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CENTRO DE ESTUDOS DE DIREITO E SOCIEDADE
(CEDES-IUPERJ)
CONTROLE CONCENTRADO DE CONSTITUCIONALIDADE E JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA: O CASO DAS ADPFS
Igor Suzano Machado Marcelo Nogueira Diana Paula Martins Salles
Rio de Janeiro, Março de 2009.
Cadernos CEDES n.13
2
INTRODUÇÃO: O CONTROLE CONCENTRADO DE CONSTITUCIONALIDADE E A
JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA
O controle de constitucionalidade pelo Poder Judiciário é uma das principais
facetas da chamada judicialização da política, com juízes assumindo papel de primeira
grandeza na produção legislativa de um país. Por meio desse mecanismo de controle,
cabe ao judiciário expurgar de um sistema normativo qualquer lei que, a seu ver,
contradiga os ditames da Constituição – vértice para o qual deve convergir o sistema
como um todo.
As interpretações sobre tal fenômeno são controversas. Abrangem olhares
desconfiados, críticas contundentes, expectativas otimistas e elogios rasgados. Mas o
dado que nenhuma dessas interpretações deixa escapar é o de que a judicialização da
política é um fenômeno cada vez mais comum às democracias contemporâneas e que,
portanto, não pode ser ignorado. Pelo contrário, para ser reafirmado ou criticado,
precisa ser conhecido a fundo, em seus mecanismos de funcionamento e em seus
agentes de concretização.
No Brasil, a situação não é diferente. Principalmente após a promulgação de
nossa última Constituição. Desde então, o Judiciário vem assumindo papel de
destaque cada vez maior na vida republicana do país, precisando, portanto, ser mais
bem conhecido na forma como realiza suas funções mais notadamente políticas, de
que é exemplo o controle de constitucionalidade. Tal controle, exercido, no caso
brasileiro, de forma especial pelo Supremo Tribunal Federal (STF), já é parte integrante
do nosso sistema jurídico e político e vem aparecendo como uma etapa cada vez mais
comum em nosso processo legislativo.
Concentremos-nos nessa forma especial de controle de constitucionalidade
realizado pelo STF – o chamado controle de constitucionalidade concentrado, ou em
abstrato. Essa forma de controle se dá especialmente por três tipos de ações judiciais:
a Ação direta de inconstitucionalidade (Adin), a Ação declaratória de
constitucionalidade (ADC) e a Argüição de descumprimento de preceito fundamental
(ADPF). Conhecer melhor como esses três mecanismos de controle de
constitucionalidade têm sido operacionalizados pelo STF significa conhecer melhor
como tem se dado a judicialização da política no país e como tem atuado nossa mais
alta corte em seu papel cada vez mais destacado de ator político de primeira grandeza.
3
Afinal, por meio de tais mecanismos é possível que a última palavra sobre temas
altamente complexos, que envolvem conflituosidades profundas, venha a ser dada pelo
vértice hierárquico de nosso Poder Judiciário e não pelas instâncias políticas
representativas do Executivo e Legislativo.
Estudos sobre as Adins podem ser encontrados em A judicialização da política e
das relações sociais1 e Dezessete anos de judicialização da política2. Tais estudos,
relacionando as Adins a seus agentes e temas, e sua distribuição geográfica e
temporal, são fundamentais para a compreensão do atual funcionamento da política
brasileira. Por exemplo, ao concentrar suas análises sobre o legislativo e o executivo,
Fernando Limongi destaca que o sistema político brasileiro, decorrente da Constituição
de 1988, não permite voz política ativa a minorias parlamentares3. Entretanto,
expandindo a análise de nosso sistema político ao Poder Judiciário – e sua
caracterização nessa mesma Constituição – é possível ver como as Adins apresentam
um caminho por meio do qual as minorias parlamentares podem consolidar suas
demandas a despeito dos procedimentos legislativos ordinários4. E esse é apenas um
dentre muitos exemplos que demonstram a importância da política realizada por meio
do controle concentrado de constitucionalidade.
Contudo, conforme visto anteriormente, as Adins não são a única forma de
controle concentrado de constitucionalidade possível no Brasil. Por conta disso, o
objetivo deste trabalho é levantar, à semelhança do que foi feito a respeito das Adins,
os dados referentes às ADPFs – instrumento de controle concentrado de
constitucionalidade de regulamentação relativamente recente, cuja utilização tem
crescido em quantidade e importância. Por quem tais mecanismos têm sido utilizados e
com quais objetivos? Quais são as suas peculiaridades? Quais os temas sobre os
quais versam? Em que se assemelham e diferenciam das Adins? São essas as
perguntas que a pesquisa que se segue busca responder.
1 VIANNA, Luiz Werneck; CARVALHO, Maria Alice Rezende de; MELO, Manuel Palácios Cunha; BURGOS, Marcelo Baumann. A judicialização da política e das relações sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1999. 2 VIANNA, Luiz Werneck; BURGOS, Marcelo Baumann; SALLES, Paula Martins. 17 anos de judicialização da política. Tempo Social, vol. 19, nº 2, São Paulo: USP, 2007. 3 LIMONGI, Fernando. O Poder Executivo na Constituição de 1988. In: OLIVEN, Ruben George; RIDENTI, Marcelo; BRANDÃO, Gildo Marçal. A Constituição de 1988 na vida brasileira. São Paulo: Hucitec, 2008, p. 52. 4 VIANNA, Luiz Werneck; CARVALHO, Maria Alice Rezende de; MELO, Manuel Palácios Cunha; BURGOS, Marcelo Baumann. A judicialização da política e das relações sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1999, p. 95.
4
As ADCs5, devido a seu pequeno número e funcionamento político
predominantemente endógeno, não serão contempladas pelo estudo. Portanto,
conheçamos agora melhor as ADPFs e seu papel na judicialização da política
brasileira.
1. AS ADPFS: CARACTERÍSTICAS GERAIS
A ADPF é um “remédio constitucional” criado para proteger o que seriam as
diretrizes básicas de consolidação, pela Constituição de 1988, do Estado Democrático
de Direito da República Federativa do Brasil, como a tripartição de poderes, o
federalismo e os direitos e garantias individuais fundamentais. Na verdade, não há uma
definição exata do que seriam esses preceitos fundamentais a serem protegidos pela
ação, ficando essa definição a cargo do exercício jurisdicional do STF, ao julgar as
próprias ADPFs.
Mesmo que já previstas pela redação original da Constituição, foi apenas por
meio da lei 9882/99 que as ADPFs ganharam efetividade, já que a redação
constitucional que versava sobre o instituto exigia sua regulação por lei. Com a
promulgação da lei 9882/99 e após o julgamento da ADPF 33, foi que o instituto
assumiu sua verdadeira forma. Foi aí que consolidou o seu caráter de mecanismo de
controle direto e concentrado de constitucionalidade, e ganhou a característica
elementar da subsidiariedade, que faz com que sua utilização só possa se efetivar nos
casos em que não seja possível sanar a lesão a preceito fundamental por outros meios,
como a própria Adin. Por conta disso mesmo, a ADPF ganhou cor própria no sistema
jurídico nacional ao ser capaz de atacar a inconstitucionalidade de normas inatingíveis
pelas Adins: as leis municipais e as normas anteriores à Constituição. Além disso,
enquanto a regulação das Adins fala de ato normativo, isto é, lei em sentido amplo, a
regulação das ADPFs fala de ato do poder público, ganhando uma abrangência capaz
de incluir, por exemplo, decisões judiciais reiteradas, contratos administrativos e
resoluções. Por fim, uma última característica marcante das ADPFs é o amplo rol de
legitimados a propor tal ação, que coincide com a comunidade de intérpretes das
5 Enquanto as Adins e ADPFs demonstram padrões de interação entre diversas instâncias e poderes governamentais, assim como entre sociedade civil e Estado, as ADCs não seriam capazes de mostrar qualquer padrão de interação desse tipo, pois os legitimados para sua propositura foram, até o fim de 2004, apenas o Presidente da República, a mesa da Senado Federal e da Câmara dos deputados e o Procurador Geral da República, e, mesmo após a ampliação desse rol de legitimados, apenas 9 ações seriam incapazes de fornecer qualquer dado mais robusto nesse sentido.
5
Adins, abrangendo Presidente da República, a mesa do Senado Federal, a mesa da
Câmara dos Deputados, a mesa da Assembléia Legislativa, Governador do Estado ou
DF, Procurador Geral da República, Conselho federal da OAB, partidos políticos com
representação no congresso e confederação sindical ou entidade de classe de âmbito
nacional.
