s Cube, in Kelso
1999 : 218].
Em γ (Figura 2.37) vemos a mesma superposição de α e β nos termos de uma
simultaneidade (soma) de conjuntos, como abaixo: Figura 2.37 α { 0 I 2 II 4 III 5 IV 7 V 9 VI 11 VII }
β { 1 V 3 VI 5 VII 6 I 8 II 10 III 11 IV }
γ { 0 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 }
Em α ou β, cada um os vértices é percebido como uma diferente classe da
hiper-classe /GGpGGGp/. No entanto, em α e β, ou seja, em γ, não há 12 classes, na
medida em que, na ausência de valores posicionais intrínsecos a γ — um polígono
regular de 12 lados — cessa toda a estruturalidade, tal como a temos definido aqui.
A intercessão α ∩ β, ou seja, 5 e 11 — as ‘notas’ dadas em nosso experimento
— instanciam aqui, num certo sentido, uma invariante. No caso do domínio das escalas
diatônicas3 X>G>p indianas, como analisamos mais acima, parece ser exatamente a
partir dessa invariante, desse espaço unidimensional, ‘implodido’, que se processa a
morfogênese, as diferentes ‘inflações’ que vêm a ser as formas Kalyan, Marva, Purvi,
Todi e A7.
Por outro lado, nos termos mesmo do processo de serialização das alturas a que
já nos referimos mais acima, a situação representada em γ é, na Europa, apenas um
fugaz ponto de passagem para ω, onde se dá o apagamento de qualquer esquema
interpretativo primário de natureza musical-diatônica (ou, de maneira mais genérica,
musical-discreta). Dessa passagem para ω decorre o radical desnudamento estrutural
do trítono — que, não nos esqueçamos, é – tal desnudamento - em última instância uma
das propriedades da forma diatônica. Não há mais aí uma quarta aumentada ou quinta
diminuta, e tampouco “trítono”. A rigor, do ponto de vista perceptual, não há aí mais
“intervalo”, e deixa de ter sentido falarmos de relação 1,414 entre freqüências; e mesmo
a expressão “alturas” deixa de ter um sentido específico. O que resta é um timbre, uma
76
qualidade. Ou seja, um Som (acentue-se “som”, não o “um”) naquele instante lógico em
que se apresenta, em termos peirceanos, como primeiridade.
É forçoso, por outro lado, concluir que a relação dos vértices IV / VII — que ao
longo de nossa análise até aqui já vimos como terminais, Lídio – Lócrio, pontos de
escape para um diferente domínio diatônico (diatônico3 - Índia) ou processos de
modulação (Europa) — , essa relação apenas ganha agora mais uma propriedade, que,
não obstante, não foge à regra geral de ser algo como uma interface.
Como vimos ao examinar as propriedades dos intervalos, o trítono é em certo
sentido o intervalo que apresenta simultaneamente a mínima (índice zero) e a máxima
indeterminação (que, como acima, tende ao infinito); é o intervalo que mais limita,
restringe, ou seja, ‘constrói’ um campo modal, ao mesmo tempo em que acarreta sua
‘destruição’.
Nesse sentido, se entendemos “música” aqui como música-diatônica, podemos
dizer que o trítono – TR - opera tanto como ponto de escape desde o domínio Música –
M - para o domínio Som - S, quanto o inverso, desde Som a Música. Ou M TR
S. Assim, os conceitos Som e Música jamais se confundem, mas, nas condições
demonstradas aqui, será verdadeira (mas suficiente?) a afirmação de que a música vem
do som e volta ao som.
Não é demasiado acrescentar aqui que o anátema já uma vez lançado ao trítono
não era um anátema estritamente musical, mas uma condenação do paradoxo, da
vertigem, da corporalidade e sensualidade (e das coisas ‘orientais’ em geral). O recalque
do trítono, no entanto, não tardou a emergir no uso preferencial do ‘modus lascivus’,
que veremos no próximo capítulo.
77
Capítulo III
Modal / Tonal
Encerramento vs. encerramento
Vimos como a forma diatônica, que de início nos permitíamos associar
genericamente à expressão espaço tonal, revelou-se como uma forma a qual devíamos
chamar, mais rigorosamente, de Espaço Modal. Ou seja, um sistema no qual as
diferenças correspondem a diferentes leituras, ‘modalizações’ da invariante
/GGpGGGp/.
Num sistema musical modal cabe ao usuário do sistema a escolha de uma dentre
sete classes (ou potencialmente sete classes), como ‘ponto de corte’ da estrutura cíclica
invariante.
Como sabemos, numa melodia modal, tal escolha pode ser facilmente
identificada, pelo leitor da música escrita, na última nota da melodia, chamada finalis.
Esta é a orientação padrão que recebemos no que se refere à identificação do modo em
que se baseia um cantus planus ou cantochão.
“How to identify the mode of a piece of music. In order to discover in what mode a piece of
plain song lies, look first at its last note, which is the Final of the mode.”(Scholes, P. 1975; Modes,
9).
Evidentemente, esse ‘método’ visual de identificação do modo em que está uma
melodia não tem em princípio qualquer relação com nosso interesse central aqui, qual
seja, a percepção musical. Por outro lado, ilustra muito bem a idéia trivial de que a
escuta musical ocidental moderna sente dificuldade em perceber ou aceitar que ali, com
aquela nota, a música termina.
A questão, no entanto, não é tão simples. Dessa alegada ‘dificuldade do ouvido
moderno’ não se deve concluir que havia uma clareza ou ‘facilidade’ para uma escuta
modal no que se refere a ‘perceber um fim’. O mal-entendido que pode se estabelecer
aí é de ordem conceitual. Decorre de projetar no modal aquilo que é específico do tonal.
Há uma diferença importante, no que se refere à função, no discurso musical, entre
finalis e aquilo que percebemos como Fim no tonal.
78
No modal, se tentamos perceber o término da música na finalis, constatamos que
esse término é musicalmente factual. Como sabemos, uma fórmula melódica
cadencial, ou seja, um pequeno gesto ou ‘movimento’ convencional descrito por um
determinado contorno de alturas, poderá sinalizar um término. Mas de uma maneira
geral, tudo ali, no plano musical, tem a espessura mais fina do ícone.
O componente verbal de um canto gregoriano, antes mesmo que o componente
musical, determinará o ‘término da mensagem’. Dessa forma, nada restará àquele
último som, finalis, da tarefa de sinalizar esse fim. Face aos elementos obrigatórios —
i.e., a ‘mensagem’ verbal e seu paralelo musical (paródia: gr. para + ode ) — a finalis
vem a ser o elemento variável, ou seja, é uma escolha de um vértice entre diversos
outros que poderão assumir a mesma ‘função’. E se, em tese, qualquer vértice pode ser
‘a última nota’, o significado fim não estará associado a nenhum deles em particular.
Por outro lado, se a finalis não sinaliza término, no sentido temporal, não deixa de
operar um fechamento, um encerramento. E esse encerramento – já na acepção de
abarcar e conter - se refere a um ‘fechamento’ específico da figura diatônica, que
informa: neste vértice foi cortada a forma cíclica /GGpGGGp/; a forma diatônica foi
percebida assim, deste modo. A finalis, portanto, não está ali para produzir um ‘fim’,
mas para produzir ou revelar um ‘sabor’ peculiar, um ethos, um modo que tem como
escopo a melodia inteira, não somente este ponto da melodia. Mais ainda, essa
modalização, que incide sobre a invariante /GGpGGGp/, tem como alvo último o texto
litúrgico - tem como função modalizar A Palavra, que, assim, modalizará com mais
eficácia o espírito dos homens.
Na música tonal, como sabemos, não há essa escolha da finalis. Isto significa,
num sentido muito geral, que não há modalização na acepção tradicional que essa
expressão tem no campo da lógica e da lingüística, ou seja, “uma atitude tomada pelo
sujeito falante” (Todorov & Ducrot, 1972) a respeito de uma invariante. Naturalmente,
no domínio lingüístico-verbal, essa invariante seria o dictum (ibid), ao passo que aqui
nos referimos a algo mais abstrato, genérico e formal, qual seja, a forma diatônica
/GGpGGGp/.
Se nos atemos à questão das alturas, podemos dizer que a razão de não haver tal
modalização no tonal é que a ‘escolha’ da finalis deixa de ser, em última instância, uma
marca de um sujeito ‘falante’ individual, e passa para a esfera da invariante (do dictum,
por assim dizer). Mas já podemos prever que isso se dá ao preço de uma mudança
79
profunda, pois, no trânsito entre o modal e o tonal, entre finalis e Fim, transitamos entre
modus e tempus.
Do átono ao tônico
Dadas tais considerações gerais, podemos voltar ao nosso objeto mais
específico. Nesse sentido, a questão que se põe aqui é: se podemos descrever o
espaço modal como o conjunto de propriedades da forma diatônica, até que ponto
poderemos derivar de tais propriedades aquilo que chamamos de tonal? Posto de
forma mais imediata, importa saber se, mantidos basicamente os procedimentos
adotados até agora, é possível explicitar formalmente uma situação tal que um do
sete vértices passe a ter função de ponto focal privilegiado, e não apenas
privilegiado, mas como que assimilado à própria invariante /GGpGGGp/.
Até aqui, as propriedades da forma diatônica foram explicitadas formalmente a
partir do que chamamos de ‘leituras’ da forma. Na nossa metáfora, essas leituras
traduzem um objetivo do sujeito-corpóreo (ao qual são intrínsecas as noções
direita/esquerda). Esse objetivo é, num sentido geral, o de orientar-se no espaço
heptagonal que já conhecemos.
O avanço que faremos agora afetará exatamente a definição desse objetivo.
Em princípio, não se tratará de uma mudança substantiva, mas de uma mudança de
grau. Ou seja, não se tratará mais apenas de ‘orientar-se’, mas de orientar-se de
maneira econômica, a partir de estratégias ótimas, ou ‘otimizadas’ de leitura.
Poderíamos estar tentados a justificar a entrada em cena dessa nova estratégia
de leitura alegando que a busca de resultados máximos a partir de procedimentos
mínimos é um universal do comportamento humano. Para nossa argumentação, no
entanto, bastará que admitamos que esse traço se faz presente de forma acentuada no
lugar e tempo históricos em que se dá a passagem do modalismo para o tonalismo
musicais, ou seja, na Europa desde finais do medieval ao início do que podemos
chamar em sentido amplo de modernidade. É dentro desse amplo painel de fundo que
podemos associar a mudança modal-tonal a uma mudança de estado do sujeito.
Esse ‘painel de fundo’ pode em boa medida ser entendido historicamente na
perspectiva, por exemplo, de Max Weber. Podemos pensar aqui no seu texto mais
80
especificamente musical, Fundamentos Racionais e Sociológicos da Música (Weber,
1911), em que o autor trata pormenorizadamente de questões como:
Em que consiste então, nos primeiros estágios da racionalização melódica (..........) o significado
destas seqüências de sons; e onde se manifestava, no sentir musical de então [o autor refere-se aqui da
história da música em torno do século dezesseis], aquilo que na época corresponde à nossa tonalidade?
(op. cit, p. 89)
Para responder a essa questão, Weber presume que “[E]sta racionalização
poderia se realizar de maneira inteiramente extramusical, e em parte assim o foi” (ibid. :
127) . Em outra palavras, Weber estará sempre se reportando a alguma “alteração
racionalista extramusical do sistema sonoro” (ibid: 129). O autor dirá ainda que, “a ratio
tonal (......) atua por toda parte, ainda que de modo indireto e por detrás dos bastidores”
(ibid: 134).
Será, como veremos mais adiante, interessante anotar aqui que Weber, embora
não se aprofunde na questão, dirá também que: “[I]nteressa-nos assinalar que esse
desenvolvimento foi condicionado por problemas muito específicos da polifonia, que se
situam no terreno da rítmica” (itálico do autor) (ibid.: 122).
Cabe, por outro lado, enfatizar aqui que não estamos adotando in totun um
quadro conceitual weberiano, seja por não estarmos aqui necessariamente fazendo a
conexão Capitalismo – Ética Protestante, seja porque Weber, no final das contas, adota
a axiologia teórico-musical altura/duração. Podemos, assim, retomar nossa
argumentação nos termos das estratégias ótimas, ou ‘otimizadas’ de leitura.
No modal, o sujeito não sofre constrangimentos musicais no sentido de escolher
este ou aquele vértice como ponto de corte preferencial da forma diatônica. Posto de
outra forma, esse modo ‘solto’ de leitura pressupõe um estado não-tensivo do sujeito,
um estado que não o impulsiona em direção a estratégias de leitura que gerassem uma
verdadeira hierarquização entre os vértices do heptágono. Nesse sentido, o termo
“plagal”, costumeiramente aplicado a um tipo de cadência (mesmo da música tonal) ou
a certos ‘modos’ (de prefixo “hipo-”), poderá ser aplicado à musica modal como um
todo: uma música plagal, no sentido mesmo de “plaga”, i.e., extensão de terra, de
“chão” e “plano”, como no cantochão, cantus planus. Uma música não-tensa, extensiva,
81
não-tensiva, à qual corresponte um estado-de-sujeito ‘plagal’, nas acepções que
acabamos de ver.
Em contraste, o tonal se associa a tónos (gr.), tonus (lat.), nas acepções que
podem recobrir desde ‘peso’ (cf. tonelada), intensidade, a teso, tenso, tensivo; à
música que não é ‘átona’, como a modal, mas tônica. Associa-se, da mesma forma, a um
estado-de-sujeito tenso, tensivo. E é exatamente a esse estado tensivo que corresponderá
uma nova e mais ‘intensa’ estratégia de leitura da forma diatônica. A nova leitura não
apagará a leitura modal, mas irá se sobrepor a ela. Assim, o que teremos será uma
sobredeterminação, que irá gerar não apenas a orientação no espaço diatônico (já
garantida na leitura modal) mas também uma hierarquização fixa dos vértices e, por
fim, a explicitação de um e somente um ponto de corte preferencial.
Reduzindo o escopo da busca
É preciso, no entanto, considerar que já explicitamos, no modal, algumas
propriedades que caminham na direção geral indicada acima. Como já vimos, dentre as
características mais salientes do espaço modal, está exatamente uma clara
hierarquização, ou proto-hierarquização, se assim quisermos.
Num extremo, vimos que os vértices hipercardinais — I (Jônico), II (Dórico) e
III (Frigio) se impõem do ponto de vista estrutural, i.e., pela posição privilegiada na
rede de parentescos. E esse fato é corroborado sob vários aspectos, a saber:
(a) O critério a que chamamos de ‘ergonômico’, expresso nos tetracordes
elementares da lira grega, que resulta nos três modos a que chamamos de
homogêneos.
(b) A consistente associação de ethos polares, de um lado ao I (Jônico) e de
outro ao III (Frígio), ou seja, se associações com ‘valores positivos’ são
estabelecidas com o III (Frigio) [Dórico, no original grego], então o I
(Jônico) [Lídio, no original grego] estará no campo dos ‘valores negativos’,
ou vice-versa, como no experimento de Hill & Kamanetsky & Trehub 1996
(mais acima).
(c) A relação de homologia entre as posições privilegiadas das vogais cardinais
/a/, /i/, /u/ num espaço acústico-articulatório e os vértices hipercardinais.
82
Isto significa que temos em ‘dó’, ‘ré’ e ‘mi’ três fortes candidatos a ponto de
corte preferencial num sistema tonal, ou, mais rigorosamente, candidatos a serem
assimilados à invariante, nos termos definidos aqui.
Num outro extremo, ou seja, o dos vértices ‘marginais’, terminais, vimos — em
especial ao examinarmos os chamados intervalos — como a relação IV / VII se
apresenta, embora de maneira radicalmente instável, como elemento crucial na
percepção da forma diatônica2 , e mesmo como uma espécie de ‘singularidade’ para a
morfogênese das escalas do domínio diatônico3, onde deixam de ser pertinentes
quaisquer ‘modalizações’ (sendo, portanto, um sistema iminentemente ‘tonal’, em
sentido amplo).
Diante desses dados, elaboraremos a hipótese de que a busca do tonal tenderá
para a Classe constituída das Classes Hipercardinais e Terminais, ou seja, o sub-espaço
diatônico delimitado por VII: I-II-III : IV (si-dó-ré-mi-fá) /pGGp/, destacado abaixo (
Figura 3.1 - área sombreada).
Figura 3.1
Leituras tensas
As leituras que já fizemos abarcavam, num ou noutro sentido, a totalidade da
forma diatônica (leituras não tensas). Ou seja, as leituras 3•4 e 4•3 abarcam os sete
lados do polígono e a leitura 3•3 necessariamente abarca os seus sete vértices.
Verificamos que quaisquer dessas três leituras permitem a completa e inequívoca
individuação de cada vértice ou modo da forma diatônica. O experimento agora trata de
saber como a seleção de porções menores da figura (leituras tensas) se refletirá na
individuação dos vértices e nos parentescos entre eles. Consideraremos porções
menores da figura como conjuntos de elementos contíguos, adjacentes. Em outras
palavras (Figura 3.2) , se as leituras 3•4 e 4•3 pressupunham um arco de visão de 360º
, e a leitura 3•3 um arco que variava entre 300º e 330º, agora com as novas leituras
estaremos fechando o arco de visão.
83
Figura 3.2
Haverá, possivelmente, inúmeros modos tensos de leitura que produziriam
resultados interessantes para uma passagem modal-tonal. Nós, externos à figura e que já
conhecemos os resultados a que queremos chegar, teremos dificuldades de mimetizar
com total fidelidade uma busca empírica do sujeito interno à figura. No entanto, será
rigorosamente suficiente neste momento mostrar que há pelo menos um modo de
leitura, uma possível estratégia, que tenha como resultado a explicitação de relações que
possamos reconhecer como pertinentes ao princípio tonal. Outros estudos de maior
refinamento matemático e que lancem mão de teorias gerais de forma, percepção e
cognição poderão, como acredito, propiciar o exame exaustivo das possibilidades aqui
apontadas.
O caminho do apagamento
Como um primeiro movimento exploratório, vamos iniciar com a leitura 2•3.
Ou seja, estamos reduzindo nosso arco de visão para um máximo e mínimo de 270º e
240º, conforme o caso (Figura 3.3). Abaixo ficará claro porque chamarei este
procedimento inicial de ‘caminho do apagamento’.
Figura 3.3
A questão é saber em primeiro lugar se o ‘habitante do heptágono’ terá
condições plenas de orientação, ou seja, de inequívoca identificação de todos os ‘cantos’
60º
300º
30º
330º
120º
240º
90º
270º
84
do espaço heptagonal, com base na leitura (Figura 3.4 ) de dois lados à esquerda e três lados à direita dos vértices.
Figura 3.4
Como vemos acima, a resposta é negativa. Somente cinco dos vértices são
inequivocamente identificáveis. Salta à vista o fato de que, com o ‘apagamento’ de III
(Frígio) e VII (Lócrio), reencontramos a escala pentatônica, a forma inscrita no
heptágono, antes encontrada com o ‘apagamento’ de IV (Lídio) e VII (Lócrio).
Mas o que justifica isto que estamos chamando de apagamento? Do ponto de
vista do processo de percepção, no sentido que estamos usando aqui, devemos antes de
tudo tentar descrever o apagamento com uma linguagem ‘primitiva’, conforme a
proposta metodológica geral deste trabalho.
Assim, diríamos que o sujeito interno à Forma (agora com o campo visual
restrito) irá, num primeiro momento, descartar os vértices equívocos. O que é natural,
pois ele está à procura de cardinais inequívocos, de balizas claras, maximamente
eficientes para seu objetivo de se orientar naquele espaço. Ao selecionar os vértices
inequívocos, construirá o espaço pentagonal que chamamos musicalmente de escala
pentatônica. Ora, isto nos obriga a admitir que os vértices apagados ou cancelados não
deixam de ser ‘visíveis’, não migram para a ‘inexistência’. Apenas são ‘colocados entre
parênteses’.
JÔNICO
DÓRICO
FRÍGIO
EÓLIO
MIXOLÍDIO
LÓCRIO
LÍDIO
JÔNICO G p • G G p DÓRICO p G • G p G FRIGIO G G • p G G LIDIO G p • G G G MIXOLÍDIO p G • G G p EOLIO G G • G p G LOCRIO G G • p G G
85
Uma leitura ‘inversa’ (Figura 3.5), ou seja 3•2, produzirá, sob esse aspecto, um
resultado semelhante, só que desta vez temos o ‘apagamento’ de I (Jônico) e IV (Lídio).
Figura 3.5
Dessa forma, teremos em princípio três maneiras de explicitar o espaço de
cinco vértices (Figura 3.6), ou seja, as duas maneiras que acabamos de ver e aquela que
resulta da rede de parentescos na leitura 3•3, que vimos no capítulo anterior, a saber, A,
B e C.
Figura 3.6
Mas resta saber se estamos diante de um espaço que casualmente pode ser
explicitado de três diferentes maneiras ou se temos em algum sentido três diferentes
escalas pentatônicas.
JÔNICO G G p • G G
DÓRICO G p G • G p
FRIGIO p G G • p G
LIDIO G G p • G G
MIXOLÍDIO G p G • G G
EOLIO p G G • G p
LOCRIO G G G • p G
JÔNICO
DÓRICO
FRÍGIO
EÓLIO
MIXOLÍDIO
LÓCRIO
LÍDIO
I
II
III
VI
V
VII
IV
I
II
III
VI
V
VII
IV
III
I
II
VI
V
VII
IV
A : leitura 2•3. Apagamento de vértices iguais GG•pGG
B : leitura 3•2. Apagamento de vértices iguais GGp•GG
C : leitura 3•3.
Apagamento de vértices
86
Avaliadas como formas pentatônicas autônomas, i.e., não inscritas na forma
heptagonal, concluiríamos necessariamente que A, B e C são idênticas. Elaboraríamos,
assim, a hipótese de estarmos diante de um terceiro domínio de escalas, no sentido que
demos ao termo quando distinguimos um domínio diatônico2 de um domínio
diatônico3.
Provisoriamente, deveríamos representar a forma pentatônica em questão como
/ppGpG/, já que, observando rigorosamente os critérios que temos adotado, um sujeito
interno a esse pentágono veria exatamente isto: um contraste entre ‘lado grande’ e ‘lado
pequeno’. E tal forma teria, com efeito, as características de uma forma auto-orientada,
de uma classe de classes (Figura 3.7), em que cada vértice pode ser inequivocamente
identificado.
Figura 3.7
No entanto, a interpretação acima não corresponde à percepção dessa escala.
Há efetivamente três maneiras distintas de escutar a estrutura intervalar que, com
semitons, representaríamos como /23232/. Vejamos.
A forma A corresponde à escala pentatônica chinesa (passível de cinco leituras
modais, como vimos nos sete modos). Suas cinco notas são, em aproximação com o dó
móvel, fá, sol, lá, dó, ré (fá) ou, kong, chang, kyo, tchi, yu (kong).
Ora, insistiríamos, a sonoridade produzida pela forma intervalar /23232/ não é
exatamente a mesma para os três casos A, B e C ? Ocorre, no entanto, que o sistema
chinês reconhece duas notas pyen (R. Fink, página web, traduz “pyen” para o inglês
como “becoming”- ‘porvir’) pyen-tchi e pyen-kong, que correspondem aos nossos
vértices apagados VII e III (Candé, 1994). Correspondem, em certo sentido, ao que
conhecemos como sensíveis (ingl.: leading note), com a diferença de que não têm
existência autônoma, e somente são ‘atualizadas’ em co-ocorrência com suas notas alvo,
I G p ● p G II p p ● G p III p G ● p G IV G p ● G p V p G ● p p
I
II
III
V
IV
87
i.e., num sintagma [nota pyen + nota alvo]. Em outras palavras, pyen-tchi é uma
maneira de chegar a tchi. Em certo sentido, é um aspecto de tchi, não uma visão do
todo, seja do espaço pentagonal, seja do heptagonal. O mesmo, evidentemente, se aplica
a pyen-kong. A escala A, portanto, é rigorosamente pentatônica, com as notas pyen
tendo uma função que poderíamos aproximar de um cromatismo em que chamaríamos o
‘si’ de algo como ‘dó pyen’ ou ‘pré-dó’ (ou quase dó) e ‘mi’ de ‘fá pyen’ ou ‘pré-fá’
(ou quase fá).
A escala A , cujo desenho repetimos aqui (Figura 3.8), seria constituída das
seguintes cinco categorias, onde as notas pré ou pyen são presenças optativas.
Figura 3.8
1IV 2 V 3 VI 4I 5 II (pré-Fá + Fá) (Sol) (Lá) (pré-dó + dó) (Ré)
Essa escala é, com efeito, apresentada como uma seqüência linear ascendente
de fán a fán+1 (Candé 1994 mostra essa ordenação como o ‘modo’ ou tyao padrão da
pentatônica chinesa, comparando-o ao modo Lídio, sendo os outros quatro ‘modos’
chineses correspondentes a cortes nos outros quatro vértices do pentágono).
De nosso ponto de vista, podemos atribuir a característica ascendente à
movimentação angular ‘para a direita’ imposta pela relação nota pyen nota alvo.
Deve-se observar também que o ponto de corte no ‘modo’ padrão se dá numa das duas
notas-alvo, o que sugere que o mecanismo de corte (a linearização ou ‘melodização’ da
estrutura de classes de altura) é desencadeado preferencialmente nas regiões da estrutura
em que ocorre a configuração nota pyen nota alvo. (Provisoriamente, cabe-nos aqui
apenas aceitar o fato de que, no caso chinês, dá-se preferência ao ponto de corte IV e
não I).
I
II
III
VI
V
VII
IV
88
Mas Candé (op. cit) acrescentará ainda que “[É] interessante notar que
encontramos escalas semelhantes à escala chinesa em outras regiões do globo, em
particular nos países celtas da Grã-Bretanha e na Europa Central; por vezes as notas
pyen são diferentes” (grifo acrescentado). Em hipótese, portanto, podemos ver em A, B
e C três diferentes escalas pentatônicas, na medida em que tenham diferentes notas
pyen. De forma análoga (Figura 3.9), portanto, podemos dizer que a pentatônica B
teria a seguinte constituição:
Figura 3.9 1III 2 II 3 VII 4 VI 5 V (pré-Mi + Mi) (Ré) (pré-Si + Si) (Lá) (Sol)
Neste caso, como pode ser observado na figura, já respeitamos o movimento
‘anti-horário’ indicado pelas setas (o ‘girar para a esquerda’, na perspectiva do sujeito
interno ao espaço). Isso corresponderá a uma melodização descendente. Se, por motivos
já expostos mais acima, descartamos o ‘Si’ como ponto de corte (Lócrio) e tomamos a
outra nota alvo como ponto de corte, obtemos um sabor Frígio (Classe III), cantado ‘de
cima para baixo’, i.e., de Min a Min-1 , como de fato fariam os antigos gregos (chamando
a isto de Dórico).
O exame das formas pentatônicas A e B ( veremos C mais abaixo) já nos
permite afirmar que são diferentes leituras do espaço heptatônico diatônico2 que
explicitam tais escalas; que essas pentatônicas são internas à forma heptatônica. Essas
pentatônicas, portanto, seriam logicamente posteriores e não anteriores à forma
heptatônica, o que traria elementos de interesse para uma discussão sobre a questão de
essas escalas pentatônicas serem ‘primitivas’ ou ‘proto-heptatônicas’ no sentido
histórico, diacrônico ou evolutivo.
III
I
II
VI
V
VII
IV
89
Em que pese não ser nosso objetivo proceder a tal discussão no presente
estudo, cabe registrar que achados arqueológicos sugerem a presença de escalas de sete
notas em datas tão recuadas quanto 1.400 AC, região da atual Síria (canção a duas
partes notada em cuneiforme, cf. Kilmer 1996); 7000 AC, China (flautas em osso em
estado de conservação que permite serem tocadas, cf. Institute of Cultural Relics and
Archaeology of Henan Province, Zhengzhou, China), ou mesmo circa 40.000 AC
(presumida flauta em osso, região da atual Turquia, ainda em estudo; ver Kunej e Turk,
2001)
Cabe ainda registrar que a alegação de existência de escalas pentatônicas não
diatônicas (não contrastivas) ou seja, com divisão da oitava em cinco partes iguais, seria
um contra-argumento forte para o que estamos assumindo aqui, a saber, que a noção
mesma de escala é visceralmente comprometida com a orientabilidade, com a não
regularidade. No entanto, Sandra Trehub (2001) informa que “although the music of
Thailand is thought to be based on an equal-step scale (Meyers-Moro 1993), Morton’s
(1976) comprehensive analysis of the traditional Thai repertoire yelded a pentatonic
scale”. E isto parece poder ser generalizado para quaisquer escalas ‘naturais’ que, num
primeiro momento, se apresentem como ‘polígonos regulares’. Ou se revelarão
irregulares, na linha do que informa S. Trehub, ou não serão exatamente escalas
musicais (nem ‘naturais’, nem ‘artificiais’).
Mantendo ainda o que chamei de caminho do apagamento, vamos reduzir
ainda mais nosso arco de visão (Figura 3.10), para testarmos a leitura 2•2.
Figura 3.10 JÔNICO G p • G G DÓRICO p G • G p FRIGIO G G • p G LIDIO G p • G G MIXOLÍDIO p G • G G EOLIO G G • G p LOCRIO G G • p G
Neste caso, a não diferenciação, i. e., o apagamento, de Jônico-I/Lídio-IV e de
Frígio-III/Lócrio-VII, nos deixa apenas com três vértices inequivocamente
diferenciáveis. Podemos então recuperar o que foi postulado mais acima, ou seja, o
princípio de que, por serem necessariamente vértices, os graus de uma escala deveriam
I
II
III
VI
V
VII
IV
90
ser no mínimo três (desde que mantido o princípio geral diatônico (diferença, auto-
orientabilidade, espaço não isotrópico).
O resultado que temos agora é de uma maneira geral consistente com os dados
da atual etnomusicologia. Bruno Nettl (2001), ao discutir o tema dos universais em
música, declara que: “all societies have some music that uses only three or four pitches,
usually combining major seconds and minor thirds”. Mais adiante, define o que para ele
será “the world’s simplest style” [com aspas no original]. E continua: “it consists of
songs that have a short phrase repeated several or many times, with minor variations,
using three or four pitches within the range of a fifth”.
Se examinarmos (v. Fig. 3.10, acima) o sub-espaço [V – VI - ( VII ou I) – II],
onde ou VII ou I seriam ‘notas pyen’, ou o espelho dessa mesma estrutura [VI – V - ( IV
ou III) – II], podemos construir algumas escalas hipotéticas que se conformam aos
princípios gerais aludidos por Nettl.
