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UNIVERSIDADE DE BRASLIA UNB
INSTITUTO DE LETRAS IL
DEPARTAMENTO DE LNGUAS ESTRANGEIRAS E TRADUO - LET
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ESTUDOS DE TRADUO POSTRAD
NORMA LINGUSTICA E ORALIDADE FINGIDA NA
TRADUO DE PERSPOLIS
ANA CLUDIA VIEIRA BRAGA
DISSERTAO DE MESTRADO EM ESTUDOS DA TRADUO
BRASLIA
DEZEMBRO/2013
ii
UNIVERSIDADE DE BRASLIA UNB
INSTITUTO DE LETRAS IL
DEPARTAMENTO DE LNGUAS ESTRANGEIRAS - LET
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ESTUDOS DE TRADUO POSTRAD
NORMA LINGUSTICA E ORALIDADE FINGIDA NA
TRADUO DE PERSPOLIS
ANA CLUDIA VIEIRA BRAGA
ORIENTADOR: PROF. DR. MARCOS ARAJO BAGNO
DISSERTAO DE MESTRADO EM ESTUDOS DA TRADUO
BRASLIA
DEZEMBRO/2013
iii
UNIVERSIDADE DE BRASLIA UNB
INSTITUTO DE LETRAS IL
DEPARTAMENTO DE LNGUAS ESTRANGEIRAS - LET
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ESTUDOS DE TRADUO POSTRAD
NORMA LINGUSTICA E ORALIDADE FINGIDA NA
TRADUO DE PERSPOLIS
ANA CLUDIA VIEIRA BRAGA
Dissertao de mestrado submetida ao programa de ps-
graduao em estudos da traduo, como parte dos
requisitos necessrios obteno do grau de mestre em
estudos da traduo.
Aprovada por:
________________________________________________________________
Dr. Marcos Arajo Bagno, Doutor Lingustica , UnB (orientador)
________________________________________________________________
Dr. Mark David Ridd, Doutor Literatura Comparada, UnB (examinador
interno)
________________________________________________________________
Dr Patrcia Vieira Nunes Gomes, Doutora Lingustica, INEP (examinador
externo)
BRASLIA, 20 DE DEZEMBRO DE 2013
iv
Ao Grande Esprito Criador, dono de toda a sabedoria.
Ao meu orientador Marcos Arajo Bagno, que com sua
generosidade e sabedoria me reensinou a aprender.
v
Sou figura reduzida e de pouco aparecimento. Eu quase que nada sei, mas desconfio de muita coisa.
Guimares Rosa
vi
AGRADECIMENTOS:
A Deus, sem o qual nem nada sou.
Secretaria de Educao do Distrito Federal que proporcionou dois anos de afastamento
remunerado para que eu pudesse realizar essa pesquisa e concluir meus estudos.
Universidade de Braslia, ao Departamento de Lnguas Estrangeiras e ao Programa de Ps-
Graduao em Estudos da Traduo (PsTrad) por oportunizar o desenvolvimento de meus
estudos.
Ao tradutor Paulo Werneck que gentilmente contribuiu com uma entrevista esclarecedora e
que muito ajudou para o desenvolvimento dessa pesquisa.
Ao professor Marcos Bagno, meu generoso orientador, sem o qual esse trabalho no poderia
ser realizado. Sua pacincia, generosidade e sabedoria me ensinaram como o conhecimento
pode ser compartilhado. Com ele aprendi a reaprender e principalmente aprendi a gostar de
reaprender.
Ao professor Mark David Ridd pelas contribuies dadas no Exame de Relatrio de Pesquisa.
Aos professores do departamento e do programa, especialmente a Dr Junia Barreto e Dr
Alice Maria de Arajo Ferreira que inspiraram em mim, por meio de suas aulas, o hbito da
pesquisa.
Aos meus amigos e familiares, minha me Amlia, minhas irms Rute e Aline, meus
sobrinhos Bruno e Joo Pedro, meu sobrinho-neto Artur que so partes inerentes de minha
histria.
minha av Wanda Werneck, um agradecimento pstumo. Ainda hoje ouo sua voz dizendo:
minha neta ser poliglota, estudar vrias lnguas. Para voc v, eu sou gratido.
Ao meu tio/pai Humberto Karam, tambm uma homenagem pstuma, de quem pude seguir
exemplos e receber incentivos para tudo na vida.
minha amiga/irm Ana Alves, com quem partilhei todos os momentos desse Mestrado e de
quem pude ouvir conselhos, sugestes e palavras motivadoras.
Aos meus amados filhos: Wanda e Humberto, vocs so a razo de todo meu esforo para
querer ser uma pessoa melhor.
Ao meu marido Francisco Darci. Sou grata, meu amor, pela sua compreenso, seu carinho seu
incentivo, seu apoio, sua pacincia, suas sugestes, dentre outras coisas. Voc , na minha
vida, insubstituvel.
vii
RESUMO
Pode-se perceber, a partir de um primeiro contato, que as histrias em quadrinhos so um
gnero de texto que requer uma leitura peculiar, visto que a unio da imagem com o texto
escrito amplia o universo de percepo do leitor. Diante da voz do texto escrito e da imagem,
como realizar a traduo de uma histria em quadrinhos? De certa forma, h uma ampliao
dos recursos que sero aplicados na traduo: o autor utilizou a imagem que deve ser
considerada pelo tradutor como chave de leitura. A partir dos elementos presentes na
linguagem dos quadrinhos, o trabalho do tradutor dessas histrias no se restringe ao texto
escrito, preciso levar em conta outros desafios que vo desde uma linguagem icnica at as
vrias normas lingusticas incidentes no texto. Suas caractersticas de linguagem fazem do
discurso dos quadrinhos um gnero parte principalmente pela presena essencial da imagem,
pela linguagem icnica, oralidade fingida e o uso abundante dos dilogos. Analisaremos as
representaes de normas presentes no romance grfico Perspolis de Marjane Satrapi por
meio de exemplos de oralidade fingida com vistas anlise lingustica das normas que
incidiram sobre o texto final traduzido, dando nfase aos traos gramaticais do portugus
brasileiro: demonstrativos esse/este, formas do imperativo, relaes pronominais voc/te,
emprego dos verbos ter e haver, emprego de ns e a gente.
PALAVRAS CHAVES: traduo; norma lingustica; histria em quadrinhos; oralidade fingida
viii
ABSTRACT
It can be noticed from the first contact, the comics are a genre of text that requires a peculiar
reading, as the union of the image with the text written broadened the range of perception by
the reader. Faced with the written text and image voice, how to perform the translation of a
comic ? In a way, there is an increase in resources to be applied in translation: the author used
the image that should be considered by the translator as a key to reading. From the elements
present in the language of comics, the work of the translator of these stories is not limited to
written text , one must take into account other challenges ranging from an iconic language to
the various linguistic norms incidents in the text . Their language features make discourse a
genre of comics apart, mainly by the essential presence of the image, the iconic language,
fictive orality and the abundant use of dialogue. Analyze the representations of rules present
in the graphic novel Persepolis by Marjane Satrapi through examples of mock oral linguistic
analysis with a view to the standards that focused on the final translated text , emphasizing the
grammatical features of Brazilian Portuguese: demonstrativos esse/este, formas no
imperativo, relaes pronominais voc/te, emprego dos verbos ter e haver, emprego de ns e
a gente.
KEYWORDS: translation, linguistic norm; comics; fictive orality
ix
RSUM
Il est possible, partir d'un premier contact, se rendent compte que les bandes dessines sont
un genre de texte qui ncessite une lecture particulire, puisque lunion de l'image avec le texte crit largi le champ de perception du lecteur. A la voix de l'crit et de l'image, comment
effectuer la traduction d'une bande dessine ? D'une certaine faon, il ya une augmentation
des ressources qui doit tre applique dans la traduction : l'auteur a utilis l'image qui devrait
tre examine par le traducteur comme une cl de lecture. A partir des lments prsents dans
le langage de la bande dessine, le travail du traducteur de ces histoires n'est pas limit au
texte crit, il faut tenir compte d'autres dfis comme le langage iconique et les diffrentes
normes linguistiques incidents sur le texte. Leurs caractristiques linguistiques transforment
les BD dans un genre spcial de discours principalement par la prsence de l'image essentielle
du langage iconique, de l'oralit feinte et de l'utilisation abondante de dialogue. Nous allons
analyser les reprsentations des rgles prsentes dans le roman graphique Perspolis travers
des exemples de l'oralit feinte, l'analyse linguistique avec une vue sur les normes axes sur le
texte final traduit en mettant l'accent sur les caractristiques grammaticales du portugais
brsilien: l'usage de pronoms dmonstratifs este/esse , formes de l'impratif , relations de
pronoms voc / te , l'emploi de verbes ter/haver et de a gente e ns.