O instituto tem ainda algumas peculiaridades curiosas, como o fato de ter a sua
própria constitucionalidade – ou melhor, a constitucionalidade da lei 9882/99 que o
regulamenta – questionada por meio da Adin 2231, sob a alegação de que lei
infraconstitucional teria criado, de forma indevida, sistema próprio de controle de
constitucionalidade. Além disso, tem destaque o fato de, até hoje (14/11/2008), apenas
duas ADPFs terem tido seu mérito julgado pelo STF: a ADPF 33 e a 47.
Mas, não obstante seu curto período de vida, vivido ainda sob ameaça de um fim
abrupto iminente, e marcado por um baixo nível de máxima efetividade – isto é, poucas
situações onde pôde produzir seus efeitos totais – o instituto já se apresenta como uma
nuance de extrema relevância na judicialização da política e da politização da justiça no
Brasil. Afinal, por meio dos julgamentos de ADPFs que estão por vir, caberá ao STF
decidir sobre questões como o monopólio da E.C.T. sobre a prestação de serviços
postais6 e a possibilidade da interrupção terapêutica da gestação de feto anencéfalo –
considerado por alguns um mero eufemismo médico para a permissão do aborto7. E,
além disso, é também no julgamento desse tipo de ação direta de controle de
constitucionalidade, que nossa mais alta corte será instada a definir o que seriam os
preceitos fundamentais da ordem jurídica brasileira.
Logo, urge que se conheça melhor esse instituto, para além de suas
propriedades jurídicas, em sua relação com a sociedade. Isto é, faz-se necessário
entender como atores sociais, tais quais associações de trabalhadores e de
empresários, partidos políticos e governadores de estados, fazem uso das ADPFs e ver
– como elas ainda não foram julgadas – ao menos, em que esferas da realidade social
e das relações entre os três poderes seus julgamentos podem vir a intervir. É contribuir
com esse tipo de conhecimento que esta pesquisa almeja. E o meio de que pretende
se valer para isso é analisar as ADPFs propostas desde sua regulamentação até
10/06/2008, cruzando dados como os atores responsáveis por ajuizar as ações, os
poderes e entes federativos implicados por essas ações, os temas sobre os quais tais
6 ADPFs 46 e 70. 7 ADPF 54.
6
ações versam, além de sua distribuição ao longo do território nacional e ao longo de
seus nove anos de vida, assim como suas diferenças e semelhanças perante o
funcionamento das Adins. Com esse objetivo, foram coletadas, pela internet, no sítio do
STF8, 141 ADPFs que foram organizadas e classificadas num banco de dados,
segundo sua origem, ano de distribuição, requerente e requerido, ato público
questionado e classe temática.
2. AS ADPFS: DISTRIBUIÇÃO ANUAL
Quanto à distribuição de suas ações ao longo dos anos, verificamos que as
ADPFs apresentam o seguinte quadro, que consta na tabela 1 e gráfico 1:
Tabela 1: Distribuição anual das ADPFs
Ano Freqüência %
2000 10 7,1
2001 16 11,3
2002 11 7,8
2003 9 6,4
2004 16 11,3
2005 23 16,3
2006 21 14,9
2007 21 14,9
2008 14 9,9
Total 141 100,0
8 www.stf.jus.br
7
Gráfico 1: Distribuição anual das ADPFs
ANODIS
200820072006200520042003200220012000
Cou
nt
24
22
20
18
16
14
12
10
8
O que se observa nos dados expostos na tabela 1 e gráfico 1 é que, após um
pico de utilizações da ação em 2001, há uma tendência de aumento na utilização da
mesma, informação que também é confirmada por outros dois dados que o quadro
acima não permite transparecer. Primeiramente, a respeito do pico de ADPFs de 2001,
o que se observa é que, nos primeiros anos de utilização do instituto, foi comum seu
uso por particulares, como espécie de recurso contra decisões judiciais ou
administrativas que lhes tenham prejudicado e cujos recursos tradicionais tenham se
esgotado9. Contudo, o contínuo indeferimento, por parte do STF, de tais ações fez com
que esse número diminuísse ao longo do tempo, de forma que o aumento no número
de ADPFs observado no decorrer dos anos é acompanhado de uma maturidade
institucional que reforça a tendência de aumento. Por exemplo, observamos que as
ADPFs de particulares representam 7 casos em 2001 e mais 7 em 2002, sendo que,
depois disso, esse número varia entre apenas 1 ou 2 ações ao ano. Isto é, levando-se
em conta que as ADPFs utilizadas de forma imprópria como recurso estão
concentradas nos primeiros anos de sua vigência, temos que, excluídos esses casos,
9 ADPFs 11, 19, 20, 21, 22, 23, 25, 27, 28, 29, 30, 31, 32, 35.
8
torna-se ainda mais nítida a tendência de aumento de utilização do instituto, quando
considerada apenas sua utilização mais institucionalmente adequada.
Além disso, devemos ter em mente que os dados referentes ao ano de 2008 não
contemplam a totalidade das ADPFs ajuizadas em tal ano, haja vista que tais dados
foram coletados apenas até o dia 10/06/2008. Isso explicaria o declínio que pode ser
visualizado no gráfico 1 do número de ações nesse ano. Contudo, se levarmos em
conta que, em 14/11/2008, data da atual redação, já contamos com outras 11 ações10,
podemos averiguar que, antes de seu término, 2008 já é o ano com o maior número de
ADPFs ajuizadas, o que confirma a já referida tendência de aumento da utilização de
um instituto que, assim, vem crescendo em quantidade e, conseqüentemente, em
relevância no quadro de judicialização da política nacional.
3. ADPFS: DISTRIBUIÇÃO POR UNIDADE FEDERATIVA
No que diz respeito à distribuição das ADPFs de acordo com o ente federativo
de origem da ação, antes de tudo, cumpre ressaltar que, muitas das ADPFs ajuizadas
no Distrito Federal, dizem respeito a normas de âmbito nacional. Sendo assim, em
nossa classificação, essas ADPFs foram categorizadas como tendo como origem
Brasil, restando origem DF apenas às que dizem respeito circunscritamente ao Distrito
Federal. Tendo isso em vista, a distribuição das ações apresenta o quadro exposto na
tabela 2:
Tabela 2: Distribuição das ADPFs por unidades federativas
UF Freqüência %
Brasil 69 48,9
SP 15 10,6
RJ 11 7,8
PA 5 3,5
PI 5 3,5
CE 4 2,8
PE 4 2,8
AP 3 2,1
10 Disponível em www.stf.jus.br, acessado em 14/11/2008.
9
ES 3 2,1
MG 3 2,1
PR 3 2,1
RS 3 2,1
AL 2 1,4
RO 2 1,4
TO 2 1,4
DF 1 ,7
GO 1 ,7
MA 1 ,7
MT 1 ,7
PB 1 ,7
SC 1 ,7
SE 1 ,7
Total 141 100,0
O que se depreende da tabela 2 é que a normatividade de âmbito nacional é o
alvo majoritário das ADPFs, com larga vantagem sobre os Estado federados e o DF,
representando quase 50% do total das ações. Em seguida, a distribuição das ADPFs
não encontra qualquer regularidade significativa, a não ser o fato de São Paulo e Rio
de Janeiro serem, respectivamente, os campeões de ajuizamento de ações. Dado o
pequeno número de ações, é difícil afirmar qual seria o principal fator da
preponderância desses dois Estados, principalmente, por esse número ser “inchado”
pela presença, nesses estados, de ADPFs de particulares. Mas, fatores outros, como o
nível de industrialização de São Paulo, associado à alta taxa de ADPFs ajuizadas por
agremiações empresariais, e o freqüente tema da regulação da sociedade civil –
conforme ficará mais claro adiante – também podem ser fatores importantes.
4. ADPFS: AUTORES
Quanto aos autores responsáveis pelo ajuizamento das ADPFs, sua distribuição
é representada pela tabela 3 e pelo gráfico 2:
10
Tabela 3: ADPFs segundo distribuição dos autores
Autores Freqüência %
Associações 44 31,2
Partidos 37 26,2
Governadores 24 17,0
Particular 23 16,3
OAB 4 2,8
Prefeitura 4 2,8
Presidente da República 3 2,1
Outros 2 1,4
Total 141 100,0
Gráfico 2: ADPFs segundo distribuição dos autores
Distribuição dos autores
Prefeitura
Particular
Outros
Presidente da Repúbl
OAB
Partidos
Governadores
Associações
Cou
nt
50
40
30
20
10
0
O que a tabela 3 e o gráfico 2 demonstram é que as associações – isto é,
associações de trabalhadores, de interesses, de empresários e de funcionários
públicos – aparecem como principal autor das ADPFs, sendo responsáveis por 31,2%
das ações. Em seguida, aparecem os partidos (26,2%), os governadores (17,0%), e
11
particulares (16,3%). E, sobre esses últimos, fazem-se necessárias algumas
observações. Primeiramente, conforme já salientado, pessoas físicas e empresas não
são partes legítimas para propor uma ADPF, de acordo com a lei 9882/99. Entretanto,
como também já foi dito, isso não impede que o instituto tenha sido diversas vezes
utilizado por esse tipo de agente como forma especial de recurso, quando esgotados
os meios tradicionais de se reformar decisões administrativas ou judiciárias que lhes
prejudicaram.