Evidentemente, persistirão dúvidas aqui sobre escalas reais de três sons. Uma
das possibilidades aparentes seria a escala constituída dos vértices indicados no
triângulo inscrito no heptágono (II – V – VI). Esses vértices, no entanto, não têm entre
si o máximo contraste que demonstramos com relação aos graus I-II–III
(hipercardinais), que mostram ter homologia com a máxima contrastividade no espaço
vocálico /u/, /i/, /a/ (e registremos, mesmo que en passant, que os hipercardinais
coincidem com a parte superior da ursatz schenkeriana — ).
Por outro lado, o que colhemos de positivo é que mesmo as escalas mínimas,
ou seja, mesmo as escalas implícitas no que Nettl chamou de “the world’s simplest
style”, podem ser vistas como leituras da forma diatônica2 de sete classes.
Pyen versus Pyen.
Podemos agora examinar a pentatônica C (Figura 3.11) , que constitui um caso
mais complexo.
3 2 1
91
Figura 3.11
Em primeiro lugar, essa pentatônica difere das anteriores por resultar de uma
leitura de seis lados do heptágono, que explicita o que chamamos de cinco vértices
cardinais. O apagamento dos vértices IV e VII decorre, tanto quanto no caso dos
vértices pyen nas pentatônicas A e B, do fenômeno geral do equívoco. No entanto,
trata-se agora de um caso único e peculiar de equívoco que, como já vimos mais acima,
pode eventualmente gerar um ‘apagamento’ da Forma como um todo, i.e., aqui as notas
pyen formam o intervalo de trítono. Mas no contexto em que são examinados agora, são
exatamente as ‘notas pyen’, i.e., VII como aspecto de I (pré-I) e IV como aspecto de III
(pré-III), que gerarão uma diferença de potencial — uma diferença que, na nossa
metáfora, seria expressa como Pe < Pd , ou seja, uma propensão, uma orientação, que
fixa à direita o sub-espaço /pGGp/. Vejamos:
Como já sugerido acima, uma avaliação ingênua da sonoridade de C nos
levaria à conclusão de estarmos ouvindo aquilo que genericamente denominamos ‘a
escala pentatônica’. No entanto, todos nós que na infância já brincamos de ‘rolar’ a mão
fechada sobre as teclas pretas do piano — [sustenidos] fá sol lá dó dó / fá sol lá dó dó //
lá sol fá ré ré / lá sol fá ré ré — sabemos e ‘sabíamos’ que estávamos tocando I II III V
V, etc., ou seja, a pentatônica C, pseudo-chinesa, e não outra ( v. tb. variações como a
britânica chopsticks - os pauzinhos chineses).
Por outro lado, representar este pentágono como cinco categorias, como
fizemos com A e B, nos levará a contradições pois, ou temos uma categoria (pré-dó +
Dó), estando implicada aí uma melodização no sentido horário, ou temos a categoria
(pré-mi + Mi), que implica na melodização descendente.
I
II
III
VI
V
VII
IV
92
Uma hipótese plausível é que a solução esteja não na exclusão ‘ou – ou’, mas
na inclusão ‘e – e’. A única forma de fazermos isto (Figura 3.12) é admitirmos duas
melodizações co-ocorrentes.
Figura 3.12 Sol (pré-mi + Mi) Ré (pré-dó + Dó) Lá
.
Assim, vemos que a introdução do conceito de nota pyen corrobora a hipótese
exposta no início deste capítulo, ou seja, a de que a busca do tonal poderia ser dirigida
para o sub-espaço diatônico ‘à direita’ do trítono. Aqui — repetimos: graças à inclusão
do conceito pyen —, podemos acrescentar que o sub-espaço /GGG/ é aberto à direita e o
subespaço /pGGp/ é fechado à esquerda no sentido matemático de intervalo
fechado/aberto. Como na representação linear dos dois sub-espaços (v. figura acima), o
ponto (o trítono, o zero; v. tb zero no Cap. I) limita, mas é externo a, /GGG/, ao passo
que, em virtude de lermos agora o trítono como ‘aspectos’ de I e de III, o mesmo
ponto é interno a /pGGp/. (Num sentido mais familiar aos fatos de percepção,
poderíamos ver aqui em atuação a propriedade de agrupamento por proximidade, que
podemos adotar da teoria Gestalt, e que estaria na base do próprio conceito de nota
pyen).
Desnecessário lembrar que, no presente caso, VII é necessariamente ‘pré I’
(VII I) e IV é necessariamente ‘pré-III (IV III) e não o inverso: (I VII), (III IV).
Isso é garantido pelo fato de que os vértices I e III estão no grupo dos três vértices que
chamamos de hipercardinais. (são, portanto, ‘referenciadores’, atratores e não
‘referenciados’, atraídos ).
Naturalmente, o músico já terá observado que nesse exame da forma C fomos
impulsionados a lançar mão de representações que nos remetem a uma polifonia e, mais
/GGG/ ) [ /pGGp/
93
especificamente, a algo da ordem da harmonia, da cadência, não mais no sentido modal
(icônico, v. mais acima) mas no sentido já tonal. No entanto, o que temos até o
momento não mostra, como queremos, o vértice que terá a função de tônica. Temos,
por outro lado, indicações de que, dentre os três vértices hipercardinais, I e III (não II)
seriam os candidatos mais fortes, se assumimos a hipótese de que os vértices alvo (neste
caso, I e III) tendem a ser vértices focais, pontos de corte.
Podemos também representar essa concorrência entre I e III com duas
melodizações independentes: uma em que optamos pelo sintagma VII I (pré-dó + Dó)
com a decorrente opção por uma movimentação angular ‘para a direita’ (ascendente);
outra em que predomina o sintagma III IV (Mi + pré-mi), que já escrevemos
sugestivamente no sentido inverso, i.e., com uma movimentação ‘para a esquerda’
(descendente).
No primeiro caso, expandiremos o sintagma (Mi + pré-mi) na forma de duas
classes independentes MI e FÁ. No segundo caso, a operação análoga nos dará SI e DÓ
no lugar de (pré-dó + Dó), como abaixo: Figura 3.13
Jônico pré-dó + DÓ RÉ MI FÁ SOL LÁ si dó
(p) G G p G G G p Frígio pré-mi + MI RÉ DÓ SI LÁ SOL fá mi
Com efeito, chagamos aqui à conhecida e intrigante simetria entre os modos, em
especial entre o Jônico (original grego: Lídio) e o Frígio (original grego: Dórico), i.e.,
os modos ‘polares’ tanto na suas posições no conjunto dos hipercardinais quanto na
associação de ethos polarmente opostos (+/- ou -/+). Ou seja, sabemos que ambos
correspondem à forma /(p)GGpGGG/ , conforme sejam movimentados ‘para a direita’
ou ‘para a esquerda’.
Naturalmente, usamos aqui uma notação que incorpora a posição dos
sintagmas pyen+alvo, ou seja “(p)”, o que implicará também na fixação de uma
ordenação linear canônica (que elimina a liberdade de modalização, entendida como
escolha de qualquer ponto de corte).
94
Na nossa metáfora geométrica para tal simetria se expressa da seguinte maneira: Figura 3.14
Naturalmente, com um formalismo mais complexo (análogo à noção física de
spin) poderíamos imaginar que o Frígio é o ‘avesso’ do Jônico bastando que, como na
figura abaixo, o ‘solo’ desse espaço heptagonal deixe de ser esta face desta superfície
que você está vendo agora e passe a ser exatamente o verso desta mesma superfície. O
observador interno ao espaço ‘normal’ inverte apenas a dimensão em cima / em baixo,
carregando consigo as ‘coordenadas horizontais’. Desse modo, se antes da reversão
tinha à sua frente o vértice I, agora tem o vértice III, mantendo, como antes, à sua direita
o subespaço /pGGp/ e à sua esquerda o subespaço /GGG/. E assim ‘ele’ lê, girando para
a direita, /(p)GGpGGG/, ou seja, a mesma leitura do Jônico no espaço ‘normal’. Para
nós, no espaço ‘normal’, o Frígio é o ‘avesso’ do Jônico (ou, noutra acepção de
“avesso”, são avessos um ao outro, polares)
Figura 3.15
O que importará para nossos objetivos é que, trate-se de uma ‘escolha de spin’
ou de uma escolha simples entre ascendente (girar para a direita) e descendente (girar
para a esquerda), já temos elementos para motivar uma escolha entre I e III. Ou seja, se
I
II
III
VI
V
VII
IV
p
G
G
G
G
p I
II
III
VI
V
VII
IV
p
p
G
G
G
G
G
I
II
III
VI
V
VII
IV
III
II
I
V
IV
IV
VII
95
associamos o tonal com a noção de tensividade, temos na melodização intrinsecamente
descendente a partir do sintagma ‘Mi pré-mi’ todas as conotações psíquicas e
somáticas de distensividade, de relaxamento, de não oposição à gravidade,
concordância com o chão, com o plano. Ao contrário, a melodização
intrinsecamente ascendente a partir do sintagma ‘pré-dó Dó se opõe à gravidade,
afasta-se do chão, constrói tonicidade e tensividade. (Para a escuta moderna, o
Frígio é a escala maior ‘com quatro bemóis’, i.e., é o mais ‘plagal’ dentre os
modos).
Teríamos assim o modus lascivus, o Jônico, como candidato agora único para
um sistema efetivamente tonal.
A argumentação acima, fortemente apoiada na noção de nota pyen (“o
importantíssimo conceito dos pien”, para Nattiez, 1984 : 238), poderá produzir a
impressão de que adentramos um território exótico, que não nos permitiria estabelecer
qualquer tipo de vínculo com a Teoria Musical ‘normal’. A rigor, isso me impediria de
exercer qualquer crítica à teoria-musical (ou à ‘cartilha musical’, um dos objetivos
importantes deste estudo). No entanto, há textos da Teoria Musical, ou mais
precisamente, da análise musical clássica, que permitem tal vínculo (e, portanto, a
crítica). Um desses textos, Tonality & Musical Structure (Graham George, 1970), trata
centralmente e exclusivamente da questão da tonalidade vista sob a perspectiva dos
processos de modulação. No entanto, numa rápida e única menção feita ao conceito de
modo/modal (em oposição a tonal), o autor diz o seguinte:
The fact is that soon after the emergence of the major-minor tonality from the establishment of
the sensation of a ‘leading-tone’ led to the process of merging of the modes, the
interrelationships of the keys began to express themselves as processes of tonal opposition.
That is to say, it began to be recognised that keys are related not only as dominants and
subdominants, supertonics and submediants of each other, but also in an audible sense as
relatively ‘bright’ or ‘dark’.
Do nosso ponto de vista, o fato de a modalização ser extinta para, num sentido
bastante geral, ‘reaparecer’ no tonal como uma disjunção ‘claro’ vs ‘escuro’, será
abordado sob outro prisma mais adiante. Mas o que nos importa neste momento é
salientar que G. George vê uma série causal que, de alguma maneira, corrobora a
argumentação desenvolvida mais acima, a saber:
1. “ the establishment of the sensation of a ‘leading tone’ ”
96
2. “ the emergence of the major-minor tonality (“from”, como conseqüência de,
“leading tone”)
3. “the process of merging of the modes”.
Naturalmente, não é necessário que entendamos essa série como uma ordem
cronológica. Basta-nos registrar que a Análise Musical pode reconhecer a sensação de
uma ‘nota cuja propriedade é conduzir à nota seguinte na forma diatônica’ como um
elemento crucial na passagem modal-tonal (e não a idéia, por exemplo, de que a
freqüência 165 Hz [‘mi’, 3º parcial da freqüência 55 Hz ] ‘quer’ ser seguida pela
freqüência 220 Hz [‘lá’, 4º parcial] ). Na nossa abordagem, por outro lado, tentamos
ver os três momentos acima como aspectos de um ‘evento’ mais geral que se subordina
a uma ‘mudança de estado’ do ‘plagal’ para o tensivo.
O caminho do não-apagamento
No processo que chamamos acima de caminho do apagamento, consideramos o
sujeito que conhece ou ‘passa a conhecer’ o espaço diatônico (estaremos daqui em
diante nos referindo ao espaço diatônico2) exclusivamente a partir de uma ‘janela’ ou
arco de visão que abarca não mais que cinco lados do heptágono, e que, diante de
vértices equívocos resolve a ambigüidade, primeiro, ‘degradando’ ou apagando tais
vértices para então identificá-los, por contiguidade, com o vértices não-equívoco mais
próximo.
Vamos agora explorar a leitura tensa considerando um sujeito já plenamente
orientado na forma heptagonal. Ou seja, aquele sujeito que conhece, que ‘vive’, o
espaço diatônico a partir do seu todo, sem qualquer limitação de arco de visão. Em
outras palavras, aquele cuja experiência perceptiva com o espaço heptagonal é
homóloga à percepção de espaço em geral; processo em que se instauram
fenomenologicamente sujeito e espaço num só gesto e em que a noção do espaço, todo
ele, antecede a própria noção de campo (ou limitação de campo) visual6. Ou, como dirá
Merleau-Ponty (op. cit., p. 441): “quando eu percebo, através de meu ponto de vista,
estou no mundo inteiro e não sei nem mesmo os limites de meu campo visual”.
6 As noções de conhecimento restrito e conhecimento amplo, exaustivo, da Forma Diatônica podem ser pensadas nos termos da Experiência Colateral peirceana.
97
Neste caso, a noção de campo visual e de restrição desse campo se dá ‘por sobre’
uma totalidade já explicitamente presente, que não comporta o apagamento, e que se dá,
portanto, como uma sobredeterminação.
Do ponto de vista histórico-musical, como vimos, trata-se do momento em que,
no limite de uma cultura modal, se dá a mudança desde um estado-de-sujeito ‘plagal’
para um estado tensivo, uma vez resguardada a condição de que o tensivo não apaga,
mas herda, as propriedades do modal, re-sigificando-as para a nova funcionalidade
tonal.
A leitura 1●3 Neste ponto, já concentramos nosso escopo de observação no sub-espaço à
direita do trítono — /pGGp/ — e já temos evidências suficientes de que o vértice
Jônico (não Frígio) deverá ser o ponto de corte, não mais preferencial, mas obrigatório
no sistema de alturas do tonal. Isto significa que a configuração /p●GGp/ (não
/pGG●p/), restrita ao sub-espaço /pGGp/ pode ser tida como a configuração central na
economia tonal. Assim, a expressão /p●GGp/ já estaria nos revelando a configuração
daquilo que conhecemos como tônica, o primeiro grau da escala maior.
Para mantermos a terminologia que temos usado, podemos dizer que a
identificação da tônica se dá numa leitura tensa de quatro lados do heptágono, um à
esquerda e três à direita, ou seja, a leitura 1●3, que será agora tomada como modelo
para a identificação de todos os vértices. Em outros termos, podemos também dizer que
mais uma vez reduzimos nosso arco de visão, que, sempre abrangendo quatro lados do
heptágono, irá variar entre 180 graus e 210 graus (Figura 3.16). Figura 3.16
II supertônica G●GpG III mediante
G●pGG IV subdominante
p●GGG
V dominante G●GGp
VI submediante G●GpG
VII sensível G●GpG
I Tônica p●GGp
98
Evidentemente, importa agora saber se essa leitura tensa explicita de forma
consistente aquilo que não é tornado inequivocamente visível por uma outra leitura
dentre aquelas que examinamos até aqui. Ou seja, importa saber se a leitura 1●3 nos
permite, mais que qualquer outra leitura, extrair da forma diatônica propriedades que
são exclusivas do tonal.
Acima, vemos que o vértice I - tônica - se diferencia imediatamente de todo o
conjunto quanto ao arco de visão expresso em graus, ou seja, 180 graus, ao passo que
os seis outros vértices se igualam entre si no fato de demandarem um arco de visão de
210 graus. E, já aí, ou seja, pelo fato em si mesmo de ser único (dada a leitura 1●3), o
vértice I se impõe como referência dentro daquilo que agora já podemos chamar de
espaço tonal.
Soma-se a isso o fato de que a identidade estrutural da tônica se confina no
menor arco de leitura possível no gabarito 1●3. Isto já indica que, na tônica, veremos
realizado exemplarmente o objetivo a que aludimos mais acima, a saber, o da orientação
com base em uma estratégia ‘ótima’, maximamente econômica.
Mais próximos do musical, podemos também observar que, nas condições
definidas aqui, o hipercardinal I condensa em seus ingredientes mínimos os elementos
de maior tensão estrutural da forma diatônica, a saber, os vértices IV e VII que, neste
caso específico, reúnem tanto as propriedades paradoxais do trítono quanto a propensão
melódica contaditória que assumem na qualidade de ‘notas pyen’ (i.e. VII na função de
sensível propriamente dita, sensível ascendente, forte, e IV na função de sensível
descendente, ou fraca). Do ponto de vista da análise dos intervalos, diremos também
que a tônica, percebida como p●GGp, incorpora à sua identidade (a) ambos os
intervalos de grau de indeterminação 1 (as segundas menores) e (b) o intervalo de
trítono, com indeterminação zero ou ∞, que — sendo, neste caso, entendido como
quinta diminuta pois é este, e não a quarta aumentada, o intervalo recoberto pelo
conjunto p●GGp — passa a operar efetivamente com o grau de indeterminação zero.
Ou seja, vista na janela 1●3, a forma p●GGp sintetiza melhor que nenhum
outro grau a totalidade diatônica. Por outro lado, se cedemos por um momento diante
da instabilidade formal do trítono (indeterminação 0 / ∞), que agora é constitutivo da
identidade formal do vértice I, concluiremos que a tônica terá — também mais que
nenhum outro grau — a propriedade de nos conduzir ao som. Nesse sentido, a tônica
99
será, paradoxalmente, o mais formal e o mais ‘sonoro’ dos graus da escala. E,
exatamente por ser como que a interface entre música e não-música, esse grau deixa de
operar como mera finalis (que é um fim apenas na medida em que a ela se segue o
silêncio) e passa, de fato, a significar fim, pois a música tonal não encontra seu término
no silêncio, mas no som.
Devemos agora observar que, como já poderíamos prever, a leitura 1●3 não
propicia a individuação inequívoca dos sete vértices. Por outro lado, os três vértices que
permanecem plenamente diferenciáveis nessa leitura são exatamente os vértices I, IV e
V, destacados abaixo:
Figura 3.17
Podemos assim constatar que a leitura tensa 1●3 destaca não só o vértice I-
tônica como também seleciona uma e somente uma das configurações a que chamamos
mais acima de hipercardinais (HC), I, II e III, ou seja — das três relações de duplo
parentesco (à esquerda e à direita de um vértice) que nos levaram ao conceito de
vértices hipercardinais (IV I V, V II VI, VI III VII) — a leitura 1●3
proporciona visibilidade apenas e exclusivamente à relação IV I V. Em outras
palavras, com o escopo de leitura reduzido a 1●3, a forma diatônica é percebida como
tendo — não três vértices hipercardinais, que, em conjunto, abarcavam a totalidade da
forma — mas apenas um vértice cardinal (ou, mais especificamente, hipercardinal). E,
se recuperamos aqui a acepção que usamos para o termo cardinal (eixo de relações),
devemos admitir que o vértice I é agora para a forma diatônica o eixo em relação ao
qual se estabelecem as relações. Trata-se, sem dúvida, daquilo a que se refere a
expressão centro tonal, tal como usada na teoria musical
A expressão formal de parentesco nessa família nuclear I–IV–V, pode se valer
de dois mecanismos genéricos de percepção da forma. Um desses mecanismos é a
I HC p ● GGp IV p ● GGG V G ● GGp II HC G ● GpG VI G ● GpG III HC G ● pGG VII G ● pGG
A leitura 1●3 explicita: 1. Três vértices
inequívocos : • I, IV, V
2. Dois pares de vértices equívocos:
• II e VI • III e VII
II
VI
VII
III
100
proeminência ou saliência perceptual de elementos raros (diferentes ou marcados, em
contraste com não-marcados), i.e., tendemos a focalizar em ‘=’ na série = = = = = = =.
O outro mecanismo é a proeminência intrínseca à posição ‘de extremidade’ de um
elemento de uma série — i.e. ‘=’ absorve imediatamente seu valor posicional em
= = = = = = = = = = ou em = = = = = = = = = =
mas não imediatamente em = = = = = = = = = = = .
Assim, podemos dizer que, na leitura tensa 1●3, I, IV e V constituem a família
dos vértices que têm “p” (elemento, como sabemos, raro na forma diatônica) em
posições extremas, o que podemos representar da seguinte maneira:
IV p●GGG { p }
V G●GGp { p}
I p●GGp {p p}
Donde podemos dizer que {p p} é a soma { p }+ { p}. Em outras
palavras, a tônica reúne em si os traços perceptuais da dominante e da subdominante.
O músico prontamente observará que, se mais acima havíamos aludido à noção
de harmonia dentro de uma perspectiva ‘polifônica’ (ver mais acima a noção de
harmonia como resultado de melodizações simultâneas), agora estamos diante de uma
família de vértices que remete a uma questão eminentemente harmônica. E é oportuno
frisar que aqui não se trata de harmonia entendida como um fenômeno que se exaure no
conceito mais geral de polifonia, i.e., de uma horizontalidade comum ao modal e ao
tonal, mas de um fato novo, de uma verticalidade exclusiva do tonal. Vale lembrar que
o discurso teórico sobre a música reconhece a idéia de que tonal e harmônico são
noções interdependentes. Não há tonal sem a clara diferenciação entre um fluxo
horizontal, linear, reconhecido como melodia, e uma demarcação perpendicular à(s)
melodia(s), que se manifesta como uma progressão mais regular (‘reguladora’) e
profunda de eventos complexos percebidos como acordes ou funções harmônico-tonais.
O fim dos modos.
Cessa aqui, portanto, toda a possibilidade de modalização entendida como
escolha de um dentre sete vértices como ponto de corte da estrutura circular e,
101
conseqüentemente, como finalis da melodia então construída. Nos termos sugeridos
mais acima, essa possibilidade é vetada no momento em se possa assumir que o Jônico
(e é indiferente dizermos modo ou vértice) torna-se o modo único, de forma que a
invariante não é mais a forma diatônica, mas a forma diatônica no seu modo Jônico.
Decorre daí que a própria expressão modo Jônico perde agora o sentido, na medida em
que essa expressão pressupõe necessariamente a operação contrastiva do tipo este modo,
não outros — no tonal não há mais outros modos (veremos a escala menor mais
adiante).
No lugar de modo Jônico – e aqui ocorre uma re-significação, como já foi dito
— passamos, enfim, a ter, a perceber, aquilo que no inicio do capítulo anterior foi
reconhecido como ‘o dó ré mi fá sol lá si dó’ e que o músico letrado deverá chamar de
Escala Maior.
Se, no tonal, o ‘modo’ é único e, vale dizer, se o sabor ou mesmo o ethos jônico
é único, a espera do último som da melodia deixa de ser a espera ‘passiva’ da revelação
de um modo, de um ethos, e passa a ser uma espera ‘ativa’, engajada numa ‘progressão
argumentativa’, cuja retórica nos conduzirá necessariamente para a tônica. Mas não
somente a tônica está agora imbuída de um valor retório específico: todos os demais
graus deixarão de estar apenas a serviço de uma linha intonacional icônica (como no
modal eclesiástico) e passarão a ter, cada um individualmente, um valor retórico
específico. É nesse sentido que há uma radical diferença de densidade entre um som no
contexto modal e um som no contexto tonal, pois, de certa forma, numa melodia ou
‘intonação modal’, um modo ‘encerra’, contém todos os sons, ao passo que numa
melodia tonal, cada som ‘encerra’, contém um modo.
A relação modo Jônico / Escala maior, portanto, não é exatamente da ordem de
uma etimologia, que sublinha um traço contínuo de derivação, e, assim, explicita, sob
uma superfície conotativa cambiante, uma permanência de significado (étimo). Antes,
seria da ordem de uma etiologia na acepção mesma de fatores de natureza plural,
endógenos e exógenos, que resultam em algo que é irredutível a qualquer dos fatores
originários ou causais tomados isoladamente. [Esta parece ser uma das idéias que
permeiam meu modo de pensar sobre quaiquer questões relativas a origens; p.ex,
‘origem’ comum à música e linguagem-verbal, v. Moraes 1991]. Evidentemente, a
conotação patognética de “etiologia” deve ser ignorada aqui, em favor de uma
conotação geral, simplesmente ‘genética’.
102
Voltando à tabela com a identificação dos vértices (v. acima), podemos observar que a leitura 1●3 nos põe diante de dois pares de vértices equívocos (Figura 3.18): II - IV, que têm o mesmo formato G●GpG, e III - VII, que têm o mesmo formato G●pGG .
Figura 3.18
Desta vez, como já estabelecemos, o sujeito não percorrerá o caminho do
apagamento, pois poderá desfazer as ambigüidades com base no conhecimento que já
tem da totalidade diatônica. E fará isso procedendo da seguinte maneira:
Figura 3.19
Os vértices II e VI somente podem ser diferenciados um do outro com a ampliação
do campo de visão à esquerda para abarcar mais um lado do heptágono. De forma
análoga, a diferenciação entre III e VII será obtida com a ampliação para mais um lado
à direita.
Assim, podemos dizer que II é percebido como o formato G●GpG com “p” à
esquerda e VI como o mesmo formato G●GpG com “G” à esquerda. Da mesma forma,
III é percebido como o formato G●pGG, com “G” à direita, e VII como o mesmo
formato G●GpG, com “p” à direita.
O que nos importa já observar é que, ao admitirmos como imperativo para tal
‘desambiguação’ um alargamento do campo de visão — de quatro lados (1●3) para
cinco lados (1+1●3 ou 1●3+1) —, estamos explicitando uma hierarquização a partir de
critérios eminentemente tonais, na medida em que associamos esse termo – tonal – a
II VI G ● GpG
III VII G ● pGG
II supertônica p-G●GpG
VI submediante G-G●GpG
III mediante G●pGG-G
VII sensível G●GpG-p
240º
240º 270º
270º
103
princípios de tensividade (alargar o arco de visão é um recuo em relação a uma leitura
mais tensa) , não presentes na ‘hierarquização’ dos modos (cardinais, hipercardinais,
terminais).
Já tendo isto em mente, podemos acrescentar que II e VII demandam um arco de
visão de 240 graus, ao passo que III e VI demandam um arco de 270 graus. E, de posse
desses dados, podemos esboçar a seguinte hierarquia:
Figura 3.20
I Tônica 180º
IV e V Subdominante e Dominante 210º Graus identificáveis na leitura padrão de 4 lados
II e VII Supertônica e Sensível 240º
III e VI Mediante e Submediante 270º Graus identificáveis com ampliação para 4 + 1 lados
Densidade tonal
Podemos ainda expressar a hierarquização acima com base não em arcos de
visão — um critério de certa forma estranho às grandezas que temos utilizado — mas
com base num valor relativo que chamaremos de densidade tonal (DT) (em
aproximação com “Densidade Sêmica’, Greimas 1979, — ou com ‘eficácia’ em teoria
quantitativa da informação, ver também Cognitive Economy, Rosh, 1978 ), de forma
que, quanto maior a densidade tonal de um vértice, maior será a sua tonalidade (no
sentido de que será mais central ao sistema que chamamos de tonal). A densidade
tonal de cada vértice será expressa como a razão entre o custo perceptual mínimo
(CPmin) e o seu próprio custo perceptual. Assim, o vértice de custo perceptual mínimo
(que, já prevemos, será o vértice I) terá uma densidade tonal igual a 1 (um), ou seja:
DTI = (CPI) ÷ (CPmin) = 1 — e os vértices de maior custo perceptual terão densidades
tonais menores do que 1.
Expressaremos o custo perceptual levando em conta que o valor informacional
de um elemento é inversamente proporcional à freqüência com que ocorre num dado
domínio Assim, o custo perceptual de um vértice terá como base os elementos “p” e
“G” contidos em sua identificação. Os elementos “p” e “G”, presentes na identificação
104
(e no ‘sabor’) de cada vértice, serão expressos de forma a refletir os graus de
indeterminação da segunda menor (p) e da segunda maior (G) (ver mais acima sobre
intervalos).
Neste caso, expressaremos esse grau de indeterminação diretamente com a
quantidade de ocorrências desses dois elementos na forma diatônica, ou seja, “p” terá o
valor 2 e “G” terá o valor “5”. Cada ocorrência de “G” na leitura de um vértice,
portanto, aumenta o custo, onera perceptualmente e cognitivamente, a operação de
identificação desse vértice em cinco unidades. Em princípio, cada ocorrência de “p”
onera a operação em duas unidades. No entanto, atribuiremos esse valor 2, ‘neutro’,
para “p” em posição ‘interna’ à configuração, e o valor 1 para aquele “p” que ocupa
posição extrema (posição de limite), visto que, nessa posição, como vimos, “p” absorve
fatores posicionais que, ao adicionarem saliência perceptual, reduzem o custo
perceptual/cognitivo de “p”. A soma desses valores será o custo perceptual de um
vértice.
Desde já podemos exemplificar com a tônica que, como já sugerimos, deverá ter
a maior densidade tonal, pois p●GGp, cujo custo perceptual (CPI) é 1+5+5+1 = 12,
terá a densidade tonal igual a 1 — i.e., dividimos 12(CPI) por 12(CPmin), já que, por
definição, a tônica é o vértice minimamente oneroso nas condições que estabelecemos
acima. (é oportuno observar que, num estudo da densidade tonal de intervalos, que não
caberia fazer aqui, teríamos que \pGGp\, e seu complemento, \GGG\, ambos com arco
de visão de 180º, i.e., trítonos, teriam respectivamente as densidades tonais 1 e 0,8. )
Mas ainda cabe a pergunta: o que significará musicalmente uma classificação
dos graus da escala ao longo de uma dimensão que varia desde a máxima até a mínima
densidade tonal? A resposta é que, se entendemos maior densidade tonal não apenas
como maior diatonicidade, mas como um maior grau de pertença, de fixação, à
invariante ‘dó ré mi fá sol lá si dó’, ou seja à Escala Maior Tonal, estamos, por
conseqüência, admitindo que menor densidade tonal deve ser entendida como menor
fixidez, menor ‘tonalidade’ (no sentido dado há pouco).
Assim, podemos expressar a hierarquização entre os vértices como abaixo (Figura
3.21), onde a soma dos valores para cada vértice representará o que chamamos de
Custo Perceptual (CP) e a razão CP ÷ 12 indicará a Densidade Tonal (DT).