MOTS-CLS: traduction; norme linguistique; bande dessine; oralit feinte
x
SUMRIO
INTRODUO..................................................................................................................1
CAPTULO 1
A LINGUAGEM DOS QUADRINHOS
1.1. Introduo ....................................................................................................................5
1.2. Linguagem, que linguagem? ........................................................................................6
1.3. De desenhos em quadrinhos a arte sequencial: elementos grficos dos quadrinhos...8
1.4. A linguagem dos quadrinhos e a traduo: olhos de ler e ver ...................................11
1.5. A oralidade fingida e os quadrinhos: do falado ao escrito representando o falado...17
1.6. O romance grfico Perspolis ...................................................................................20
CAPTULO 2
NORMA LINGUSTICA E TRADUO
2.1. A norma lingustica ....................................................................................................24
2.2. Norma lingustica e traduo .....................................................................................29
2.3. Lngua falada/lngua escrita: mais um caso de hibridismo.........................................31
2.4. Portugus brasileiro contemporneo: um conceito ....................................................34
2.5. Marcas de normas lingusticas analisadas na traduo do romance grfico Perspolis
para o PB............................................................................................................................35
CAPTULO 3
CORPUS DA PESQUISA E PRESSUPOSTOS PARA ANLISE
3.1. A estrutura do romance grfico Perspolis de Marjane Satrapi .................................38
3.2.A oralidade fingida em Perspolis...............................................................................41
3.3. Normas das ocorrncias lingusticas no portugus brasileiro.....................................46
3.3.1. Nova gramtica do portugus contemporneo (1985)................................47
xi
3.3.2. Moderna gramtica portuguesa (1999)........................................................49
3.3.3. Gramtica Houaiss da lngua portuguesa (2008).........................................51
3.3.4. Gramtica pedaggica do portugus brasileiro (2012b)..............................54
CAPTLO 4
A REPRESENTAO DE NORMA E OS TRAOS DE ORALIDADE FINGIDA NA
TRADUO DE PERSPOLIS
4.1. O hibridismo inevitvel das HQ e normas que se misturam.......................................59
4.2. O portugus da traduo de Perspolis.......................................................................61
4.2.1. Metodologia de anlise................................................................................61
4.2.2. Pronomes demonstrativos- formas -ss- e -st-...............................................62
4.2.3. Imperativo indicativo/subjuntivo..............................................................72
4.2.4. Relaes pronominais...................................................................................81
4.2.5. Verbos ter e haver.........................................................................................85
4.2.6. A gente e ns................................................................................................91
4.3. Concluses sobre a anlise das ocorrncias................................................................96
CONCLUSO..................................................................................................................98
BIBLIOGRAFIA.............................................................................................................100
ANEXO
1
INTRODUO
Pode-se, a partir de um primeiro contato, perceber que as histrias em quadrinhos so
um gnero de texto que requer uma leitura peculiar, visto que a unio da imagem com o texto
escrito amplia o universo de percepo do leitor. Diante da voz do texto escrito e da imagem,
como realizar a traduo de uma histria em quadrinhos? De certa forma, h uma ampliao
dos recursos que sero aplicados na traduo: o autor utilizou a imagem que deve ser
considerada pelo tradutor como chave de leitura.
A partir dos elementos presentes na linguagem dos quadrinhos, o trabalho do tradutor
dessas histrias no se restringe ao texto escrito preciso levar em conta outros desafios que
vo desde uma linguagem icnica at as vrias normas lingusticas incidentes no texto.
No gnero quadrinhos, os bales expressam a fala de cada personagem e os autores
usam os recursos grficos para expressar a oralidade na escrita, o que leva o pesquisador (e,
por conseguinte, o tradutor) a rever os conceitos de lngua falada e lngua escrita bem como
suas inter-relaes. Nas histrias em quadrinhos (daqui em diante HQ) toda representao
escrita de usos supostamente orais ser sempre um fingimento, impossvel de escapar do
hibridismo que caracteriza todo e qualquer uso da lngua.
O texto traduzido de HQ influenciado por uma grande variedade de normatizaes.
Em geral, as escolhas do tradutor buscam corresponder ao gnero do texto, ao pblico alvo e
s normas editoriais impostas pelos agentes normatizantes. A relao entre lngua
falada/escrita muito estreita e a linguagem dos quadrinhos oferece uma caracterstica
essencial a mais: a oralidade fingida.
Alguns autores consideram, ainda hoje, as HQ um gnero paraliterrio, outros como
um suporte para o texto narrativo ou literrio. No entanto, o gnero quadrinhos altamente
representativo da cultura contempornea e ocupa um espao cada vez maior no campo
editorial.
As caractersticas de linguagem empregada fazem do discurso dos quadrinhos um
gnero parte principalmente pela presena essencial da imagem, pela linguagem icnica,
oralidade fingida e o uso abundante dos dilogos.
2
A unificao da imagem e do texto escrito apresenta algumas peculiaridades na leitura
das HQ. O autor de quadrinhos usa a imagem para descrever personagens, ilustrar situaes
narrativas e localizar espacialmente as histrias, o que resulta em um texto escrito com frases
curtas, ausncia de explicaes textuais e descries limitadas, j que os desenhos esclarecem
elementos importantes para o continusmo da narrativa quadrinhstica. A imagem substitui
parte do contedo lingustico gerando um texto hbrido de imagem e linguagem escrita.
A linguagem icnica dos quadrinhos a representao grfica da linguagem por meio
de imagens, smbolos ou ilustraes. Imagens de rabiscos ou traados irregulares podem
expressar ideias de dor ou palavras de difcil compreenso. Um smbolo convencional pode
substituir uma descrio que exigiria um extenso texto escrito. O tamanho da letra ou sua
forma de apresentao (negrito, itlico ou sublinhado) expressam sentimentos como raiva,
tristeza ou intolerncia. As onomatopeias so tambm um exemplo de linguagem icnica
porque cumprem a funo de representar graficamente um som de fala.
Nos textos das HQ esto presentes recursos da oralidade fingida que so uma tentativa
de representar a fala espontnea por meio da linguagem escrita. Essa representao da fala
artificialmente construda na oralidade fingida aceita com naturalidade, no gnero
quadrinhos, pelos leitores.
O uso abundante de dilogos tem uma estreita relao com a oralidade fingida e as
normas que incidem sobre o texto traduzido. A oralidade fingida influencia na forma de
apresentao dos dilogos que precisam parecer o mais espontneos possvel. As normas da
lngua falada espontnea incidem sobre o texto dos dilogos que so representados pela lngua
escrita. Por fim, o texto do tradutor passa por agentes normatizantes antes da publicao que
tambm adicionam ao conjunto suas normas, tornando o texto final um exemplo hbrido de
texto normatizado.
O romance grfico Perspolis, de Marjane Satrapi, traduzido do francs para o
portugus brasileiro por Paulo Werneck, o corpus dessa pesquisa. um romance grfico
(daqui em diante RG), porque conta uma histria em quadrinhos longa e em forma de livro.
A iraniana Marjane Satrapi usou o gnero quadrinhos para contar sua biografia desde sua
infncia em Teer at sua partida definitiva do Ir para a Frana.
Analisaremos as representaes de normas presentes no RG por meio de exemplos de
oralidade fingida com vistas anlise lingustica das normas que incidiram sobre o texto final
3
traduzido, dando nfase aos traos gramaticais do portugus brasileiro (daqui em diante PB):
demonstrativos esse/este, formas do imperativo, relaes pronominais voc/te, emprego dos
verbos ter e haver, emprego de ns e a gente.
Os objetivos a serem alcanados so:
Analisar a linguagem verbal/no verbal e a representao de marcas de normas
lingusticas presentes na oralidade fingida no texto final traduzido de Perspolis para o PB.
Analisar algumas ocorrncias de oralidade fingida na traduo dos quadrinhos;
Identificar alguns fatos gramaticais presentes no texto do RG.
Pretendemos com essa pesquisa responder s perguntas: que representaes de normas
lingusticas do portugus brasileiro esto presentes no texto final traduzido de Perspolis?
Quais so os traos de oralidade fingida presentes no texto traduzido para o PB? Como o
tradutor Paulo Werneck e os agentes normatizantes trabalharam as representaes de norma e
qual delas privilegiaram no seu texto final traduzido de Perspolis? Como a oralidade fingida
foi considerada para a traduo dos bales que representam nas HQ a fala de cada
personagem?
Para tanto, no Captulo 1 apresentamos as caractersticas do gnero quadrinhos e uma
definio de sua linguagem. Fazemos uma anlise do percurso dos quadrinhos at a atualidade
com o fim de mostrar sua importncia enquanto gnero textual, buscando como referencial as
obras de quadrinistas, linguistas e estudiosos do gnero. Trabalhamos termos prprios das HQ
para conceitu-los e esclarecer seus significados e importncia na construo de uma
linguagem especfica das HQ. Discorremos sobre a traduo de quadrinhos e a oralidade
fingida. Para encerrar o captulo, trabalhamos o conceito de romance grfico e as
caractersticas de Perspolis enquanto gnero quadrinhos.
No Captulo 2, apresentamos a relao entre norma lingustica e traduo buscando
referencial em linguistas e estudiosos. Levantamos questionamentos sobre a relao da lngua
falada com a lngua escrita para compreender suas representaes de normas. Empregamos o
conceito de portugus brasileiro contemporneo e justificamos as marcas de normas
lingusticas analisadas na traduo do romance grfico Perspolis para o PB.
4
O Captulo 3 traz um panorama da estrutura do RG Perspolis. Apresentamos algumas
ocorrncias de oralidade fingida e sua relao com as normas lingusticas. Fazemos tambm
um levantamento comparativo do panorama descrito pelos especialistas gramticos e
linguistas sobre as representaes das normas nas ocorrncias dos fatos gramaticais do RG
Perspolis selecionados para essa pesquisa.