Em parte, isso pode ser explicado pelo fato da redação original do projeto de lei
que deu origem à lei 9882/99 conter, entre os legitimados para propor a ADPF,
qualquer cidadão. Porém tal artigo foi vetado pelo Presidente da República sob a
justificativa óbvia de que sobrecarregaria de maneira absurda o STF, cujas funções,
para seu reduzido número de 11 ministros, já são deveras ampliadas. O que, no
entanto, não impede que se argumente, juridicamente, que tal veto descaracterizou a
intuição original das ADPFs e restringiu sobremaneira o direito à prestação jurisdicional
possuído pelos cidadãos. Por conta disso, restam ainda casos em que, com base em
tais argumentos, particulares se vejam encorajados a recorrer às ADPFs como forma
de concretizar suas demandas por direitos obstaculizados por certos atos do poder
público11. E isso sem contar que existe sempre a possibilidade de chegarem ao STF
ações que não se adequam, enquanto meios, aos fins que almejam12.
A fim de examinar mais minuciosamente o perfil desses autores, em especial as
associações e partidos, que comportam subdivisões internas importantes, a tabela 4
serve a esclarecer alguns pontos:
Tabela 4: ADPFs segundo tipo de autor
Tipo de Autor Freqüência %
Esquerda 24 17,0
Governador 24 17,0
Pessoa física 22 15,6
empresarial 17 12,1
de trabalhadores 12 8,5
Centro 8 5,7
11 ADPF 135 12 ADPFs 21, 22, 23, 27, 28, 30, 31.
12
de Interesses 7 5,0
F.Públicos 6 4,3
Prefeitura 4 2,8
OAB 4 2,8
Direita 3 2,1
Presidente da República 3 2,1
Assembléia Legislativa 2 1,4
Nanicos 2 1,4
AMB 2 1,4
Outros 1 ,7
Total 141 100,0
Para além do já mencionado a respeito dos mais de 15% das ADPFs ajuizadas
por particulares – no caso aqui, pessoas físicas e outros – cabe ressaltar, com base na
tabela 4, a importância da esquerda dentro, não só das ADPFs ajuizadas pelos
partidos, mas também, dentro do universo das ADPFs como um todo: junto aos
governadores, trata-se do principal autor das ADPFs, sendo ambos responsáveis por
17% dos casos, cada um. Já com relação às associações, o que se observa é que as
associações empresariais respondem por 12,1% e as associações de trabalhadores
por 8,5% do total de ações, sendo as associações de interesses e de funcionários
públicos menos importantes com, respectivamente, 5,0% e 4,3% dessas ações.
Principalmente pelo que foi visto no estudo das Adins, um último detalhe a
respeito dos autores das ADPFs precisa também ser ressaltado: a ausência de ADPFs
ajuizadas pelo Ministério Público (MP). A ausência de procuradores entre os autores
das ADPFs, até então, é um fato interessante e difícil de ser explicado. Contudo,
podemos supor que tal ausência pode ser explicada pela existência de outros
mecanismos à disposição do MP, capazes de sanar os mesmos tipos de problema,
mas com maior eficácia, como é o caso, muitas vezes, das Ações Civis Públicas, que
têm cumprido uma agenda patrocinada pelo MP de defesa de direitos, controlando de
forma eficaz a constitucionalidade de atos do poder público atentatórios contra
preceitos constitucionais fundamentais.
13
5. ADPFS: ORIGEM DO ATO PÚBLICO QUESTIONADO
Os poderes de origem dos atos públicos questionados pelas ADPFs apresentam
a distribuição constante na tabela 5, ilustrada pelo gráfico 3:
Tabela 5: ADPFs segundo origem do ato público questionado
Origem Freqüência %
Executivo Federal 31 22,1
Judiciário Federal 26 18,6
Judiciário Estadual 23 16,4
Legislativo Municipal 20 14,3
Legislativo Federal 15 10,7
Executivo Estadual 12 8,6
Legislativo Estadual 10 7,1
Executivo Municipal 3 2,1
Total 140 100,0
Gráfico 3: ADPFs segundo origem do ato público questionado
Legislativo Municipa
Executivo Municipal
Judiciário Federal
Judiciário Estadual Legislativo Estadual
Legislativo Federal
Executivo Estadual
Executivo Federal
14
Pelo exposto, percebe-se que as ADPFs são endereçadas predominantemente
contra atos do Poder Executivo Federal (22,1%), seguido pelo Poder Judiciário Federal
(18,6%), pelo Poder Judiciário Estadual (16,4%) e pelo Poder Legislativo Municipal
(14,3%). Dado o caráter subsidiário das ADPFs, e seu direcionamento contra “atos do
poder público” e não “atos normativos”, trata-se de resultado justificável. É bom lembrar
que as Adins, principal meio de controle concentrado de constitucionalidade no Brasil,
são utilizadas contra “lei ou ato normativo federal ou estadual” (CF, art. 102, alínea a).
Logo, levando em conta esse caráter subsidiário das ADPFs, é comum que tais ações
incorram sobre atos do poder público não abrangidos pelas Adins, como por exemplo,
atos infralegais, voltados à interpretação e regulamentação de determinadas leis, como
regulamentos, resoluções, instruções e portarias; atos jurisdicionais, que, extrapolando
uma única decisão judicial, que poderia ser anulada por recurso, consolidam um
entendimento jurisprudencial em várias decisões supostamente lesivas ao preceito
fundamental; e atos normativos municipais13.
Dentro desse quadro, as ADPFs têm servido a questionar, portanto,
principalmente atos do Executivo Federal na figura do presidente da República e de
seus Ministérios, muito provavelmente no exercício de suas funções regulatórias de
caráter infralegal. Além disso, o instituto se mostrou útil também às forças sociais
sedentas de mecanismos para controlar decisões continuadas e resoluções do Poder
Judiciário, tanto no nível estadual quanto federal. Por fim, a utilização das ADPFs
também demonstra forte recepção à inovação que o instituto traz ao permitir o
questionamento de normas municipais perante a Constituição Federal. A esse respeito,
inclusive, há uma última observação a ser feita sobre o poder de origem do ato público
questionado pelas ADPFs, que aponta para uma possível mudança no quadro de
utilização da ação até então: trata-se da tendência de aumento da utilização dessas
ações contra atos do poder municipal, tal qual se observa na tabela 6:
Tabela 6: Ano de distribuição por origem
Ano Normas Federais Normas Estaduais Normas Municipais Total
2000 4 5 1 10
2001 9 7 16
13 BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no Direito brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 233-243.
15
2002 7 3 10
2003 4 4 1 9
2004 8 6 2 16
2005 12 7 4 23
2006 8 6 7 21
2007 13 3 5 21
2008 7 4 3 14
Total 72 45 23 140
O que os dados da tabela 6 demonstram, ressaltando-se sempre o fato dos
dados de 2008 serem incompletos, é que o uso das ADPFs contra a normatividade
municipal pode ser um procedimento ainda em fase de “descobrimento” por parte dos
agentes políticos que dela se podem valer. É difícil confirmar tal fato com base
unicamente nos números ascendentes apresentados: apenas o decurso do tempo pode
dizer se a tendência de aumento do uso de ADPFs contra o poder municipal é
verdadeira. Mas cumpre ressaltar essa possibilidade, dentro do quadro apresentado
anteriormente.