105
Na verdade, é oportuno agora observar que, ao usarmos o termo hierarquização,
estamos apenas acompanhando uma tradição terminológica pois esse termo torna-se
agora um tanto vago, inespecífico. Mais que uma hierarquização, os chamados graus da
escala ganham, no tonal, uma funcionalidade musical mais precisa.
Nesse sentido, cabe observar que confirmam-se (como já antes pelo critério
análogo do arco de visão) a tônica, na posição de máxima densidade tonal, e os graus III
e VI (mediante e submediante) na posição de mínima densidade tonal. Isso é consistente
com uma classificação que tende a cair em desuso na teoria musical elementar (mas
veja-se Scliar, E., 1985 M. L. Prioli), qual seja a classificação dos graus de maior
densidade tonal (I – IV – V) como graus tonais, que, como sabemos, constituem a
‘família nuclear’ cujos membros assumem funções fundamentais, exclusivas da música
tonal, e III e VI como graus modais.
Com relação a estes dois últimos, sabemos tratar-se dos graus que, deslocados
para a esquerda, i.e., bemolizados, plagalizados, reconfiguram a forma /GGpGGGp/
para a forma /GpGGpXp/, a escala tonal-harmônica de ‘modo’ menor, que rompe a
norma do domínio diatônico2 e se aproxima do domínio diatônico3. Assim, a noção de
graus modais é consistente não apenas porque constatamos empiricamente que a
bemolização de mi e lá resulta na escala de dó menor (harmônica), mas sobretudo
porque, como mostramos, são os graus de mínima densidade tonal. Em outras palavras,
qualquer ação ou ‘pressão’ que desafie a integridade da forma que chamamos de escala
maior encontrará forte resistência nos vértices de maior densidade tonal, mas poderá
surtir efeitos nos vértices de menor densidade tonal. Mas de que natureza será uma tal
ação ou ‘pressão’? É sobre isso que passamos a falar.
Figura 3.21 CP DT Categoria Musical
I 1 ● 551 12 1,00
IV 1 ● 555
V 5 ● 551 16 0,75
Graus Tonais
II 1-5 ● 525
VI 5 ● 255-1 18 0,66 ?
III 5 ● 255-5
VI 5-5 ● 525 22 0,54 Graus Modais
106
Maior/menor: modo ou ‘modo’?
Tendo afirmado mais acima que na escala maior tonal não há mais modalização,
a possibilidade de existência um outro modo, a saber, um modo menor, no domínio
tonal se apresenta como uma contradição. No entanto, sustentaremos que, a rigor, não
há modos no domínio tonal, e que a diferença entre escala maior e escala menor tonais
é, como sugerimos acima, análoga à diferença entre o domínio diatônico2 e o domínio
diatônico3 tal como os definimos ao examinar o sistema de alturas indiano.
Como sabemos, a teoria musical padrão tende a apresentar a escala tonal menor
como um dos dois modos remanescentes do universo modal que, no contexto tonal, são
freqüentemente chamados de ‘o modo menor’ e ‘o modo maior’. Nessa perspectiva, a
escala menor seria o modo eólio, ou seja, a invariante /GGpGGGp/ com foco no vértice
VI, que, transplantada para o universo tonal, teria a sétima nota elevada em um semitom
para atender a exigências harmônicas (vale dizer: exigências tonais, visto que tonal e
harmônico são conceitos indissociáveis).
Sem dúvida essa é uma explicação elegante tanto do ponto de vista histórico
quanto do ponto de vista notacional (Dó maior e Lá menor têm uma mesma armadura
de clave e são chamadas tonalidades relativas).
No entanto, se concordamos aqui que, do ponto de vista perceptual, sequer a
escala maior pode ser entendida como modo jônico, devemos receber a escala menor
com o mesmo critério. Assim, poderíamos em princípio alegar que a escala menor teria
como ascendente (como ancestral) o modo eólio que, no ambiente tonal, é re-
significado. Mas esse argumento traria problemas pois, transplantar dois modos para o
ambiente tonal significaria transplantar junto com eles um procedimento de
modalização que é preservador da invariante diatônica /GGpGGGp/. E como sabemos
isso não ocorre, pois o contraste maior/menor não é percebido como uma variação de
‘ponto de corte’ sobre uma invariante (a forma diatônica). O que de fato é percebido é
uma oposição binária já radicalmente interna ao universo tonal.
Ora, se já temos no universo tonal uma invariante que incorpora uma tônica
entendida como um e somente um dos vértices da forma diatônica; se o trítono, as notas
‘pyen’ (VII IV) e a família nuclear I - IV - V são inerentes à própria estrutura
perceptual dessa tônica, em suma, se a ‘tonalidade’ (densidade tonal) e ‘harmonicidade’
107
são constitutivas da invariante tonal (‘por sobre’ a mera diatonicidade), então o
surgimento de uma diferença no escopo do tonal implicará necessariamente no
surgimento de uma outra Forma. Em outras palavras, enquanto a invariante diatônica
“A” e o contraste entre os modos podem ser expressos como A { A1 - A2 - A3 - A4 etc.},
o contraste maior/ menor só poderá ser expresso como X Y, onde a seta, como
veremos, indica uma operação de derivação de Y a partir de X, i.e., a morfogênese de
uma ‘variante’ Y, que tem em X o termo original ou canônico. Mas se, por um lado, admitimos que não há modos, modalização, no universo
de alturas do tonal, por outro não podemos nos eximir da evidência de que, mesmo no
tonal, persiste algo que parece ser um universal na música, ou seja, a necessidade ou
função intrínseca de significar, não a partir do logos, mas já a partir da timia (v. tímica
in Greimas 1979). Se, por um lado, no modal vemos um gradualismo tímico que se põe,
como modalização, no centro da semiose estritamente musical (lembremos que o texto
litúrgico-verbal supria o canto eclesiástico medieval com elementos não-musicais que
não nos compete analisar aqui), por outro lado, no tonal, o tímico, no que se refere ao
sistema de alturas dos sons, se reduz a um contraste binário Maior/menor (deve-se
lembrar que o sistema tonal também é chamado de sistema Maior/menor – ver mais
acima menção a Graham George, 1970).
Mais que isto, ao contrário do modal, há no tonal um pólo tímico canônico, não
marcado, i.e., a escala maior. O outro pólo será, por conseqüência, o elemento marcado.
Em outras palavras, dada a ouvir ao nosso informante musicalmente ingênuo (ou
mesmo um ‘informante’ que em maior ou menor grau deve sobreviver ao letramento
musical, no ou sob o letramento musical), a escala menor tenderá a ser identificada
como um ‘dó ré mi fá sol lá si dó’ diferente, que não corresponde exatamente àquilo a
que se refere de imediato a expressão escala musical. E, por mais que resistamos à
idéia, é uma escala que o leigo, na sua ‘ingenuidade’, achará ‘mais triste’ (disfórica).
Somente nesse momento, ou seja, no momento em que há a confrontação entre a escala
menor exemplificada e o cânon maior, somente então, é que a escala maior poderá ser
dita ‘mais alegre’ (eufórica). Em outros termos, é neste momento que a disjunção tímica
se instala no sistema tonal.
A escala menor é, nesse sentido, derivada da maior, pois resulta de uma
operação que incide sobre a escala maior, não sobre a forma diatônica (ao passo que, no
108
modal, um modo não pode ser dito derivado de qualquer outro, i.e., todos resultam
igualmente de uma operação que incide diretamente sobre a forma diatônica). Essa
‘modalização’, pois, não é uma modalização no sentido de uma escolha ad hoc do
‘falante’ (como de fato é no modal), mas uma disjunção inerente ao sistema tonal. É
para realizar a disjunção tímica euforia-disforia que o tonal faz derivar da escala maior
uma nova forma. E para criá-la, altera, desloca, os graus da forma tonal canônica nos
seu pontos menos tonais, ou seja, os graus de menor densidade tonal: III (mediante) e
VI(submediante).
Em resposta à pergunta que nos fizemos mais acima, podemos então concluir
que a ação ou pressão que incide sobre a forma tonal-maior como uma potência
morfogenética é de natureza tímica, cuja fonte se vincula em última instância à esfera
da “disposição afetiva fundamental”, à “percepção que o homem tem do próprio corpo”
conforme extraímos da definição do termo “Tímica (categoria)” dada por Greimas &
Courtez (op. cit.)
Algumas propriedades da forma menor
Qualquer análise das propriedades da forma menor deverá necessariamente levar
em conta o fato de que a forma menor é percebida, entendida, em relação à forma
maior. Os elementos estruturais e funcionais do tonalismo emergem em primeira
instância da forma maior e daí são projetadas na forma menor, que as absorve e as
realiza dentro das suas condições formais peculiares. Nossa tarefa, portanto, se resumirá
em analisar algumas dessas peculiaridades. Embora relevante, a forma menor melódica
não será analisada aqui pois, para nossos objetivos, podemos considerar a forma menor
harmônica (portanto a forma menor tonal por excelência) como a escala menor
‘canônica’.
Em primeiro lugar, devemos observar (Figura 3.22) que, dada a presença do
elemento “X”, é possível identificar inequivocamente todos os vértices da forma menor
com uma leitura de pequeno escopo, 1•2. Assim usamos, para efeito de comparação, o
mesmo escopo para os análogos maiores de cada vértice (ver área sombreada). O que se
pode constatar aqui é que, embora na escuta de uma melodia em ambiente tonal menor
reconheçamos categoricamente todos os graus-funções da escala — a tônica, a
dominante, a mediante, etc (pois de outra forma não estaríamos escutando uma melodia
109
tonal) — todos os vértices na forma menor têm formas (e portanto ‘sabores’) diferentes
dos seus correspondentes na forma maior.
Figura 3.22 .
Assim, a constatação trivial (e muito real) de que ‘eu sinto que esta melodia é
menor’ ganha aqui a possibilidade de uma expressão mais precisa: toda e qualquer nota
de uma melodia menor é efetivamente e demonstravelmente diferente no contexto
menor; cada nota é ela mesma percebida e entendida como menor, visto que ela não é
outra coisa senão a forma menor ‘com um foco’ naquele vértice particular.
Por esta razão usaremos os símbolos em caracteres minúsculos (i, ii, ...vi, vii)
para indicar os vértices da forma menor. Sendo assim, se nos ‘métodos’ como tonic sol-
fa (dó móvel) discute-se se a tônica da escala menor deve ser chamada “Dó” ou “Lá”,
podemos agora interferir em tal discussão afirmando que os graus da escala menor
devem ser ‘cantados’, a partir da tônica, como ‘dó, ré, mi, fá, sol, lá, si’, uma vez
subentendido que estamos cantando/percebendo dóm, rém, mim, fám, solm, lám, sim’, onde
a marca “m” indica tratar-se da tônica ‘com sabor menor’, a supertônica ‘com sabor
menor’, e assim por diante.
Lembremos que o argumento de que é o conjunto dos sons de uma escala
menor que tem um ‘sabor menor’ – não um som isolado’– deixa de ter sentido aqui,
pois a expressão “um som”, para nós, significa “todos os sons” ou, mais precisamente,
um som y é a presença de todos os sons vistos na perspectiva particular de um y
‘atualizado’.
O mesmo, naturalmente, se aplicará aos intervalos. Uma quarta/quinta justa
envolvendo v- i não é idêntica ao intervalo V- I em ambiente maior, na medida em que
— a despeito de se tratar de uma mesma razão de freqüências ( ≅ 0,75 no caso da
MENOR MAIOR
i p • Gp I p • GG ii G • pG II G • Gp iii p • GG III G • pG iv G • Gp IV p • GG v G • pX V G • GG vi p • Xp VI G • Gp vii X • pG VII G • pG
i
ii
iii
ivv
vi
vii
110
quarta justa; ≅ 0,67 no caso do seu complemento, quinta justa), e a despeito de ambas
envolverem dominante e tônica — no caso maior, trata-se do complexo perceptual
[GGp\GGGp], e no caso menor, do complexo [pXp\GpGG].
Da mesma forma, um acorde de dominante, que é um acorde maior, tanto no
contexto maior quanto no contexto menor-tonal, estará impregnado do sabor maior
numa escala maior e do sabor menor numa escala menor.
Devo reiterar aqui que não estamos tratando de sutilezas formais que tenderiam a
não afetar significativamente o ato da produção/percepção musical, mas, pelo contrário,
tratamos de fatos inerentes à chamada percepção musical, sem os quais nada ocorre a
que possamos chamar de música ou ‘musicalidade’ tonal. Evidência disto é que
músicos que ‘tocam de ouvido’ e que compõem e tocam instrumentos com alta
proficiência (além de dominarem com maestria a arte das prosódias musical e verbal na
criação de canções), freqüentemente apresentam dificuldades nos seus primeiros
contatos com os exercícios de ditado e solfejo musical (por exemplo, grafar
diferentemente dois sons de altura igual ou cantar um intervalo ascendente, quando o
escrito pede um movimento descendente, etc.).
Isto indica que o mero contorno de alturas (pitch contour ) retratado
iconicamente no pentagrama não corresponde de forma direta ou ‘pacífica’ às operações
que de fato estão em curso no íntimo desse músico iletrado. Evidentemente, a hipótese
que se apresenta aqui é que, digamos, uma passagem de dó3 a ré3 na tonalidade de dó
maior não é uma mera ‘subida (step) de um tom’, mas uma operação muito mais
complexa (i.e., uma operação musical) que demanda para o dó e, depois, para o ré, duas
distintas ‘abordagens’ à forma diatônica e à forma maior, tal como as temos
apresentado aqui.
Por outro lado, uma vez desmistificado o utilíssimo expediente notacional a que
são submetidos, aqueles que já ‘tocavam de ouvido’ tenderão a ser melhores leitores de
partitura que aqueles que não têm a experiência de ‘tocar de ouvido’ (v. Mc Pherson,
1995; Mainwaring 1941, Luce 1965; Priest, 1989).
Prosseguindo então com o exame das propriedades da forma menor — que,
lembremos, é percebida ‘por sobre’ a forma maior — observamos que a forma menor
preserva, da maior, o sub-espaço à direita do trítono iv – vii (onde deve se localizar a
tônica) e sobretudo a relação nota pyen nota alvo (que indica a tônica). A
111
caracterização da tônica, conforme o já estabelecido na forma canônica maior, deve ser
a configuração p•GGp. Devido à deformação que resulta na forma menor, no entanto, a
tônica “i” terá a configuração p•GpG. Decorre daí que o custo perceptual (CP) de “i”
será 13 (1+5+2+5), o que resulta numa densidade tonal (DT) igual a 0,92 (12 ÷13), ou
seja, a tônica menor tem uma densidade tonal menor que a tônica maior. Isto é
consistente com a reconhecida instabilidade ou menor força da tônica menor.
Figura 3.23
Não é sem razão, pois, que, ao término de uma melodia de forma menor, a
‘deformação’ menor possa ser desfeita de maneira que possamos encontrar em “i” a
configuração p•GGp, ou seja “ix” “Ix”, onde “i” e “I” têm a mesma expressão de
altura (x), digamos, a classe DÓ (vinculado por convenção às oitavas de 261,626 Hz).
Evidentemente, estamos falando da chamada Terça de Picardia, onde esse
termo “picardia” varia nas suas acepções desde engano, logro, até garbo, galhardia,
elegância (cf. Houaiss op. cit). E não teríamos como propriamente censurar o autor
do verbete “Tierce de Picardie” no Oxford Companion to Music (Scholes, 1975), que se
refere ao fenômeno assim: “The effect is pleasant, as of a bright ray breaking through
the clouds as the sun sinks”.
Outro dado importante é que a forma menor / GpGpGGpXp/ (2122131), como
vimos, dispõe de dois trítonos: o trítono iv – vii, que delimita a configuração de tônica
menor (i) p•GpG, e o trítono vi – ii, que delimita a configuração de uma tônica forte em
pleno contexto menor, ou seja, a mediante menor (iii) que, na leitura 1•3, resulta em
p•GGp. Aqui, pois, temos uma segunda operação que nos permite ‘recuperar’ a
i
ii
iii
ivv
vi
vii
p•GpG DT = 0,92
112
tonicidade forte (DT = 1). Neste caso, podemos representar a operação como iiix Ix,
onde iii e I têm a mesma expressão de altura ( x ).
Figura 3.24
E tal operação de fato ocorre. A teoria musical, no seu capítulo sobre formas
musicais, nos dirá que o segundo tema, B, (ou a reapresentação A’ do tema A) na forma
sonata (1º movimento) em tonalidade (‘modo’) maior se apresentará, após o processo de
modulação, na tonalidade maior da dominante de A; por exemplo, se A está em Dó
maior, B (ou A’) estará em Sol maior. No entanto, quando a tonalidade da peça musical
(ou daquele 1º movimento) é menor, B não se apresentará, em ‘modo’ menor, na
dominante de A, mas, em ‘modo’ maior, na mediante (iii) de A. Ou seja, se A está em
Dó menor, B estará em mi bemol maior.
Assim, na Sonata Op. 2 nº 1 de Beethoven (Fá menor), que é ‘monotemática’,
deverá apresentar A’ em lá bemol maior (não na dominante menor de Fá menor: Dó
menor).
O tema melódico de abertura é o seguinte:
Figura 2.25
i
ii
iii
iv v
vi
vii
I
A
113
Após manobras nas quais não nos deteremos aqui (e que têm a ver com
importantes questões de processo modulatório e o próprio conceito de modulação),
ouvimos o seguinte:
Figura 3.26
Naturalmente, mesmo para o ouvinte pouco familiarizado com a forma sonata,
trata-se, muito perceptivelmente, da configuração A, a qual, no entanto, aparece agora
numa versão ‘em modo maior’ (portanto A’). O contraste maior/menor se faz de
imediato. Para o ouvinte familiarizado com a forma sonata, no entanto, não se trata de
um contraste maior/menor qualquer, pois a expressão de A, ou seja, na forma menor
expressa em fá menor — onde o lá bemol tem a função mediante menor (iii) — está
ainda presente. E é precisamente esse lá bemol que se apresentará agora como tônica
maior (I) para A’. Realiza-se aí a operação iii I, que é motivada em uma propriedade
da forma menor /GpGGpXp/.
Um outro exemplo desse tipo de operação, desde que minha interpretação esteja
correta, vem de uma criança de aproximadamente três anos e meio de idade. O material
gravado em 1985, cuja transcrição (dó móvel) aparece a seguir (Figura 3.27), se origina
de um ostinato com ritmo bastante definido, emitido com quatro sílabas “é fi di
pau(pai)”. A criança chama o pai, que demora a atendê-la, pois estava gravando a
‘distração musical’ da criança.
O que se deve observar é que — a despeito da brevíssima (e pouco audível)
presença do que interpretei como um sétimo grau abaixado (si bemol) — toda a
construção tem o sabor menor-tonal. Se o sétimo abaixado é verdadeiro, não teríamos
necessariamente algo como um modo eólio, sendo a outra possibilidade um sinal
Estou omitindo aqui a súbita, ‘surpreendente’ e precoce manobra do reaparecimento de A em dó menor (operação vx ix ), que tem um valor estético (uma brilhante melodia de melodias) e um valor didático-humorístico: ‘veja o que não se deve fazer’. Na edição que tenho, o iii (mi bemol) desse A-em-dó-menor é marcado localmente com um redundante sinal de bemol (já presente na armadura). Não sei se esse bemol já constava no manuscrito do autor ou se foi acrescentado pelo editor (Schenker).
A’
114
rudimentar da escala menor melódica descendente (dada a ouvir uma escala menor
melódica ascendente, o leigo invariavelmente desce a escala bemolizando si e lá)7.
Sendo assim, uma cadência final prometeria ocorrer com o motivo láb, sol, mib dó, ou
outra configuração que tivesse o dó, ou Dóm, como uma tônica menor, i.e., “i”. No
entanto, após um accelerando, o final é realizado , em um “ fff “, com um mib. Teria
esse mib um sabor de tônica maior?
Figura 3.27
Esses três exemplos, o da terça de picardia e os da operação iii I, são usados
aqui para ilustrar a idéia de que o tonal — mesmo quando expresso na forma menor,
marcada — tende para a tônica, entendida como uma configuração p•GGp, de máxima
densidade tonal. Em outras palavras, tende para aquele ‘ponto’ maximamente formal e,
ao mesmo tempo, maximamente ‘sonoro’, que dá o tonus e o vetor de direção e
‘destino’ na melodia tonal.
Bastidores da escala: busca do objeto do signo-altura Neste ponto já temos acumuladas experiências e evidências que nos permitirão
abordar de forma mais explícita a questão da semioticidade da música. Em outras
palavras, a questão de a música, não sendo verbal, ser uma linguagem, uma semiótica.
Ou ainda, interessa-nos aqui a idéia de que “a inserção da percepção no diagrama lógico
da semiose ajuda a esclarecer a noção de objeto do signo” e que “a leitura da percepção 7 Experimentos desse teor têm sido feitos no contexto de aulas que tenho dado tanto para ‘letrados’
As alturas notadas neste trecho são apenas sugestivas da curva de intonação (entre fala e música). O ritmo é tal qual escrito.
A partir daqui a gama de alturas é de aprox. um tom acima em relação ao início, e se mantém consistentemente até o final.
rall a tempo
accelerando fff
115
à luz da tríade semiótica ajuda a esclarecer a percepção ela mesma” (Santaella, 2000:
48).
Dessa forma, para analisarmos algo enquanto linguagem ou, mais precisamente,
enquanto signo no sentido de C. S. Peirce, é preciso que identifiquemos ali a semiose,
ou seja, algo que se apresenta na posição de signo tal que esse signo “stands for
something to the idea which it produces, or modifies” (Peirce, apud Santaella, op. cit., :
23).
Não se tratará aqui, em princípio, da pergunta geral, que tem como escopo o
fenômeno musical entendido como tudo aquilo que possamos reconhecer sob a rubrica
“música”, mas de um retorno à nossa pergunta inicial, cujo escopo se restringe à de
altura (pitch) dos sons de uma melodia tonal.
A pergunta retomada aqui será, ‘o que é isto?’ (p. ex. o que é um desses sons
aos quais chamamos de ‘dó ré mi fá sol lá si dó’).
Assim, penso ser tácito que, naquilo que podemos chamar genericamente de uma
nota musical, o que se apresenta em primeiro lugar é um som. Sendo esse som, portanto,
um signo no sentido de mediador, ou seja, aquilo que está no lugar de (stands for) algo,
esse som terá necessariamente um objeto que o determina e que, pela mediação do
signo, também determinará ou produzirá um efeito. Aqui estaria o conceito de
interpretante que, sem entrarmos na complexidade dos tipos de interpretante tais como
apontados por Peirce, entenderemos como “o efeito total inanalisado que se calcula que
um signo produzirá, ou que naturalmente se espera que ele produza” (C. S. Peirce, apud
Santaella, ibid.: 71).
A pergunta que se impõe, pois, é: o que é o objeto desse som? Para
respondermos a esta pergunta temos que estar dispostos a abdicar de qualquer conotação
de coisa do termo “objeto”, i.e.. devemos ter em mente que “o primeiro passo para se
delinear a noção de objeto do signo reside no cuidado de não confundir objeto com
coisa” (op. cit. : 34).
Podemos então afirmar que o objeto de um som-musical será aquilo a que mais
acima nos referimos como um endereço topológico (um lugar), cujo universo de
existência é a forma diatônica. Assim, um som de 440 hz (lá3 em afinação oficial)
pertinente a uma melodia no tom de ré maior ou, melhor ainda, aquela generalidade
‘todos os lás’), terá como objeto a configuração G•GGp, que corresponde à expressão
quanto para ‘iletrados’.
116
‘tensa’ (leitura 1•3) de GpG•GGpG (leitura 3•4), ou seja, o vértice V (dominante) da
Forma /GGpGGGp/.
O objeto desse LÁ pois, é um ‘lugar’. Mas ao fazermos esta afirmação
maximamente sintética, não podemos perder de vista o fato de que esse ‘lugar’, um
vértice, nos remete por definição a todos os demais ‘lugares’ que constituem o todo
diatônico e a todas as propriedades desse todo — tanto aquelas que analisamos até aqui
quanto aquelas que possam vir a ser explicitadas em outras análises. A rigor, portanto, o
objeto desse som lá de 440 Hz é o sistema de alturas da música tonal – na perspectiva
V. E é importante salientar que o uso do verbo (cópula) ser nos permite dizer que a
natureza dessa junção do som com uma posição x não pode ser traduzida com a
expressão “estar em x”, mas com a expressão “ser-em-x”, que podemos aproximar da
expressão “ser-no-mundo” (cf. Merleau-Ponty, op. cit., pp. 493-548).
Devemos, mais ainda, admitir que todas as diferentes alturas (pitch) de uma
melodia tonal terão necessariamente como objeto /GGpGGGp/ — a forma diatônica (já
com seu estatuto de escala tonal maior) — diferenciando-se umas das outras na
cláusula ‘na perspectiva x’. Cada diferente perspectiva ou posição corresponderá a um
diferente conjunto de propriedades (parentescos, densidade e função tonal, etc.),
propriedades essas que não são associadas ao signo, mas são como que integralmente
absorvidas pelo sinal acústico.
Se, ainda prematuramente, nos inclinamos para o lugar do interpretante,
podemos dizer que é exatamente por causa dessa ‘absorção’ que o ouvinte
musicalmente letrado estará sendo verdadeiro quando descreve sua experiência como
‘eu ouvi uma dominante’ (como lá no tom de ré maior) — e os fatos não se alteram no
caso do não letrado, pois este apenas não estará munido de uma ‘metalinguagem’
(verbal) que o permita descrever sua experiência, conquanto sua experiência seja
idêntica àquela do letrado.
Do ponto de vista de quem cria ou executa a música, a experiência é
essencialmente a mesma: não se tratará de alguém que ‘emite um som’ mas de alguém
que faz ocorrer uma dominante pois, não só o executante, mas o compositor antes dele,
‘faz ocorrer’, no sentido de que a noção de ocorrência parece ser indissociável da noção
de música. Uma melodia não é pensável a não ser como sons que se organizam
117
conforme uma tonalidade (qualquer e mutável) inteiramente clara e definida na mente
do compositor, sem que se processe qualquer identificação nominal dessa tonalidade.
Na totalidade dos casos, ‘executados’, ‘escutados’ ou ‘pensados’, a tônica sempre é
alguma altura de freqüência determinada, uma vez entendido aqui que, afora o caso do
chamado ouvido absoluto, o compositor pensará hoje uma melodia com uma tônica na
classe de alturas (na primeira acepção) ‘350 Hz e suas oitavas’ e poderá, amanhã,
continuar seu trabalho ‘lembrando’ sua criação com uma tônica em ‘402 Hz e suas
oitavas’ (daí a expressão acima: qualquer e mutável).
Há, pois, um vínculo existencial entre o signo musical e seu objeto: esse signo é
parte do objeto. Tal signo, portanto, teria, predominantemente, as características daquilo
que Peirce chama de índice.
Há ainda uma outra conclusão a que somos levados pela seguinte afirmação:
Só no caso do objeto dinâmico como ocorrência é que esse objeto pode ser precisamente
delimitado visto que se trata de uma coisa existente, singular, para a qual se pode apontar,
determinando seu lugar no tempo e espaço. (Santaella 2000 : 45).
Se uma nota de uma melodia é um índice (que, em uma das acepções desse
termo, é uma dêixis) que ‘aponta’ para um lugar, o objeto desse signo deverá ser, em
algum sentido, um objeto dinâmico, ou seja, o que está lá fora, externo ao signo. E, no
caso em questão, podemos dizer que tal objeto é externo na medida em que aquilo que é
apontado pelo som é uma configuração de espacialidade, de ‘lugares’, que é já externa à
música e ao som. No entanto, naquele lugar, nenhum existente é encontrado a não ser
exatamente ‘um lugar’ (um lugar ‘num espaço’, conforme nosso presente interesse).
Mas sendo um índice, esse signo (representamen) ele próprio se acusa como ocupante
desse lugar, no sentido de que “um índice envolve a existência de seu Objeto” (Peirce,
apud Santaella, op. cit. : 122), ou no sentido de que o índice é:
Um signo ou representação que se refere a seu Objeto não tanto em virtude de uma similaridade
ou analogia qualquer com ele, nem pelo fato de estar associado a caracteres gerais que esse
objeto acontece ter, mas sim por estar numa conexão dinâmica (espacial, inclusive) com o
Objeto. (Id. ibid. : 122).
Resta agora a questão do interpretante desse signo. E esse, sem dúvida, é um
ponto delicado da análise, pois é quando corremos o risco de sermos prematuramente
118
seduzidos pelas hermenêuticas para-musicais —hermenêuticas que se oferecem como
que para saciar uma certa carência, uma certa vertigem que decorre da ausência da
referencialidade verbalista na música. E é precisamente nesse momento que o conceito
peirceano de interpretante (i.e. um ‘efeito’) se mostra adequado ao tipo de análise que
fazemos aqui.
No caso específico de uma nota de uma melodia, esse interpretante só pode ser
traduzido sinteticamente nesta página com um simulacro verbal: ‘eu sinto que isto é
uma mediante’, onde esse sentir tem um valor aproximado de “saber”, no fenômeno
expresso na afirmativa ‘eu sei onde estou’ (também um simulacro verbal). E é
importante se dar conta de que tais simulacros verbais têm como ‘objeto’ operações
complexas (lógicas) que se processam integralmente num domínio distinto do domínio
verbal.
Mas ainda seria lícita a pergunta: como, a não ser pelo verbal, esse tipo de saber
se torna visível para um observador ‘externo’? Ora, esse saber se torna visível por
sintomas ou, dentro do pragmaticismo peirceano, por condutas que se manifestam no
próprio domínio ao qual pertencem. Se eu ‘sei onde estou’ em relação a um
determinado espaço, é meu comportamento, minha conduta nesse espaço, que
explicitará tal saber, não a sentença verbal “eu sei onde estou” (aqui, mais uma vez,
evoco a inspiração merleau-pontiana).
No domínio musical, o sintoma (mas apenas sintoma) do saber ‘isto é uma
mediante’ é aquilo que o sujeito desse saber (digamos, uma inteligência musical) faz
musicalmente ‘em torno’ dessa mediante. Posto de maneira mais esquemática, o fato de
as notas que antecedem e as que sucedem essa mediante serem musicalmente adequadas
em relação à ‘situação’ em foco (i.e uma melodia) é sintoma de que o ‘saber’
(interpretante) ‘sinto que isto é uma mediante’ está realizado ali naquele signo.