O Captulo 4 apresenta os fatos lingusticos tabelados quantitativamente e uma anlise
lingustica detalhada da oralidade fingida e dos fatos gramaticais selecionados de trs
pranchas narrativas.
Por fim, seguem-se as consideraes finais sobre esse trabalho.
5
1. A LINGUAGEM DOS QUADRINHOS
1.1. Introduo
Ao pensarmos em histria em quadrinhos, vm tona os elementos de um texto
ldico, uma linguagem simplificada especialmente direcionada para um pblico que busca
facilidade e leitura banal.
Cirne (2000) explica que as histrias em quadrinhos (daqui em diante HQ), em seus
primrdios, foram consideradas por muitos estudiosos e psiclogos textos nocivos formao
dos jovens, histrias escritas sem nenhuma expressividade artstica ou textual. Esse novo tipo
de texto, considerado confuso, que era o novo suporte dos quadrinhos, foi apresentado ao
pblico pelos especialistas da poca como uma mdia popular de pouca importncia e sem
nenhum atrativo intelectual.
Para muitos psiclogos, os malefcios da leitura de quadrinhos eram
surpreendentemente maiores do que a total ausncia de leitura, j que viciava o crebro em
uma estranha e limitada forma de escrever, fato explicado por Anselmo:
Durante muito tempo as HQ, apontadas como prejudiciais ao desenvolvimento intelectual das
crianas, sem qualquer fundamento cientfico, foram somente objeto de estudos de cunho
histrico e artstico. (ANSELMO, 1975, p. 32).
Anselmo retrata uma triste realidade do nascimento das HQ: o preconceito que
recebeu sua linguagem. As acusaes que recebia o conjunto texto/figura iam desde
desenvolvimento da preguia mental em seus leitores at a apresentao de material escrito ou
tipogrfico falho. Mas o maior crime cometido pelas HQ se referia influncia negativa de
suas histrias e personagens, principalmente com o aumento da violncia entre os jovens aps
a Segunda Guerra Mundial.
Quanto linguagem das HQ, Anselmo afirma:
Coupire (1970) transcreve a atitude hostil de outro expert que assim se expressou: eu desprezo os comics porque eles no tm nenhuma sutileza, nenhuma beleza. Tornam as coisas
demasiadamente fceis. Em lugar de boa descrio, colocam o mau desenho. Reduzem as
maravilhas da linguagem a grosseiros monosslabos e a narrao no passa de um filme
impresso. Detesto sua falta de estilo e de moral, o seu apelo ao analfabetismo e m gramtica.
Abomino sua fatigante dureza, suas sensaes fceis e seu humorismo imbecil. (ANSELMO, 1975, p. 90).
6
Apesar de todos os descaminhos, os quadrinhos conseguiram se firmar, nos anos
1980, como nona arte, antecedidos pelas oito primeiras que so a Arquitetura, a Pintura, a
Escultura, a Gravura, o Desenho, a Fotografia, o Cinema e a Televiso.
Com a linguagem oral mais estudada e valorizada, os textos de dilogos, to utilizados
em quadrinhos, so enriquecidos por estruturas mais prximas da lngua falada caracterizando
personagens e proporcionando variaes dos universos lingusticos aos seus leitores. Sendo
assim, a to repudiada linguagem das HQ se transforma em um caminho plural de teorias e
reflexes.
1.2. Linguagem? Que linguagem?
As HQ nasceram como um documento expressivo, textos repletos de uma linguagem
peculiar: juno entre imagem e texto verbal. Unio que se transformou em uma linguagem
especfica, segundo Eisner:
Em sua forma mais simples, os quadrinhos empregam uma srie de imagens repetitivas, e
smbolos reconhecveis. Quando so usados vezes e vezes para expressar ideias similares,
tornam-se uma linguagem forma literria se quiser. E aplicao disciplinada que cria a gramtica da Arte Sequencial. (EISNER, 1995, p. 08)
Mesmo com crticas contrrias, so consideradas um gnero literrio de grande acesso.
Uma mdia popular extremamente requintada em alguns aspectos, que, ao contrrio de limitar
a capacidade de desenvolvimento da leitura, contribuiu para um acesso mais popularizado e
ldico s obras literrias clssicas, como a famosa reescrita em quadrinhos da obra Auto da
barca do inferno de Gil Vicente, que conserva todos os dilogos do texto original de 1517,
adaptao que foi feita para a linguagem dos quadrinhos pelo cartunista Laudo Ferreira
(1977). Esse somente um dos vrios exemplos de obras literrias clssicas reescritas em
quadrinhos, realizando, na prtica, o que denominado nos estudos da traduo como
traduo intersemitica, definida em Plaza (2001):
A traduo intersemitica ou transmutao foi definida por Roman Jakobson como sendo aquele tipo de traduo que consiste na interpretao dos signos verbais por meio de sistemas de signos no verbais, ou de um sistema de signos para outro, por exemplo da arte verbal para msica, a dana, o cinema ou pintura, ou vice-versa, poderamos acrescentar.(PLAZA, 2001, p. XII)
Os quadrinhos como traduo so um produto da traduo intersemitica e
demonstram que a linguagem das HQ transporta a literatura para outro campo semitico: o
7
indissocivel conjunto imagem/texto verbal da linguagem quadrinhstica, como afirma
Guerini:
Na transposio de um lugar (a literatura) para outro (HQ) torna-se imperativo conseguir no
texto alvo aquilo que se realizou imagtica e poeticamente no texto de partida. (GUERINI,
2013, p.16)
Para que os quadrinhos sejam observados como um suporte de traduo, Guerini
destaca as caractersticas da linguagem dos quadrinhos cuja compreenso passa tanto pela
linguagem verbal como pela linguagem visual, as quais, como sistemas semiticos, trabalham
conjuntamente na produo dos sentidos. Faremos, ento, um direcionamento terminolgico
sobre qual conceito de linguagem ser usado na determinao de uma linguagem dos
quadrinhos.
A linguagem de domnio individual e de domnio social, ela no se classifica
unicamente em uma categoria dos fatos humanos, dificultando a definio de sua unidade.
Em cada texto est um sistema de linguagem. Sendo assim, cada texto nico e singular, e
escrito com uma inteno especfica.
Eisner explica o conceito de quadrinhos como arte sequencial e trata das temticas
implcitas no universo artstico daqueles que trabalham com a linguagem especializada das
HQ:
A arte sequencial, particularmente como aplicada s histrias em quadrinhos, destina-se
essencialmente reproduo. Portanto, devem visar quase simultaneamente esttica e s
tcnicas. H poucas oportunidades para se improvisar nesta disciplina. A arte sequencial,
especialmente nas histrias em quadrinhos, uma habilidade estudada, que pode ser aprendida,
que se baseia no emprego imaginativo do conhecimento da cincia e da linguagem, assim
como da habilidade de retratar ou caricaturar e de manejar as ferramentas do desenho.
(EISNER, 1995. p.144)
As situaes comunicativas em que as linguagens especializadas esto inseridas
tambm cabem no universo de produo das HQ. Em geral quem procura informaes mais
especficas sobre a produo das HQ um pblico que pretende aprender mais sobre a nona
arte e tem um interesse explcito em suas tcnicas e estruturas peculiares.
8
1.3. De desenhos em quadrinhos a arte sequencial: elementos grficos dos quadrinhos
As HQ apresentam um texto com intenes deliberadas de representar a fala, mas
possvel reconhecer que, no incio, principalmente na era de ouro dos quadrinhos, os anos
1930, surgiram clssicos do gnero como Flash Gordon de Alex Raymond que tem em sua
linguagem um delineamento narrativo, envolvendo pranchas, conceito grfico assim
explicado por Mota:
A prancha a pgina desenhada hoje tambm uma unidade de significao desta forma de linguagem. Frequentemente, faz-se corresponder durao de uma cena com dimenses de
prancha.
Em primeiro lugar, possvel conceber-se um tipo de prancha em que existe autonomia entre
texto e imagem e a narrativa dominante. (MOTA, 2000, p. 27)
Nos valendo da definio de prancha enquanto bloco narrativo, importante destacar a
diferena entre um momento de representao oral da linguagem dos quadrinhos e um
momento especificamente narrativo.
Relativamente aos quadrinhos e sequncia tempo/espao o autor se torna impessoal,
fato que segundo McCLoud desencadeia um processo criativo significante:
O quadrinista aprende a enxergar alm das tcnicas de diagramao e roteiro pra ver a imagem
como um todo: ritmo, drama, humor, suspense, composio, tema. Logo, isso tudo est sob seu
comando! (McCLOUD, 1995, p. 45)
Em relao narrativa e s pranchas, Mota insiste na dependncia entre texto e
imagem:
A relao de dependncia pode surgir entre imagem e texto resultando a composio num
domnio de elemento visual. A narrativa surge quase como uma consequncia necessria e
lgica da organizao (grfica) da prancha. Nesta hiptese, a principal consequncia reflecte-se
ao nvel do sentido de leitura, que posto em causa. A leitura, tal como conhecemos,
desestabilizada, criando-se uma linguagem multimedia, com diferentes sentidos narrativos.