Ao cruzar a origem do ato público questionado com a distribuição das ADPFs
por autor obtemos os dados apresentados na tabela abaixo:
Tabela 7: Tipo de autor por origem do ato público questionado
Executivo Legislativo Judiciário
Federal Estadual Federal Estadual Estadual Federal
Executivo
Municipal
Legislativo
Municipal
Total
Esquerda 5 2 4 6 2 5 24
F.Públicos 2 3 1 6
empresarial 7 2 2 1 5 17
de
trabalhadores
5 3 3 1 12
Centro 3 1 1 2 1 8
Governador 1 6 6 9 1 1 24
de Interesses 4 2 1 7
Direita 2 1 3
Prefeitura 4 4
16
Assembléia
Legislativa
1 1 2
Nanicos 1 1 2
OAB 1 1 1 1 4
AMB 2 2
Pessoa física 3 1 3 5 9 21
Presidente
da República
2 1 3
Outros 1 1
Total 31 12 15 10 23 26 3 20 140
A análise da tabela 7 evidencia o caráter estadual da atuação dos governadores,
uma vez que 87,5% de suas ações são contra atos das esferas estaduais do poder
público. Já os partidos de esquerda, que dividem com os governadores o posto de
principais proponentes de ADPFs, apresentam uma atuação diferenciada em relação a
estes: 62,5% das ações propostas pela esquerda são contra atos do poder federal e
29,1% são contra atos dos poderes municipais. Em seguida, as associações
empresariais, outro autor fundamental na proposição das ADPFs, apresentam um perfil
de atuação semelhante ao dos partidos de esquerda, uma vez que 58,8% de suas
ADPFs questionam atos do poder federal e 29,4% questionam atos das esferas
municipais. Por fim, vale ressaltar o caráter federal da atuação das associações de
trabalhadores, com 91,7% de suas ações questionando atos oriundos da esfera
federal.
6. ADPFS: TEMAS
A fim de analisar o universo temático das ADPFs foi adotada a mesma tipologia
utilizada nas pesquisas das Adins14, que classificou em 7 temas principais os objetos
das normas contestadas15. Porém, é importante ressaltar que foi criada uma outra
14 VIANNA, Luiz Werneck; CARVALHO, Maria Alice Rezende de; MELO, Manuel Palácios Cunha; BURGOS, Marcelo Baumann. A judicialização da política e das relações sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1999. & VIANNA, Luiz Werneck; BURGOS, Marcelo Baumann; SALLES, Paula Martins. 17 anos de judicialização da política. Tempo Social, vol. 19, nº 2, São Paulo: USP, 2007. 15 - “(a) administração pública – reuniu a legislação que versa sobre carreiras, remuneração e organização do serviço público, no âmbito dos três Poderes; também foram nessa categoria os casos relativos à divisão de unidades político-administrativas, como a criação de municípios e regiões
17
categoria, “utilização como recurso”, para dar conta do grande número ADPFs
ajuizadas por particulares, tendo em vista seus próprios interesses, prejudicados por
decisões quaisquer do poder público. Para justificar o uso da mesma tipologia, além do
fato de ambas as ações serem instrumentos de controle de constitucionalidade das
normas instituídos na Constituição de 88, está a possibilidade de se fazer uma análise
comparada do uso desses instrumentos, como será visto mais adiante no texto.
Conforme mostra a tabela 8 e o gráfico 4, a administração pública é tema
predominante sobre os demais, respondendo por 42,6% do total de ADPFs ajuizadas.
Em seguida, vêm a regulação da sociedade civil e a utilização como recurso, com
15,6% e 14,9% respectivamente. O tema das relações de trabalho aparece com 7,8%
do total das ações, sendo seguido pela competição política com 7,1%. A regulação
econômica, a política social e a política tributária não têm muito destaque no universo
das ADPFs, com 5,0%, 3,5% e 2,8% do total das ações, respectivamente.
Tabela 8: ADPFs segundo Classe Temática
Classe Temática Freqüência %
Administração Pública 60 42,6
Regulação da Sociedade Civil 22 15,6
Utilização como Recurso 21 14,9
Relações de Trabalho 11 7,8
Competição Política 10 7,1
administrativas, e conflitos de atribuições entre os Poderes quando referentes a procedimentos de administração pública; (b) política social – incluiu as normas que tratam dos sistemas de seguridade social não afetos ao funcionalismo público, bem como a legislação reguladora do acesso a diferentes benefícios sociais; (c) regulação econômica – reuniu as normas de regulamentação da economia afetas à política cambial, monetária, salarial e de preços, com exceção das medidas de natureza tributária, tendo sido incluídas nesta categoria as normas concernentes aos programas de privatização, reforma agrária e direito de greve; (d) política tributária – reuniu as normas que tratam da definição da base de arrecadação e da alíquota dos impostos, também tendo sido classificadas nessa categoria aquelas referentes à concessão de incentivos fiscais e à regulação das zonas de tributação especial; (e) regulação da sociedade civil – incluiu as normas que ordenam as relações entre particulares, a exemplo da regulamentação da cobrança de mensalidades escolares, as relativas às corporações profissionais, tendo sido também classificada nessa categoria a produção legislativa referente ao meio ambiente e às populações indígenas; (f) competição política – reuniu as normas relativas às eleições e aos partidos políticos; (g) relações de trabalho – incluiu as normas que regulam o mundo do trabalho, tais como direitos do trabalhador e organização sindical, com exceção das relativas às políticas salariais e das afetas ao exercício do direito de greve.” (p.63 e 64)
18
Regulação Econômica 7 5,0
Política Social 5 3,5
Política Tributária 4 2,8
Outros 1 ,7
Total 141 100,0
Gráfico 4: ADPFs segundo Classe Temática
Utilização como Recu
Outros
Relações de Trabalho
Competição Política
Regulação da Socieda
Política Tributária
Regulação Econômica
Política Social
Administração Públic
Ao cruzar a origem do ato público questionado com a classe temática, a primeira
observação a se fazer, a partir da tabela 9, é o predomínio do tema da administração
pública (56,6%) nas esferas estaduais. Essa observação fica ainda mais nítida na
análise de cada um dos três poderes na esfera estadual, uma vez que 80% dos
questionamentos contra os legislativos estaduais dizem respeito a esse tema, já contra
os executivos estaduais são 75%, os judiciários estaduais aparecem com 73,9% de
suas ADPFs relacionadas à matéria administrativa.
19
Tabela 9: Classe temática por origem do ato público questionado
Executivo Legislativo Judiciário Temas
Federal Estadual Federal Estadual Estadual Federal
Executivo
Municipal
Legislativo
Municipal
Total
Administração
Pública
10 9 1 8 17 5 2 8 60
Regulação da
Sociedade
Civil
8 5 1 3 5 22
Utilização
como
Recurso
3 1 2 5 9 20
Relações de
Trabalho
5 3 1 2 11
Competição
Política
2 1 6 1 10
Regulação
Econômica
3 2 1 1 7
Política
Social
2 1 2 5
Política
Tributária
1 3 4
Outros 1 1
Total 31 12 15 10 23 26 3 20 140
Apesar da administração pública também ser bastante relevante nas esferas
federal e municipal do poder público, há uma diversidade bem maior de questões
nessas esferas. No que diz respeito aos atos públicos federais, somente contra o
Executivo Federal o questionamento relacionado à administração pública tem maior
destaque com 32,2% do total de ações contra esse poder. Mas, mesmo assim, os
temas da regulação da sociedade civil e das relações de trabalho são significativos no
que tange ao questionamento do Executivo Federal, aparecendo com 25,8% e 16,1%,
respectivamente.
20
Já no Judiciário Federal, 34,6% das ações estão relacionadas à sua utilização
como recurso, o que, de certa forma, já era esperado, uma vez que essas ações dizem
respeito às ADPFs de particulares buscando reverter, em instância última, decisões
judiciais ou administrativas que não os favoreceram. Em seguida, aparecem os temas
da competição política e da administração pública representando, respectivamente,
23% e 19,2% das ações ajuizadas contra esse poder.
A regulação da sociedade civil ganha destaque no questionamento de atos
públicos do Legislativo Federal, com um terço (33,3%) das ADPFs versando sobre
esse assunto. O tema das relações de trabalho aparece em segundo lugar
representando 20% das ações. Em seguida, vêm as ADPFs que tratam de matéria
econômica, da competição política e da utilização como recurso, com 13,3% cada.
Na esfera municipal, o questionamento se dá majoritariamente contra os
poderes legislativos municipais. Apesar da área da administração pública (40%) ser
predominante nas ADPFs contra os legislativos municipais, há uma diversidade
temática bem maior do que na esfera estadual. A regulação da sociedade civil tem 25%
das ações contra esse poder, seguido da regulação tributária com 15% e da política
social com 10% dessas ações.