Mas é preciso esclarecer aqui que não se está afirmando que é o contexto
‘horizontal’ de signos (alturas) que constitui o interpretante do signo individual ‘uma
nota’. Ou seja, não está em foco neste momento qualquer noção de horizontalidade ou
de contexto sonoro como ‘causa suficiente’ da significação, mas a relação ‘vertical’
objeto-signo-interpretante, pois o interpretante foi criado pelo signo “mas não pelo
signo qua membro de qualquer dos Universos a que pertence; mas foi criado pelo signo
na sua capacidade de receber a determinação do Objeto” (Peirce, apud Santaella 2000 :
62).
119
A esse respeito, devo evocar aqui um texto que me impressionou
profundamente, não no sentido de tentar nos mostrar uma ‘verdade absoluta’, mas no
sentido de um sinal de alerta. Trata-se de um trecho de um artigo publicado em 1964
(mas que acho ainda atual) por R. J. Bernstein, e que é citado em Santaella, op. cit. p.
47. É daí o que transcrevo na íntegra: o novo clima filosófico se caracteriza por uma tendência contextualista, na qual a unidade
epistemológica dominante não está mais nos dados sensórios discretos ou em testemunhos
fenomênicos simples, mas nas molduras conceituais e nos jogos de linguagem dentro dos quais
nossos dados perceptivos devem ser analisados. Emergiu um novo relativismo lingüístico que
mantém uma semelhança muito intensa com o velho idealismo. Mas trata-se de um idealismo
fraturado, porque no lugar de um sistema monístico absorvente, existem muitos sistemas,
esquemas conceituais e jogos de linguagem. A terminologia e a ênfase “deste caminho de
palavras” é novo, mas muitos dos argumentos têm seus protótipos nos escritos dos idealistas.
As conseqüências desta nova variedade de idealismo não estão tanto no que é dito, mas no que é
omitido, [.....] O que importa não está na ênfase que damos aos modos como nossa concepção do
mundo é determinada pelos esquemas conceituais que empregamos, nem está na insistência de que
não podemos escapar desses esquemas para conhecer a realidade nela mesma, mas sim na
necessidade de levarmos em conta a compulsão, teimosia, brutalidade e facticidade que fazem
parte dos nossos encontros com o mundo. A tentativa de conciliar esses insights opostos é a marca
distintiva da teoria peirceana da percepção. Esta tentativa, aliás, é característica de todo seu
panorama filosófico. É nesse sentido que podemos descartar definitivamente a imagem da melodia
como fluxo sonoro contínuo (à Bergson, p. ex), pois a cada nota de uma melodia uma
nova e completa semiose é processada; o sujeito musical não desliza horizontalmente de
um som a outro, pois, para cada nota, ele se afasta da linha discursiva-sintagmática e
mergulha em direção a, ou ao encontro de, um mundo ou universo objetal para, só
então, emergir com um novo signo. Mas o que dará conta dessas iniciativas do sujeito,
desse movimento vertical de mergulho e de volta à superfície? O que dará conta do fato
de esse sujeito emergir a cada vez com um signo-altura que parece se submeter a um
princípio de coesão que vemos numa frase musical? Essas perguntas serão tratadas no
Capítulo IV.
120
A insuficiência do Espaço
Já é bastante evidente que o trabalho realizado até aqui é em alguma medida perpassado por alguns conceitos da semiótica greimasiana. A despeito disso, um dos objetivos do estudo é destacar que uma semiótica da
música não é necessariamente e exclusivamente uma semiótica dos grandes enunciados
musicais ou dos textos individualizados em obras artísticas específicas. Pois vemos que
já os mecanismos mais elementares da música (tonal) — daí a preferência pelo termo
musicalidade antes que música no título do estudo — correspondem, uma vez
explicitados de maneira mais formal, a mecanismos próprios das semióticas, das
linguagens.
Tanto aquilo que, numa perspectiva peirceana, apontei acima, quanto as questões
relativas à modalização, à categoria eufórico/disfórico (mais específica do tonal) e,
ainda, as operações que sem dúvida nos remetem à noção de embreagem e debreagem
(sugeridas acima quando falamos de um movimento de afastamento e reintrodução de
um sujeito em relação a uma linha de discurso), tudo isso nos sugere que, já no âmago
daquilo que se reconhece como um sistema de alturas da musical tonal, há, senão
discurso, uma propensão à discursividade. E — vale registrar — isso se coaduna com a
idéia bastante aceita de que a música tonal é, por excelência, a música discursiva.
Devo, no entanto, lembrar que — malgrado fiel àquela ortodoxia que, nos
primeiros contatos com um letramento musical, nos faz aprender a ver a música
enquanto arte dos sons (alturas) — deixei de tratar daquilo que, num sentido ontológico,
precede na música o próprio som: a temporalidade8, o ritmo.
Mas, — recordemos — a temporalidade esteve, sim, presente, e cada vez mais
presente, a partir do momento em que, no esforço de extrair propriedades tonais da
forma diatônica, fomos sendo levados a incorporar propriedades que estão no limiar,
senão para além, da fronteira do estritamente espacial-geométrico. Ou seja, mudamos
significativamente o curso de nossa argumentação a partir do momento em que
vislumbramos um fator de tensividade: noção que nos remete a uma temporalidade,
tanto numa de suas acepções mais ou menos comuns (tense, ingl./tempo port. expresso
8 Do ponto de vista da pesquisa experimental sabemos que. "Neither the tonal hierarchy nor the rare intervals hypothesis make any claims about the relevance of temporality to the skill of key discovery, but it was just ten years ago that Helen Brown (1988) demonstrated that the perception of key is not the same as perception of diatonicity when she showed persuasively that by juggling just one of many possible time variables ‘ordinality’ one could produce dramatic (and often dramatically uniform) changes on the listeners' choices of tonic for an unchanged pc-set” (Butler 1998). (v. http://dactyl.som.ohio_state.edu/butler/publications.html)
121
no escopo de um sintagma verbal (VP) – mas ver Chomsky, 1995), quanto, num sentido
mais amplo, interno à semiótica greimasiana: “relação de um sema durativo com um
sema terminativo, gerando o efeito de sentido ‘tensão’, ‘progressão’”, cf. Greimas,
op.cit.
Vimos, após a introdução de tensividade, que um dos elementos, senão o
principal deles, sem os quais seria aparentemente impossível extrair propriedades tonais
da estrutura diatônica, foi a noção de nota pyen, em torno da qual articulamos um
conjunto de termos e expressões semanticamente interconectados, alguns dos quais
colhemos acima e reunimos aqui:
(a) Pré- : em pré-dó, pré-mi, quase-dó.
(b) Fim : em oposição a um término factual da finalis.
(c) Espera: espera ‘ativa’ em oposição a uma espera ‘passiva’.
(d) Progressão1: na descrição de espera ‘ativa’ — “progressão” que “nos conduzirá
necessariamente para a tônica”.
(e) Progressão2: na distinção melodia/harmonia, i.e., “progressão mais regular
(‘reguladora’) e profunda de eventos complexos”.
Tais ‘evidências’ nos sugerem enfaticamente que, se no modal o mecanismo de
modalização é hegemônico, no tonal, onde não temos exatamente modos, tornam-se
hegemônicos mecanismos que convergem (ou ‘recuam’), groso modo, para a esfera da
aspectualização (marcadamente temporal). O próprio âmago da música tonal, antes do
som, estará naquela tensão, progressão, produzidas por um gesto fundador de
temporalização. Aqui estará o ponto de imbricação entre ritmo e som. O que merecerá
ser examinado a seguir, no desdobramento necessário do trabalho realizado até agora.
Pois, o que é isso: ritmo?
122
Capítulo IV
Tempo Tonal O dilema de Agostinho Antes de qualquer coisa, devemos admitir que a pergunta o que é ritmo é
demasiadamente ampla e reconhecidamente complexa.
De um lado, admite-se que o ritmo é para a música, especialmente a música
tonal, o elemento fundamental, ou mesmo fundante.
Dans le chant, le rythme c'est tout (Platão, apud Dumesnil, 1921, p. 82).
In ultima analisi, tutta la musica non è che ritmo (Bas, 1920, p. 51). [De forma curiosamente
heterodoxa, Giulio Bas se refere a altura, duração, intensidade e timbre como “Coefficienti del
Ritmo” (op. cit. p. 35)].
Every musician, whether composer, performer, or theorist will agree that 'In the beginning was
rhythm’. For the shaping power of rhythm and, more broadly speaking, of the temporal
organization of music is a sine qua non of the art.[.....] to study rhythm is to study all of music
(Cooper & Meyer, 1960).
Perhaps the difficulties hindering any attempt to describe and analyze tonal space and musical
motion - difficulties that often appear labyrinthine - might be overcome only by proceeding
from the hypothesis that in the complex of impressions of space and motion what counts as
primary is rhythm, not melody (...). One can think a rhythm without any succession of tones,
but not a succession of tones without some rhythm (...). [T]he fact (...) that with chords the
manifestation of any characteristic of distance or space is less than with successions of tones
this fact might be most simply explained by the hypothesis that the idea of tonal space
represents an abstraction from the phenomenon of musical motion, and that the basic aspect of
this motion, from which others are dependent, is the rhythm aspect (Dalhaus, 1967 : 80).
Por outro lado, a reflexão sobre ritmo se associa não raro a declarações como:
En 1738, Matthenson reconnaisait l'importance de la théorie du rythme mais la regardait 'une science confuse' (Willems, 1954 ).
Ce mot 'rythme' n'est pas clair. Je ne l'emploie jamais (Paul Valery apud Meschonic, 1982).
It is already obvious (...) that a detailed account of language will require a lot more knowledge
about rhythm. [but] Rhythm is very difficult to define satisfactorily (Benguerel e D'Arcy,
1986)
123
The question of musical time is too complex to be argued here (Kramer, op. cit : 65)
A detailed discussion of the nature and implications of rhythmic organization is outside the
scope of this book. (Wishart, 1996 :.313).
Poderíamos mesmo nos perguntar: estaríamos inapelavelmente atados a tal
percepção de dificuldade e complexidade, a ponto de admitirmos que qualquer
investigação sobre o ritmo musical exigirá como que a ultrapassagem de uma fronteira
além da qual estaria o insondável, incognoscível?
Diante de tal desafio, devemos em primeiro lugar, delimitar de forma adequada
nossos objetivos, ou seja, queremos buscar algumas respostas para a questão dos
procedimentos (o que é que eu faço) que nos permitem operar ritmicamente no contexto
da música tonal.
Já dentro dessa perspectiva, assumiremos aqui a hipótese de que aquela
percepção de dificuldade — que se coloca por vezes como algo intransponível —estaria
relacionada a uma certa maneira de formular o problema, qual seja, a idéia, nem sempre
explícita, de que se queremos entender o que seja ritmo devemos em última instância
compreender o que seja o Tempo. No entanto, esse condicionamento — e aqui uma das
questões centrais já esboçadas no nosso capítulo introdutório — parece decorrer
diretamente do núcleo axiomático da teoria-musical, i.e., altura/duração. Situados no
interior desse campo axiológico, deveríamos dar conta do continuum temporal como
condição primária para ‘definir’ ritmo. Sendo “duração” um sinônimo possível de
“tempo”, teríamos, antes de tudo, de responder à pergunta ‘o que é tempo’.
Nessas condições, tendemos a ser levados ao clássico dilema de Agostinho: “So
what is time? if no one asks me, I know; If I am to explain it to someone asking, then I
do not know. (Quid, ergo tempus? Si nemo ex me quaerat, scio, si quaerenti explicare
velim, nescio)” (Agonstinho, Comfessions XI. 17, apud Dalhaus, op. cit. : 74).
É com essas palavras que Dahlhaus abre o capítulo intitulado "Toward the
phenomenolgy of music". E essas mesmas palavras são também citadas por Edmund
Husserl no início de "The phenomenology of internal time-consciousness" (1905).
Trata-se, poderíamos dizer, de uma epígrafe já implícita às reflexões sobre
temporalidade e, ‘por implicação’, sobre ritmo.
124
Em síntese, a atribuição de uma importância fundamental ao ritmo convive com
uma espécie de dilema cognitivo o qual se vincula à idéia do Som, o ‘portador’ de altura
e duração. E nada mais exemplar dessa situação, dessa permanência insistente de uma
axiologia, que a seguinte declaração de Willems (Willems, E. 1984 [1954])
Au point de vue génétique, le rythme précede la mélodie, mais il est, par essence, un élément
d’ordre plus général, non exlusivement caractéristique de la musique. La musique commence, en
réalité, avec le son, qui est une expression directe de l’âme et sera toujours le centre de la
musique
Aqui está não somente a idéia da ‘fundamentalidade’ genética do ritmo, como
também a idéia que nos é cara neste estudo, a saber, que algo na gênese da música é
mais geral que a música, ou, nos termos que já usamos mais acima, uma alteridade (em
certo sentido, um ‘extra-musical’) donde emerge a música — tão ‘outra’ quanto a
peculiar espacialidade de que tratamos com relação às alturas.
Mas, como vemos, no que se segue na citação acima — por via de uma
diferenciação entre gênese e começo, feita pelo autor — o som (e daí, o núcleo altura-
duração) é forçosamente reempossado no centro original da música; som: “quase
sinônimo de música”, como já vimos no capítulo introdutório).
Os parâmetros da música
Isso parece deixar claro que, numa operação análoga à que adotamos na questão
das alturas, precisaremos aqui de um ‘distanciamento’ ou, neste caso, de uma fresta pela
qual possamos ‘escapar’ para o exterior de tal campo axiológico.
E podemos já vislumbrar tal fresta examinando, não Schenker (reconhe-
cidamente avesso às idéias de qualquer gênese rítmica da música)9, mas uma crítica a
Schenker. Vejamos:
Allen Forte (em Yeston, ed., 1977), um dos mais sérios e respeitados
divulgadores da obra de Shencker nos EUA, lista “five unsolved problems in music
theory, indicating in each case how Schenker’s ideas could contribute towards a
125
solution” (p.24). A respeito do primeiro desses problemas — “Constructing a theory of
rhythm for tonal music — Forte afirma: “Hardly any aspect of tonal music is more
obscure than that of rhythm.”
E o que será mais significativo para nós é a crítica a uma teoria do ritmo na linha
do teórico alemão. Tome-se por exemplo o texto de Charles J. Smith (1977) (Rhythm
Restratified), no qual o autor critica a abordagen schenkeriana de Yeston (1976) (The
Stratification of Musical Rhythm) por sua “inconsistência e confusão conceitual”:
The root of all this confusion may well be the uncritical characterization of ‘the rhythm(s)’
of a piece as a ‘parameter’ or ‘dimention’ of that piece in a sense similar to that in which
pitch and timbre, say, are often characterized as parameters; to some extent the
problematic identification of rhythm with durations follows from this assumption.. (Smith,
C. J, 1977: 149)
O passo que tentaremos dar aqui, a partir do ponto em que nos deixa a citação
acima, será encararmos diretamente a seguinte questão: o quarteto ‘altura, intensidade,
timbre e duração’, nossos familiares parâmetros da música (por via de serem
reconhecidos como atributos do som), tem a consistência, seja lógica, seja científica,
que promete dar à teoria-musical? E é oportuno darmo-nos conta de que “[Q]uase no
mesmo momento em que nos propomos pensar em termos estritos sobre o fenômeno
chamado “música”, apresenta-se a física do som como o fundamento natural de
qualquer teoria” (Langer, 1953 :113 ), apesar de que, continua a autora, “..o som, e
mesmo o tom, como tal não é música”.
Mas o que a física nos diz sobre o som? O que é de sua competência dizer-nos
sobre isso que captamos com os ouvidos?
Tendo o som como objeto, a física básica do som musical nos mostra aquilo que
no sinal acústico é constitutivo de suas propriedades específicas. E nos mostra, como
sabemos, que aquilo que percebemos como variação de altura corresponde a uma
variação de freqüência do sinal acústico. Da mesma forma, essa ciência nos revela que o
que captamos auditivamente como variação da intensidade do som está em
correspondência com a variação da amplitude do sinal. E também analisa aquilo que
reconhecemos como timbre ou ‘coloração’ do som, de forma que sabemos que a
variedade timbrística corresponde à variedade das complexas formas dinâmicas com
9 “Musical rhuthm can be acquired neither by dancing nor by gymnastics . Only corrupted present-day musical thought could contrive such absurd methods (Schenker, H., Der Freie Satz/Free Composition, apud. Rothstein, 1981 : 136)
126
que se apresentam os parciais ou ‘harmônicos’ que compõem o sinal que estamos
escutando.
Mas o que dizer da duração? Se mantivermos o mesmo critério de apresentação
acima, deveremos dizer uma tautologia: aquilo que percebemos como variação de
duração do som corresponde ao lapso de tempo ‘ocupado’ por um sinal acústico; ou, de
forma sintética, a percepção da duração do som é função da duração do som! (mas
também do silêncio, da pausa, da ausência conspícua do som, sussurraria alguém – para
em seguida se dar conta do fato curioso de que o silêncio, acatado na teoria-musical do
ritmo, é destituído de altura-intensidade-timbre). Em outros termos, essa tautologia pode
ser também vista no fato de que, se pensamos esquematicamente a música como algo
que ocorre num ‘espaço’ definido por duas dimensões ou eixos “x” (horizontal, tempo)
versus “y” (vertical, altura), a altura de um som será sua ‘projeção’ ou posição pontual
em “y”, ao passo que sua duração se confunde com, ou é, a própria dimensão ou
‘coordenada’ “x”.
O que ocorre aqui, naturalmente, é que, como é regra geral na análise de uma
‘substância’ (considerada aqui uma ‘física’ que já se aproxima de uma ‘química’), a
quantidade da substância, o tamanho-extensão da amostra, não é critério de análise
dessa substância. Em outras palavras, se estamos ouvindo um sinal acústico de 400 Hz
e, em seguida (mantidos os demais parâmetros), um sinal de 600 Hertz, diremos: aquele
era um som “A” e este é um outro som “B”, que me impressiona diferentemente o
sentido de audição. E isto, desnecessário dizer, é válido para a amplitude (intensidade) e
a estrutura de parciais (timbre). Lembremos que, mesmo no caso da intensidade,
teremos, no sentido estrito que usamos aqui, um som “A”, suave, e um outro som “B”,
forte - na medida em que me impressionam diferentemente a audição. Evidentemente,
no caso da duração, se somos expostos a duas ocorrências acústicas, uma de
freqüência-amplitude-timbre “x-y-z” com 0,3 segundos de duração e outra com os
mesmos valores “x-y-z”, mas com 1,5 segundos de duração, não teremos um som “A”
e um outro som “B” no sentido de dois sinais acusticamente diferentes. Teremos, a
rigor, o contraste ‘pouco A’ / ‘muito A’. Nenhum aumento ou diminuição da
quantidade de “A” produzirá algo que seja acusticamente um “B”.
Com efeito, se transpusermos esse raciocínio para o campo da análise, digamos,
de vinhos, devemos admitir que duas amostras de vinho, analisadas com o parâmetro
127
suave/seco, nos permitirão distinguir um vinho “A” de outro vinho “B”. E diríamos que
este vinho “A” é mais seco que aquele vinho “B”. Ao passo que a variação apenas do
parâmetro quantidade jamais (em plena consciência, e fora do contexto bíblico)
resultaria em uma percepção de diferença qualitativa específica dos vinhos. Diríamos:
esta pequena amostra de vinho e aquela grande amostra de vinho não me impressionam
diferentemente o paladar; trata-se do mesmo vinho "A" . Em suma, a quantidade é
claramente externa a uma ‘ciência do vinho’ tanto quanto a duração (quantidade,
extensão) é externa à ciência do som.
Por que, então, tendemos a nos sentir apoiados numa certa ‘segurança’ e
objetividade ‘científica’ quando pensamos no quarteto altura, intensidade, timbre,
duração? O que nos autoriza a inclusão de duração a um conjunto de ‘parâmetros’ que,
a depender da física, são somente três: altura, intensidade e timbre? Em outros termos, o
que nos leva a aglutinar uma classe tão (i)lógica quanto, digamos, laranja, banana,
maçã, oxigênio!? Se o núcleo axiológico Altura/Duração (conforme o capítulo
introdutório), ou antes, se a teoria-musical cultivava em algum nível implícito ou
explícito de nossa consciência a alegação de estar ‘cientificamente apoiada’ numa física,
o que pensarmos agora (voltados para o ritmo), se admitirmos que tal apoio nos é
retirado no momento em que excluímos “duração” do campo de competência da física
do som?
Tal apoio, tal base, poderíamos alegar, seria uma fenomenologia da música (não
uma física ‘positiva’). Entretanto, aquilo que apóia a indevida agregação de duração
ao conjunto ‘real’ dos parâmetros do som (e ‘portanto’, da música) parece ser, não uma
fenomenologia da música, mas uma fenomenologia dos instantes inaugurais do
letramento musical. Mas uma fenomenologia da música, do ritmo, deve — e talvez o
deva ‘por definição’, ‘por dever de ofício’ — se despir dos ‘apoios’, em particular
daqueles que se cristalizam em solidariedade com os ‘letramentos’ de qualquer
natureza. Trata-se, se somos letrados, de induzir o movimento de pensamento, de
introspecção, se assim quisermos, em direção ao leigo, ao ‘laico-iletrado’ que ainda
reside em nós e que será, por excelência, o único e rarefeito ‘apoio’ e ‘juiz’ numa
aventura de descoberta. Ou talvez não de descoberta, mas de re-descoberta, de
recordação e presentificação de uma experiência musical ‘ingênua’ que, de forma a
princípio difusa e hesitante, se põe como objeto para o olhar analítico presente. O que
é que eu faço?; como procedo para operar ritmicamente no escopo da música tonal?
128
Aquém da duração
É nesse sentido que poderemos aqui lançar mão de alguns insigths que resultam,
quero crer, de exercícios aos quais, de forma ampla, chamaríamos de fenomenológicos.
Jean Piaget, que obviamente não praticou a introspecção stricto sensu mas a
prospecção da intimidade mental infantil (o que para nós se qualifica como uma
‘fenomenologia’, no sentido largo), examinou a questão do tempo na criança (Piaget,
1946). E o fez, como narra na introdução de seu estudo, motivado por “uma sugestão
que Albert Einstein nos fez quando presidiu (.....) os primeiros cursos internacionais de
filosofia e psicologia, em Davos”.
É revelador, se vale aqui minha interpretação desse contato Einstein/Piaget,
notar que aí se realiza o exercício ‘fenomenológico’ a que aludimos mais acima. Ou
seja, aquele pesquisador que podemos localizar no ápice das operações ‘letradas’ (ou do
cálculo numérico), i.e., o físico Einstein, pergunta à ‘criança’ (ao nosso ‘laico-iletrado’)
representada por, ou ‘através de’, Piaget: “[A] intuição subjetiva do tempo é primitiva
ou derivada, e, também, solidária, ou não, da intuição de velocidade?” (aqui, Piaget
parafraseia a curiosidade de Einstein face às pesquisas com crianças realizadas pelo seu
interlocutor).
Uma das respostas de Piaget sobre a duração, o tempo (que nesse ponto ele
chama de ‘continuidade psíquica’), é a seguinte: “[A] continuidade psíquica é, não um
dado, mas uma obra”. A duração não seria, inferiríamos nós, aquele primitivo do qual,
confinados à teoria-musical, teríamos de dar conta antes de podermos falar sobre ritmo.
Mas, mais explícito que Piaget, na medida em que encara frontalmente a música, foi Gaston Bachelard (Dialética da Duração – 1933).
[A] 'duração' de uma nota não é, em música, um desses elementos puros, nitidamente primitivos, como fariam crer os professores de solfejo.
Longe de os ritmos serem necessariamente fundados numa base temporal uniforme, os fenômenos da duração é que são construídos com ritmos.
Para durarmos, é preciso então que confiemos em ritmos, ou seja, em sistemas de instantes.
Obs. O termo “ritmo” em Bachelard significa aproximadamente aquilo que chamamos de pulsação.
129
Como vemos, em Bachelard encontramos não somente um escape para o
exterior da axiologia altura/duração, mas um confronto com o próprio tempo (duração).
Tal como Piaget, Bachelard desloca a duração/tempo de uma posição de primitivo, mas
vai além, afirmando que, mais primitivo que a duração (uma “obra”, para Piaget) são os
ritmos, sistemas de instantes. A base temporal uniforme (que interpretaríamos aqui
como, por exemplo, a unidade duracional de tempo da teoria-musical) resulta de
pulsações (i.e. ‘ritmos’, na terminologia de Bachelard), e não o inverso (voltaremos à
questão da pulsação mais adiante).
Sem dúvida, esses insights nos abrem uma porta para o exterior do núcleo
axiológico altura/duração. Fora desse núcleo podemos já colocar como que sub judice a
idéia de que percebemos duração no sentido de que tal percepção seja o limite de
primitividade que podemos atingir na análise da questão do ritmo. Há algo mais
primitivo, ‘mais ontológico’, que se situa ‘nos bastidores’ daquilo que chamamos de
perceber a duração, ou, como exige a teoria-musical, perceber durações (no plural). E
já caberia aqui perguntar se a expressão “bastidores” — entendida como lugar daquilo
que se passa sem que nos demos conta no plano consciente (tal como parece ser o caso
no sistema de localização diatônica que já vimos) — também se aplicará no caso do
ritmo.
Mas, em todo caso, devemos colocar a questão: se hipoteticamente admitimos
que não é o perceber durações o mecanismo fundamental que nos garante o operar
ritmicamente; se não é perguntando ‘quanto você dura’ a cada som (ou silêncio) que
vai desfilando diante de nós à medida que uma melodia se nos revela; se não é isso que
descreve fundamentalmente o operar ritmicamente no escopo da música tonal, então o
que se coloca nesse lugar? Qual é a ‘pergunta’ que precisamos ter respondida para
‘sabermos’ que ritmo é esse, o que e como esse som me informa, de modo que eu
entenda sua identidade rítmica?
Para termos algumas respostas preliminares a essas questões, vou proceder aqui
da seguinte maneira:
(a) Vou expor ao leitor o meu próprio insight, i.e., aquilo a que sou levado a
dizer em resposta à questão o que é que eu faço, o que é que eu procuro,
dado o conjunto de eventos que integram uma melodia, de forma a
130
‘conhecer’ aquilo que um determinado som ‘me diz’ do ponto de vista
rítmico?
(b) Narrar minha experiência pessoal no campo da criação & improvisação ‘em
tempo real’ de músicas simples para atividades de dança e ginástica; caso em
que é relevante o discurso sobre música e ritmo produzido pelas estudantes
de dança/ginástica.
(c) Lançar mão de Insigths de outros autores, que corroboram de uma maneira
geral o teor das experiências acima.
Duração como efeito
Antes de tudo — já que visivelmente estamos nos encaminhando para uma
negação da duração como ‘substância’ ou atributo primitivo no operar ritmicamente —
é importante ressalvar aqui que, obviamente, o durar e mesmo a variação longo-curto
não podem ser excluídos do fato musical, da mesma maneira que a temporalidade
‘durativa’ em geral não pode ser abolida a não ser ao preço radical de abolirmos a
própria condição fundamental das coisas, do existente, ou do ser, em geral. Em especial,
nas ‘coisas’, processos e padrões dinâmicos, ou seja, nas coisas que se dão a conhecer
como evento ou sucessão de eventos que, sem uma espera específica, não integraríamos
em um todo; nessas coisas — e a música é uma delas — os efeitos de duração são
elementos significativamente integrantes. O longo e longuíssimo, o breve e o
brevíssimo estão ali e nos ‘dizem’ algo. A longa entoação de “a-” seguida de curtos “ti-
rei-o-pau-no” (...gato), ou o longuíssimo fá#, seguido de curtos si-sol-mi-ré-dó#-ré.... ,
da conhecida Ária de Bach, são recursos eloqüentes da arte musical. Assim, uma
completa teoria do ritmo deve ter um capítulo especialmente reservado para esses
efeitos. E uma tal teoria talvez abarcasse campos de interesse não apenas musical mas
também dos fenômenos em que intervém a ‘intencionada’ ‘administração’ quantitativa
de porções temporais ora mais, ora menos obviamente discretas. Aí estariam o cinema
(a montagem, os cortes, etc); os recursos quase ‘instintivos’ que caracterizam coisas
como ‘ritmo’ cômico ou outro; certas manobras astuciosas e sutis da oratória, dos
espetáculos de pantomima e da prestidigitação dos mágicos; e mesmo as manobras
‘rítmicas’ do pensamento verbal que transparecem no texto escrito por via das
pontuações e outros recursos (a esse respeito, ver Chacon, 1998). Aí estaria também a
131
arte de operar expressivamente as flutuações de andamento e acentuação-ênfase da
agógica musical.
No entanto, tudo isso pertenceria a uma análise do ritmo cujo interesse seria a
elucidação do fenômeno nos seus aspectos ‘analógicos’, icônicos, não-categóricos, ao
passo que aqui, numa acepção estrita de ritmo métrico-tonal, nos interessará o
categórico: o que é que, categoricamente, ‘exatamente’, tenho de ‘extrair’ de, ou ‘saber
sobre’, um som de uma melodia para entendê-lo ritmicamente? O que faz esta nota
ritmicamente diferente daquela nota?
Mensurabilis, immensurabilis
Em outras palavras, não nos interessará o tipo de ritmicidade já presente na
musica immensurabilis, como já foi chamado o cantus planus, o cantochão medieval,
cujo ritmo, na afirmação de Rieman (1882), “n’est pas déterminé par la forme des
notes”. (E nessa declaração já vemos em ação a axiologia verbo-visual a que aludimos
no nosso capítulo inicial). Em contraste com a musica immensurabilis, a musica
mensurabilis — aquela que, já a partir da Ars Nova do século 14, virá a ser a música
métrico-tonal que nos interessa — tem (1) um ritmo categórico (nesse sentido,
‘determinado’, i.e., categoricamente ‘medido’) e (2) um ritmo que, segundo a visão
canônica, é ‘determinado’ pela forma das notas, ou seja, pelas durações encapsuladas
naqueles grafismos ou grafemas que são irmãos do número e que, assim, ‘contêm’
durações proporcionadas conforme as propriedades de divisão exata do inteiro em
metade, metade da metade (1/4), etc.; ou em terça parte (1/3), etc. - conforme fosse
‘perfeita’ (1/3) ou ‘imperfeita’ (1/2) tal divisão. (E não caberá aqui analisar, mas apenas
sugerir que uma reflexão sobre essa direta transposição do número para o domínio dos
fenômenos extensos, das ‘substâncias’ – objetos de ‘percepção’ – talvez nos mostrasse
com clareza uma operação de ‘substancialização’ desprovida de fundamentos, e que é
integrante das operações que se agregam ao núcleo axiológico altura/duração. )
Por seu turno, a musica immensurabilis, a Ars Antiqua tal como praticada na
esfera eclesiástica, tem um ritmo que não se reporta ao número, pois, “[D]eve-se
procurar a base do ritmo gregoriano na estreita ligação que une as melodias ao texto
latino” (Cardine 1970 [1989]). Isso já nos sugere, em conexão com a passagem
132
modal/tonal já abordada mais acima, que há, no mínimo, uma co-ocorrencia histórica
entre a passagem modal/tonal e essa mudança de ‘base do ritmo’ desde a dependência
em relação à linguagem-fala (onde o ritmo musical é determinado por) até uma suposta
base numérico-duracional (que, se demonstrada falsa, desloca o ritmo para uma posição
determinante nos termos já vistos no início do presente capítulo).