O peculiar relacionamento entre imagem na banda desenhada vai ser relevante na prpria
planificao da histria, para l da mera construo da vinheta, da sequncia ou da prancha.
(MOTA, 2000, p. 33).
medida que os quadrinhos passaram a fazer parte do cotidiano social, em sua
elaborao se tornaram dispensveis as explicaes sobre as imagens, e para seu pblico a
automatizao da compreenso da linguagem indissolvel entre imagem e texto escrito foi a
consequncia inevitvel.
Mesmo quando o autor da HQ disponibiliza somente o recurso do dilogo,
apresentando um texto premeditadamente com inteno da oralidade, se houver uma relao
9
profunda entre a imagem e o texto, os quadrinhos so considerados uma arte sequencial da
narrativa:
As HQ so uma arte da narrativa construda por meio de mecanismos especficos que devem
ser examinados sem jamais negligenciar como eles participam na narrao1. (COUPERIE,
1967, p. 7) [traduo nossa]
Um plano de imagem nas HQ ser s um desenho, se no houver um sentido narrativo
em seu texto. Entra em cena, ento, o papel das sarjetas. Assim definidas por McCloud:
O espao entre os quadros o que os aficionados das histrias em quadrinhos chamam de
sarjeta. Apesar da denominao grosseira, a sarjeta responsvel por grande parte da magia e
mistrio que existem na essncia dos quadrinhos!
aqui, no limbo da sarjeta, que a imaginao humana capta duas imagens distintas e as
transforma em uma nica ideia.
Nada visto entre os dois quadros, mas a experincia indica que deve ter alguma coisa l!
(McCLOUD, 2005, p. 66)
Esse espao entre os requadros, que caracteriza as HQ, o elo entre a compreenso
das tcnicas de narrao dos quadrinhos e a continuidade da histria. Por causa das sarjetas, o
ttulo de Arte Sequencial foi dado aos quadrinhos, arte da sequncia tambm a arte dos
cortes. Saber espaar uma ideia e lanar mo do recurso das sarjetas so recursos
comunicativos preciosos, como explica Cirne:
Ousamos dizer: o corte que , por essncia crtica, um corte grfico ser uma das marcas registradas da especificidade quadrinhstica, naquilo que semioticamente constitui a sua
narrativa. Isto , nos quadrinhos, o espao narracional se demarca pelo lugar do corte. Um no
dito que pode ser preenchido pela imaginao do leitor a cada momento, a cada impulso, a cada
vazio o vazio que antecede a nova imagem. (CIRNE, 2000, p. 13)
Sendo assim, as sarjetas variam de acordo com o objetivo narrativo. Sem um corte a
mensagem poderia ser prejudicada em sua continuidade. Deste modo, os autores variam as
regras da narrao, aqui vistas em seu conceito descritivo, relacionadas imagem e ao verbal
que tecem o texto. A continuidade est principalmente nos brancos entre as imagens, cada
retngulo tem seu valor. O trabalho com a dosagem de informao nos quadros mede de
forma importante o nvel de interesse das informaes: muita informao, menos interesse na
ao. O dinamismo das imagens e dos textos caracteriza, em geral, a teia da ao e da
compreenso do leitor. Resnais, falando sobre cinema, completa:
1 La BD est un art du rcit qui se construit au moyen de mcanismes spcifiques dont on doit faire lexamen sans jamais ngliger dobserver comment ils participent la narration. (COUPERIE, 1967, p. 7)
10
A continuidade est nas lacunas entre os quadros de um filme. quase a mesma histria em
quadrinhos, especialmente nas HQ de ao e aventura, nas quais cada requadro significativo.
O desenho em si no to importante como o ritmo que vem da supresso do que acontece
entre duas imagens ou dois requadros. Para a diegese, o que acontece entre os requadros to
importante como o teor desses. O filme, como a histria em quadrinhos, pode perder muito do
seu valor se muitas imagens so inseridas entre os intervalos. Cada requadro deve desfrutar do
privilgio de construir uma corrente contnua com o seguinte2. ( RESNAIS, 1972, p. 44)
[traduo nossa]
Para estabelecer uma linguagem das HQ preciso haver uma conceituao mnima,
tentar responder o que este labirinto semitico da arte sequencial. Falar somente de um texto
com desenhos no atribui nona arte sua verdadeira funo enquanto linguagem. A definio
de Cirne deixa claro o lugar relevante das sarjetas nessa caracterizao da linguagem da arte
sequencial:
Quadrinhos so uma narrativa grfico-visual, impulsionada por sucessivos cortes, cortes estes
que agenciam imagens coladas, rabiscadas, desenhadas e/ou pintadas. O lugar significante do
corte que chamaremos de corte grfico ser sempre de um corte espcio-temporal, a ser preenchido pelo imaginrio do leitor. Eis aqui a sua especificidade: o espao de uma narrativa
grfica que se alimenta de cortes igualmente grficos. (CIRNE, 2000, p. 23)
A linguagem especializada das HQ tem termos que so empregadas com significados
especficos. O termo bales, por exemplo, para os profissionais dos quadrinhos, um recurso
grfico que apresenta a fala dos personagens.
No incio da histria das HQ a insero do texto nas imagens no ocorria da mesma
maneira, mas em 1896, a partir da reunio dos notveis em Lucca na Itlia, o uso do balo foi
o marco da estrutura de linguagem dos quadrinhos como conhecemos hoje. Mota define os
bales, a partir de suas caractersticas, da seguinte forma:
O balo torna visvel o som. O balo normal no compromete. O balo-bolha (ou balo-nuvem)
reflecte no uma fala, mas um pensamento. O balo elctrico normalmente utilizado para
sons provenientes de aparelhos. O balo fala-baixo exprime um sussurro. A enorme variedade de bales enquadra-se nas regras da leitura. Os cartuchos so explicaes do
narrador. (MOTA, 2000, p. 113)
2 La continuit rside dans les blancs entre les images dun film. Il en est presque de mme des bandes dessines, surtout dans les B.D. daction et daventure, o chaque rectangle est signifiant. Le dessin mme nest pas aussi important que ce rythme qui nat de la supression de ce qui se passe entre deux images et ou deux
rectangles. Pour la digse, ce qui se passe entre les rectangles est aussi important que le contenu des rectangles
mmes. Le film, comme la B.D., peut perdre beaucoup de son intrt si trop dimages sont insres entre les cadres. Chaque rectangle doit jouir du privilge denchaner en continu avec le suivant. (RESNAIS, 1972, p. 44)
11
A especificidade de caractersticas do termo balo na rea de especialidade das HQ
reafirma sua linguagem especializada, bem como estrutura a temtica de insero do texto
escrito na unidade imagem-texto da arte sequencial.
As palavras da linguagem comum tm estatuto terminolgico na rea especfica das
HQ e, no plano conceitual da especialidade instaurado pela comunicao especializada e
divulgada atravs dos textos, elas traduzem perfeitamente a linguagem especializada da arte
sequencial.
1.4. A linguagem dos quadrinhos e a traduo: olhos de ler e ver
possvel, a partir de um primeiro contato, perceber que as histrias em quadrinhos
so um suporte semitico que proporciona uma leitura diferente, na medida em que sua
linguagem resignifica a noo tradicional de texto, pois inclui em seu conceito no s o
verbal, mas tambm o visual. Sendo assim, a traduo de HQ tambm apresenta importantes
aspectos a serem considerados.
Se para o leitor comum, aquele que faz das HQ um meio de entretenimento ou de
leitura preferida e tem como acesso a esta mdia a tira diria do jornal e a revista, preciso
exercer sobre a leitura da arte sequencial habilidades interpretativas, visuais e verbais,
atribudas principalmente pelo cdigo nico entre texto e imagem (EISNER, 1995, p.8), para
o tradutor de HQ, as habilidades necessrias esto contidas principalmente na considerao de
que a linguagem verbal e a linguagem visual so indissociveis e formam uma unidade a ser
considerada na traduo dos bales, que so os objetos da traduo nos quadrinhos.
Para uma compreenso da linguagem das HQ, Cirne caracteriza a mdia dos
quadrinhos por meio de seus elementos semiticos fazendo uma ponte entre a esttica e a
semitica, disciplinas que, embora representem campos distintos, colaboram entre si na
consolidao da linguagem das HQ como uma nova esttica:
A rigor, a esttica e a semitica so campos distintos, mas ousemos pensar suas
problematizaes. Qualquer nova perspectiva esttica, inclusive, s existe na medida em que
uma conquista semitica, experimental ou no, se consolida formalmente enquanto signo capaz
de investir, do social ao cultural, na aventura do imaginrio: a descoberta de novos caminhos
significantes, como no dadasmo, como na antropofagia, como no neoconcretismo. Como no
poema/processo. (CIRNE, 2000, p. 26)
12
Ao se deparar com as imagens, o tradutor tem uma ampliao dos recursos que sero
aplicados na arte de traduzir: o autor utilizou a imagem como cdigo de leitura e essa deve ser
considerada pelo tradutor.
H tambm a caracterizao imagtica, na maioria dos textos em quadrinhos, da
personalidade das personagens e, em alguns casos, da linguagem cmica/humorstica, jogo de
palavras, expresses idiomticas, grias, ironia, dentre outras que exigem do tradutor uma
sensibilidade para a seleo de recursos com a finalidade de utilizar adequadamente as
imagens na realizao de seu texto final.