7. CONHECENDO MELHOR AS ADPFS SEGUNDO A ORIGEM DO ATO PÚBLICO
QUESTIONADO: FEDERAL, ESTADUAL OU MUNICIPAL
De acordo com a tabela 12, podemos ver que as ADPFs são endereçadas
principalmente contra atos do poder público federal:
Tabela 12: ADPFs por origem do ato público questionado: federal, estadual ou municipal
Origem Freqüência %
Atos do poder público federal 72 51,4
Atos do poder público estadual 45 32,1
Atos do poder público municipal 23 16,4
Total 140 100,0
Conforme visto, o questionamento de normas do Poder Legislativo Municipal é
uma faceta fundamental da utilização das ADPFs. Contudo, outra característica
21
marcante do instituto, que consiste em seu poder de enfrentar melhor do que as Adins
o Poder Judiciário, faz com que a presença desse poder apenas nos âmbitos federal e
estadual, e não no municipal, infle o número de contestações de atos do poder público
federal (51,4% dos casos) e do poder público estadual (32,1% dos casos), deixando os
questionamentos ao poder público municipal em desvantagem numérica (com 16,4%).
Mas esse quadro só se torna mais claro com o conhecimento esmiuçado de como se
dá o questionamento por ADPFs em cada um dos níveis da federação e nos
municípios.
7.1. As ADPFs contra atos do poder público federal
As ADPFs contra atos do poder público federal são endereçadas, sobretudo,
contra o Poder Executivo (43,1%); ocupando respectivamente segundo e terceiro
lugares as ajuizadas contra o Poder Judiciário (36,1%) e contra o Poder Legislativo
(20,8%). É o que mostra a tabela 13:
Tabela 13: Distribuição das ADPFS contra atos do poder público federal
Distribuição Freqüência %
Executivo Federal 31 43,1
Judiciário Federal 26 36,1
Legislativo Federal 15 20,8
Total 72 100,0
Além disso, as ADPFs contrariando o poder federal versam principalmente sobre
questões referentes à administração pública e à regulação da sociedade civil (com
22,2% dos casos cada uma), sendo também comum o ataque ao poder federal quando
as ADPFs são utilizadas por particulares como forma de recurso (19,4% dos casos),
assim como quando as ADPFs questionam a normatização das relações de trabalho
(13,9% dos casos) e da competição política (11,1% dos casos), principalmente pela
capacidade que possuem atores do cenário federal como o Ministério do Trabalho e o
TSE, de atuarem nessa normatização. Tais dados são apresentados na tabela 14 e
ilustrados pelo gráfico 5:
22
Tabela 14: Classe Temática das ADPFs contra atos do poder público federal
Classe Temática Freqüência %
Administração Pública 16 22,2
Regulação da Sociedade Civil 16 22,2
Utilização como Recurso 14 19,4
Relações de Trabalho 10 13,9
Competição Política 8 11,1
Regulação Econômica 6 8,3
Política Social 2 2,8
Total 72 100,0
Gráfico 5: Classe Temática das ADPFs contra atos do poder público federal
Utilização como Recu
Relações de Trabalho
Competição Política
Regulação da Socieda
Regulação Econômica
Política Social
Administração Públic
Exemplo de como as ADPFs têm sido utilizadas contra o poder público federal é
a ADPF nº 46. Nela, a Associação Brasileira de Empresas de Distribuição (ABRAED)
questiona a lei 6538/78, que versa sobre os serviços postais no Brasil. Com base no
artigo 1º, inciso IV, no artigo 5º, inciso XIII e no artigo 170, inciso IV, essa associação
empresarial alega que o monopólio dos serviços postais pela E.C.T. afronta os
princípios fundamentais da livre iniciativa, valorização do trabalho e concorrência
aberta. Dessa forma, o empresariado visa subverter uma estratégia econômica do
23
Executivo Federal, que perdura desde o ordenamento constitucional anterior, em prol
de uma gama de direitos posterior à redemocratização do país que, embasada na nova
Constituição, fundamenta uma ordem econômica liberal.
7.2. As ADPFs contra atos do poder público estadual
As ADPFs utilizadas em desfavor do poder público estadual são endereçadas,
sobretudo contra o Poder Judiciário (51,1% dos casos), e depois contra,
respectivamente, o Poder Executivo (26,7% dos casos) e o Poder Legislativo (22,2%
dos casos). Esses dados são apresentados na tabela 15:
Tabela 15: Distribuição das ADPFs contra atos do poder público estadual
Distribuição Freqüência %
Judiciário Estadual 23 51,1
Executivo Estadual 12 26,7
Legislativo Estadual 10 22,2
Total 45 100,0
Conforme já salientado em outras oportunidades, o caráter subsidiário das
ADPFs justifica seu endereçamento, sobretudo ao Poder Judiciário e ao Poder
Executivo. Nesse caso, temos que sua utilização no âmbito estadual visa dar conta,
sobretudo, de reiterados entendimentos jurisprudenciais que dão efetividade a direitos
que contrariam as possibilidades orçamentárias do governo local. Seu principal foco na
administração pública (75% dos casos), conforme a tabela 16 e gráfico 6, deixa claro
que se trata de mecanismo usado para adequar a prestação jurisdicional às
possibilidades financeiras do erário estadual, evitando que, por exemplo, liminares e
sentenças judiciais em favor de funcionários públicos onerem demasiadamente os
cofres do estado.
Exemplo disso é a ADPF 53, em que o Governador do Piauí questiona
decisões reiteradas do Tribunal Regional do Trabalho da 22ª Região e do Tribunal de
Justiça do Estado do Piauí. Nessas decisões, os tribunais reconhecem que a
remuneração dos profissionais de Engenharia, Química, Arquitetura, Agronomia e
Veterinária, se atêm ao piso de seis salários mínimos estabelecido na lei 4950-A/66.
24
Segundo o governador, tal lei não pode ser considerada recepcionada pela atual
Constituição que teria como preceitos fundamentais o disposto nos artigos 7º, inciso IV
e 37, inciso XIII, que vedam qualquer vinculação do salário mínimo e da remuneração
do serviço público. Vale destacar que o governador obteve êxito nessa tentativa de
defesa dos cofres de seu estado por meio da ADPF, já que a ação teve sua liminar
deferida pelo Supremo.
Tabela 16: Distribuição por classe temática das ADPFs contra atos do poder público
estadual
Distribuição Freqüência %
Administração Pública 34 75,6
Utilização como Recurso 6 13,3
Política Tributária 1 2,2
Regulação da Sociedade Civil 1 2,2
Competição Política 1 2,2
Relações de Trabalho 1 2,2
Política Social 1 2,2
Total 45 100,0
Gráfico 6: Distribuição por classe temática das ADPFs contra atos do poder público
estadual
Utilização como Recu
Relações de Trabalho
Competição Política
Regulação da Socieda
Política Tributária
Política Social
Administração Públic
25
7.3. As ADPFs contra atos do poder público municipal
As ADPFs contra o município concentram-se no ataque à câmara de
vereadores, conforme demonstra a tabela 17:
Tabela 17: Distribuição das ADPFs contra atos do poder público municipal
Distribuição Freqüência %
Legislativo Municipal 20 87,0
Executivo Municipal 3 13,0
Total 23 100,0
Ou seja, contra a tendência das ADPFs endereçadas aos estados e ao poder
federal, em que prevalecem o questionamento contra o Judiciário e o Executivo,
respectivamente, as ADPFs contra o município são basicamente usadas contra o
Poder Legislativo. Não sendo cabível Adins contra normas municipais, a ADPF vem
suprir tal lacuna e, nessa função, tem sido utilizada predominantemente contra a
câmara de vereadores, cobrindo uma ampla variedade de temas, mas concentrando-
se, conforme mostra a tabela 18 e o gráfico 7, nas questões afeitas à administração
pública (43,5% dos casos) à regulação da sociedade civil (21,7% dos casos) e à
política tributária (13% dos casos), já que as Adins só permitiriam o questionamento de
normas tributárias com origem estadual ou federal.
Tabela 18: Distribuição por classe temática das ADPFs contra atos do poder público
municipal
Classes temáticas Freqüência %
Administração Pública 10 43,5
Regulação da Sociedade Civil 5 21,7
Política Tributária 3 13,0
Política Social 2 8,7
Regulação Econômica 1 4,3
Competição Política 1 4,3
Outros 1 4,3
Total 23 100,0
26
Gráfico 7: Distribuição por classe temática das ADPFs contra atos do poder público
municipal
Outros
Competição Política
Regulação da Socieda
Política Tributária
Regulação Econômica Política Social
Administração Públic
O que os dados mostram é que esta inovação trazida pela ADPF, isto é, a
possibilidade de se questionar a constitucionalidade das normas municipais não
apenas perante a constituição do estado, mas também perante a Constituição Federal,
dá continuidade ao perfil do controle de constitucionalidade feito por outros meios e
perante os membros do pacto federativo: seu tema principal é a administração pública.