Em resumo, não se tratará aqui da negação da função estético-perceptual dos
efeitos e contrastes durativos em geral, mas da seguinte questão: a mudança da música
de modal (eclesiástico) para tonal, no que se refere ao tratamento dado às alturas, é pari
passu acompanhada por, ou entretecida a, uma mudança no tratamento dado à
temporalidade, ao ritmo. Mas, pergunta-se, essa mudança no campo da temporalidade
pode ser equacionada como uma passagem da duração não-categórica para a duração
categórica?
Se admitimos que a resposta é positiva, teremos de admitir a possibilidade de
que, ao compararmos dois lapsos de tempo (sejam total ou parcialmente preenchidos
por sons, sejam ‘preenchidos’ de silêncio), somos capazes de ‘perceber’ de forma
categórica que um lapso “A” tem, digamos, a metade da extensão de um lapso “B”. Ou
seja A = B/2. Nós temos essa faculdade? Ou ainda, pergunta-se, nós de fato fazemos
operações musicalmente significativas do tipo, se U (‘unidade de tempo’) = 1 então A
= ¾ de U e B = ¼ de U. ? (onde “A” seria uma colcheia pontuada e “B” uma
semicolcheia). Tais operações são musicalmente funcionais? Ou mais ainda: nós
saberíamos, pelo puro julgamento da ‘duração’, que um “A” é duracionalmente idêntico
a um “B”? (voltaremos a isso logo abaixo).
O que assumirei aqui é que, tanto quanto o ‘julgamento’ um tom é o dobro do
semitom, tais operações de avaliação comparativa categórica de durações são
radicalmente externas ao operar ritmicamente no escopo da musicalidade métrico-tonal.
Tais operações categóricas com ‘durações’ são ilações ou inferências ex post facto,
trazidas à cena quando e se nosso objetivo é escrever a música. E daí decorre que, seja
ontologicamente, seja historicamente, a invenção da notação proporcional ‘exata’ não
‘determina’ ou condiciona, a emergência ou permanência histórica do ritmo métrico-
tonal. Pelo contrário, a linguagem, a musicalidade métrico-tonal (mas não a grande
obra artístico-musical!) é tão anterior à notação quanto a linguagem verbal (mas não a
literatura!) é anterior às escritas.
133
Mas deve-se, com efeito, fazer claramente a ressalva (como nos dois parênteses
acima) de que, o desenvolvimento da grande arte musical (e literária) em direção às
complexidades e novas descobertas formais e expressivas seria impensável sem a
invenção das notações. No entanto confio aqui no parentesco entre o núcleo axiológico
verbo-visual (e sua persistência no repertório fundamental de ‘primitivos’ que são
convocados tacitamente no pensar sobre a música) e as seguintes constatações de
Ferdinand de Saussure (1916: 34-35) no domínio do verbal.
Língua e escrita são dois sistemas distintos de signos; a única razão de ser do segundo é
representar o primeiro; o objeto lingüístico não se define pela combinação da palavra escrita e da
palavra falada; esta última, por si só, constitui tal objeto. Mas a palavra escrita se mistura tão
intimamente com a palavra falada, da qual é a imagem, que acaba por usurpar-lhe o papel
principal(...)
A língua tem, (....), uma tradição oral independente da escrita e bem diversamente fixa; todavia, o
prestígio da forma escrita nos impede de vê-lo.
Mas como se explica tal prestígio da escrita? [Saussure se pergunta]
Em resposta, Saussure diz (e não importa aqui se, na sua intensidade retórica, o
autor seja talvez demasiadamente severo ao ‘rebaixar’ a escrita da posição de
importância que sabemos ter ) :
A língua literária aumenta ainda mais a importância imerecida da escrita. Possui seus dicionários,
suas gramáticas; é conforme o livro que se ensina na escola; a língua aparece regulamentada por
um código; ora, tal código é ele próprio uma regra escrita, submetida a um uso rigoroso: a
ortografia, e eis aqui o que confere à escrita uma importância primordial. Acabamos por esquecer
que aprendemos a falar antes de aprender a escrever, e inverte-se a relação natural.
Voltando à questão da duração, assumirei também que, sim, ‘percebemos’ e
julgamos contrastes duracionais. Mas tais operações se resumiriam, em última instância,
a duas situações:
(a) A > B, onde se representa um continuum que abarca julgamentos como “A”
é um pouquinho maior que “B” ; “A” é maior que “B” ; “A” é muito
maior que “B”, etc.
(b) A ? B, onde se representa o julgamento: não consigo dizer se há diferença de
extensão entre “A” e “B”; o que é essencialmente diferente da afirmação
134
categórica “A” é idêntico a “B” — i.e., nós não ‘percebemos’ diretamente
algo como a quantidade de tempo transcorrido “A” é idêntica à quantidade
de tempo transcorrido “B”.
E essas duas situações não podem dar conta do ritmo tal como o praticamos
numa melodia ou numa construção puramente rítmica (seja musical-sonora, seja
gestual-visual, etc.). Em suma, o operar ritmicamente (na musicalidade métrico-tonal),
ao se afastar de uma ‘base’, ao se emancipar de uma subserviência icônica,
incidentalmente prestada ao verbal no campo eclesiástico, não passa a ter, como sugere
a teoria-musical, uma base numérico-duracional. Nesse sentido, o ritmo não muda de
um para outro ‘mestre’, de um para outro determinador (da palavra para a proporção
numérica), mas passa a ser ‘mestre’, ele próprio autônomo e determinante.
Quandidade
O que devemos reter do contraste immensurabilis / mensurabilis é somente a
noção do categórico (como correlativo de mensurabilis), retirando de cena qualquer
pretensão de percepção categórica de durações. Assim, permanece o fato de que, no
operar ritmicamente, há algo que, de forma primitiva, ‘percebemos’ ou ‘conhecemos’
categoricamente — tal como em ‘aquela é Maria’, não ‘alguém aproximadamente
Maria’. E esse algo não é duração.
Não é, pois, uma quantidade, mas esse algo será aquela ‘propriedade’ que
individualiza um ponto-de-tempo; será aquilo que temos como resposta à pergunta
“quando”, não à pergunta “quanto” (d/t). Esse algo categórico seria então uma
‘quandidade’ (Moraes, 1991), (whenness – Moraes, 1996). Vejamos:
Numa primeira aproximação, poderíamos dizer que aquilo a que dirigimos a
pergunta “quando” não é ‘um som’ ou ‘este som’ (ou tonalidade representada por uma
altura), mas o ponto de ruptura entre dois estados acústicos. Assim, o portador da
informação rítmica seria aquele ponto de tempo em que nos damos conta de que ‘algo
mudou’: eu estava ouvindo um dó e ‘neste ponto’ o dó se fez ausente para dar lugar a
um ré. Ou então: havia silêncio e ‘neste momento’ o silêncio ‘se fez ausente’ para dar
lugar a um som. Ou ainda: eu estava ouvindo um sol e ‘neste ponto’ uma súbita queda
135
de intensidade do sinal acústico imediatamente seguida de um repentino ‘pico de
intensidade’ – do mesmo sol – se apresenta para mim como uma ruptura entre um sol e
outro sol (e já se poderia perguntar aqui se, a rigor, houve nesse caso uma ruptura
entre dois estados acústicos).
O que se deve criticar nessa primeira aproximação é que estaríamos aí ainda
demasiadamente próximos da notação musical, da axiologia duracional: estaríamos
descrevendo rupturas que ‘vamos encontrando’ ao percorrermos o fluxo musical.
Estaríamos com nossa atenção em estado de aderência ao fluxo linear do estímulo físico
‘objetivo’. Assim, devemos nos afastar desse ‘estado de aderência’ para, como que,
abordar ‘de fora’, perpendicularmente, o fenômeno que desfila diante de nossa atenção.
E aqui não estamos assumindo que ritmo corresponde à idéia de discretização – de
divisão em partes - do continuum temporal dado mas que, em certo sentido, ritmo
corresponde a algo de uma ordem anterior ao continuum (como já sugerido por Piaget e
Bachelard, mais acima). Aquilo a que dirijo a pergunta “quando”, nesse caso, deixa de ser concebido
como uma transição entre dois ‘blocos duracionais’ contíguos (que é a única coisa que
posso ‘ver’ quando naquele estado de aderência ao fluxo linear). Há algo mais nesse
processo de ‘perceber’ um quando, uma quandidade (d/t), de um signo rítmico. Há que
se incorporar um sujeito-agente hipotético no interior do cenário mental em que se
processa esse ‘perceber’. Esse agente, ou essa agência, é indissociavelmente
constitutiva desse ‘perceber’. É aquilo a que eu, percebedor, atribuo uma iniciativa, um
gesto incoativo que tem como objetivo fazer surgir um evento sonoro. É função inerente
ao percebedor aceitar (e sempre se colocar em sincronia com) uma decisão de ‘dar
início a’. O momento pontual dessa decisão, virtualmente simultâneo à sua
manifestação acústica como o ataque de um som, é aquilo que interessa ao percebedor.
A qualidade rítmica desse ponto de ataque (entendido como expressão sintética dos
fenômenos descritos acima) é o quando, a quandidade que o percebedor procura para
entender ritmicamente esse som. Essa quandidade não é, no sentido anterior, uma
propriedade ou ‘parâmetro’ desse som. Mas a decisão de ‘dar inicio a’ não se manifesta
sem ter dentre seus objetivos a definição ou ‘convocação’ de um som (seja uma batida
percussiva, seja, no caso da melodia tonal, uma função tonal). Mas, não sendo um
atributo físico do som (como são os outros), tal quandidade é atribuída a, e assimilada
por, esse som como sua identidade rítmica. Assim, o entendimento rítmico não depende
136
fundamentalmente do som anterior ou posterior, mas apenas da resposta à pergunta
dirigida a um som: ‘Quando você nasce?’ ; Quando você passa a ser? Ou um
categórico quem (i.e. quando) é você? Uma vez respondida essa pergunta, não é
necessário que o percebedor ‘acompanhe’ o progresso durativo desse som até seu final
(e tampouco até qualquer ponto significativamente posterior ao seu ponto inicial), pois
sua identidade rítmica já se deu a conhecer no momento ou ‘processo’ de seu
‘nascimento’ (a permanência durativa do som será, sim, imprescindível para a
percepção de sua altura). Após esse som, provavelmente virá outro ou virão outros,
que serão inevitavelmente diferentes dele do ponto de vista rítmico. E serão todos
ritmicamente diferentes, mesmo que esse som e todos os subseqüentes tenham ‘a
mesma duração’, pois, enfim, a diferença rítmica corresponde à diferença de ‘posição’
temporal dos inícios dos sons - à diferença de quandidade.
Paidéia : Música e Ginástica
Como posto mais acima, o que acabo de dizer decorre do que eu chamaria de
uma experiência ou insight bastante pessoal, para o qual, sem dúvida contribuíram
muitas falas, ocorrências e fatos provenientes de terceiros, os quais, no entanto
pertencem àquela coleção difusa de motivações e ‘fontes’ que se confundem e se diluem
naquilo que chamamos de ‘vivência’ (particularmente o cotidiano de mais de duas
décadas como professor da área musical).
No entanto, devo destacar, dentre aquelas ‘vivências’, a maneira curiosa como
estudantes de dança e ginástica rítmica se dirigiam a mim (que, com base no meu parco
conhecimento pianístico, atuava como acompanhador musical das coreografias) para
elucidar problemas de memorização e sincronização da dança com a música.
Tratava-se, em 1979-81, de diálogos por excelência em torno de problemas
rítmicos. E é inevitável, hoje, especular sobre algum longínquo eco da paidéia grega, já
que “[A]o lado da música, como a outra metade da paidéia, coloca Platão a ginástica”
(Jaeger, 1989 : 547); e que ‘lá no fundo’, a in-formar ambos – música (naturalmente
numa acepção mais ampla que a nossa acepção atual) e ginástica, ‘espírito e corpo’ –,
deveria haver um senso fundamental de ‘euritmia’ (op. cit. 545) — tal como na África
(conforme vimos no capítulo introdutório) o axé do som e do ritmo mobiliza
indistintamente corpo e alma/intelecto.
137
Na época a que me reporto aqui (em situações não envoltas no cenário
especulativo descrito acima), o que me saltou à vista foi que em nenhum momento, ao
longo daquele período, foi feita qualquer referência à noção de duração (seja explícita,
seja por via de termos ou expressões equivalentes).
Por exemplo: nunca ocorreu de se perguntar (e aqui trata-se de paráfrases
minhas) o quanto deveria durar esse levantar de braços para que esse gesto coincidisse
com a duração daquela nota. Ou, de forma inversa: você não poderia modificar a
música de tal forma que aquela nota ou acorde tenha uma duração adequada a esse
deslocamento, ou àquele grand-jeté?
Em vez disso, as questões eram na maioria das vezes expressas com um onde —
e esse onde naturalmente não se referia ao lugar no espaço em que se desenrolava a
coreografia, mas ao quando na música, ou ‘da música’. Dizia-se, então: você poderia
tocar novamente, para eu perceber melhor onde eu faço esse movimento? Ou
simplesmente: onde eu devo fazer isto (demonstrando com o próprio corpo)? E quase
sempre o ‘fazer esse movimento’ significava o iniciar esse movimento, que deveria co-
incidir com o iniciar de uma determinada nota ou acorde. Tratava-se de uma questão de
sincronia — onde ‘cronos’ tem a acepção pontual de horas na expressão “que horas
são?”; ou de time em “what time is it?”: em que ‘ponto- de-tempo’ se ancora ‘it’, este
agora?
Nos termos expostos mais acima, o fenômeno complexo dança-música (ou
música e movimento corporal) pressupõe, então, que inícios de gestos corporais e
inícios de eventos musicais (ou dos gestos ‘transfigurados em música’) compartilham as
mesmas quandidades (de forma mais flexível ou ‘alusiva’ na dança artística e mais
‘exata’ na ginástica rítmica). Em suma, o gesto corporal stricto sensu e o gesto (também
‘corporal’, pois “gesto” quer aludir a “corpo”) transfigurado em música devem
compartilhar um mesmo conjunto de quandidades. Mas o que está sendo dito aqui senão
que dança e música devem compartilhar um ritmo? E se esse elemento compartilhado é
um conjunto de quandidades, ritmo é, ou reporta-se fundamentalmente a, um conjunto
de quandidades. Realizar (ou mesmo conceber) uma seqüência coreográfica, assim
como realizar (e, novamente, conceber) uma frase ritmico-musical, é convocar,
conforme o caso, esta ou aquela ‘substância’ nos momentos de antemão projetados, ou
seja, em sincronia com uma forma constituída de quandidades (o que se põe em acordo
138
com a idéia da precedência do ritmo sobre a ‘melodia’, defendida pelos autores que já
citamos no início do presente capítulo).
Como já se insinua mais acima, uma outra ‘constatação’ a que hoje sou levado,
ao tematizar a ‘convivência’ com a dança, é que o termo “gesto”, tão ‘literalmente’
adequado ao caso da dança, da coreografia, não tem, quando apropriado pelo campo da
Teoria Musical, um valor apenas metafórico ou alegórico. A musicalidade métrico-
tonal, dada sua já alegada ‘gênese’, ou sua ontologia, rítmica, terá no gesto, entendido
como algo efetivamente radicado no corpo, a sua ‘base’, ou pelo menos uma de suas
bases mais importantes.
Duas Histórias das Músicas
O histórico banimento do trítono, a anterior desimportância da ‘nota
movimentadora’ (pyen) ou a desatenção com a nota ‘sensível’ (que conduz a uma outra
nota) parecem ser, no fundo, o banimento do corpo. E, de fato, antes do veto ao
diabolus in musica, o Papa Zacarias, século oito, proíbe a dança no âmbito religioso (v.
Scholes 1975: 276). Assim, o gradual movimento de ‘desobediência civil’ em relação ao
controle eclesiástico aparece mais visivelmente na história da música como uma
liberdade conquistada para usar tais e tais notas e intervalos. Mas o ‘conteúdo profundo’
desse processo emancipatório em relação à lex eclesiástica não se revela inteiro se não
consideramos uma conquista de liberdade para a manifestação do corpo individual (não
somente do logos individual do ‘livre pensar’).
Neste ponto, a questão que se coloca, inteiramente relacionada com a
convivência com a dança narrada mais acima, é concernente à história da música. A
saber, até este momento, adotamos de forma tácita uma ‘história oficial da música’ que
equaciona o canto (inicialmente) monódico litúrgico e a música tonal como um fluxo
evolutivo monolinear no qual vemos um antecedente (cantus planus) e um conseqüente
(tonal) — em particular quando, no capítulo anterior, falávamos sobre a passagem
modal/tonal no cenário maior de um processo de emergência de uma racionalidade (à
Max Weber) Acontece que, agora, ao evocarmos a dança, não podemos deixar de notar
a insuficiência dessa historiografia musical, na medida em que ela parece ser em algum
grau caudatária da axiologia altura/duração (fundamentalmente comprometida com uma
139
descrição ‘positiva’ do ‘som em si’) e desatenta para as coisas do corpo, dos fazeres de
um sujeito-corporal. Mais especificamente, pergunta-se: a música da igreja, o cantus
planus, seria um antecedente suficiente para um conseqüente tonal? Trata-se de somente
um ‘rio’, de águas modais, que, ao adentrar um território, ou uma ecologia, onde
predominam princípios de organização racional, tem suas águas afetadas no sentido de
se tornarem tonais? (Isso parece ser verdadeiro, mas seria suficiente?). Ou, ao contrário
daquilo que o relato histórico mais comum costuma nos mostrar, devemos ver (pelo
menos) dois ‘rios’ que, por volta do século dezesseis, confluem para se tornar um
‘grande rio’ métrico-tonal? Essa segunda hipótese me parece ser a mais correta.
Um dos dois rios medievais (que tende a se passar por único) tinha seu leito nas
terras letradas e explicitamente legisladas da ‘alta cultura’, gestada e gerida pela
Instituição Religiosa. O outro rio tinha seu leito nas terras laicas, iletradas e
implicitamente legisladas de uma cultura tecida com as fibras dos desejos, necessidades,
paixões, afetos e sonhos dos indivíduos mundanos. Esse outro rio, ou seja, essa outra
música, medieval laica, embora tecnicamente ‘modal’ no que concerne às suas escalas,
sempre fora, no seu ritmo, uma musica mensurabilis. Mas tal mensuração não decorria
nem da esfera da fala-verbo (pois na Canção, seja atual seja medieval, quem comanda
em última instância é a música, não a letra), nem das proporções numéricas. E essa
música era essencialmente ‘metrificada’, muito antes de ser polifônica: não seria, pois,
somente a complexidade polifônica erudita que gera a demanda por uma sincronização
‘precisa’ e ‘racional’. Era uma música de ritmo ‘autônomo’, ‘intrínseco’ e
freqüentemente ‘frasal’, a qualquer momento em que, com um tamborim e uma flauta
qualquer, se animava uma festa ‘pagã’. E ali a dança. É esse rio que traz para o que será
o grande rio tonal o elemento rítmico, ou seja, a Dança, os gestos que perpassam (e
emergem de) o que quer que chamemos, com um só nome, de corpo-e-mente, instinto-
e-intelecto. Nesse sentido, lemos em Scholes (op. cit : 275) que:
Throughout modern history there has been a tendency for the European folk dances to pass from
the village greens to the salons of the aristocracy and the courts of monarchs — and thence many
of them passed, so far as their rhythm and musical idioms are concerned, into instrumental music,
which gives the history of the dance a great importance for the study of the history of music.
140
Nessa perspectiva, vemos a música (cantus planus) incorporando algo da Dança
para, por assim dizer, se tornar Música. Mas essa ‘aproximação’ tem como
contrapartida um ‘afastamento’:
The transition from free rhythms, such as we find in plainsong [que, como vimos em Cardine, mais
acima, não são exatamente livres] (.........) to steady two-, three-, four-, or six-in-a measure
rhythms, is probably due to the dance (.........) the actual dance forms were widely taken up by
composers in the early days of independent instrumental music (....)(Scholes : 277).
E não é demais acrescentar, como já foi sugerido, que, se declaramos algo
‘independente’, como na expressão “independent instrumental music”, há aquilo de que
a música era ‘dependente’, ou seja, era derivativa da prosódia latina, calcada no texto
verbal da liturgia (e não simplesmente ‘livre’, como ressalvamos acima).
Um testemunho histórico: desencontro dos acentos
Testemunhos historicamente contemporâneos dessa confluência entre a ‘cultura
musical do som’ e a ‘cultura musical do ritmo’ merecem ser mencionados aqui. Um
deles, Stoquerus (1570), nos retrata, em sentido amplo, os sintomas da emancipação do
ritmo em relação comando prosódico exercido pela fala litúrgica. O outro, Arbeau
(1589), testemunha a incorporação daquele outro ‘rio’ – o da música-dança – à cultura
humanista-moderna, onde se plasma a musicalidade métrico-tonal em vias de se tornar
hegemônica no mundo ocidental.
Para falarmos de Gaspar Stoquerus (um discípulo de Salinas), devemos lembrar
que o cantochão é, por definição, uma música vocal. Mas, ainda mais que isso, não se
trata de ser simplesmente vocal, mas de ser vocal na capacidade de ser verbal. Embora
disciplinando os caprichos e ‘excessos’ prosódicos da fala comum em favor da
sobriedade litúrgica, o cantochão, a melodia desse canto, se apoia diretamente nos
elementos da fala, de maneira que a possibilidade de conflito acentual entre ‘música e
letra’ é virtualmente nula: o formato prosódico de um é (com as ressalvas feitas) o
formato prosódico do outro.
O cantochão, assim, pode ser dito uma ‘música verbal’. E é esse exatamente o
título do texto de Stoquerus: “De Musica Verbali” (On Verbal Music, na versão
141
inglesa). No entanto a preocupação do autor não se dirige ao cantochão, mas a um
problema que ele descreve já no longo título do seu Capítulo I:
The method of applying the words to the notes is shamefully ignored by musicians and cannot be
easily learned without precepts.
Na idéia de ‘aplicar palavras às notas’, portanto a melodias eventualmente pré-
existentes, vemos logo que estamos fora dos domínios do cantochão. Solidários a
Stoquerus, devemos admitir que nada é mais incômodo para o ouvinte ‘sensível’ que
palavras irremediavelmente mal encaixadas em uma melodia no que diz respeito à
acentuação e mesmo ao número de sílabas. Por outro lado — e isso não parece ser
compartilhado por aquele autor — um certo desencontro prosódico letra/música pode,
no outro extremo, ser uma arte das mais refinadas. Mas isso se refere à canção, não ao
cantus planus – e a diferença entre cantochão e canção é abissal. Entretanto, Stoquerus,
como um vigilante teórico do século 16, parece ter um pé no mundo medieval e um pé
na modernidade e, assim, retém as regras ‘naturais’ do passado eclesiástico para
projetá-las em um mundo laico de canções cheias de ‘erros’; e percebe esses erros como
decorrentes da ‘vergonhosa ignorância’ dos músicos.
No entanto, tal ignorância, para o compositor renascentista a quem se dirige
Stoquerus, não teria a acepção do ‘não saber’, mas aquela outra, de ‘não querer saber’,
do ‘afastar-se de’, ou ainda, de saber outra coisa que tem mais urgência e importância.
Ignorar as ‘regras do verbal’ — e Stoquerus se ressente com o fato de que são regras
‘negligenciadas por quase todos os músicos’, “negleted by almost all musicians” — é
exatamente a virtude daqueles músicos que, agora adentrando a cena mais visível da
História, trazem consigo um outro saber; um saber não exatamente novo, mas
anteriormente ‘invisível’, não sancionado pela ‘alta cultura’ medieval que naquele
momento vai se retirando do proscênio.
O que Stoquerus está testemunhando é o gradativo irromper de uma linguagem:
a música stricto sensu (não verbal), cujos ritmos (‘medidos’) se punham em conflito
com aqueles (‘não medidos’) da musica verbali. Ele está, diríamos nós, vivendo
dramaticamente um processo de passagem, ou seja, aquele que deságua na maioridade
histórica da musicalidade métrico-tonal.
142
Retomada das origens
Mas — insistiríamos na pergunta — o que é esse outro saber, que não se origina
diretamente do verbo? Ou ainda, é possível conceber algo que não se origine do verbo
no interior de uma cultura, a nossa, que nos ensina: “no princípio era o verbo” (Gênesis,
conforme versículo primeiro do Evangelho segundo João)?
A resposta, se pensamos numa Europa pré-moderna, deverá ser negativa (nesse
sentido, Stoquerus não poderia pensar sobre a música em outros termos, conquanto a
prática musical já se exercesse ‘inconscientemente’ sobre outras bases.
No entanto, se nos deslocamos para o século dezenove, encontramos, e
exatamente na voz de um regente de orquestra, a ‘heresia’ que nos interessa. Não o
verbo, mas, em desafio ao cânone religioso, no princípio era o ritmo, conforme o jogo
de palavras atribuído a Hans von Bulow (cf. Allen 1962: 195). (Já vimos essas palavras no
início deste capítulo, reproduzidas por Cooper e Meyer, como algo que seria, no século vinte, já
tácito para “every musician, whether composer, performer or theorist”).
E é nesse mesmo século dezenove que o pensador inglês Herbert Spencer — tanto
quanto Charles Darwin, interessado nas origens e diversificação das coisas — dirá:
Rhythm in speech, rhythm in sound, and rhythm in motion, were in the beginning parts of the
same thing, and have only in process of time become separate things. (Herbert Spencer, apud
Allen, op. cit. : 115).
Mas o que será essa ‘mesma coisa’, “same thing”, de onde se origina um ‘ritmo’
que se diferencia nas ‘espécies’ verbal, musical e, digamos, cinética? Uma resposta a
essa pergunta seria impensável para um ortodoxo teórico da música do século dezesseis
(Stoquerus), seja porque a própria pergunta tem como pressuposto a ‘heresia’
evolucionista, seja porque, ainda sob um veto eclesiástico, a resposta poderia apontar
para um locus de origem, de criação, que é o homem no sentido daquele sujeito-corporal
que pratica uma Dança.
Já no presente século vinte e um, o tema das origens — banido dos estudos
lingüísticos em 1866 pela Société de Linguistique de Paris com reflexos no campo dos
estudos musicais (cf. Wallin, Brown e Merker, 2001:3) — volta à cena:
Analysis of phrase structure and phonological properties of musical and linguistic utterances
suggests that music and language evolved from a common ancestor, something I refer to as the
143
‘musilanguage’ stage. (Brown, S. em Wallin, Brown e Merker, op. cit. : 271) (a esse respeito, ver
também Moraes, 1991).
Mas não devemos deixar de registrar que um certo ‘senso comum’ ainda nos diria
que “[P]robably melody originated in the natural inflections of speech” (Scholes, op.
cit.: 619), tanto quanto, diria o mito, a Musa-Mulher se origina de uma costela de Adão.
É, pois, em desacordo com tal senso comum que Brown (acima) vê aquele algo
uno e indiferenciado a que se refere Spencer como um estágio (da evolução do homem),
que recebe o nome de musilanguage. Dessa forma, a histórica emancipação da música
(i.e. do cantar da igreja, não da música como um todo) em relação ao verbal, ou em
relação à musica verbali, deixa de ser apenas uma ruptura de uma relação ‘horizontal’
verbal/musical, que deixaria a música como que apartada da esfera comunicativa em
geral (e do mundo), e mostra uma música que, por volta do século dezesseis, recupera
seu enraizamento com algo que não é o verbal, ou que está aquém, seja do musical
stricto sensu, seja do verbal stricto sensu. Em outras palavras, a histórica individuação
de uma musicalidade métrico-tonal não seria — seja do ponto de vista histórico
europeu, seja, enfim, na perspectiva de uma filogênese, ou de uma ontogênese, ou
ainda, de uma ontologia — uma ‘ascensão’ para além do ‘mundo mundano e humano’
(como na teoria-musical da ‘música das esferas’ ou numa estética musical
‘transcendental’). Muito ao contrário: seria uma mundanização e humanização, com
todas a acepções de ‘materialidade’ e ‘corporeidade’ que esses termos possam ter (mas
o que é matéria?).
Outro testemunho histórico: Tempus saltandi
Assim, se queremos, de forma mais ampla, um testemunho histórico contemporâneo
daquilo que ocorre em torno do século dezesseis, não nos basta apenas o testemunho de
Stoquerus, mas queremos também um representante da cultura laica, daquele outro rio, que
agora se aproxima da confluência a que aludimos mais acima. E o exemplo que temos é Jean
Tabourot (que se assina Arbeau), um instrutor de dança que percebe que já é tempo de anotar
por escrito e perpetuar suas aulas.
O texto a que me refiro é a versão inglesa de “Orquesografie: Et Traicte en
forme de dialogue, par lequel toutes personnes peuvent facilement apprendre &
practiquer l’honeste exercice des dances” — este o título inteiro do tratado, publicado
em 1589.
Já o selo do editor, como vemos no fac-símile do original, diz: “Tal é a Glória
dos Homens”, “Telle Est La Gloire des Hommes”; o que não deixa dúvidas sobre tratar-
144
se de uma iniciativa francamente identificada com o humanismo que emerge naqueles
tempos.