De acordo com Rosas (2003), a traduo do humor/ironia requer um conhecimento
das culturas de cada idioma, pois tanto o texto original de partida quanto o texto traduzido tm
imagens prprias para sua leitura.
Se acrescentarmos ao debate a necessidade do conhecimento da linguagem
especializada das HQ pelo tradutor, a traduo da arte sequencial se torna ainda mais peculiar,
pois as sugestes imagticas e a narrao dos textos em quadrinhos precisam ser consideradas
como um discurso especializado.
Pode ser simples a ideia de que o tradutor s traduz o texto dos bales e seus cartuchos
e, porque no traduz as imagens, essas so irrelevantes no processo tradutrio. No entanto, a
imagem e o texto so indissociveis na linguagem dos quadrinhos e a escolha do tradutor ao
traduzir um balo sempre estar associada s imagens do quadro e estrutura narrativa que
configuram a peculiaridade da linguagem das HQ.
Para Meschonnic a traduo de textos uma traduo de discurso e no de lngua:
No se traduz mais a lngua. Ou, ento, desconhece-se o discurso e a escritura. o discurso,
e a escritura, que preciso traduzir. (MESCHONIC, 2010, p. 20)
Considerando que a unidade da linguagem, para Meschonnic , no se resume s
unidade da palavra, a unidade passa a ser o discurso, todo o sistema do discurso (p. 31), o que
se traduz discurso. A partir dessa afirmao, a linguagem dos quadrinhos, que tem um
discurso prprio, precisa ser bem conhecida para ser traduzida.
Os quadrinhos se revelam como uma linguagem especfica que tem um discurso
especfico. Ao traduzir um balo, o tradutor precisa conhecer as caractersticas do discurso
quadrinhstico e a partir deste conhecimento estruturar suas escolhas, sempre respeitando a
indissociabilidade entre o verbal e a imagem.
H uma tendncia natural em interpretarmos as imagens apenas como uma ilustrao
da realidade. No entanto, mais do que imagens de coisas, as ilustraes representam, na
13
maioria das vezes, um conceito ou uma ideia. Nos quadrinhos elas compem o discurso do
autor, tanto quanto o texto verbal.
Vejamos as pranchas a seguir da historia Love story do romance grfico Perspolis em
francs e em portugus brasilero de Satrapi (2007/2011): a imagem da personagem atada aos
locais no primeiro requadro sugere a diviso de tempo de Marjani entre os amigos e outras
atividades. Na sentena em francs a autora usa a voz ativa: ses amis anarchistes
madoptrent que poderia ser facilmente traduzida por uma sequncia direta: seus amigos
anarquistas me adotaram, no entanto, por conta da imagem representar uma atitude pouco
ativa da personagem, o tradutor, Paulo Werneck, optou pela voz passiva no portugus: fui
adotada pelos anarquistas amigos dele. A imagem de uma ao sem a participao da
personagem sugeriu uma opo verbal que tambm demonstrasse a passividade.
14
No primeiro requadro percebemos que o tradutor manteve o nome da escola em
francs Lyce franais de Vienne. Esses elementos visuais-textuais que, nos quadrinhos, no
so nem cartuchos narrativos e nem fala dos personagens so denominados inscries. As
inscries em Perspolis aparecem tanto em farci como em francs e alemo e, na maioria das
vezes, o tradutor optou por no traduzi-las. A razo dessa opo parece estar ligada ao idioma
falado no momento em que essas inscries aparecem. O tradutor precisava passar a ideia de
que, naquele momento, a personagem conversava, lia ou ouvia o farsi, francs ou alemo.
Em Perspolis h uma presena marcante das onomatopeias, que para Saussure
(1995), diferente de outras categorias lingusticas, representam signos motivados. Na prancha
abaixo, aparecem representados sintomas de uma bronquite: chiados, tosse, espirro e tosse
com sangue.
Na verso francesa os sons so representados pela relao letra/fonema/pronncia do
francs. Algo que, por semelhana, represente o cone referencial do som de uma tosse. O
tradutor, a partir das imagens presentes na HQ, precisou buscar equivalentes onomatopeicos
na relao letra/fonema/pronncia no portugus: som da tosse no francs: MPF KKOF KOF
por outro lado no portugus: MPF COFF COF. O espirro no francs: KEUH KEUH, no
Portugus TXIM TXIM.
15
Para Santaella (2005) existem trs tipos de signos icnicos, a saber: a imagem, o
diagrama e a metfora. Quando tratamos de onomatopeia, que a representao de sons por
meio de palavras ou letras, a autora cita Anderson e sua obra Uma gramtica do Iconismo
(1999) para explicar que, ao se aprofundar nos conceitos sobre os signos motivados, Anderson
demonstra que h uma padronizao de sons repetidos que representam fenmenos idnticos
ou similares. No caso das onomatopeias representadas na prancha de Perspolis, considerando
que os sons de cada letra em idiomas diferentes tambm so pronunciados de acordo com sua
prpria conveno, as escolhas do tradutor esto relacionadas diretamente imagem e ao que
ela representa enquanto mensagem icnica.
Em seu artigo A imagem enformada pela escrita, Anne Marie Christin discorre
sobre o emprego da imagem, no incio da escrita, como um smbolo dos pensamentos e no s
como uma utilizao banal da representao do concreto. Para tanto, Christin recorre ao
emprego da ideia humana de combinar figuras-smbolos com o fim de que o produto final
fosse compreendido pelo leitor como um conjunto que produzisse um sentido, previamente
concebido pelo autor, imaginado e ordenado premeditadamente (CHRISTIN, 2004, p. 65).
16
Nas HQ, as imagens representam o texto em si, que pode ou no ter como outro
recurso a linguagem verbal. A imagem em um nexo narrativo conta uma histria implcita no
universo dos desenhos, como afirma Barboza:
E ainda que numa HQ se recupere todo um romance sem se fazer uso de uma palavra sequer,
ainda assim, a fala subliminar do inventor da trama, rede textual repleta de frutos colhidos no
mar da poesia, no silncio gritar.( BARBOZA, 2004, p. 11)
Para o tradutor de HQ preciso considerar que os cones presentes no desenho tm
relao intrnseca com o smbolo das palavras e que h uma premeditao do emprego das
imagens com os desenhos. Relacionando sempre imagem e texto como indissociveis, o
tradutor das HQ recebe dos desenhos informaes icnicas que determinam suas escolhas, a
partir de uma anlise cultural, lingustica e/ou imagtica do texto das HQ, como no exemplo
anterior da traduo das onomatopeias.
Atentando para a observao de Anne-Marie Christin (2006) de que dando
privilgio, na anlise da imagem, ao seu suporte que ser possvel encontrar as premissas
icnicas da escrita, o tradutor poder optar por solues significativas em suas opes ao
traduzir os textos das HQ, sempre relacionando imagem e texto, sem perder de vista as
estruturas lexicais mais evidentes no discurso intrnseco e peculiar da linguagem dos
quadrinhos.
Isso implica em uma ratificao de que os quadrinhos tm um discurso especializado
e, portanto, quando traduzido, trar no texto em outro idioma um discurso tambm
especializado que leva em conta tanto as palavras dos bales como as imagens e as
caractersticas narrativas presentes em seus textos.
Para o tradutor, alm de ter em mente uma definio da linguagem dos quadrinhos,
preciso reconhecer nas HQ seu suporte artstico de grande importncia, principalmente pelo
seu alcance enquanto texto, literatura e produto da mdia de massas. J em 1975, Anselmo
afirmava que as HQ deveriam ser classificadas como meio de comunicao de massa (MCM)
porque tinham caractersticas essenciais como:
Envolvimento com mquinas de mediao da comunicao, a impresso, por exemplo; atinge
vasta audincia em breve perodo de tempo; as mensagens originam-se de uma ampla
organizao de profissionais e diviso de trabalho; reflete a educao de um povo; difundem
instantnea e rapidamente mensagens; estendem a informao, a diverso e o ensino ao homem
comum, combatendo privilgios no acesso informao. (ANSELMO, 1975, p. 23)
17
Reportando a importncia que a leitura de quadrinhos tem para a educao do leitor e
tambm para a formao do hbito de leitura, sempre pertinente lembrar que os quadrinhos
se tornaram textos preferidos de crianas e adolescentes, alcanando os adultos de forma
definitiva com o surgimento dos romances grficos (daqui em diante RG).
Os RG (em ingls grafic novel) so, segundo Braga, livros que contam uma histria
longa por meio da arte sequencial. O termo usado para definir as distines subjetivas entre
um livro e outras histrias em quadrinhos (BRAGA & PATATI, 2006, p. 67). Foi Will Eisner
quem popularizou o termo romance grfico, que apareceu na capa de seu livro A contract
with God (1978). No entanto, o formato de histrias em quadrinhos mais extensas e com
temticas sociais ou filosficas tem como precursor Richard Kyle que usou o termo nos anos
1960 (BRAGA & PATATI, 2006, p. 68). Atualmente, o termo se aplica a edies
encadernadas publicadas para estruturar uma histria longa em quadrinhos.