Mas também no âmbito municipal a ADPF apresenta suas peculiaridades, em especial
pela presença das associações de empresários questionando a legislação municipal
sobre questões urbanas e ambientais.
Por exemplo, na ADPF 68, a Associação Nacional das Empresas de Transportes
Urbanos – NTU, questiona a lei municipal 3162/99, do município de Bragança Paulista,
que disciplina o transporte individual de passageiro em motocicleta (moto-taxi).
Segundo essa associação, com fundamento nos artigos 21, inciso XX, e 22, incisos IX
e XI, a câmara municipal de Bragança Paulista, nesse caso, estaria invadindo
competência legislativa privativa da União, afrontado, para além dos interesses das
empresas associadas, a ordem federativa. Já na ADPF 50, é a vez da Associação
Nacional das Entidades de Produtores de Agregados para Construção Civil – ANEPAC
– pedir a invalidação de emendas à lei orgânica do município da Estância Balneária de
27
Caraguatatuba. Tais emendas, segundo a associação, ao limitarem as atividades
empresariais com vistas à proteção do meio ambiente, teriam extrapolado a
competência legislativa do município e atentado contra preceitos constitucionais
fundamentais como a livre concorrência estipulada no artigo 170, caput e inciso IV.
8. CONHECENDO MELHOR AS ADPFS SEGUNDO SEUS PRINCIPAIS AUTORES:
8.1. As ADPFs dos Governadores
Conforme já salientado anteriormente, as ADPFs dos governadores são
marcadas por sua circunscrição ao âmbito estadual, questionando principalmente os
poderes executivo, legislativo e judiciário do estado. É o que evidencia a tabela 19:
Tabela 19: Origem do ato público questionado nas ADPFs dos Governadores
Origem do Diploma Questionado Freqüência %
Judiciário Estadual 9 37,5
Executivo Estadual 6 25,0
Legislativo Estadual 6 25,0
Executivo Federal 1 4,2
Judiciário Federal 1 4,2
Legislativo Municipal 1 4,2
Total 24 100,0
Dentro de sua atuação doméstica, percebe-se que os governadores usam as
ADPFs para tratar principalmente do tema da administração pública, como deixa claro
a tabela 20:
Tabela 20: Classe temática das ADPFs dos Governadores
Classe Temática Freqüência %
Administração Pública 21 87,5
Política Tributária 2 8,3
Política Social 1 4,2
Total 24 100,0
28
Ou seja, no que tange à atuação dos governadores, as ADPFs se caracterizam
como um instrumento de racionalização da administração pública dos estados, tendo
como parâmetro a vontade constitucional. Conforme será visto mais adiante, trata-se
do mesmo perfil apresentado pelas Adins dos governadores, de forma que podemos
considerar que, no caso desse tipo de autor, as ADPFs possuem uma atuação
complementar às Adins, servindo aos mesmos fins, mas atingindo áreas em que as
Adins não foram efetivas, como os entendimentos jurisprudenciais dos tribunais e
juízes de direito dos estados.
Por exemplo, na ADPF 105, o governador de Alagoas faz uso da ação para
questionar coisa julgada advinda de decisão do juiz de direito da 17ª vara cível
estadual, confirmada pelo Tribunal de Justiça do estado. Graças a tal julgamento,
advogados de fundações foram equiparados aos procuradores do estado merecendo,
por conseguinte, a mesma remuneração e tratamento de carreira. Não estando
disposto a aceitar tais gastos, o governador usa a regulamentação constitucional da
administração pública para desconstituir a coisa julgada em prol de preceitos
fundamentais a serem garantidos por meio da ADPF.
8.2. As ADPF dos Partidos Políticos
Os partidos políticos são um dos principais autores das ADPFs, mas sua
atuação varia de acordo com a posição político-ideológica do partido. Será obedecida
aqui a classificação político-ideológica do partido apresentada nos estudos sobre as
Adins 16 e, em acordo com essa classificação, a distribuição das ADPFs por tipo de
partido apresenta o perfil mostrado pela tabela 21:
Tabela 21: ADPFs dos partidos por tipo de partido
Partidos Freqüência %
Esquerda 24 64,9
Centro 8 21,6
16 As legendas partidárias foram classificadas da seguinte maneira: Esquerda: PT, PDT, PSB, PPS, PC do B, PCB, PSOL, PV e PSTU Centro: PSDB, PMDB, PTB e PL Direita: DEM, PFL, PPB, PP e PRONA. Nanico: PHS, PDC, PLP, PNA, PSC, PSD, PST, PTR, PMN, PPR, PSDC, PSL e PTN.
29
Direita 3 8,1
Nanico 2 5,4
Total 37 100,0
Em consonância com o que já foi dito, os partidos de esquerda se apresentam
como principal gama de partidos atuando na proposição de ADPFs – sendo
responsáveis por 64,9% das ações – seguidos pelos partidos de centro com (21,6%). A
tabela 22 deixa mais clara essa distribuição por cada partido que faz uso e do
mecanismo:
Tabela 22: ADPFs dos partidos por partido
Partidos Freqüência %
PDT 8 21,6
PSDB 6 16,2
PPS 4 10,8
PCdoB 3 8,1
PT 3 8,1
PSOL 3 8,1
PMDB 2 5,4
PSB 2 5,4
PSC 2 5,4
DEM * 1 2,7
PFL * 1 2,7
PP 1 2,7
PV 1 2,7
Total 37 100,0
* O partido político DEM até 2007 se denominava PFL, portanto essas duas ADPFs foram
ajuizadas pelo mesmo partido
O PDT aparece como o grande propositor de ADPFs com 21,6% das ações,
seguido por PSDB, com 16,2%, e PPS com 10,8%. Apesar da preponderância do PDT,
o destaque do PSDB, levando-se em conta que a maior parte do tempo “de vida” das
ADPFs localiza-se no governo Lula, aponta para a possibilidade de seu uso como
mecanismo da oposição para efetivação de suas demandas. Ou seja, mesmo não
30
aparecendo exatamente como instrumento de minorias parlamentares, nem por isso as
ADPFs deixam de poder influenciar o jogo de forças partidárias no congresso.
Os temas tratados pelas ADPFs de partidos também variam de acordo com o
tipo de partido, conforme transparece na tabela 23:
Tabela 23: ADPFs de partido por classe temática
Classe temática Esquerda Centro Direita Nanico Total
Administração Pública 8 5 2 1 16
Política Social 2 1 3
Regulação Econômica 2 2
Política Tributária 1 1
Regulação da Sociedade Civil 5 5
Competição Política 5 3 1 9
Relações de Trabalho 1 1
Total 24 8 3 2 37
Mais uma vez, o tema da administração pública prepondera, tendo espaço na
atuação de todas as gamas de partidos políticos. Apenas a regulação da competição
política, como era de se esperar, por ser questão tão cara aos partidos, consegue
ainda alguma representatividade temática também nos partidos de centro. A esquerda
não se destaca apenas pela quantidade de ADPFs, mas também pela abrangência
temática das mesmas, cuja diversidade é bem superior à da atuação da direita, centro
e nanicos.
Quanto à origem dos atos públicos questionados pelas ADPFs dos partidos,
temos que o Poder Executivo e o Poder Judiciário Federais, assim como o Poder
Legislativo Municipal, são seus principais alvos. A distribuição das ADPFs dos partidos
de acordo com o tipo de partido e a origem do ato público questionado é apresentada
pela tabela 24:
31
Tabela 24: ADPFS de partido por origem do ato público questionado
Origem Esquerda Centro Direita Nanico Total
Executivo Federal 5 3 2 10
Executivo Estadual 2 1 3
Legislativo Federal 4 1 5
Legislativo Estadual 1 1
Judiciário Estadual 1 1
Judiciário Federal 6 2 8
Executivo Municipal 2 2
Legislativo Municipal 5 1 1 7
Total 24 8 3 2 37
Novamente, a esquerda mostra a presença mais diversificada dentro da atuação
partidária, mas, dessa vez, é seguida mais de perto pelo centro. E, tanto para a
esquerda quanto para o centro, o poder Executivo e Judiciário Federais são os
principais alvos, tendo a esquerda atuação marcante também em face do Poder
Legislativo Municipal.