Mas, embora abertamente dirigido à gloria dos homens, logo na capa (em fac-
símile) do volume é citada a Bíblia (Eclesiastes 3:4): “Tempus plangenti, & tempus
saltandi”,:[“Há um tampo de”] “chorar, e tempo de rir; tempo de prantear, e tempo de
saltar de alegria”. Trata-se, tipicamente, da leitura que, agora sem a intermediação dos
Padres da Igreja, o homem comum faz da Bíblia. E o faz, nesse caso, para mostrar que,
a despeito da Instituição, o texto sagrado ele mesmo sanciona a alegria e a dança (pois
obviamente o livro tratará do ‘tempus saltandi’ e não do ‘tempus plangendi’).
E, como vimos, já o título refere-se ao honesto exercício das danças. As danças
são ou podem ser honestas, portanto podem ser praticadas pelo povo cristão, podem ser
abertamente incorporadas sem pecado às práticas culturais da sociedade laica então em
franca ascensão.
Mas o que vai nos interessar mais de perto é o diálogo (pois o título já diz:
“Traicte e forme de dialogue”) entre o mestre Arbeau e seu personagem-discípulo
Capriol. (Capriol) Tell me about these dances and how they were performed
(Arbeau) Our predecessors danced pavans, basse dances, branles and corantos; the
basse dance has been out of date some forty or fifty years, but I foresee that wise
and dignified matrons will restore it to fashion as being a type of dance full of virtue
and decorum.
Note-se que, aqui, o instrutor inicia sua exposição sobre as danças com dados já
tidos como históricos, passados, o que, considerada a data de publicação do livro
(1589), nos autoriza a crer que o autor reporta-se a danças e músicas já bastante
sistematizadas, na prática, na primeira metade do século 16 e, muito provavelmente, já
praticadas, mesmo que em versões incipientes, em séculos anteriores. É também
relevante notar o prognóstico do autor, de que, por iniciativa de “wise and dignified
matrons” tais danças voltarão à ‘moda’, desta vez como um tipo de dança plena de
virtude e decoro.
(Capriol) How did our fathers dance the basse dance?
(Arbeau) There were two kinds of basse dance, one common and regular, the other
irregular. The regular one was set to a tune in like form and the irregular one to an
irregular tune.
145
Aqui, vemos que dança e música (basse dance, no caso) pode ser do tipo
regular ou do tipo irregular. No entanto, fica claro que o elemento ‘não marcado’,
canônico — daí, ‘comum’ — é o regular.
(Capriol) What do you mean by common and regular tunes?
(Arbeau) The musicians of that time composed their ballads in sixteen bars which they
repeated, making thirty two bars for the beguining, and for the middle section they
wrote sixteen bars. And if it happened that the ballad exeeded these eighty bars the
basse dance performed to it was called irregular.
Aqui estão claramente descritos os elementos rítmicos (rítmicos-métricos-
formais, se assim quisermos) que, tendo como fonte um corpo-que-dança (e não apenas
uma mente que ‘fala e calcula’), se farão presentes em toda a música dos séculos
subseqüentes, aí incluindo tanto a música de concerto que se faz até o início do século
vinte quanto toda a canção popular que estamos acostumados a ouvir até o presente.
Em nenhum momento — e é isto que nos levará de volta à ‘vivência’ com a dança
relatada mais acima — o longo diálogo Arbeau/Capriol lança mão da noção de duração.
Estarão sempre conversando sobre o que fazer quando. Ou seja, interessados não na
descrição da substancialidade sonora da música mas naquilo que o corpo faz, ou,
naquilo que o corpo dança com e como a música, eles produzem um discurso que
corrobora tanto a fala ‘ingênua’ daquelas alunas de dança e ginástica quanto aquilo que
chamei de insight. Refiro-me ao meu próprio exercício de introspecção em busca de o
que é que eu faço, o que é que eu procuro, dado o conjunto de eventos que integram
uma melodia, de forma a ‘conhecer’ aquilo que um determinado som ‘me diz’ do ponto
de vista rítmico.
Às 15:35’:17’’ em ponto
Mas vejamos também o que concluem alguns autores do século vinte sobre essa mesma
questão.
The constraint on speech sounds, or on any other real-time sequence of behavioral elements,
that is directly implied by the concept of rhythm is relative timing , which means that the locus
of each sound-element along the time dimension is determined relative to the locus of all other
146
elements in the sequence, adjacent and nonadjacent. (........) ...temporal patterning would refer
to the onset [grifo nosso] of each musical note or syllabic vowel. (Martin, J.G., 1972) (grifo
nosso).
“We follow Alette (1951) in considering such auditory events [i.e. impulse] as central to
rhythm, in contrast with durations of notes, for instance (..........) Ideally, an impulse is 'at' a
point in time and not at other neighboring point, unlike an enduring tone (...) (Howard, V.A. &
Perkins, D.N., 1976) (grifo nosso)
A essas, somam-se as idéias e procedimentos didático-pedagógicos desenvolvidos
por R. Hoffman, W. Pelto e J. White e apresentados no artigo “Takadimi: a Beat-
Oriented System of Rhythm Pedagogy” (cópia pré-publicação; posteriormente
publicado em Journal of Music Theory Pedagogy, 1996).
Trata-se, como me esclareceu um dos autores, W. Pelto (e-mail: 4/11/96), de um
artigo no qual “we discuss the system of syllables we’ve adopted, adapted, and
developed for our musicianship classes. We base the system on the Indian solkatu
pattern “takadimi” and then expand upon it for compound meters (...) and complex
meters (...)”.
Segue-se, no contexto desse diálogo com Pelto, sua observação de que “your
comment that ‘the things are not values’ (.....) deflates the pedagogy of Kodaly et al
(...)”. Ou ainda: “it seems that we have a great deal in common”.
Em síntese, no contexto original, o que sustento com a frase ‘the things are not
values’ se referia ao fato de que os signos rítmicos (the things) não seriam ‘valores’
(durações) tal como representados na notação convencional ou tal como ‘nomeados’
(com sílabas) por Kodaly. Seriam, na verdade, ‘pontos’ (ou quandidades, como mais
acima). O que constatávamos no nosso diálogo era que, desenvolvidos de forma
inteiramente independente, os sinais gráficos de uma notação rítmica ‘posicional’
(Moraes, 1993), assim como as sílabas utilizadas por aqueles autores, se reportavam a
‘pontos-de-tempo’. Assim, algo que Kodaly chamaria de, digamos, “da-da-da-da” (i.e.,
uma seqüência de quatro durações iguais) seria muito mais consistentemente chamado
de “ta-ka-di-mi”, ou seja, quatro diferentes ‘nomes’ para quatro diferentes ‘localizações’
temporais dos ataques sonoros.
147
E embora esse aspecto da questão não fosse centralmente explorado no artigo
daqueles autores, a segunda das seis ‘metas de uma efetiva pedagogia do ritmo’, “Goals
of Effective Rhythm Pedagogy”, tal como definidas no artigo é a seguinte:
It should require and reflect an understanding of rhythmic structure, recognition of metric and
rhythmic interaction, and awareness of precise contextual location of beats and attack points (op
cit : p 8).
Neste ponto, podemos já rever em síntese o que temos dito acima, a saber, que a
musicalidade métrico-tonal no seu aspecto rítmico surge, não como uma simples
decorrência ‘evolutiva’ da música anterior (musica verbali, immensurata), mas como
uma ‘confluência’ entre uma ‘alta cultura’ musical fortemente subsidiada pelo domínio
verbal letrado e outra cultura musical, laica e em certo sentido ‘iletrada’, subsidiada
pela gestualidade corporal, de onde provém o ritmo stricto sensu de que carecia musica
immensurata.
Vimos também como fontes independentes, virtualmente todas elas externas ao
campo axiológico altura/duração, convergem na idéia de que o operar ritmicamente
passa ao largo de quaisquer operações de cálculo duracional e se apresenta como algo
visceralmente dependente de um senso de localização temporal, de uma ‘percepção’ do
quando um gesto faz iniciar um som.
Mas há um aspecto da questão que permanece ainda obscuro: em relação a que
Tempo sabemos quando é atacado um som? Considerarmos apenas que — “each
sound-element along the time dimension is determined relative to the locus of all other
elements in the sequence, adjacent and nonadjacent” (ver mais acima) — ou mais: que
“ideally, an impulse is 'at' a point in time and not at other neighboring point (....)” não
será ainda satisfatório.
Ou seja: considerarmos que ataques de sons (sejam eles chamados de ‘inpulse’,
sejam chamados de ‘onsets’) se localizam ‘horizontalmente’ no tempo uns em relação
aos outros, ou que simplesmente ocorrem ‘em’ (“at”) um ponto do tempo, não parece
ser suficiente para uma descrição do fenômeno em foco. Considerar apenas dessa forma
talvez nos levasse, em última análise, a dizer algo francamente impróprio como ‘a
148
identidade rítmica desse som decorre do fato de seu ataque ter ocorrido há pouco,
precisamente às 15 horas, 35 minutos e 17 segundos’ (ou no ponto inicial desse 17º
segundo).
Assim, cabe repetir a pergunta: em relação a que tempo um som (i.e., seu
ataque) se localiza? (entenda-se aqui uma relação ‘vertical’ de um ataque com um
ponto-de-tempo). O que nos falta, nesse sentido, é a postulação e descrição, talvez não
de um ‘tempo virtual’, mas certamente de um tempo ad hoc; de um conjunto de
quandidades, pertinentes ao tempo ‘real’, mas ‘reivindicados’ para esta execução
desta melodia. Assim, precisamos examinar mais de perto aquilo que, na posição do
percebedor, ‘extraímos’ dos dados acústicos e que chamamos de pulsação. Em outras
palavras: aquilo que para Drake e Bertrand (2001) constituiria um dos universais do
processamento temporal em música: We (.....) suggest that when listening to a piece of music, we are predisposed to finding a
regular pulse, that which is emphasized by tapping our foot in time with the music (op. cit., p.
23)
Aqui acrescentaremos que, na posição de quem executa ou cria, estamos
falando de algo que se traduz como um fazer presente um referencial pulsativo como
pré-condição para a ocorrência (ou mesmo ‘existência’) da melodia.
Na verdade, não se trata exatamente de, a partir do nada, ‘postular algo’, como
foi dito mais acima, mas de retomar uma questão já reconhecida no âmbito da Teoria
Musical padrão quando se faz a distinção entre “ritmo” e “metro” ou “métrica musical”.
Nesse sentido, “ritmo” se refere à grande variedade de ‘desenhos’ que escolhemos fazer,
que criamos, por sobre um suporte dado: a métrica. Mas o problema, como já
poderíamos prever, é que, condicionada à axiologia duracional, uma típica definição de
métrica se reporta a alguma coisa que “é feita de tempos” (Edição Concisa de Grove,
versão em português, 1994, da versão original de 1988), de tal forma que “a duração
de cada nota” é “medida em termos desses tempos” (ibid.).
Devemos lembrar aqui que, mesmo considerando a ambivalência do termo
inglês “beat”, cujo sentido desliza entre ponto-de-tempo e lapso de tempo, é essa
segunda acepção que prevalece quando se diz, em inglês, ‘first beat’, second beat, etc.,
que equivalem, no português, a primeiro tempo, segundo tempo, etc. Ou seja,
permanece aí a idéia de que a ‘substância’ primitiva da métrica é uma constante
duracional (unidade de tempo) que, repetindo-se numa concatenação linear, constitui a
métrica.
149
Nessa perspectiva — fundamentalmente identificada com a noção do medir —
deveríamos admitir que, para pulsarmos, devemos repetidamente realizar operações de
medida. Assim, se nos imaginarmos na situação em que exemplificamos o que
queremos dizer com pulsação, estaríamos procedendo da seguinte maneira: damos uma
batida na mesa; mas não sabemos quando dar a segunda batida. Evocamos, então, um
segmento de duração “a”, que poderíamos representar por um segmento de reta. Em
seguida, ‘percorremos’ “a” até seu esgotamento (teríamos então acabado de ‘realizar’ o
primeiro tempo). Mas, imediatamente, esse esgotamento, esse término, nos ‘revela’ o
momento de iniciarmos o segundo tempo, e nos ‘autoriza’ a darmos a segunda batida, e
assim por diante, i.e., novamente ‘evocaremos’ “a”. Em outras palavras, estaríamos
admitindo que para pulsarmos devemos confiar na duração, ou na percepção categórica
de porções sempre idênticas de duração.
No entanto, o que parece ser mais verdadeiro é exatamente a inversão dessa
proposição, como faz Bachelard (mais acima): "Para durarmos, é preciso então que
confiemos em ritmos, ou seja, em sistemas de instantes”.
Nesse sentido, devemos lembrar que o próprio ‘tempo do relógio’, o ‘tempo
objetivo da física’ é definido atualmente de tal forma que o lapso de tempo que
chamamos de um segundo corresponde ao tempo ocupado por 9.192.631.770 (nove
bilhões...... de) ‘pulsos’(spin-flips) do Césio 133 (Gibbs, 2001). Mas novamente nada
demonstra que um lapso de tempo entre dois pulsos consecutivos do Césio — p1, p2 —
é ‘igual’ ao lapso seguinte — p2, p3. Nós, assim, aceitamos algo para o qual não temos
nem provas ‘objetivas’ nem sejam insigths diretamente ‘perceptuais’, qual seja, a
homogeneidade e constância de um fluxo contínuo da duração. Em algum sentido,
estamos ‘imersos’ e em sincronia com pulsares que perpassam visceralmente a
natureza, o corpo e a consciência, desde o micro- até o macro-. Em síntese, não é a
pulsação que depende da duração; a pulsação não é definida ou ‘medida’ em termos de
‘durações iguais’. É o inverso: é a duração que depende da pulsação. Esta é mais
‘primitiva’ – mais ‘ontológica’ que aquela.
Pulsação
No campo musical, Piana (2001) se aproxima dessa questão distinguindo, nos
seus termos, “marcação” (pulsação) de “medição” (no sentido da operação com
150
durações, que ele chama de “formulação objetiva” –). A esse respeito, ele conclui: “a
formulação objetiva suprime o ponto essencial, e precisamente a referência implícita à
marcação, pondo no seu lugar o problema totalmente diferente da medição” (itálico no
original) (op. cit, p. 188)
O testemunho pessoal de Piana sobre o ‘bater’ e ‘marcar’ o tempo musical é o
seguinte:
Não é nada fácil afastar-se de um instrumento de percussão após ter efetuado até mesmo uma
única batida. Sente-se, de fato, um peculiar impulso a repetir, como se a iteração estivesse
implicada na própria forma do gesto e como se resistir ao impulso a repetir as batidas, ao jogo do
“mais uma vez”, exigisse um autocontrole demasiadamente severo (op. cit, p. 182).
Aqui, Piana de certa forma nos leva a entrever, como queríamos, os bastidores do
procedimento rítmico musical. Trata-se, podemos presumir, daquele ‘fazer sem saber
que faço’, ou ‘sem me dar conta de imediato do como faço’. O autocontrole não é
acionado para a monitoração de uma constante duracional que resulta em uma pulsação.
Pelo contrário, resistir a “um peculiar impulso a repetir”, interferir no “jogo do mais
uma vez”, é que exige “um autocontrole demasiadamente severo”. De um lado, o autor
sente não estar diante de um fenômeno de pura inércia, no qual um estado dinâmico
tende a ‘se manter por si só’, pois a possibilidade de resistir, mesmo que ao preço do
severo autocontrole, é inerente ao fenômeno. De outro, ele sente que não se trata de
uma coleção de ‘batidas’ estritamente intencionadas, cada uma delas, mas que, ainda
assim, trata-se de um gesto singular, cuja forma se revela na pluralidade das ‘batidas’
(pulsos) que integram a pulsação. E, se há gesto, mesmo que em potencial, há uma
iniciativa, algum ‘pensamento’ de um sujeito que se projeta ali; um sujeito que ‘sente’ o
“peculiar impulso de repetir” e, mesmo podendo não ceder a tal impulso, ‘opta’ por
‘ceder’, por continuar.
A pulsação, portanto, não é algo exclusivo da res cogitans (da ‘vontade’) e
tampouco exclusivo da res extensa (inércia), e deverá, assim, se situar em uma região
de interface, entre, de um lado, os saberes (ou um saber fazer) e, de outro, as
propriedades ou atributos ‘naturais’ das coisas, dos corpos, enfim, do mundo. Se nos
perguntarmos se esse pulsar é uma ação, o máximo que poderemos dizer é que o pulsar
‘sob’ as notas musicais é um não saber não fazer. Dessa forma, para caminharmos em
direção a um saber fazer rítmico, deveremos passar por um saber não fazer, ou seja:
151
acionada esta pulsação, o operar ritmicamente exigirá a capacidade de não executar
algum pulso. Ou, mais precisamente, diferentemente da pulsação (entendida como um
gesto), no ritmo (na acepção em que se põe em contraste com metro), a cada decisão de
iniciar um som corresponderá, individualmente, um gesto, uma decisão de iniciá-lo
neste pulso e não naquele, ou ainda, a decisão de iniciar um som neste pulso e o
próximo som, não no pulso seguinte, mas somente num pulso mais adiante, deixando
pelo caminho pulsos intermediários, que não serão ‘tocados’.
Aí estaria, pois, na pulsação, aquele tempo ad hoc em relação ao qual um som de
uma melodia, isto é, o ataque desse som, se localiza e, ao assim se localizar, adquire sua
identidade rítmica, sua quandidade peculiar e única.
Podemos, agora com base na noção de pulsação apresentada acima, retomar uma
questão já colocada ao término do capítulo III, a saber, a questão da discursividade e
temporalização na musicalidade métrico-tonal, que corresponderia a algo cujo âmago
nos remete não somente ao ritmo, entendido como aquilo que fazemos ao progredir
discursivamente ‘sobre’ uma pulsação, mas à pulsação ela mesma. Ou, visto de outra
forma, nos remete, não ‘horizontalmente’ ao domínio do verbal, donde provinha a
ritmicidade e a discursividade do cantochão, mas, ‘verticalmente’, a domínios aos quais
juntaríamos o antepositivo “prot(o)-”. Ainda assim, com já posto mais acima, não
estaríamos falando de um domínio exatamente proto-lingüístico (verbal) nem de um
domínio especificamente proto-musical, mas de um domínio ‘ancestral’, habitado por
uma constelação de sub-sistemas ou ‘ingredientes’ primitivos que ‘ainda serão’,
digamos, ou linguagem verbal ou música ou dança, na medida em que passem a atuar
em sinergia (com diferentes ênfases e funções) em favor desta ou daquela ‘linguagem’.
Aqui, sem dúvida, penso em tais ‘subsistemas primitivos’ como algo que parece
se aproximar bastante da atual pesquisa na biologia desenvolvimentisata evolutiva, que
constata, por exemplo, que o surgimento das estruturas que virão a ser as penas dos
pássaros antecede o surgimento dos pássaros e mesmo da função de voar (v. Prum e
Brush, 2003). Por outro lado, a noção do primitivo, aqui transposta em certo sentido
para o domínio da cognição (v. p.ex. Donald, 1991), não se refere a sub-sistemas que
‘deixam de existir’ num processo de mera ‘extinção’, mas que permanecem, em sua
152
primitividade, ‘sob’ os sistemas ou ‘linguagens’ atuais no sentido geral de Merleau-
Ponty, que merece ser citado aqui de forma extensa:
Por volta dos 12 anos, diz Piaget, a criança efetua o cogito e encontra as verdades do
racionalismo. Ela se descobrirá ao mesmo tempo como consciência sensível e como consciência
intelectual, como ponto de vista sobre o mundo e como chamada a ultrapassar este ponto de
vista, a construir uma objetividade no nível do juízo. Piaget conduz a criança até a idade da razão
como se os pensamentos do adulto se bastassem e suprimissem todas as contradições. Mas, na
realidade, é preciso que de alguma maneira as crianças tenham razão contra os adultos ou contra
Piaget, e que os pensamentos bárbaros da primeira idade permaneçam sob os pensamentos da
idade adulta como um saber adquirido e indispensável, se é que deve haver para o adulto um
mundo único e intersubjetivo (op. cit. p. 476).
Assim, se passarmos a tomar por empréstimo alguns conceitos ou categorias
próprias das ‘ciências do verbal’, seja da lingüística, seja dos estudos do discurso e da
narração, tais termos não terão o valor ‘literal’, ‘exato’, que têm naquelas ciências, mas
tampouco uma valor simplesmente metafórico. Deverão, isto sim, ser entendidos como
se tivessem o antepositivo “prot(o)-”, que sinalizará a idéia de se reportarem àquela
região (aquém das linguagens) de interface entre a res cogitans e a res extensa; entre,
de um lado, os pensares, saberes, fazeres e, de outro, os atributos e propriedades das
coisas e processos ‘naturais’ do mundo.
Pulsação e anáfora
É, pois, dentro dessas condições que — em ressonância com a questão “[D]e onde
vem a potência formadora dos encadeamentos temporais da narrativa?” (Santaella,
2001: 322) — podemos ver já na pulsação elementos de narratividade, de
discursividade, ou mesmo de sintaxe ou ‘sintaticidade’, se podemos dizer assim, sem
que isso se refira a um outro processo, também muito real, descrito na seguinte
passagem: “a narratividade (.....) pode migrar de uma manifestação no verbal para se
manifestar em domínios extraverbais, tais como a música, cinema, vídeo, pintura, da
dança, etc” (op. cit, p. 321). Em outras palavras, poderíamos falar já de uma
discursividade que se projeta na musicalidade métrico-tonal, não necessariamente a
partir de “um substrato verbal” (ibid.), mas a partir daquele ‘domínio ancestral’ em que
153
o verbal e o musical sequer ‘existem’, individuados, como tais (conquanto ali já se faça
presente a pulsação). Por outro lado, é importante adotar a ressalva de que “deve-se
tomar cuidado para não levar o argumento até a generalização de que a narratividade
está na raiz de todo e qualquer processo de linguagem” (ibid.).
Assim, poderemos dizer que no singular gesto pulsativo, cuja forma plural,
discursiva, se apresenta como seqüência de pulsos (p), ou seja p1-p2-p3-p4..., há já uma
operação anafórica, que garante uma coesão discursiva; que atuaria como uma
“potência formadora dos encadeamentos temporais” (v. acima). Em outras palavras, no
“peculiar impulso a repetir”, na “iteração implicada na própria forma do gesto”, no
“jogo do ‘mais uma vez’”, para usarmos as palavras de Piana (v. mais acima), p2 ‘é’ a
reaparição de p1, tanto quanto um termo anaforizante o é do termo anaforizado. Ou, de
maneira genérica, p(n+1) é uma anáfora de pn. A ‘batida seguinte’ é anáfora da ‘batida
anterior’, de tal forma que se estabelece aí um vínculo sintagmático entre uma e outra,
uma coesão e solidariedade entre os pontos-de-tempo, que tem, tal solidariedade, a
mesma natureza geral da coesão e da pró-pulsão do movimento discursivo.
Essa argumentação, naturalmente, enfatiza os aspectos de ‘igualdade’ e coesão no
todo pulsativo. Mais adiante voltaremos a esse tipo de questão para falarmos das
necessárias diferenças que se estabelecem no escopo de um todo pulsativo. Mas, para
chegarmos lá, devemos antes voltar a questões mais próximas do campo de interesse
imediato do músico.
Ponto no meio exato do caminho.
Podemos, assim, perguntar: muito bem, aí está a pulsação (Figura 4.1), e é
escolhendo ‘onde’ vou iniciar e ‘onde’ não vou iniciar eventos sonoros que faço um
ritmo musicalmente significativo. Vejo que aquilo que se chama de unidade de tempo
pode ser ex post facto inferido (e escrito) a partir do intervalo entre um ponto e o
seguinte. Se eu iniciar sons ‘em’ uma série consecutiva de pulsos, direi que esses sons
têm, cada um, a duração de um tempo. Se eu fizer o mesmo, só que iniciando os sons
‘em’ pulsos alternados, i.e., no primeiro, no terceiro, no quinto, etc. (‘saltando’ os
intermediários, 2º, 4º, etc) terei sons com a duração de dois tempos. Mas, e se eu quiser
sons com valores duracionais menores que a ‘unidade de tempo’? Se quero dois sons
154
consecutivos com a duração de meio tempo, posso iniciar o primeiro ‘em’ um ponto da
pulsação, mas como saberei ‘onde’ iniciar o segundo som, ou seja, como saberei com
segurança ‘onde’ está o ponto médio “x” entre dois pulsos?
Figura 4.1 • • x • • • • • • • •
A resposta, naturalmente, não será que esse ‘saber o ponto médio’ resulta de um
cálculo de mensuração linear. Ou de ‘perceber’, de dar-se conta de que ‘cheguei à
metade do caminho entre um pulso e o seguinte’. Trata-se de admitir que uma e somente
uma ‘linha’ ou nível pulsativo é uma imagem insuficiente, que não esgota o conceito de
pulsação necessário para a musicalidade métrico-tonal. Mas já podemos, sim, responder
que nós ‘conhecemos’ o aludido ponto médio tanto quanto aquele objeto pesado (Figura
4.2) colocado sobre qualquer ponto do elástico que liga os dois apoios ‘sabe’ se
estabilizar e finalmente permanecer imóvel no ponto médio entre os dois apoios.
Figura 4.2
Mas, desnecessário lembrar, estamos falando aqui daquele ‘não saber não fazer’
que se situaria como que numa região de interface entre o que reconhecemos como os
‘símbolos’ do pensar e as propriedades e processos ‘naturais’ do mundo. O que esse
‘ponto médio’ entre dois pulsos nos revela é a presença de uma ‘sub-pulsação’
‘naturalmente’ inerente ao complexo pulsativo, cujo nível mais aparente é aquele ‘bater
dos pés’ que, como dizem Drake e Bertrand (op. cit), entra em sincronia com a música
(se põe “in time with the music”).
Assim, numa aproximação gráfica (que poderia muito bem ser substituída pelas
sinusoidais que representam os fenômenos vibratórios) teríamos, como na figura 4.3, a
pulsação mais aparente (P0), com uma freqüência F, e uma ‘sub-pulsação’ (P1) com o
dobro da freqüência: 2F. E neste ponto é de fundamental importância a menção a uma
155
freqüência determinada qualquer, pois aí está implicada a idéia de que uma pulsação
tem sua própria ‘existência’ indissociavelmente atada a aquilo que na terminologia
musical chamamos de andamento. Em outras palavras, uma pulsação ‘em abstrato’, sem
um andamento (qualquer) determinado, seria uma contradição em termos — tanto
quanto uma melodia somente existe, ou seja, ela somente é, sendo em algum
(qualquer) tom, ou sendo sonoramente.
Figura 4.3
P0 • • • • • • • • •
P1 • • • • • • • • • • • • • • • • •
O que concluímos, pois, é que, quando dissermos “pulsação”, estaremos nos
referindo não somente a aquilo a que nos referimos como a pulsação (P0, que já se
manifesta muito explicitamente no ‘bater dos pés’), mas a um complexo de pulsações
sincronizadas que, até agora, descrevemos como uma pulsação P0 com, digamos, 01
Hertz (60 bpm no metrônomo) à qual se acopla uma ‘sub-pulsação’ P1, com 02 Hertz
(120 bpm), como na figura 4.3 acima.
Mas uma questão já se coloca: se o nível sub-ordinado P1 é em si mesmo uma
pulsação, haverá — pelos mesmos motivos que ‘descemos’ de P0 a P1 — um nível P2,
com 04 Hertz (240 bpm) e, pela recursividade na aplicação dessa ‘regra’ duplicadora,
chegaríamos a um nível “n” tal que, sendo “n” ‘infinito’, teríamos ‘construído’ um
continuum.
No entanto, sabemos que ao caminhar indefinidamente ‘para baixo’, estaremos
em, algum momento, ultrapassando a fronteira do que reconhecemos como pulsação
naquela acepção que é funcional para o domínio rítmico-musical. Não podemos, assim,
considerar a pulsação que nos interessa como qualquer fenômeno genérico da ordem
dos fenômenos oscilatórios, onde todas as freqüências são, em tese, pertinentes. Ou
seja, embora considerando que o exame detalhado de tal questão escapa aos objetivos
do presente estudo, podemos assumir que o complexo pulsativo relevante para o ritmo
musical é limitado a uma faixa de freqüências determinada por fatores que se reportam
às limitações de nosso humano ‘aparelho’ perceptivo e cognitivo e mesmo motor (na
psicomotricidade, p.ex).
156
Assim, para efeito de nossa argumentação, ficaremos com os dois níveis sub-
ordinados em relação à pulsação mais aparente P0, como na figura 4.4.
Figura 4.4
P0 • • • • • • • • •
P1 • • • • • • • • • • • • • • • • •
P2 • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • •
Devemos também incluir no complexo pulsativo níveis super-ordinados em
relação a P0, ou seja, pulsações que reflitam aquilo que, na perspectiva duracional,
chamaríamos de ‘unidades’ maiores que o ‘tempo’ (unidade de tempo), a saber, o
compasso e, talvez, ‘unidades’ ainda maiores.
Assim, podemos incorporar ao complexo pulsativo os níveis P-1, P-2 e P-3
(Figura 4.5). Como, para efeito de exemplificação, atribuímos a P0 a freqüência de 01
Hertz (60 bpm), teremos P-1 com 0,5 Hertz (30 bpm); P-2 com 0,25 Hertz (15 bpm); e
P-3 com 0,125 Hertz, i.e. um oitavo de Hertz (7,5 bpm).
Figura 4.5 • • • • • • • • • •
P0 • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • •
P2 • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • •
Aqui, da mesma forma que admitimos uma limitação ‘para baixo’, parece que
estamos nos aproximando de uma limitação ‘para cima’. Em primeiro lugar, devemos
admitir que uma ‘pulsação’ demasiadamente lenta, larga (digamos, 3 batidas por
minuto), já não corresponderia a aquilo que reconhecemos como pulsação na acepção
que é relevante ou funcional para o ritmo musical. Tal ‘macro-pulsação’ não nos
permitiria integrar uma forma, ou uma gestalt, no sentido de que — como afirma
Dalhaus ao discutir o termo zeitgestalt (gestalt temporal):
(...) the criteria of psychology of perception may indeed suffice for describing impressions of
tonal structures with brief extent, but not for explaining musical coherences existing over a
Etc
157
longer time. (......) the term ‘Gestalt’, transferred to a whole sonata movement, is an empty word
(...)(op. cit. : 76).
Em segundo lugar, não se trataria apenas de limitações, diríamos, ‘físicas’, no
sentido das limitações da memória imediata (que daria conta do que Husserl chama de
retention – protention, cf Dalhaus, op. cit.). O que também estaria em jogo seriam
limitações da ordem da capacidade lógica de processamento, ou seja, das limitações
relativas à quantidade de níveis hierárquicos de informação com que podemos operar,
qual seja, uma quantidade não muito maior que seis níveis — e no complexo pulsativo
da figura acima já temos seis níveis (a esse respeito ver Miller, 1956 e Changizi, 2001).