1.5. A oralidade fingida e os quadrinhos: do falado ao escrito representando o falado
Em geral, elementos da fala so transcritos para um texto em passagens de dilogos
com objetivos variados, dentre eles o de caracterizar as personagens, sua personalidade, sua
classe social, seu grau de instruo. Brumme (2008) conceitua a oralidade fingida como a
variedade de manifestaes orais que se pretende refletir no texto escrito e que so
confrontadas com problemas como as diferenas culturais, a relao norma-uso, a relao
oral-escrito e os recursos de uma lngua para outra. A oralidade fingida tambm pode ser
classificada como construda, j que h uma iluso de que uma representao fiel da
linguagem falada na escrita.
As histrias em quadrinhos so textos que, por causa de seus recursos grficos
representados pelos requadros, bales e sarjetas, tm uma estrutura hbrida de gnero textual
na qual esto presentes normas da linguagem oral e escrita. Os smbolos, imagens, expresses
das personagens e caractersticas da fala estruturam uma oralidade fingida (fictive orality),
conceito assim definido por Sinner:
A oralidade fingida uma variedade lingustica situacional que difere da fala espontnea em
vrios aspectos. A fala na fico o produto de recriao ou evocao estilizada por parte de
um autor. Embora o realismo e a autenticidade possam ser as qualidades mais celebradas, em
ltima instncia, as funes literrias e a dimenso semitica do dilogo impem restries
18
significativas sobre as decises tomadas tanto pelos autores do texto-fonte como pelo tradutor3.
(SINNER, 2009, p. 436) [traduo nossa]
Sinner chama a ateno para uma anlise da oralidade fingida com o intuito de
observar a representao de norma especfica:
Na maioria dos estudos sobre oralidade fingida realizados sob uma perspectiva translatolgica se enfoca a distncia da oralidade real para determinar os padres e as convenes da representao do oral na fico supondo, como j assinalei, que no coincidem com a prpria natureza do fictcio
4. (SINNER, 2009, p. 437) [traduo nossa]
Na narrativa contada em quadrinhos, cada personagem assume um estilo oral. H uma
espcie de marca da oralidade. Como a linguagem das HQ composta por recursos especiais,
termos especiais e ainda sofre certa oscilao dependendo das personagens, a oralidade
fingida ainda mais marcante.
Segundo Guilhelm Naro (2008, p. 107), as HQ so um gnero excepcional de
oralidade fingida porque constituem uma representao do oral que aceita pelos leitores. H
marcas profundas da oralidade nas HQ e os bales so uma representao grfica do falar. As
onomatopeias, o jogo de palavras e at as interpretaes de estruturas completamente
inventadas, como a linguagem de animais, caracterizam a linguagem das HQ e suas
especificidades.
Alm desses fatores, a histria em quadrinhos tem a mensagem visual, que de forma
definitiva parte integrante do corpus da mensagem. O tradutor precisa levar em
considerao o elo indissolvel entre texto e desenho, fato que condiciona suas escolhas ao
traduzir.
Pensando na traduo e no tradutor, a predominncia da representao oral na escrita
das histrias em quadrinhos necessita de uma ateno especial. Uma ironia em francs pode
no representar o mesmo efeito quando traduzida para o portugus brasileiro
3 The fictive orality, a situational linguistic variety, differing from spontaneous speech in various respects. Speech in fiction is the product of stylised recreation or evocation by an author. While realism and authenticity
may be the most celebrated qualities, ultimately, the literary functions and the semiotic dimension of dialogue
place significant constraints on the decisions taken both by the source text authors and the translator. (Sinner,
2008, p.436) 4 En el grueso de los estudios de la oralidad fingida se han realizado muchos trabajos recientemente desde una
perspectiva translatolgica se enfoca la distancia de la oralidad real, para determinar las pautas y convenciones de la representacin de lo oral en la ficcin suponiendo, como he sealado, que no coinciden por la propia naturaleza de lo ficticio. (Sinner, 2009, p. 437)
19
(daqui em diante PB). Alm do mais, apesar dos bales representarem a fala dos personagens,
essa representao est efetivada em um texto escrito, que limita muitos aspectos reais da
oralidade.
Nos requadros abaixo, que fazem parte da prancha narrativa La fte (A festa) de
Perspolis aparece um ditado infantil em francs que tem rimas: sors de ta cachtte, ne sois
pas mauvitte! No texto traduzido para o PB por Paulo Werneck, o ditado no foi escrito com
rimas e nem mesmo pareceu uma quadrinha infantil: sai do esconderijo, no seja frouxo! As
escolhas do tradutor no consideraram a rima. O tradutor tambm no buscou expresses no
PB que refletissem um ditado popular ou infantil como no texto em francs:
Na traduo desses requadros, Werneck considerou a espontaneidade da fala das
crianas e optou pelo adjetivo frouxo que poderia ter sido traduzido por covarde. Outra
observao diz respeito norma do modo imperativo: conforme j habitual no PB, h o uso
20
simultneo de formas atribudas pela norma-padro tradicional ao pronome tu (sai) e ao
pronome voc (seja). Cabe lembrar que a forma prevista por essa norma-padro para o
pronome tu (s) totalmente desconhecida dos falantes do PB.
Esse hibridismo de normas denominado terceiro cdigo por Baker, que assim o
explica:
O conceito de terceiro cdigo deve ser mais explorado se quisermos explicar as peculiaridades
da lngua de traduo de uma forma mais matizada, como um fenmeno distinto. Por exemplo,
inegvel que a copresena de cdigos no a nica restrio em vigor na traduo: outras
presses podem ocorrer e contribuir para a estrutura distintiva do texto traduzido. Alm disso, a
prpria natureza dessa copresena de cdigos tem de ser esclarecida. Esta exigncia surge do
fato de que a mera presena de dois cdigos em um nico evento no suficiente para
distinguir a traduo de outros processos, tais como em um enunciado ou texto escrito de um
aluno de uma segunda lngua nos quais se reconhece igualmente que o aprendiz emprega
conscientemente dois cdigos5. (BAKER, 1998, p. 3) [traduo nossa]
Para Baker, o tradutor utiliza um terceiro cdigo lingustico nas tradues. Esse cdigo
um processo consciente ou inconsciente de representaes do idioma de chegada. Variaes
lexicais e de normas so processadas e aparecem de forma marcante no texto traduzido.
1.6. O romance grfico Perspolis
Perspolis uma srie de quatro histrias em quadrinhos autobriogrfica e histrica
realizada em preto e branco por Marjane Satrapi e tem caractersticas de um romance grfico.
A autora retrata as etapas marcantes de sua infncia e adolescncia em Teer at sua difcil
entrada na vida adulta. Essa srie um grande sucesso de edio mundial e em 2003 vendeu
sessenta mil exemplares de seus trs primeiros livros, o sucesso se manteve at 2007 quando a
obra foi adaptada para o cinema por Vincent Paronnaud e pela prpia autora, quando obteve
o prmio do festival de Cannes. Foi traduzida para o PB por Paulo Werneck e editada pela
Companhia da Letras em 2007.
5 La notion de troisime code doit tre examine plus fond si nous voulons rendre compte des particularits de la langue de traduction d'une faon plus nuance en tant que phnomne distinct. Par exemple, il est indniable
que la coprsence de codes n'est pas la seule contrainte jouer en traduction : d'autres contraintes s'exercent et
contribuent la structuration distinctive du texte traduit. De plus, la nature mme de cette coprsence de codes
demande tre clarifie. Cette exigence dcoule de ce que la simple prsence de deux codes dans un mme
vnement ne suffit pas distinguer la traduction d'autres processus, tels un nonc ou le texte crit par un
apprenant de langue seconde, o on reconnat galement que l'apprenant ou l'interlocuteur emploie
consciemment deux codes. (Baker, 1998, p.3)
21
Perspolis apresenta em seu texto recursos lingusticos bem caractersticos que
enfatizam a ironia, pois uma histria poltica e religiosa com facetas de crtica social
revoluo islmica que ocorreu no Ir no fim da dcada de 1970. Por ser uma narrativa em
quadrinhos, apresenta uma linguagem especfica na qual o verbal e o imagtico so
indissociveis.
A opo de Satrapi foi pelo desenho em preto e branco em tons de cinza, sem o
rebuscamento grfico de algumas HQ. Os desenhos tm traos arredondados e no tm
tridimensionalidade. A distribuio das histrias na obra no tem numerao de pginas e na
verso francesa est dividida em livros. Perspolis foi publicada aos poucos e est organizada
em blocos numerados de um a quatro. No interior dos livros so apresentadas pranchas
desenhadas com ttulos que procuram demonstrar a ideia principal de cada bloco narrativo.
Pensando na oralidade representada nos textos escritos das HQ, se verifica a
necessidade de se considerar o texto de Perspolis, em sua maioria, como uma representao
escrita da fala. Para Bagno (2012b), as semelhanas entre lngua escrita e lngua falada so
significativas e por isso devem ser valorizadas enquanto texto com parmetros e registros
semelhantes de uso. Os textos carregam em si um hibridismo de gneros. Nos quadrinhos a
oralidade e a escrita convivem de forma a caracterizar e estruturar uma manisfestao
semioticamente hbrida, assim explicada por Bagno:
Toda produo textual na atualidade, falada e/ou escrita, se configura inexoravelmente como
uma manifestao semioticamente hbrida que mobiliza os multimeios sonoros visuais,
grficos, tridimensionais etc. que as novas tecnologias de comunicao e informao tm
colocado ao nosso dispor. (BAGNO, 2012b, p. 347)
A linguagem dos quadrinhos em Perspolis corresponde a um gnero hbrido textual
que intenta representar a fala atravs de textos escritos e demonstra com marcas especficas a
oralidade fingida. Elementos da comunicao oral so transcritos para o texto com objetivos
variados, dentre eles caracterizar as personagens, sua personalidade, sua classe social, seu
grau de instruo.