Disso pode-se concluir que, para os partidos, as ADPFs possuem uma função
preponderante de regulação da administração pública, em especial nas esferas que as
Adins não podem alcançar, como as portarias ministeriais, a legislação municipal e os
atos do judiciário. O mesmo pode ser dito a respeito de sua atuação quanto à
competição política, já que as ADPFs, por exemplo, permitem o questionamento do
TSE. Mas o ponto que merece destaque é sua assimilação pela esquerda como
mecanismo de efetivação de demandas políticas nas esferas mais variadas,
alcançando, para além da administração pública e da competição política, temas
diversificados, com destaque para a regulação da sociedade civil. E essa diversidade
não diz respeito apenas aos temas tratados, mas também aos poderes políticos
questionados que, para além do Judiciário e Executivo Federais e do Legislativo
Municipal, alcançam também os Executivos Estadual e Municipal e, principalmente, o
Legislativo Federal.
Um exemplo da atuação da esquerda é dado na ADPF 119, em que o PPS
questiona a portaria 1220/07 do Ministério da Justiça. Segundo o partido, essa portaria
violaria o conteúdo dos artigos 5º, inciso IX e artigo 220, caput, parágrafo 3º, inciso I,
32
que garantem a livre manifestação do pensamento e criação artística. Isso porque ela
permitiria ao Executivo Federal, por meio do Ministério da Justiça, realizar uma espécie
de censura posterior sobre os programas televisivos que não acatassem a
recomendação ministerial quanto à faixa etária e horários adequados para sua
exibição. Já um exemplo da utilização das ADPFs como instrumento da oposição é a
ADPF 125, em que PSDB e DEM se unem para questionar a constitucionalidade do
decreto não numerado de 4 de outubro de 2007, por meio do qual o Governo Lula criou
o cargo de Ministro de Estado Extraordinário de Assuntos Estratégicos, assumido por
Roberto Mangabeira Unger.
8.3. As ADPFs das associações
A sociedade civil organizada ocupa lugar de destaque no universo das ADPFs.
Estão nas associações os principais autores dessas ações, tendo presença marcante,
nesse caso, os representantes do mundo do trabalho, isto é, as associações de
trabalhadores e de empresários, conforme mostra a tabela 25:
Tabela 25: Tipos de associação
Tipos de Associação Freqüência %
Empresários 17 37,8
Trabalhadores 12 26,7
Funcionários Públicos 8 17,8
OAB 4 8,9
Interesses 4 8,9
Total 45 100,0
As entidades representativas de classe de empresários e trabalhadores, com,
respectivamente, 37,8% e 26,7% dos casos, seguidas por entidades de representação
dos funcionários públicos com 17,8%, são os principais autores das ADPFs dentro do
universo das associações. A presença das associações de empresários é marcante,
especialmente no que tange às ADPFs destinadas à regulação da sociedade civil,
conforme o cruzamento entre as ADPFs das associações e a classe temática evidencia
na tabela 26:
33
Tabela 26: Classe Temática por tipos de associação
Classe Temática Funcionários
Públicos
Empresários Trabalhadores Interesses OAB Total
Administração Pública 6 4 2 2 14
Política Social 1 1
Regulação Econômica 1 2 1 1 5
Política Tributária 1 1
Regulação da Sociedade Civil 10 3 1 14
Relações de Trabalho 1 7 2 10
Total 8 17 12 4 4 45
A pequena presença da OAB e das associações de interesse na utilização das
ADPFs não permite análises mais aprofundadas sobre o papel que tais associações
desempenham. Já as demais associações se caracterizam por certa diversidade de
campos de atuação, mas sempre com concentração em determinados setores. As
associações de trabalhadores concentram-se em defender a regulamentação
constitucional das relações de trabalho; as associações de funcionários públicos visam
proteger o regimento constitucional do funcionalismo público; e as associações de
empresários buscam guarida para suas atividades nos direitos constitucionais
econômicos, atacando, para tanto, atos de regulamentação da sociedade civil –
especialmente de meio ambiente e transportes – e da administração pública –
principalmente no que tange à permanência de monopólios advindos de legislação pré-
constitucional e aos procedimentos de licitação.
E complementa o quadro da distribuição das ADPFs das associações por
classes temáticas, seu quadro de distribuição por poder de origem do ato público
questionado, conforme a tabela 27:
Tabela 27: Poder de origem do ato público questionado pelas Associações
Funcionários Públicos Empresários Trabalhadores Interesses OAB Total
Executivo Federal 7 5 2 1 15
Executivo Estadual 2 2
Legislativo Federal 2 3 1 6
34
Legislativo Estadual 3 3
Judiciário Estadual 2 2 2 1 7
Judiciário Federal 1 3 1 5
Executivo Municipal 1 1
Legislativo Municipal 5 1 6
Total 8 17 12 4 4 45
Na tabela 27, podemos ver que as associações de funcionários públicos têm
atuação semelhante à dos governadores: questionam a administração pública no
âmbito estadual. Já as associações de empresários, têm alvos diversificados com
preponderância dos poderes Executivo Federal – responsável pela regulamentação de
parte importante do universo do trabalho e da economia por meio de seus ministérios –
e Legislativo Municipal – responsável por limitar a atividade empresarial, por exemplo,
legislando sobre organização urbana e meio ambiente. Por fim, o número reduzido das
ADPFs de associações de interesse e da OAB tornam precipitada qualquer conclusão
a seu respeito, apesar dos dados apontarem para a diversidade dos poderes
enfrentados pela OAB.
Como exemplos de ADPFs de associações podemos citar as ADPFs 127 e 54.
Na ADPF 127 a Associação Brasileira dos Criadores de Camarão (ABCC) questiona a
competência do CONAMA para regular a atividade de criação de camarão, em especial
nos moldes das limitações impostas por suas resoluções 302, 303 e 312 de 2002. Essa
associação empresarial alega, com base nos artigos 5º, 24 e 225, que esses
empresários não podem ser obrigados a restringir suas atividades econômicas sem ser
em decorrência de lei em sentido estrito, fruto do poder legislativo responsável pela
matéria (no caso, Congresso Nacional e Assembléias Legislativas estaduais). Já na
ADPF 54, a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS) questiona a
constitucionalidade do artigo 124, artigo 126 e artigo 128, incisos I e II, do Código Penal
(Decreto Lei 2848/40). Tal associação de trabalhadores alega que esses artigos
permitem o enquadramento criminal de médicos que realizam a antecipação
terapêutica do parto de fetos anencefálicos, indo assim de encontro a preceitos
constitucionais fundamentais relativos à autonomia e dignidade da pessoa, além do
direito universal de acesso à saúde, consubstanciados no artigo 1º, inciso IX, artigo 5º,
inciso II, artigo 6º, caput, e artigo 196 da Constituição Federal.
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9. ADPFS X ADINS: APROXIMAÇÕES E DISTANCIAMENTOS
As Adins são o principal meio de exercício de controle concentrado de
constitucionalidade no Brasil, com mais de 4000 ações. As ADPFs não chegam a 200
ações e as ADCs a 20. Logo, são as Adins as responsáveis por dar as verdadeiras
cores da judicialização da política no Brasil. Não obstante, uma comparação entre a
utilização das Adins e das ADPFs pode se mostrar frutífera, desde que não se perca de
vista a brutal disparidade entre o volume de ações ajuizadas em cada caso e,
conseqüentemente, a importância de cada uma das ações para a configuração do atual
quadro brasileiro de relações entre o Direito, a política e a sociedade. Essa
comparação se torna ainda mais relevante por que as ADPFs foram recebidas pelo
sistema jurídico pátrio como complementares às Adins, isto é, aplicáveis quando as
Adins não se aplicam. Portanto, sua análise pode revelar que tipos de interesses a
sistemática das Adins excluía de apreciação que, no entanto, as ADPFs podem
exprimir.
Num outro sentido, as ADPFs também possuem como base para realizar o
controle de constitucionalidade, diferentemente das Adins, não a Constituição como um
todo, mas apenas seus “preceitos fundamentais”. Dessa forma, seu julgamento implica,
para além de reconhecer o ato infraconstitucional como adequado, ou não, à
Constituição, reconhecer o fundamento constitucional utilizado na argumentação do
autor, igualmente, como um preceito fundamental, ou não.
Tendo isso em vista, a comparação será feita com base nos dados desta
pesquisa para as ADPFs e da pesquisa 17 anos de judicialização da política17 e do livro
Judicialização da política e das relações sociais no Brasil18 para as Adins. Levando-se
em conta os principais temas, autores e características dos atos públicos questionadas
por ambas as ações, proceder-se-á à comparação entre elas, tendo como escopo,
como não poderia deixar de ser, a avaliação de suas proximidades e afastamentos.