Assim, podemos ter limitações ‘superiores’ e ‘inferiores’ do complexo pulsativo.
Mas se queremos fechar uma figura, delimitar um todo temporal-pulsativo que possa
ser tomado em algum sentido como objeto finito (tal qual o ‘espaço’ diatônico), falta-
nos ainda uma limitação, uma finitude ‘à direita’, no sentido mesmo daquilo que
Dalhaus aponta como uma ‘breve extensão’, “brief extent”.
Heidegger e o ponto final do/no caminho
Mas quem poderá, num sentido muito geral, nos orientar nessa questão será
Heidegger, na sua busca radical acerca do Ser e de como o Ser é, i.e., como o Ser
exerce o ser (entendido esse “ser” como aquilo que é denotado pelo verbo ser = existir).
Em linhas gerais, Heidegger se refere a uma temporalidade vulgar, da seguinte
maneira:
O característico do ‘tempo’ acessível à compreensão vulgar consiste (.....) justamente no fato de
que, no tempo, o caráter ekstático [ékstasis, “deslocamento, movimento para fora” (Houaiss, op.
cit)] da temporalidade originária é nivelado a uma pura seqüência de agoras, sem começo nem
fim (Heidegger, 1927- II: 123).
Mas, em uma instância mais fundamental que esse ‘vulgar’ não-finito,
Heidegger traz à cena a idéia da primazia do porvir: “Na enumeração das ekstases,
colocamos sempre em primeiro lugar o porvir” (op. cit, p. 124). Ou ainda: “O porvir é o
fenômeno primordial da temporalidade originária e própria” (ibid.). Esse fenômeno,
158
“porvir”, por sua vez, é vinculado a uma “de-cisão antecipadora” (ibid) [decidir,
decidère, “cortar” cf. Houaiss; ou decaedere, caedere, “cortar”, cf. Cunha, (1982)].
Dessa forma, Heidegger poderá afirmar sobre a “pre-sença” [Dasein, ser-aí])]
que “[E]la existe finitamente” (ibid.). É nesse quadro, então, que Heidegger afirmará o
seguinte:
(...) o porvir que temporaliza primordialmente a temporalidade, que constitui o sentido da de-
cisão antecipadora, desentranha-se, portanto, como sendo em si mesmo finito. (ibid. : 124).
Temporalidade temporaliza-se, originariamente, a partir do porvir. (ibid. : 126)
Nesse sentido, o que nos importará aqui será a incorporação desse porvir, ou
seja, dessa de-cisão (corte, cisão, - scindere, ibid. : 259) antecipadora ao que mais acima
chamamos de tempo, ou temporalidade ad hoc. Trata-se, em outras palavras, de tornar
esse ‘corte’, já entendido como uma quandidade, inerente ao complexo pulsativo que
vimos representando esquematicamente com as figuras mais acima. Esquematicamente
(Figura 4.6) representaremos esse porvir, a partir do qual essa temporalidade ad hoc
musical se instaura, com o símbolo “Ø”.
Figura 4.6
P-3 • Ø P-2 • • P-1 • • • •
P1 • • • • • • • • P2 • • • • • • • • • • • • • • • •
P3 • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • •
Assim, poderemos ‘ler’ essa figura da seguinte maneira: acima do nível P-3 há
uma singularidade “T” que entenderemos como o lugar do sujeito-agente responsável
pela de-cisão antecipadora. Essa de-cisão é o que ‘cortará’, encerrará (conterá e dará
finitude a) o complexo pulsativo. Aí estaria o des-equilíbrio fundamental inerente a essa
topologia que, sendo temporal, é tensa (tensiva), dinâmica e sobretudo pro-pulsionada
em direção a um fim (no sentido mesmo do ser-para-o-fim, ou ser-para-a-morte
heideggeriano).
T
159
Se atribuímos um ‘valor’ ou ‘peso’ um (01) ao ponto linearmente inicial do nível
P-3 (indicado com uma seta), o ‘peso’ Zero (Ø) estará agora significando a primazia do
porvir que, antecipadamente, é colocado em primeiro lugar.
No sentido matemático, essa quandidade zero (e a assíntota representada pela
linha vertical pontilhada) é o limite para o qual tende o complexo pulsativo. Em outras
palavras, esse complexo pulsativo é-para-o-zero.
No sentido da sintaticidade (com as ressalvas feitas mais acima), há aqui uma
reversão importante. Ou seja, se, por um lado, numa seqüência linear pulsativa não-
finita, o pulso seguinte é como uma anáfora que encontra seu ‘referente’ no pulso
anterior, por outro lado, na operação representada abaixo (Figura 4.7), em que é dada a
primazia ao zero, o ponto “01” será um elemento anafórico que encontra seu ‘referente’
‘à direita’, no ‘porvir’ (limite) zero. Ou, se preferirmos, trata-se, nesse caso, de uma
operação mais precisamente catafórica.
Figura 4.7
Assim, podemos entender que a passagem desde “T” para o nível P-3 tem o
sentido do ‘passar a ser’, na forma de uma disjunção que ‘cria’ o zero e o um, tal que o
zero terá menor ‘resistência’ e maior ‘peso’, que aparece aqui como a verticalidade
da linha “T” – “Ø” e o um (01) terá maior ‘resistência’ e menor ‘peso’, que aparece
aqui como a inclinação da linha “T” – “01”. Veremos mais abaixo como ficará a figura
que nos interessa, com a inclusão desse conceito de pesos.
Os pesos e sabores nunca iguais
O passo que daremos a seguir é inspirado no que Martin (1972) chama de regra
de acentuação, “accent rule”. Trata-se de um esquema lógico binário que em certo
sentido dá um caráter mais preciso e formal ao que conhecemos na teoria-musical como
tempo forte e tempo fraco. Ou seja, em cada compasso binário reconhecemos um tempo
forte (+) seguido de um tempo fraco (-), de forma que numa seqüência desses
01 Ø P-3
T
160
compassos teríamos a alternância + - + - + - + - ...... (e sabemos que em geral um
compasso quaternário teria a acentuação + - ± -, quer dizer, forte, fraco, meio forte,
fraco).
O que Martin mostra é que, numa estrutura hierárquica, nunca haverá igualdade
(i.e. dois fortes iguais ou dos fracos iguais), mas sempre diferenças no sentido de que
todos os elementos de um nível pulsativo serão acentualmente diferentes entre si.
Para tanto, Martin (op. cit., p. 490) lança mão da estrutura arbórea (Figura 4.8)
marcada com dígitos zero à esquerda e dígitos um à direita, de tal forma que a leitura de
baixo para cima resultará nos quatro números binários (00, 10, 01, 11) que,
convertidos para o sistema decimal e somados a uma unidade, expressarão os quatro
diferentes acentos ou ‘pesos’ relativos 1 – 3 – 2 – 4 (sendo “1” o maior peso e “4” o
menor peso).
Figura 4. 8
Podemos agora expandir esses princípios de forma a abarcar o complexo
pulsativo tal como o temos descrito até aqui. Como conseqüência, teremos que:
(a) A pulsação mais aparente (P0), ‘em si mesma’, fora do contexto hierárquico, ainda
reterá o caráter ordinal (p1, p2, p3, .......), ou seja, o pulso seguinte é uma ‘re-
aparição’ (anafórica) do pulso anterior.
(b) Com a hierarquização, tal como a mostrada na figura 4.8 acima, todos os níveis
(inclusive P0) serão afetados por uma hierarquia de ‘pesos’, de forma que, a cada
1
1 1
0 2 1 3
00
0 0
0
10 01 11
[+1] 1 3 2 4
A partir do nível em que se encontram os quatro ‘terminais’, lê-se na figura :
/ / , i.e., 00 (binário), 0 (decimal); / \ , i.e., 01 (binário), 1 (decimal) \ / , i.e., 10 (binário), 2 (decimal); \ \ , i.e., 11 (binário), 3 (decimal).
161
nível, não haverá dois ‘pesos’ iguais. Assim, uma quandidade é diferente de outra
não só ordinalmente mas também hierarquicamente. Podemos dizer, então, que os
fatores nível e ‘peso’ compõem o que chamaríamos de ‘sabor rítmico’ de cada nó
da árvore sintática. Vale lembrar que, no Capítulo I, ao falarmos de ‘pontos’,
dizíamos que os pontos que nos interessariam não seriam exatamente pontos ‘em
si’, mas vértices. A mesma idéia geral se aplica aqui. Ou seja, a quandidade,
entendida como ‘qualidade’ rítmico-tonal de um ponto-de-tempo, se define como
um todo pulsativo ‘visto’ na perspectiva peculiar de um ‘vértice’, ou, neste caso, de
um nó de uma ‘rede sintática’ tal como representada na figura 4.9, a seguir.
Binário Decimal UM PR Binário Decimal UM PR
00000 0 +1 01 00001 01 +1 02 10000 16 +1 17 10001 17 +1 18 01000 08 +1 09 01001 09 +1 10 11000 24 +1 25 11001 26 +1 27 00100 04 +1 05 00101 25 +1 26 10100 20 +1 21 10101 21 +1 22 01100 12 +1 13 01101 13 +1 13 11100 28 +1 29 11101 29 +1 30 00010 02 +1 03 00011 03 +1 04 10010 18 +1 19 10011 19 +1 20 01010 10 +1 11 01011 11 +1 12 11010 26 +1 27 11011 27 +1 28 00110 06 +1 07 00111 07 +1 08 10110 22 +1 23 10111 23 +1 24 01110 14 +1 15 01111 15 +1 16 11110 30 +1 31 11111 31 +1 32
Limite (assíntota) Ad. nula 00
Os pesos relativos inscritos em cada nódulo dessa estrutura arbórea — restrita
ao escopo que vai desde o nódulo 01 no nível P-3 até os 32 nódulos ‘terminais’, no
nível P2 — resultam da leitura de baixo (P2) para cima (P-3) do número binário
01
01
01
01
01
02
17
02
02
02
03
03
03
04
04
04
05
05
07
07
06
06
08
0809
09
13 11 15 10 14 12 16
25 05 21 13 29 03 19 11 27 07 23 15 31 02 18 10 26 06 22 14 30 04 20 12 28 08 24 16 32
01
Ø
P0
P1
P2
P-1
P-2
P-3
T Figura 4.9
162
composto de cinco dígitos ( \ = 1; | = 0). O dígito mais significativo (X - - - - ) é o mais
baixo na estrutura e o dígito menos significativo (- - - - X) é o mais alto na estrutura. Por
exemplo: o ‘peso’ 19 (em P2) se lê, a partir do nódulo 19 (em P2), como \ | | \ | , ou
seja, 10010 (binário) = 18 (decimal). A esse número (18) é adicionada uma unidade (+
1), que ‘passa a ser’ na disjunção originária “T” (1 – 0). A tabela abaixo da figura
mostra todas essas operações (obs. PR = peso relativo).
Note-se que 19 (ponto médio entre 03 e 11) passa a existir no nível P2, assim
como 06 (ponto médio entre 02 e 04) passa a existir no nível P0. Da mesma forma,
admitiremos que 02 (ponto médio entre 01 e o limite zero) passa a existir no nível P-2.
Mas o que poderíamos dizer do ponto 01? Diremos que o 01 passa a ser no nível
P-3 em função do limite Ø, que já é (no sentido heideggeriano). Na nossa convenção
gráfica, portanto, associaremos as linhas verticais ( | ) com “já é” e as linhas
inclinadas ( / ou \ ) com “passa a ser”.
Deveremos também considerar que o conjunto de pontos que inclui desde o
ponto “01” (no nível P-3) até os pontos pertinentes ao nível ‘mais baixo’ (P2) constitui
o escopo temporal propriamente ‘interno’ do complexo pulsativo.
Nesse ‘domínio propriamente interno’ as linhas inclinadas ( \ = passa a ser)
estarão sempre à direita de uma linha vertical ( | = já é). Note-se que, assim, a ordem
peso menor ( / ) peso maior ( | ) [i.e. < ], inerente à passagem de “T” para P-3, é,
depois, invertida [>], ou seja, passa a ter a ordem peso maior ( | ) peso menor ( \ )
nas demais ‘passagens’ ou disjunções (de P-3 a P-2 e deste para P-1 etc.). Isso deverá
ser consistente com a idéia anteriormente apresentada de que, no domínio propriamente
interno do complexo pulsativo, os pulsos são anáforas de um pulso anterior.
Ou, mais precisamente, diremos agora que todos os ‘ramos’ que passam a ser
( \ ) num determinado nível serão anáforas do ‘ramo’ imediatamente anterior de mesmo
nível (que sempre será um ramo que já é ( | ) nesse mesmo nível . Por exemplo (ver
figura 4.10): no nível P0, o ramo radicado no nódulo 08 (que inclui até os ‘terminais’
08 – 24 – 16 – 32) encontra seu ‘referente’ à esquerda (antes), no ramo radicado em 04.
Da mesma forma, no nível P-1, o ramo radicado em 04 é anáfora do antecedente 02.
Naturalmente, em P-2, 02 é anáfora de 01. Isso nos leva ao nível P-3, no qual 01, i.e., a
163
‘raiz’ do todo arbóreo (interno) é a anáfora (ou, nesse caso, uma catáfora) que encontra
seu ‘referente’ à direita, no limite Ø.
Figura 4.10
Em síntese, na linha do que já apresentamos na figura 1.10 (Capitulo I),
podemos dizer que o todo ( 1 ), que chamamos de domínio propriamente interno, é uma
anáfora que encontra seu ‘referente’ no porvir, i.e., no limite zero. Assim, parece ser
justificada a idéia mais ou menos comum (mas um tanto hiperbólica) de que uma
música é uma grande anacruse para seu acorde final — que, a rigor, antecede o limite
zero (mas qual a razão dessa antecipação?).
Absorção e síncope
Num sentido geral, esse ponto zero corresponde ao ponto-de-tempo em que o
maestro faz o gesto que extingue, que corta, o último som da música. Esse ponto zero,
portanto, teria uma dupla face: uma ‘face interna’, que ainda é música, e uma ‘face
externa’, que dá início à não-musica. Em outros termos, é ‘ali’ que transitamos desde a
temporalidade ad hoc musical para a ‘temporalidade silenciosa’. É nesse sentido que
podemos ainda dizer que o limite zero (a quandidade zero) é pertinente à, ou
constitutiva da, música.
Mas poderíamos perguntar: Como é que esse ponto ou assíntota zero, sendo o
ponto de máximo ‘peso’, não é percebido como tal no momento da extinção da
sonoridade? Em geral, como sabemos, esse máximo ‘peso’ seria percebido, sim, na
‘cabeça do último compasso’, no ataque do último som da música (mesmo que a música
01
01
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01
02
17
02
02
02
03
03
03
04
04
04
05
05
07
07
06
06
08
0809
09
13 11 15 10 14 12 16
25 05 21 13 29 03 19 11 27 07 23 15 31 02 18 10 26 06 22 14 30 04 20 12 28 08 24 16 32
01
Ø
P0
P1
P2
P-1
P-2
P-3
T
164
termine em pianíssimo), ou seja, num ponto que está no domínio propriamente interno
do todo pulsativo.
O que de fato parece ocorrer aí é um fenômeno de antecipação, ou de absorção,
da força ou peso maior desse zero-vazio pelo som final (i.e., pelo ponto em que se
localiza o ataque desse som). Esse é o gesto incoativo (faz iniciar um som) que absorve
o ‘sentido’ de gesto terminativo propriamente interno à estrutura rítmica.
Sintomaticamente, o maestro pára de ‘marcar o tempo’ para, depois, fazer o ‘corte’
num zero já destituído de seu peso original.
Esse fenômeno de absorção pode ser observado possivelmente em qualquer
escopo que consideremos do todo pulsativo. Tomemos como exemplo a seqüência
rítmica abaixo (Figura 4.11 a / b).
Figura 4.11
Dada essa seqüências rítmica (as versões “a” e “b” sendo idênticas na
perspectiva dos pontos de ataque), as palavras encaixadas aí por um ‘letrista’ tendem a
ser do tipo: va-mos pu-lar, que-ro dan-çar, ma-ra-ca-tu. Ou seja, contrariando o
caráter ‘fraco’ da quarta semicolcheia (i.e., do seu ataque), as sílabas ‘encaixadas’ ali
tendem a ser acentuadas. Ou seja, absorvem a tonicidade do ponto mais pesado à direita
(dado que ali não é iniciado um outro som). Mesmo se as palavras fossem va-mos lo-go,
que-ro dan-ça, u-ma val-sa, elas tenderiam, contrariando a acentuação do verbal, a soar,
naquele contexto rítmico dado, como va-mos lo-gu, que-ro dan-çá, u-ma val-sá (ou, no
mínimo, essa escuta seria perfeitamente possível e bastante provável). 10
Podemos, então, retomar o escopo total do complexo pulsativo tal como o temos
representado até aqui. Como indicado na figura 4.12, estamos agora destacando os
10 Esse fenômeno pode ser observado (mesmo ritmo do exemplo), p.ex., na canção “Uma Brasileira” (Carlinhos Brown/Herbert Vianna): “Rodas em Sol, Trovas em Dó,”; logo em seguida, essa absorção deixa de ocorrer, dada a presença da sílaba “lei” à direita da ‘quarta semicolcheia’, i.e., “Uma brasi lei-ra”. Julia me ajudou aqui lembrando também os grupos de quatro notas na introdução (instrumental) de “Under my Thumb” (Jagger & Richards).
a b
165
quatro pontos que, no domínio propriamente interno ao complexo pulsativo, compõem o
nível P-1. Ou seja, um nível super-ordinado em relação à pulsação mais explícita, P0.
Figura 4.12
Se admitimos que esse esquema (nunca a-temporal) é subjacente ao que
chamaríamos de frase melódica (ou somente rítmica) de quatro compassos binários
simples (2 por 4), o que temos no nível P-1 são os quatro ‘pilares’, i.e. os quatro
‘acentos frasais’ ou ‘cabeças de compasso’, em que se apóiam as frases musicais
típicas (sem que o termo “frase” implique em qualquer débito da música em relação ao
verbal). Se, mais ainda, supomos que esse seja o complexo pulsativo em que se apoiará
a última frase de uma melodia, podemos dizer que o ponto 04 (internamente, o que tem
o menor ‘peso’ naquele nível) absorverá plenamente o peso maior, a tonicidade máxima
que é originariamente inerente ao limite (assíntota) zero à sua direita.
Martin (op. cit, p. 493) — que explicitamente adota como modelo os
procedimentos transformacionais, então predominantes na sintaxe chomskiana,
posteriormente mais gerativista que transformacional (v. Chomsky, 1995) — descreve
esse fenômeno como efeito de uma regra que (a) transforma 1 – 3 – 2 – 4 em 2 – 3 – 1 –
4 e (b) considera que o último acento, i.e, “4”, é nulo, “ is null, that is, the rightmost tree
branch is not actualized”. Bem ao contrário disso, o que estamos fazendo aqui, como já
vimos, é a inclusão de um ‘ramo’ (assíntota) “Ø” ‘à direita’, cuja presença é
fundamental. Assim, dispensada qualquer operação ‘transformacional’, entende-se aqui
que o fenômeno da absorção é menos arbitrário que a regra descrita por Martin.
01
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17
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03
03
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06
08
08 09
09
13 11 15 10 14 12 16
25 05 21 13 29 03 19 11 27 07 23 15 31 02 18 10 26 06 22 14 30 04 20 12 28 08 24 16 32
01
Ø
P0
P1
P2
P-1
P-2
P-3
T
TONICIDADE MÁXIMA
ABSORÇÃO
166
Em outras palavras, o que estamos fazendo é, em boa medida, a aplicação do
conceito de síncope, tanto no sentido de sua ‘recuperação’ etimológica — “- cope”,
‘cortar’ (ver “síncope” em Houaiss, op. cit), o qual nos remete, não ao sentido da
omissão ou ‘apagamento’, mas à de-cisão heideggeriana: “corte” — , quanto no
sentido mais usual do campo musical. Neste caso, como lemos em Scholes, op. cit.
(verbete “Syncopation”), “[R]egular accent is a feature of most music since about
1600”, daí que, “[S]yncopation is a displacement of either the beat or the normal accent
of a piece of music”. Mais abaixo nesse verbete, lemos:
It is, then, contradiction that constitutes syncopation. Sometimes the effect of contradiction is
brought about by the occurrence of rests on the normally accented parts of the measure, with notes
on the unnaccented; sometimes by notes being first sounded on the normally unaccented parts of
the measure and then merely held over the normally accented parts; sometimes by the introduction
of a stress mark over notes that would be normally unstressed. In any case, the rhythmic effect is
the same: there is a shifting of accent.
Já de saída, não se pode resistir à constatação de que as expressões que grifamos
acima aparecem nesse falar sobre ritmo tal qual atos falhos aparecem em um discurso.
Ou seja, “displacement”, “on”, “being first sounded on”, “over” (em “stress mark over
notes”), “shift(ing)” (ver Shift1, v. “Change or move from one position to another;
ou Shift2, n. “Change of position (....)”; cf. The Concise Oxford Dictionary), todas
essas expressões se referem a ‘lugares-de-tempo’, ao passo que a menção mais explícita
a uma ‘duração’ é feita com a expressão “merely held over”.
Mas o que nos importa é entendermos, em geral, a síncope como o deslocamento
do ‘peso’, da ‘força’, desde um ponto ‘à direita’ para um ponto mais ‘leve’ ‘à sua
esquerda’, o que corresponde ao que chamamos mais acima de absorção. O que
estaremos assumindo aqui é que (a) antes de ser um fenômeno do ritmo stricto sensu,
esse deslocamento é já uma propriedade do complexo pulsativo ao qual é inerente a
finitude antecipadamente colocada no porvir; (b) embora a noção de síncope se aplique
normalmente a um escopo reduzido a pequenos agrupamentos rítmicos (como nos
exemplos ilustrados na figura 4.11, mais acima), a absorção que ocorre em escopos
maiores (como na figura 4.12) também se qualifica e se justifica como síncope.
167
Neste ponto já podemos, em síntese, dizer que essa ‘figura’, ou essa topologia de
temporalidade que chamamos de complexo pulsativo dispõe de um ponto, de uma
quandidade, que é privilegiadamente acentuada. E, se nos adiantamos um pouco aqui,
sabemos que esse ponto-de-tempo de especial tonicidade é o ponto-de-tempo ‘onde’,
em geral, ocorrerá a tônica, ou seja, o Grau I, o vértice do ‘espaço’ diatônico/tonal que,
em decorrência de sua forma, p• GGp, é o vértice de maior densidade tonal.
Antes, porém, devemos trazer à cena as seguintes questões: (a) o complexo
pulsativo que temos examinado até agora tem o escopo necessário para o que
chamaríamos de uma frase rítmico-melódica de quatro compassos binários simples
(normalmente 2 por 4 ou 2 por “x”). Mas que feições teriam complexos pulsativos que
correspondam às ‘métricas mais comuns’, subjacentes ao que chamaríamos de
compassos ternários simples (3 por 4), quaternários simples (4 por 4) e os compassos
ditos compostos (6 por 8; 9 por 8; 12 por 8)?; e (b) dentro de que limites poderíamos ter
um conjunto máximo de ‘frases’, tal que esse conjunto a um só tempo pudesse ser
reconhecido ainda como estrutura rítmica e como escopo de um todo musical
satisfatório?
Quanto à primeira questão, devemos considerar que e expressão “mais comuns”
não terá aqui o sentido do mais freqüente estatístico (embora isso também possa ser
demonstrado verdadeiro). Em certo sentido, estaremos deixando operar aquele tipo de
raciocínio homólogo ao que, na lingüística, nos mostraria uma constelação de
realizações fonéticas ‘mais concretas’ (as variantes), que convergem em um núcleo
fonêmico categórico — ‘menos concreto’, ‘abstrato’. Por outro lado, haverá aqui um
esforço no sentido de ‘excluir’ desse raciocínio a dicotomia radical abstrato/concreto,
na linha mesmo do que já apresentamos mais acima nos termos de uma região de
interface entre res cogitans e res extensa (não seriam, estes, enfim, aspectos de uma
mesma ‘realidade’?).
É nessas condições, portanto, que lançaremos mão da figura 4.13 [a, b, c, d] mais
abaixo:
168
Figura 4.13
Em [a] reconhecemos logo o complexo pulsativo com que já nos familiarizamos
mais acima. Temos ali, considerado o domínio propriamente interno, seis níveis
hierárquicos que revelam desde um elemento, ou seja, 20 = 1, até 32 elementos, i.e., 25
elementos, de forma que podemos identificar cada nível como 20 - 21- 22- 23- 24- 25 .
Em [b] temos uma maneira plausível de representar o que é subjacente ao
‘quaternário’ (4 por 4), aliás uma hierarquia integralmente binária, no sentido de que
seus sete níveis podem ser identificados como 20 - 21- 22- 23- 24- 25 – 26.
Em [c] vemos aquilo que deverá dar conta dos ‘compassos ternários simples’,
com 48 elementos ou nódulos terminais (i.e., a contar da pulsação mais aparente, 12 x
4, ou 12 x 2 x 2, elementos). Nesse caso, deixaremos aqui não-resolvida — mas apenas
graficamente sugerida — a ‘intromissão’ do ternarismo, que se ‘projeta sobre’ o nível
da pulsação mais aparente (podemos supor que, nesse caso, deveremos ‘permear’ a
‘lógica binária’ zero/um com uma lógica de números ternários – com os dígitos 0 – 1 –
2).
Em [d] estamos, evidentemente, pensando nos chamados ‘compassos binários
compostos’. Aqui também temos, como nos ‘ternários simples’, 48 elementos ou
nódulos terminais. Mas, diferente do caso anterior, o ternarismo aqui se manifesta ‘sob’
0
0
0
0
00 0
Ø
T
0
0
0
0
00 0
Ø
T
0
0
0
0
00 0
Ø
T
Ø
T
[a] [b]
[c] [d]
169
a pulsação mais aparente, de forma que os 48 terminais devem ser entendidos como 8 x
3 x 2. Note-se que essa ambivalência 3/4 6/8 — em que, ora 48 é ‘lido’ como 12 x
2 x 2, ora é lido como 8 x 3 x 2 — é engenhosamente explorada (à Escher), por
exemplo, por Debussy em “Danse (Tarantelle Styrienne)”.
Ainda quanto à figura 4.13 [d], podemos considerá-la aqui como representante
dos ‘compassos compostos’ ou ‘tempos triplos’ em geral, ou seja, estão implícitos aí,
com as devidas modificações, os chamados ternários e quaternários ‘compostos’, que
anotaríamos na partitura como 9 por 8 e 12 por 8.
Condensação : ideograma/somatograma
O próximo passo que daremos aqui está representado na figura 4.14.
Figura 4.14 Numa primeira aproximação, poderíamos dizer que nessa figura estaríamos
retendo o que há de comum a todas as figuras — a, b, c, d (4.13, acima) — uma vez
extirpadas, podadas, de todas as ‘variantes’ que ocorrem nos seu ‘níveis mais baixos’.
No entanto, muito ao contrário, devemos entender aí que todas as ‘variantes’ estão
simultaneamente implícitas, ou ‘implicitadas’ nessa figura una.
Na figura 4.15, também os ‘níveis superiores’ são tornados implícitos, ou ‘são
implicitados’, de forma que todas as suas características, funções e propriedades estejam
aí ‘embutidas’. Figura 4.15
Podemos, no entanto, dar mais um passo no sentido dessa [in]-plicitação, como
na figura abaixo: Figura 4.16
0
0
0
0
00 0
Ø
T
0 00 0 Ø
0
170
Nesse grafismo, ou mesmo, nesse aglutinado de grafemas, ‘tudo’ estará
embutido. Os elementos que permanecem explícitos aqui são, naturalmente: (a) a seta,
ou seja, o ‘ser-para-o-fim’; (b) o traço vertical, ou seja, o zero ou assíntota para o qual
tende a seta; (c) o ponto ‘à esquerda’ do zero, ou seja, o ponto propriamente interno que
absorve a acentuação ou peso máximo do zero.
Se me sinto compelido a ver aí algo como um ideograma ou logograma, devo,
por outro lado, lembrar que em “ideo-” ou “logo-” estaria o pressuposto de que esse
signo gráfico representaria (stands for, na acepção peirceana) uma ‘idéia’ no sentido
verbalista conferido por “logos”. Mas esse signo, ou esse ‘caractere’, deverá se reportar
a algo talvez mais visceral, no sentido mesmo de vísceras, de corpo ou corporalidade.
Em outras palavras, o complexo pulsativo ali representado se localiza em um domínio
que mais acima chamamos de ancestral, que se radica no somático, numa
corporalidade.
Assim, não teríamos propriamente um ideograma mas, em algum sentido,
um somatograma, uma vez entendido que a noção de corpo vale aqui como o humano
— que existe, que é/está aí (dasein : Heidegger) ‘corporalmente’11. E o que nos
interessa aqui é que esse ‘corpo’ é na medida em que tem, no sentido heideggeriano,
uma ‘ocupação’, e que essa ‘ocupação’ pode ser a de se movimentar numa dança.
Nesse sentido, é interessante registrar aqui que, segundo Loparic (2001), Martin
Heidegger contrastou sua concepção de ser humano com a concepção de Freud
lançando mão de um desenho (visto que Freud também fizera seu desenho). Tal figura,
ou seja, “esse retrato do ser humano, feito à luz da analítica do Dasein elaborada em
Ser e Tempo” (Loparic, ibid), é descrita assim: “no retrato de Heidegger, o homem
aparece como uma seta vinda de um espaço aberto, vazio, e dirigida para um horizonte
semifechado” (ibid.). Assim, podemos dizer que aquilo (ritmo em sentido lato) que é
fundante na musicalidade tonal tem uma relação de homologia com o humano. Nesse
sentido, podemos admitir que a musicalidade tonal característica da modernidade é, em
certo sentido, uma ‘música humana’. Da mesma forma, podemos associar as músicas
11 Esse raciocínio não é ‘diretamente autorizado’ em Heidegger, mas no “Merleau-Ponty's attempt to develop Heidegger's work to give an account of embodiment”., cf. http://www.apu.ac.uk/dso/catalogue/cambridge/levelh/epl/EPH2008.html
171
radicalmente a-tonais do século vinte (v. Schoenberg: Interlúdio, no Capítulo II) com
uma noção, não do des-humano, mas da assim chamada pós-modernidade. Uma pós-
modernidade inerentemente imbricada com uma particular tecnologia. Podemos inferir
daí uma noção de uma musicalidade ‘tecno-humana’ ou ‘pós-humana’.