Nos prximos requadros, retirados da prancha La fte (A festa) de Perspolis, temos
exemplos da inteno de representar a fala a partir das caractersticas dos personagens com
elementos da oralidade fingida e representao de normas. Na fala da reprter de televiso o
tradutor buscou estruturas lingusticas mais monitoradas como: recusou-se a dar asilo ao X e
22
sua famlia e quem vai receb-lo , j na fala da criana: quem esse a?, a espontaneidade
prevalece.
No RG Perspolis existe a presena marcante de grias para os jovens, termos polticos
para os adultos ditos engajados, termos especficos para os revolucionrios e tambm, nos
textos narrativos, em que os bales da oralidade no aparecem frequentemente, nos
deparamos com termos histricos.
O idioma de partida, no caso o francs, recebe a influncia de grias, expresses
idiomticas, ironia, regionalismos, e no caminho para a chegada ao idioma alvo, o PB, o
tradutor busca os mesmos efeitos na lngua alvo com o objetivo de transmitir a mensagem
atrelada aos cones dos desenhos.
Podemos observar que as sarjetas em Perspolis so bem definidas, h espaos
brancos largos que delimitam a narrativa quadrinhstica, proporcionando ao leitor uma
organizao na continuidade narrativa. A presena de onomatopeias, os desenhos de bocas e
olhos nas personagens demonstram a inteno icnica de ilustrar as reaes emocionais das
personagens.
23
Na anlise do texto traduzido de Perspolis preciso considerar que a autora, Marjani
Satrapi, no tem como lngua materna o francs, e sim o farsi, principal lngua do Ir. Satrapi
nasceu em Rasth, no Ir, e aprendeu francs no Liceu Francs de Teer. Publicou Perspolis
em francs, que deve ser considerado como um texto hbrido, j que no produto de um
falante nativo da lngua. possvel que, para a verso final de seu texto, Satrapi tenha
recorrido a revisores e falantes nativos. Ao escrever em francs as falas de iranianos, a autora
recorre oralidade fingida, na medida em que aparecem nos dilogos em francs aspectos
traduzidos do discurso de cada personagem. Bagno enfatiza o processo pelo qual passa um
texto traduzido antes de sua publicao e explica:
Por fim, preciso recordar que, entre a traduo feita pelo profissional e a chegada de um livro
(ou outra forma de suporte) publicao (impressa ou on-line), o texto passa por diversas
etapas de retextualizao, constitudas pelos trabalhos de reviso, preparao, diagramao,
copydesk etc. Em cada uma dessas etapas estar em ao, inevitavelmente, a representao de
norma prpria a cada um desses profissionais. (BAGNO, 2012a, p. 30)
No caso de Perspolis, tanto o texto em francs como o texto traduzido para o PB
passaram por essas instncias de normatizao. Para o texto em francs o intuito de
normatizar o francs de Satrapi que no falante nativa e, para o texto em PB, normatizar as
escolhas do tradutor Paulo Werneck.
Em entrevista dada por Paulo Werneck para esse trabalho (anexo), o tradutor afirma
que as intervenes dos editores em seu trabalho com Perspolis foram bem-vindas, abaixo o
trecho completo da resposta de Werneck.
h) Em seu texto traduzido final, houve muita interferncia da editora antes da
publicao? Voc considera essa interferncia como um grau muito ou pouco alto?
Houve, mais do que uma interferncia, uma interlocuo de alto nvel com a Marcia Copola,
que uma das profissionais de texto mais competentes e sensveis do pas. Ela fez a preparao
de texto, que, para alm das questes tcnicas, de padronizao, uma experincia de
interlocuo intelectual, de leitura cerrada. A Companhia das Letras tem uma cultura
intervencionista, americana, na qual me criei e que julgo necessria. Sem ela, o tradutor fica
sozinho tomando decises solitrias e difceis. Ter um interlocutor nessa hora um privilgio.
Eu j trabalhava cotidianamente com a Marcia, observava o trabalho dela, mas ser editado por
ela foi muito importante. O trabalho dela uma coisa que ainda precisa de um reconhecimento
mais amplo. O Milton Hatoum, se no me engano, abriu para pesquisa os originais de livros
dele preparados por ela. Elio Gaspari fez uma nota sobre ela que diz tudo sobre esse
participante secreto da edio de livros. Ela ainda preparou o texto do Bernardo Carvalho e
muitos outros grandes autores. (Entrevista com Paulo Werneck, 12/09/2013, anexo)
Pela resposta do tradutor, inegvel a comprovao de que as tradues so o
resultado de um hibridismo de normas que incluem as regras ditadas por agentes
normatizantes influentes.
24
2. NORMA LINGUSTICA E TRADUO
2.1. A norma lingustica
As normas tm em seu histrico terminolgico significados abrangentes que
envolvem uma obrigao, um caminho estabelecido anteriormente ou numerosas regras e
princpios.
Moiss, personagem bblico, revelou os Dez mandamentos no livro do xodo. Eram
normas sociais e morais que detiveram os desmandos do povo judeu que no conhecia a vida
seus algozes egpcios. Por meio de dez normas de conduta moral e comportamental, o povo
ali reunido conseguiu uma organizao social sustentvel. Na Poltica, Aristteles definiu
configuraes sociais como cidade, famlia, democracia, e determinou normas rgidas para
que cada instituio poltica, organizacional ou social contivesse os preceitos, por ele
definidos, que coubessem nos conceitos ideais por ele estabelecidos como, por exemplo, o
conceito de governo domstico:
Vimos que o governo domstico divide-se em trs partes ou poderes: o do senhor, do qual
acabamos de tratar, o do pai e o do marido. O chefe da casa governa sua mulher e seus filhos
como seres livres, mas no da mesma maneira: relativamente sua mulher, o poder poltico,
relativamente aos seus filhos, o poder de um rei. Pois, embora haja excees antinaturais, na
ordem natural o macho mais talhado para o comando que a fmea, do mesmo modo que o
mais velho, que atingiu seu desenvolvimento completo, superior ao mais jovem e imaturo.
(ARISTTELES, 2006, cap. XII)
Ao levarmos em conta o tempo em que essas normas eram consideradas pertinentes,
ficamos aliviados com a existncia de normas sincrnicas e anacrnicas em nossa sociedade,
e percebemos que uma norma no cabe para todos, ao mesmo tempo e em um mesmo espao.
Ainda, no mundo contemporneo, muitas mulheres so submetidas ao governo domstico
masculino, mas a regra ocidental de governo do lar envolve uma mulher que capaz de
liderar tranquilamente um ncleo familiar. Os mais velhos ainda tm influncia na famlia,
mas os jovens exercem cada vez mais seu poder filial na organizao de uma casa.
As normas lingusticas refletem essa dinmica social, assim explicitada por Faraco:
Por isso que tendemos a dizer hoje, nos estudos cientficos da linguagem verbal, que uma
lngua uma entidade cultural e poltica e no propriamente uma entidade lingustica. Ou seja:
no h uma definio de lngua por critrios puramente lingusticos, mas fundamentalmente
por critrios polticos e culturais. (FARACO, 2009, p. 32)
A partir de critrios culturais possvel determinar as normas lingusticas de um
idioma e trabalhar com as variaes de normas presentes no uso de uma lngua. As variaes
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podem ser diatpicas ou diastrticas. As variaes diatpicas envolvem o uso do mesmo
idioma em lugares especficos: ingls britnico X ingls americano. As variaes diastrticas
incluem as variaes de normas em grupos sociais especficos como variedades da classe
mdia X variedades da classe operria.
Em uma comunidade lingustica coexistem vrias normas, que esto relacionadas ao
modo peculiar do falar. Segundo Faraco o comportamento normal do falante variar sua fala
de acordo com a comunidade de prtica que ele/ela fala. (2009, p. 38). mais uma vez o
critrio cultural ou social que influencia a constituio da norma lingustica com variaes
diastrticas, evidenciando a importante relao entre norma lingustica e normas sociais.
Um falar correto evidencia uma posio social diferente do falar errado. Seguir as
normas prestigiadas demonstra escolaridade, conhecimento e acima de tudo poder social. Ao
dizermos: Me d licena? fica claro o desconhecimento ou o conhecimento sem aplicao
da regra-padronizada de que considerado errado comear uma sentena com pronome
oblquo tono. Para aqueles que adotam essa regra padronizada como critrio de correo, a
fala: Me d licena? estigmatiza o falante e define sua posio intelectual inferior diante do
conhecimento das normas do idioma. Da mesma forma, para algumas comunidades
lingusticas dizer: D-me licena? ou D-me licena? parecem escolhas pedantes do
falante.