Um primeiro ponto nítido de aproximação entre as ADPFs e as Adins é o tema
predominante da administração pública. Isso é ainda mais claro no que diz respeito às
ADPFs dos governadores. Nesse caso é cristalino o caráter complementar das ADPFs
17 VIANNA, Luiz Werneck; BURGOS, Marcelo Baumann; SALLES, Paula Martins. 17 anos de judicialização da política. Tempo Social, vol. 19, nº 2, São Paulo: USP, 2007. 18 VIANNA, Luiz Werneck; CARVALHO, Maria Alice Rezende de; MELO, Manuel Palácios Cunha; BURGOS, Marcelo Baumann. A judicialização da política e das relações sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1999.
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em face das Adins: elas servem para questionar a regulamentação da administração
pública estadual que foge ao controle das Adins, como os entendimentos
jurisprudenciais dos tribunais estaduais e dos juízes de primeiro grau. A variação de
poder dentro do mesmo tema permite dessa maneira, dar continuidade à
racionalização da administração pública local com base na vontade federal, só que
agora agindo de forma mais efetiva sobre os poderes judiciário e executivo, isto é,
sobre a jurisdição e sobre regulações infralegais como as portarias e resoluções
administrativas. Ao tratar da predominância da área de administração pública no
universo das Adins, Werneck Vianna19 afirma esse perfil: “Por meio das Adins com
essa destinação, intensificam-se padrões de racionalização na administração pública,
garante-se homogeneidade na produção legislativa, (...). Tem-se, então, que se
concede passagem, no terreno dos fatos, a tendências centralizadoras, desde sempre
presentes na política brasileira”.
Mas, para além da administração pública, as ADPFs apontam em seguida para a
regulação da sociedade civil. Nas Adins, a regulação da sociedade civil é também
importante, mas é suplantado pela política tributária que, nas ADPFs não é um tema
tão significativo20. Tema importante tanto nas ADPFs quanto nas Adins, a regulação da
sociedade civil representa a outra faceta do controle concentrado de
constitucionalidade no Brasil. Apesar de exigir do STF um funcionamento nos moldes
de um conselho de estado para regular a administração pública, o controle de
constitucionalidade brasileiro mantém também, mais ainda nas ADPFs do que nas
Adins, o caráter de corte de proteção de direitos contra a expansão do poder estatal.
Quanto aos agentes que fazem uso das ADPFs e Adins, aparece como
semelhança fundamental a presença significativa, em ambos os casos, dos
governadores, das associações e dos partidos21. Mesmo assim, cabe ressaltar que,
enquanto, nas Adins, os governadores são os principais autores das ações, seguido
pelas associações, no caso das ADPFs esse quadro se inverte e as associações
aparecem em primeiro lugar, seguidas pelos partidos e, somente então, pelos
governadores. E, no que tange à diferença entre os institutos, cabe ressaltar também,
conforme dito anteriormente, a ausência do MP na proposição das ADPFs, sendo que
se trata de um dos principais autores das Adins.
19 VIANNA, Luiz Werneck; BURGOS, Marcelo Baumann; SALLES, Paula Martins. 17 anos de judicialização da política. Tempo Social, vol. 19, nº 2, São Paulo: USP, 2007, p 44. 20 Ibidem, p 50. 21 Ibidem, p 48.
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Mas o caráter de continuidade observado entre as ADPFs e Adins é mitigado
quando se analisa o poder de origem dos diplomas questionados por cada uma das
ações. É aí que aparece a principal diferença entre os institutos: enquanto as Adins
questionam principalmente os legislativos estaduais, visando adequá-los à vontade
federal22, as ADPFs têm como principal alvo o poder Executivo Federal, seguido pelos
poderes judiciário federal e estadual. E, claro, nas ADPFs o poder Legislativo
Municipal, inatingível pelas Adins, também ganha destaque inédito.
Ou seja, se por um lado as ADPFs reforçam o quadro construído pela análise
das Adins, que mostra o STF como um Conselho de Estado, responsável por
racionalizar a administração pública local com base na vontade federal, por outro, elas
também demonstram, de forma mais nítida que as Adins, a outra faceta da
judicialização da política no Brasil: a vontade federal e a vontade do Estado sendo
questionadas pela sociedade em nome de uma ordem superior de direitos garantidos
aos cidadãos e a qual tais vontades devem se adequar. E exemplo claro disso seria a
utilização das ADPFs pelas associações de empresários visando liberar suas
atividades de entraves impostos pelo poder público.
CONCLUSÃO
O trauma da experiência autoritária do golpe de 64 mostrou que a concentração
de prerrogativas em torno do Poder Executivo é óbice potencial à consolidação da
democracia. No entanto, como bem salienta Luiz Werneck Vianna, a Constituição
brasileira de 1988 “desconfia” da representação popular23, e não vê nela o remédio
adequado contra a hipertrofia desse Poder. Sendo assim, sem aceitar a solução
problemática de simplesmente esvaziar o poder executivo de competências políticas, a
Constituição tampouco apostou no Poder Legislativo como capaz de controlá-lo
positivamente. Afinal, isso poderia significar o mero retorno do poder político a um
poder representante de oligarquias sem qualquer comprometimento com a
modernização social, econômica e política almejada pela carta constitucional. Não
obstante, ainda seria possível o controle do executivo federal pelo Poder Judiciário, já
que, esse sim, foi reforçado pelo texto da Constituição.
22 Ibidem, p 49. 23 VIANNA, Luiz Werneck. O terceiro poder na carta de 1988 e a tradição republicana: mudança e conservação. In: OLIVEN, Ruben George; RIDENTI, Marcelo; BRANDÃO, Gildo Marçal. A Constituição de 1988 na vida brasileira. São Paulo: Hucitec, 2008, p. 93.
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Um dos institutos previstos pela Constituição e responsável pelo fortalecimento
político do Poder Judiciário é o controle de constitucionalidade exercido por meio das
Adins e ADPFs. Contudo, a forma como as Adins foram sendo utilizadas ao longo do
tempo, evidenciou que não havia uma tensão a ser solucionada judicialmente entre os
poderes locais e o executivo central, ou entre sociedade civil e o poder público. Pelo
contrário, o que se buscou resolver fazendo uso das Adins foi a adequação da
organização administrativa no plano local à vontade federal: o questionamento da
constitucionalidade da organização da administração pública nos estados foi seu
principal tema.
Sendo assim, cabe-se questionar a diferença que faz o fortalecimento do Poder
Judiciário para além da já tradicional, na política brasileira, concentração de forças em
torno do Executivo Federal. Afinal, a julgar pelo funcionamento das Adins, uma de suas
responsabilidades institucionais foi disseminar a vontade de um poder central, em que
o Executivo detém supremacia, na administração pública dos estados e reforçar a
importância de uma cidadania construída com base na prestação do serviço público.
Mas se essa é a principal faceta da judicialização da política por meio das Adins,
ainda assim não é a única: as associações de trabalhadores, de empresários e de
interesses, assim como os partidos políticos, revelam o funcionamento do controle de
constitucionalidade no Brasil da forma como é mais tradicionalmente retratado pela
literatura internacional, isto é, como forma de fazer valer interesses de minorias
parlamentares, ou da oposição, ou da sociedade civil organizada.
Isso fica ainda mais claro quando, em vez das Adins, analisamos como foi feita a
utilização das ADPFs. Nesse caso, apesar da forte presença do tema da administração
pública, em especial no que tange ao uso que delas fazem os governadores, explicita-
se também, a participação das associações de trabalhadores e empresários e dos
partidos políticos, especialmente da esquerda, tratando principalmente de temas afeitos
à organização da sociedade civil. Além disso, nas ADPFs, o principal poder
questionado nas ações é exatamente o Poder Executivo Federal.
Logo, se expandimos nossa análise para as ADPFs, outras características do
controle concentrado de constitucionalidade no Brasil, que não a da racionalização da
administração pública estadual com base na vontade federal, ficam ainda mais nítidas.
Tendo isso em vista, cabe insistirmos na questão de se faria diferença fortalecer, para
além do Poder Executivo Federal, o Poder Judiciário. Se a análise das ADPFs explicita
características de nossa judicialização da política como a participação incisiva da
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sociedade civil e o constante questionamento do Poder Executivo Federal, podemos
responder afirmativamente à questão, pois residiria aí um possível foco de
enfrentamento capaz de não permitir a total concentração de poderes políticos em
torno de um único agente. Dessa forma, tanto a expansão do Poder Executivo central
quanto do aparato burocrático administrativo encontrariam possibilidades de tolhimento
graças ao fortalecimento do Poder Judiciário, provocado justamente pela mobilização
da sociedade civil e partidos políticos.