Essa expressão – “pós-humano” –, eu a ouvi pela primeira vez de Lúcia
Santaella no Seminário “Convergências das Comunicações e Artes” (Vitória 19-
23/05/03). Das discussões que se seguiram, retive o desafio inerente à própria
expressão. Daí resulta, agora, a associação que faço desse termo com Heidegger: The
Question Concerning Technology and Other Essays, mencionado por Kroker (2001) (v.
capítulo “Hyper-Heidegger”): “what Heidegger would come to call the culture of ‘pure
technicity,’ was the gleam on the post-human horizon”.
Podemos, assim, voltar a falar do processo de [in]-plicitação que resultou
finalmente na figura 4.15 mais acima. Essa ‘redução’, com efeito, tem as características
da metonímia ou, possivelmente, da condensação (no sentido psicanalítico). Ou seja, o
que temos não é apenas uma ‘expressão’ sintética “ α ” que remete a um todo “A”, mas
uma condensação na qual, em algum sentido, estão embutidas várias estruturas
homólogas “a” e “b” e “c” e “d” e.....e “n” ( e não: ou “a” ou “b” ou “c” .. etc.).
No campo musical, é bem verdade, o termo “redução”, no sentido de Schenker,
pressupõe uma abolição da temporalidade, a qual só aparecerá plenamente como um
“resultado final”, na ‘superfície’ ou “foreground” musical. Vejamos isso nas palavras de
Schenker (grifos nossos).
Rhythm can no more exist in the fundamental structure than it can in a strict- counterpoint cantus firmus exercise. Only when, through voice-leading transformations, linear progressions arise in the upper and lower voices of the middleground, does a rhythmic ordering issue from the necessity of counterpointing voices against each other. All rhythm in music comes from counterpoint and only from counterpoint. …….. [Thus] rhythm, too, progresses through various transformational stages until it reaches the foreground, just as do meter and form, which represent end-results of a progressive contrapuntual differenciation. The necessity to create balance within the tones of the linear progressions, which may differ in number, leads for the first time to an intrinsically musical rhythm. The roots of musical rhythm therefore lies in counterpoint! [At the latter levels] rhythm undergoes corresponding changes until, still anchored in counterpoint, it receives its final form in the foregound, by the addition of meter. (da versão inglesa – Free Composition - de Der Freie Satz, apud Rothstein 1981: 136)
172
Um escopo para uma historia de sons
Aqui, ao contrário de Schenker, o que encontramos na ‘estrutura fundamental’ é
exatamente temporalidade. Trata-se — se nos recordamos de tudo o que está [in]-
plicitado no ‘somatograma’ da figura 4.16 — de uma temporalidade que já se institui
como sintaxe. Reflete-se aí a idéia de que “onde houver tempo, há sintaxe” (Santaella,
2001: 116); uma sintaxe que se põe “como eixo da matriz sonora” (ibid., p. 112)
Ademais, tendo esse eixo um “direcionamento para um alvo” será uma “sintaxe do
movimento (........) tipicamente narrativa”, tal que “[A] música também conta histórias,
uma história de sons” (ibid., p. 113).
Mas aqui não podemos ignorar uma dificuldade terminológica nossa, pois, se
atados à frasalidade e sintaticidade na acepção chomskiana estrita, não poderíamos
atribuir características propriamente discursivas ou narrativas a algo que tem o escopo
de temporalidade da frase ou da sentença. Ademais, impusemo-nos limitações de
escopo em favor da noção de zeitgestalt ou de um “brief extent” (cf. Dalhaus, mais
acima). Esse escopo não seria suficiente como uma temporalidade em que se completa
uma “jornada melódica” (cf. Santaella, op. cit, p. 14), uma história de sons ou uma
história narrada (ou auto-narrada) em sons. Trata-se aqui da segunda questão trazida à
cena mais acima, ou seja, qual o conjunto máximo de ‘frases’ tal que o escopo desse
conjunto seja, de um lado, suficiente para o desenvolvimento de uma história (ou de um
‘poema’ – descartado aqui o haikai, com suas 5 + 7 + 5 sílabas) e, por outro, possa ser,
no limite, ainda reconhecido como “ritmo”.
Em outras palavras, devemos buscar o escopo de um complexo temporal-
pulsativo que se ponha na transição entre ritmo propriamente dito e forma musical na
acepção mais comum. Ou ainda, estamos pensando em uma ‘forma mínima’, laica-e-
iletrada, não dependente de dispositivos externos de memória, uma vez admitido o fato
de que as grandes formas musicais-artísticas são dependentes de tais dispositivos
externos, ‘espacializantes’, ‘visualizantes’, como o são as notações musicais.
Para tanto, devemos lembrar que, embutido em nosso ‘ideograma’ (ou
‘somatograma’), está um porvir (zero) que, de um lado, pode ceder plenamente seu
173
‘peso’ para um ‘ponto final’ propriamente interno, mas, por outro, pode ceder apenas
parcialmente esse peso, mantendo assim seu caráter tético (thetikós, gr.: próprio para
colocar - para estabelecer, criar; e, em oposição a arsis, “Thesis, Chez les Grecs, les
temps fort, (.....) abaissement (.....) du pied, dans la dance”, cf. Riemann, op. cit.)
Em outras palavras, o convite ao re-inínio, à recusrividade, é já uma propriedade
inerente a esse complexo pulsativo na medida em que o zero (assíntota) será sempre o
‘lugar’ do (re)início, da (re)criação, ou ainda, o ‘lugar’ em que o pé ‘quer’ bater
novamente, dando continuidade à ‘dança’, criando assim um novo complexo pulsativo
que será sempre o mesmo e outro (como na figura 14.17). Num sentido mais geral,
estaria aí o pedido infantil do conta novamente, ou aquilo que, mais precisamente,
poderíamos chamar de fenômeno Sherazade, dado que nesse caso trata-se abertamente
da postergação de uma morte. Figura 4.17
No entanto, sabemos, por documentação histórica e farta corroboração empírica
(v., p. ex., Bas, 1920; Schoenberg, 196712; Beder, 1982), que o escopo mínimo para um
todo musical satisfatório e completo corresponde à ‘estrutura de dezesseis compassos’.
Ou seja, o conjunto de quatro ‘frases’ de quatro compassos. Nesse caso, o fim
propriamente dito só ocorre no final da quarta frase, com a plena absorção do peso da
assíntota para a ‘cabeça’ do compasso final.
Naturalmente, não se pode ignorar que, em especial nas canções, eventualmente
encontramos notas ou ‘sílabas’ posteriores a esse ponto final. Também encontramos as
chamadas cadências ‘femininas’, nas quais o acorde da dominante ocorre nesse ponto
acentuado e o da tônica num ponto menos acentuado ‘à direita’.
Encontraremos também, para além da assíntota, uma adição de compassos,
digamos, ‘extemporâneos’, nos quais tipicamente se realiza o Amém dos hinos
religiosos — e, nesse caso, teremos sempre uma cadência plagal.
12 Schoenberg exemplifica ‘formas didáticas, para praticar’, “practice forms” (em ‘oposição’ a “art forms”) com vários exemplos, como: “the opening of the Adagio of Beetnoven’s Op. 2/1, m. 1-16”, ou ainda: “Op. 2/2 (m. 1-16)”, etc. Uma nota de interesse é o sub-tema nº 1 do 4th Music Theory Conference (April 2004, Lithuania): “Etymological and evolutional aspects of the concept of compositional principle”.
Etc.
174
Em suma, encontraremos sempre variantes do fim, sem que isso impeça que
consideremos a estrutura representada abaixo (figura 4.18) como a estrutura subjacente
canônica.
Figura 4.18
Teríamos aqui uma unicidade organizada hierarquicamente, dotada de coesão,
conectividade. Mais ainda: no caso musical, dotada de um andamento, não no sentido
metafórico, mas no sentido literal do tempo ad hoc, constituído de pontos-de-tempo
‘reais’, ‘naturais’, reivindicados pela e para a música. Daí a especificidade da música —
como ‘arte do tempo’, ou ainda, arte de tempo.
Sendo ainda pertinente ao domínio do ritmo — conquanto já seja reconhecível
como uma pequena forma musical — teríamos, representado na figura acima, um
tempo-histórico, um calendário em relação ao qual datamos, i.e., atribuímos uma
quandidade, a cada um dos gestos incoativos (ataques dos sons) que, em seu conjunto,
descrevem ritmicamente uma história (onde o termo “descrever” deve ser entendido
também na acepção que tem quando dizemos que um corpo ou objeto descreve um
percurso, uma reta, uma curva, etc.)
Podemos agora, com mais uma condensação, tentar visualizar a figura acima,
desta vez incorporando tanto o ‘calendário’, ou seja, aquilo que normalmente chamamos
de metro ou métrica musical (um gesto singular), quanto o ritmo propriamente dito, ou
seja, a pluralidade de gestos individuais que, um a um, decidimos fazer/não fazer,
criando, assim, a variedade de ‘histórias rítmicas’ (que, por sua vez, virão a ser
diferentes melodias, diferentes músicas). Uma aproximação visual possível dessa
condensação seria a figura abaixo.
175
Figura 4.19
O que vemos aqui não seria necessariamente a idéia de circularidade fechada do
tempo no sentido que, talvez precipitadamente, já foi atribuído por alguns antropólogos
e lingüistas à concepção de tempo de ‘povos primitivos’ (a esse respeito, ver Pinker,
1994, p. 53). Trata-se aqui de um recurso representacional que pode ser, por exemplo,
imaginado como a projeção, no plano, de um percurso helicoidal descrito na superfície
de um cilindro perpendicular a esta página (homólogo àquele que usamos no caso das
escalas).
Isto posto, podemos reconhecer aí aquilo que, mais acima, o mestre Arbeau
ensinava a seu discípulo Capriol sobre as baladas e danças já praticadas mesmo antes (e
certamente muito antes) do século dezesseis. E, como já vimos, Arbeau ‘previa’ que tais
danças ‘voltariam à moda’. Deixa-se aqui em aberto a questão de se saber se Arbeau se
dava conta da magnitude de sua ‘antevisão’, pois, não somente “[R]egular accent is a
feature of most music since about 1600” (v. mais acima, Sholes, op. cit), como também,
e sobretudo, é essa a estrutura (rítmico-formal) que permeia toda a música tonal (as
exceções serão exatamente – exceções – ou ‘variantes’ no sentido que adotamos aqui).
Com efeito, sabemos que — desde as brincadeiras ritmadas infantis, sejam
atuadas corporalmente, sejam vocalizadas (às vezes com pseudo-palavras), i.e., as
parlendas, as canções de ninar, as canções folclóricas, até as grandes formas da música
ocidental de concerto — ou se ‘encaixam’ integralmente nessa estrutura rítmica (no
caso das pequenas formas) ou (no caso das grandes formas) contêm em sua estrutura
maior passagens que, de maneira ora mais, ora menos ‘literal’, correspondem a essa
estrutura, a essa dança.
• As quatro linhas sólidas que formam o círculo externo representam frases rítmicas (ou melódicas) propriamente ditas.
• Os términos dessas linhas, ‘sobre’ os pontos que antecedem as assíntotas, representam as cadências no sentido musical mais comum.
• Os inícios das linhas ocorrem ‘antes’ das assíntotas para significar que nesse ‘antes’ ocorrem eventualmente as anacruses no sentido musical mais comum.
176
Mas o que, em síntese, devemos ressaltar aqui é que isso que estamos chamando
de essa estrutura, essa dança, é algo que nos remete à ‘origem’, ao ‘fundamento’, da
música tonal. Se entendemos aí que tal fundamento é o ritmo — no sentido de que ‘no
início era o ritmo’, como já vimos na abertura deste capítulo — não teremos caminhado
muito em nossa análise.
Bastidores do ritmo: busca do objeto do signo-ritmo
No entanto, nosso ‘objeto de análise’ não foi, no final das contas, o ritmo, mas,
em certo sentido, o fundamento do ritmo. Em outras palavras, nossa atenção não esteve
focalizada nos signos rítmicos — entendidos como aquela substancialidade mais
saliente (sonora ou outra) que, numa primeira instância, se nos apresenta — mas nos
‘bastidores’ desses signos.
Dessa forma, se admitimos que um signo rítmico é, não uma duração, mas um
gesto incoativo (que dá início a um evento, sonoro ou de outra natureza), podemos,
agora formulando a questão nos termos da semiótica peirceana, nos perguntar sobre o
objeto desse signo. Em outras palavras, o que esse signo representa (stands for)?
Evidentemente, já temos, ao longo da argumentação desenvolvida até aqui, uma
resposta para tal questão, qual seja, que o objeto que determina esse signo é, numa
primeira formulação, um ponto-de-tempo. Mas isso ainda não é suficiente, pois para que
esse ponto seja reconhecido como uma quandidade, ou seja, um ‘momento’ peculiar e
único na história ‘descrita’ por um ritmo, é necessária a efetiva pertinência desse ponto
a um complexo pulsativo tal como analisado mais acima. Decorre daí que, tal objeto
pontual nos remete a todas as características e propriedades do todo ao qual pertence;
ele é — naquele momento — esse todo, com todas as implicações que daí advém.
Dentre essas implicações está a de que o objeto de um (único) signo rítmico é o
todo pulsativo, a temporalidade tal como a entendemos aqui — uma vez estabelecido
que estamos falando desse todo tal como ‘visto’ na perspectiva daquele momento
peculiar . Mais ainda: se admitimos que a temporalidade de que falamos é uma
temporalidade reivindicada do tempo ‘real’, o signo rítmico parece, em última
instância, estar sempre buscando como objeto um agora na temporalidade ‘do mundo’.
177
O que se passa, nesse caso, parece corresponder a aquilo que Tarasti (1994, p. 59)
percebe ao dizer que “music functions in its temporality as a border and transition
between nature and culture”.
Podemos depreender daí que a relação do signo rítmico-musical, entendido
como o ataque de um som, e seu objeto, entendido como ponto-de-tempo, é de natureza
existencial, ou seja, o gesto de ataque não simplesmente é naquele momento, mas é toda
aquela temporalidade ‘flagrada’ em um de seus momentos: um índice (não um ícone-
análogo ou um símbolo-convenção) daquela temporalidade. Não caberia aqui dizer, por
exemplo, que aquele signo e aquele ponto-de-tempo são simultâneos ou co-incidentes
no tempo, mas que são, num sentido radical, co-existentes.
Outra questão que podemos ressaltar aqui é que, enfim, a ‘força’ que gera a
aglutinação de sons musicais em sintagmas que reconhecemos como ‘pés’ ou grupos
iâmbicos, trotáicos, anapestos, etc. e a aglutinação destes em frases, etc., não decorre
exatamente de suas relações ‘horizontais’ uns com os outros (nesse sentido, as
estruturas arbóreas de Jackendoff e Lerdhal descrevem essas unidades da superfície
musical), mas, fundamentalmente, da relação ‘vertical’ de cada som individualmente
com o ‘objeto rítmico’, ou seja, com a sintaxe temporal, que é, por definição,
coesividade, conectividade.
A esse respeito, penso que é oportuno voltar à questão formulada no Capítulo III
— o que faço literalmente, reproduzindo abaixo (em itálico) a passagem em questão.
É nesse sentido que podemos descartar definitivamente imagem da melodia
como fluxo sonoro contínuo (à Bergson, p. ex) , pois, a cada nota de uma melodia, uma
nova e completa semiose é processada: o sujeito musical não desliza horizontalmente
de um som a outro pois, para cada nota, ele se afasta da linha discursiva-sintagmática
e mergulha em direção a, ou ao encontro de, um mundo ou universo objetal para, só
então, emergir com um novo signo. Mas o que dará conta dessas iniciativas do sujeito,
desse movimento vertical de mergulho e de volta à superfície? O que dará conta do fato
de esse sujeito emergir a cada vez com um signo-altura que parece se submeter a um
princípio de coesão que vemos numa frase musical?
Ritmo tonal
A resposta a essas questões parece, com efeito, estar no ritmo. Ademais, a
própria noção de nota pyen (ou de sensível, i.e. leading note), sem a qual
178
provavelmente não teríamos podido descrever a passagem modal/tonal (no que se refere
às escalas), é uma noção eminentemente rítmica. A nota pyen, assim como um si,
entendido como ‘pré-dó’, é um som (uma função tonal) que é em função de, ou em
direção a, um outro som que está no porvir.
Podemos, assim, dizer que a expressão “tonal”, antes mesmo de se aplicar à
melodia, à música, e mesmo antes de se aplicar ao próprio som, aplica-se ao próprio
ritmo, na medida em que o ponto de tonicidade máxima, a tônica que tem o
‘significado’ fim, é já inerente ao complexo pulsativo (objeto) subjacente aos gestos
rítmicos em sentido estrito (signos). Dentro dessas condições, podemos dizer que há
uma música tonal (em contraste com a música modal do cantus planus) em virtude da
existência primeira de um ritmo tonal. Assim, pois, a expressão “musicalidade métrico-
tonal”, necessária como ponto de partida deste estudo, se torna agora redundante. Ou
seja, a expressão mais comum “música tonal”, ou mesmo “musicalidade tonal”, torna-se
suficiente, dado que a característica tonal é já inerente ao ritmo, à métrica ou complexo
pulsativo que descrevemos aqui.
Acoplamento tempo, espaço.
Ao longo de todo este estudo, até este momento, tratamos, de um lado, da
questão das alturas e escalas e, de outro, da questão do ritmo, de maneira o tanto quanto
possível independente. Caberá agora, em direção às conclusões a que podemos chegar,
buscar a articulação ou unificação desses dois aspectos da música. Em outras palavras,
devemos colocar em foco o cruzamento ou imbricação altura vs. ritmo (v. Beder,
op.cit), ou, mais precisamente, espacialidade vs. temporalidade.
Como em Heidegger (v. seção “A temporalidade da espacialidade inerente à
pre-sença” § 70, op. cit. p. 169), assumiremos aqui que “(...) a espacialidade específica
da pre-sença deve-se fundar na temporalidade”, e que, de maneira homóloga à pre-
sença, a música “(.....) introjeta — em sentido literal — o espaço” (ibid., p. 170).
Dessa forma, no “‘acoplamento’ de espaço e tempo” (ibid) que se dá na música,
consideraremos que “a espacialidade (....) está ‘englobada’ na temporalidade” (p. 169)
(nesse sentido, recordemos também as palavras de Carl Dalhaus, no início do presente
capítulo, bem como as de Susanne Langer, citadas no capítulo II.)
179
Dada a dificuldade de visualização de um tal acoplamento, usaremos a figura 4.19, que deve ser devidamente justificada. Figura 4. 20
Com efeito, o que temos aqui é um estilo de representação que devemos a René
Descartes, com sua geometria analítica, absorvida por Isaac Newton para sua descrição
do cosmos, do mundo. Essa geometria analítica, tal como entendida no sentido
estritamente cartesiano é, aliás, aquilo em que se baseia a notação musical convencional
e, em última análise, a axiologia altura/duração.
No entanto, deve-se ter em mente que essa coordenada horizontal-tempo está
aqui apenas como uma metonímia (ou condensação) de toda a espessura e
complexidade que tentamos descrever em linhas gerais com o complexo pulsativo
fundado no porvir.
Da mesma forma, a coordenada vertical-espaço — já desenhada menos espessa
que a outra, pois essa espacialidade, segunda, já seria “englobada” pela temporalidade,
primeira — está aí condensando a ‘espacialidade’ que descrevemos nos termos de um
espaço diatônico-tonal (capítulos II e III).
Sem dúvida, é preciso que já se reserve aqui a possibilidade de questionarmos,
em favor de uma física pós-newtoniana (e em atenção a Heidegger), em primeiro lugar,
a própria ortogonalidade dessa representação; e, em seguida, a externalidade dessas
coordenadas em relação a aquilo que percebemos e entendemos, pois, não seriam elas,
essas coordenadas — mesmo despidas da sua especificidade musical — em algum
sentido também inerentes a, constitutivas de, tudo que podemos ‘identificar’ lá fora,
por nossos sentidos, e aqui dentro em nossa mente-e-corpo?
TEMPORALIDADE
E S P A C I A L I D A D E
180
Feitas essas ressalvas, é com base nessa figura que poderemos dizer que um som
de uma melodia tonal tem fundamentalmente a natureza de um signo-índice duplamente
determinado. Ou seja, esse som representa (stands for) um tempo (‘flagrado’ na
perspectiva de um momento peculiar: quandidade) e um espaço (o espaço diatônico-
tonal ‘visto’ na perspectiva de um de seus ‘vértices’).
Acredito que um estudo sistemático dos falares sobre música poderá mostrar que
tendemos a ‘deixar escapar’ falas que corroboram o que é dito acima. Mas isso parece
ser possível apenas nos momentos (que não são raros) em que — por um ‘cochilo’ do
cérbero/cérebro que vigia a saída da teoria-musical, aprendida como ‘letramento’ —
deixamos escapar, vocalizamos, um insight que provém de domínios que estão ‘abaixo’,
aquém, da axiologia letrada. Vejamos um exemplo:
A afirmativa de que “[T]emporal constraints in music performance include the
need to produce events in a fluent or continuous manner, maintain the rate or tempo,
and preserve certain durational relationships between events” (Drake & Palmer, 2000),
essa afirmativa denota claramente um compromisso assumido com o que chamamos de
axiologia altura/duração.
Mais adiante, as autoras dirão: “one major component of novices’ music
performance involves the learning of temporal structure, and performances by beginner
musicians provide naturalistic conditions in which to observe temporal breakdowns”
(grifos nossos). E isso também denota o mesmo compromisso a que nos referimos
acima. Ou seja, a estrutura temporal seria algo aprendido, algo sem o qual o estudante
noviço ainda erra muito, na forma de “temporal breakdowns” (ibid ).
Do ponto de vista defendido neste estudo, no entanto, trata-se aí do momento em
que a estrutura temporal é desaprendida por causa de um letramento que se sustenta
numa axiologia não-adequada. Mas é a concordância tácita com tal axiologia que
permite que as autoras descrevam as performances dos noviços como “frequently
interrupted by pauses, corrections and duration errors (grifo nosso).
No entanto — e sempre sem de fato abandonar aqueles compromissos — uma
das formas que as autoras encontram para sintetizar suas conclusões é a seguinte:
“performers must produce the correct events (what) and produce them at the correct
moment in time (when)” (op. cit p. 29) (a passagem está reproduzida aqui exatamente
como no original, i.e., com os parênteses contendo “what” e “when”, sendo que “what”,
como deixa claro o artigo, se refere às notas, às alturas).
181
Talvez, dentro do espírito do presente estudo, pudéssemos traduzir esse insight
da seguinte maneira: os executantes produzem os eventos corretos (o que) e os
produzem no momento correto (quando). Estamos, como se vê, omitindo a expressão
“must”, pois aí está implícita a idéia de uma ‘competência’ ou disciplina im-posta ou
sobre-posta, em contraste com uma não-competência ‘natural’, donde decorre o erro.
Mas, conforme os argumentos apresentados aqui, o ‘erro’ seria, em certo sentido, muito
mais aprendido e ‘artificial’ que o ‘acerto’. O ponto inicial do proceder musical — bem
diferente de uma não-competência, de uma tabula rasa — é um não-saber-não-fazer.
É nesses termos, pois, que podemos aqui delinear uma resposta para nossa
pergunta: o que é que eu faço quando entendo (crio, toco, escuto) uma melodia, na qual
inserimos a cláusula sem saber que faço. Essa cláusula deve denotar aqui não uma
ausência de qualquer ‘saber’, mas um ‘saber’ cuja existência-e-manifestação não tem a
natureza da consciência e inconsciência entendida em sentido estrito, encapsulada no
domínio do verbal. Assim, desnecessário dizer, as palavras usadas abaixo para descrever
esses fazeres e procederes são meros simulacros verbais de processos que, embora
certamente homólogos em muitos aspectos a processos lingüísticos, são decididamente
não-verbais.
Assim, podemos dizer que o que fazemos quando entendemos um som de uma
melodia são perguntas. Fundamentalmente, o que perguntamos a esse som, para
‘conhecê-lo’, equivale à expressão: quem é você? E, na verdade, essa pergunta tem uma
estrutura bífida, dupla, ou seja, significa simultaneamente: quando é você? e onde é
você?; nas quais é necessário que usemos o verbo ser (conforme a figura 4.20, que
repetimos aqui como 4.20a. )
Figura 4.20a
QUANDO
O N D E
&
O
Q U E
182
As respostas a essas perguntas é que estabelecem a identidade musical
fundamental desse som. Essa identidade, com certeza, será afetada, infletida, de diversas
maneiras, pelo contexto melódico/harmônico em que ocorre. No entanto, sua identidade
fundamental, aquela com que contribui para um todo específico, para a história de sons
de que faz parte numa melodia específica, é invariante para qualquer história, para
qualquer melodia.
Devemos também ter claro que, tanto quanto a ‘coordenada horizontal’ não
significa aqui um continuum temporal, a ‘coordenada vertical’ tampouco representa um
continuum grave-agudo, como abaixo:
Figura 4. 21
Aqui, deve-se destacar a cadência como fenômeno primordialmente rítmico.
Considerando o acoplamento temporalidade espacialidade, podemos ver aí a cadência
final V – I (dominante tônica) e sobretudo a Tônica em seu sentido Pleno, ou seja, no
acoplamento da tonicidade temporal máxima com o que chamamos mais acima de
‘vértice’ de máxima densidade tonal.
Podemos também ilustrar a idéia do “que fazer quando”, uma vez entendido esse
“que” como um grau da escala, i.e., como um ‘modo’ do espaço diatônico-tonal, e esse
“quando” no sentido da quandidade estabelecido mais acima. Vejamos isso na figura
mais abaixo:
VÉRTICE JÔNICO
VÉRTICE DÓRICO
VÉRTICE FRÍGIO
VÉRTICE LÍDIO
VÉRTICE MIXOLÍDIO
VÉRTICE EÓLIO
VÉRTICE LÓCRIO
TÔNICA
183
Figura 4.22
Desnecessário dizer que as ‘posições-de-tempo’ (quando) não estão
representadas aí corretamente (o leitor certamente conhece essas posições). Quanto a
aquilo que é ‘feito’ (o que), podemos dizer que o que é ‘feito’ em cada ‘quando’ é a
convocação de ‘vértices’ da escala, que estão representados aqui com os nomes dos
modos correspondentes (v. p. 101).
Mas esse desenho ainda guarda a desvantagem de sugerir ‘alturas’, a noção do
grave/agudo e de um perfil melódico que daí decorre. Essas questões, no entanto,
pertenceriam a um estudo voltado para os aspectos icônicos ou ‘analógicos’ da melodia,
que não constituem o interesse principal neste presente estudo. Vejamos, então, o final
da canção acima, mas agora representado de uma maneira talvez mais adequada, na
medida em que os graus são representados explicitamente como o todo da forma
/GGpGGGp/ ‘visto’, ou ‘convocado’, a cada momento rítmico, na perspectiva de
diferentes vértices.
Figura 4.23
Acredito , assim, que conseguimos ao longo deste estudo delinear o como
fazemos isso, i.e., como é o proceder musical, o como deverá funcionar a musicalidade
JÔN
MIX
EÓL
MIX MIX
LÓC
pa béns ra pra vo cê
VÉRTICE JÔNICO
VÉRTICE DÓRICO
VÉRTICE FRÍGIO
VÉRTICE LÍDIO
VÉRTICE MIXOLÍDIO
VÉRTICE EÓLIO
VÉRTICE LÓCRIO
mui a tos nos de vi da
184
tonal ‘nos seus bastidores’. Haverá certamente a questão de se saber por que e para que
fazemos isso. Essa questão, no entanto, está para além dos interesses e objetivos deste
estudo.
Outro ponto que é deixado em aberto aqui é a questão de se saber a que nos
referimos quando dizemos de forma específica “essa música”, “essa composição”, ou
seja, aquilo que é comum a todas as suas execuções (ou ‘atualizações’). Em outras
palavras, onde está, onde e como existe, essa música, quando não está ‘sendo em ato’?
Estaria numa existência potencial, congelada em uma ‘memória’ ou diagrama que
poderíamos conceber como uma geometria ou topologia talvez dotada de alguma
espacialidade (mas fora do tempo)? Estaria numa escritura donde eventualmente ‘salta
para a vida’? Mas a própria noção de escritura não estaria, ao fundo, comprometida
com a sentença “no princípio era o verbo”? Não poderíamos contrapor a esta sentença
aquela outra: “no princípio era o ritmo-pulsação”? De qualquer forma, estivemos
falando de um proceder musical, não no sentido em que processo se opõe a sistema
(cf. Hjelmslev, 1943 : 28-29 ), mas no sentido mais aproximado de sistema ou padrão
dinâmico (v. p. ex. “spatiotemporal patterns of the brain” em Kelso, 1999: 270).
Cabe, por fim, dizer que, ao afirmarmos a não-verbalidade da música, não
estamos, evidentemente, retomando a idéia da obra musical ‘pura’, ‘absoluta’,
radicalmente refratária a qualquer interpretação que não seja, ela própria, uma
interpretação musical. Tampouco são negadas aqui as interconexões ‘horizontais’ da
música com as demais linguagens que compõem, num sentido geral, a ‘economia
comunicativa’. Por outro lado, tentamos apontar neste estudo — especialmente no que
concerne a aqueles primeiros momentos de um letramento musical — a possibilidade
de um falar sobre música menos alheio a seu objeto (que, no limite, seria não-musical).
Reafirmamos aqui, junto com Kramer (cf. Capítulo I deste estudo), que “the
embededdness of music in networks of nonmusical forces is something to be welcomed
rather than regretted”. E também com Monelle: “there has never been a gesture that was
purely musical” (cf. citação também no Cap. I).
No entanto, procuramos aqui dar uma outra inflexão à noção de forças não-
musicais, nas quais a musicalidade certamente deve estar imersa, “embedded”. Em
outras palavras, se de alguma maneira podemos descrever a música, a musicalidade,
como se descreve o mundo, i.e., nos termos de uma co-ordenação dinâmica
185
tempo/espaço (ou aprox. T ⊃ E ), poderemos dizer que a música é já ‘naturalmente’,
inerentemente, imersa no mundo — antes de sua inserção numa economia
comunicativa stricto sensu, na qual o verbal aparece como hegemônico.
Enfim, conquanto seja uma linguagem, a música não é verbal e tampouco visual.
Sua matriz não é.
186
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