Para Bagno, a lngua para o falante mais do que um instrumento de comunicao, h
no discurso do falante um comprometimento humano e social evidente:
A lngua nossa faculdade mais poderosa, nosso principal modo de apreenso da
realidade. Vivemos mergulhados na linguagem, no conseguimos nos imaginar fora
dela estamos mais imersos na lngua do que peixes na gua. (BAGNO, 2012b, p. 75)
Pensando nessa relao entre lngua e falante, entre normas lingusticas e sociedade, o
conceito de norma lingustica evoca tambm elementos sociais de mudana. Reportando a
definio inicial de Aristteles sobre o governo domstico, preciso considerar a posio
feminina na sociedade da poca. As mulheres gregas eram submissas? Elas viviam a expensas
do marido? Elas podiam trabalhar? Elas podiam aprender uma atividade econmica? Todos
esses questionamentos respondem demanda para o entendimento das normas sociais
impostas por Aristteles em seu texto.
Da mesma forma, muitas perguntas precisam ser respondias quando se pensa em
norma lingustica: em que usos lingusticos est baseada essa norma? Como posso reconhecer
meu discurso nessa imposio? O que imposto? O que natural na aplicao da norma? O
que artificial?
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Bagno, para explicitar a duplicidade de sentido encontrada nos conceitos de norma
descritos nos dicionrios, discute o contraste entre normal e normativo. Includos na
dinmica da norma, esses conceitos oferecem um contraste claro entre os usos intuitivos e
normatizados da lngua. O normal de uso corrente, real, remete a comportamento e
observao em situaes objetivas. O normal medido por mdia estatstica de frequncia e
h uma tendncia geral e habitual no uso das normas. Em contraste, o normativo impe
preceitos e descreve uma lngua ideal. A aplicao das normas consciente e exige
elaborao com intenes subjetivas em conformidade com juzos de valor para uma
finalidade designada.
A gramtica o suporte que descreve as normas de uma lngua: quando se dedica a
investigar e apresentar os usos normais, ela chamada de gramtica descritiva; quando se
interessa por estabelecer e fixar normas, mesmo que no sejam de uso frequente, chamada
de gramtica normativa ou prescritiva. Com a preocupao cada vez mais crescente de uma
descrio gramatical que tem como fonte o normal, tm surgido gramticas baseadas na
realidade do uso, abandonando a anlise do discurso literrio como modelo da norma padro.
possvel encontrar descries variadas de usos lingusticos que tm como exemplo gneros
textuais variados e que demonstram as transformaes do discurso. No Brasil, livros como
Gramtica do portugus brasileiro de Mrio Perini e Nova gramtica do portugus brasileiro
de Ataliba de Castilho so, segundo Bagno:
Uma radical mudana na histria das publicaes gramaticais brasileiras. Alm de trazer no
ttulo o nome de nossa lngua, tal com vem sendo usado em pesquisas mais avanadas sobre a
realidade lingustica brasileira, essas duas obras rompem com a tradio de vincular sempre o
estudo gramatical da lngua da maioria dos brasileiros comparao entre essa lngua e a
lngua dos portugueses (e sempre sob a perspectiva literria, como se sabe). (BAGNO, 2012b,
p. 25)
O mesmo autor explica que contra a mudana lingustica no h nada que se possa
fazer: ela inevitvel, da prpria natureza das lnguas (p.27), assim como a mudana social
acontece, a mudana lingustica tambm um processo inevitvel e por isso as normas
precisam ser descritas acompanhando essas mudanas.
Considerando a necessidade de conceituar norma lingustica dentro desse universo
social e dinmico, Faraco define:
possvel, ento, conceituar tecnicamente norma como determinado conjunto de fenmenos
lingusticos (fonolgicos, morfolgicos, sintticos e lexicais) que so correntes, costumeiros,
habituais numa dada comunidade de fala. Norma nesse sentido se identifica com normalidade,
27
ou seja, com o que corriqueiro, usual, habitual, recorrente (normal) numa certa comunidade de fala. (FARACO, 2009, p. 35)
O normal a palavra-chave do conceito e expressa bem os usos habituais de uma
comunidade lingustica.
Assim como as regras sociais mudam e as pessoas precisam se adaptar a essas
mudanas,as normas lingusticas tambm passam por mudanas inevitveis que transformam
os usos lingusticos de toda uma comunidade, como afirma Bagno:
A presso da mudana que se processa na sociedade impulsionada pelos falantes em suas interaes acaba por transformar uma forma lingustica inovadora num uso to normal que, mesmo enfrentando a reao de uma minoria (os gramticos mais prescritivistas, os puristas, os
reacionrios em geral), acaba por se impor ao conjunto da sociedade. (BAGNO, 2012b, p.33)
Reaes contrrias a usos lingusticos costumeiros da comunidade falante se baseiam
no conceito de norma padro. A norma padro descrita como um modelo artificial de
preceitos institucionalizados que representam uma classe social especfica e que Bagno afirma
ser um padro: um modelo artificial, arbitrrio, construdo segundo critrios de bom gosto
vinculados a uma determinada classe social, a um determinado perodo histrico e num
determinado lugar. (BAGNO, 2003, p. 65)
A norma padro representa uma fora social minoritria que exclui as mudanas de
uma lngua em constante transformao. Por utilizar exemplos de usos descontextualizados
em sua descrio, a norma padro, em geral, se afasta do discurso real do falante de um
determinado idioma e serve muito mais como um controle de casta social do que como uma
descrio cientfica das normas de uma lngua.
A norma culta tambm tem em seu histrico terminolgico muitas discusses. Por trs
do termo norma culta esto dois conceitos que para Bagno (2003) so totalmente opostos:
um modelo de atividade escrita inspirado nos usos que aparecem nas grandes obras literrias
criando um padro a ser observado por qualquer falante (p. 43) e outro conceito que se
refere linguagem concretamente empregada pelos cidados que pertencem aos segmentos
mais favorecidos da nossa populao (p. 51).
Em contraste com as duas normas anteriores padro e culta temos a norma
popular, termo que designa uma norma lingustica sem regras especficas ou que no segue
nenhuma regra. Bagno explica que a norma popular designa as variedades lingusticas
relacionadas aos falantes sem escolaridade superior completa, com pouca ou nenhuma
28
escolarizao, moradores da zona rural ou das periferias empobrecidas das grandes cidades
(p. 59).
Tanto norma culta como norma popular expressam conceitos com problemas de
definio. Para tanto, Bagno (2003) prope uma nova terminologia: (1) norma padro
porque exprime verdadeiramente seu sentido: um ditame, uma lei artificial e arbitrria; (2)
variedades prestigiadas porque variam e enfatizam que o que est em jogo no a lngua
propriamente dita, mas sim o prestgio social dos falantes (p. 65); (3) variedades
estigmatizadas porque variam e caracterizam os grupos sociais desprestigiados do Brasil (p.
67).
Na Gramtica pedaggica do portugus brasileiro (2012), Bagno retoma o conceito
de norma culta com o intuito de abranger as variedades urbanas de prestgio e adota a
terminologia portugus brasileiro contemporneo, por considerar que:
uma lngua plena, perfeita para atender a todas as necessidades da interao social e da
construo da identidade dos cidados de uma nao soberana, rica e importante. Temos que
estudar e ensinar a nossa lngua com base no que ela aqui e agora, no Brasil do sculo XXI.
(BAGNO, 2012b, p. 111)
Com a mudana inevitvel das regras lingusticas e a adoo dessas mudanas como
uma modalidade aceitvel de normas, o falante se identifica com as variedades e reconhece
nelas uma dinmica sem artificialismos ou heranas normativas impostas.
Descrever uma lngua uma atividade que parte do uso dessa lngua no discurso dos
falantes. Uma norma lingustica nasce e se impe na interao incessante entre discurso e
regras gramaticais que para Bagno so indissociveis.
Para a anlise de normas lingusticas nesse trabalho usaremos o referencial do
portugus brasileiro contemporneo explicitado por Bagno, cujas caractersticas sero
apresentadas no item 4 desse captulo. Para o momento, preciso adiantar que a base das
concluses est ligada ideia de que a relao norma/lngua ter como ponto de partida as
formas genuinamente brasileiras de falar e escrever. (BAGNO, 2012b, p. 33).
29
2.2. Norma lingustica e traduo
A traduo interlingual (entre lnguas diferentes), vista a partir da definio de Baker
(1998) como um evento comunicativo, que moldado por suas prprias metas, presses e
contexto de produo6 (p. 175) [traduo nossa], implica na anlise de normas que
acompanham o ato de traduzir. A traduo um fenmeno comunicativo influenciado pelas
restries normatizantes que emergem tanto do texto a ser traduzido como das escolhas do
tradutor.
Para Baker (1998), o confronto entre o texto fonte e a lngua alvo gera, durante o
processo tradutrio, um terceiro cdigo: o cdigo da traduo. Esse cdigo criado na
traduo porque o ato de traduzir deve ser considerado como um processo comunicativo nico
e no porque o texto traduzido final deve estar conforme a norma. Seguindo o caminho das
normas, Baker afirma que h uma copresena de cdigos, uma espcie de hibridismo, que
contribui para a estruturao distintiva de um texto traduzido.
Em geral, os tradutores utilizam inconscientemente estruturas lingusticas que estejam
de acordo com as expectativas dos leitores e crticos e tambm selecionam as normas
consideradas por ele mesmo, tradutor, como corretas ou mais bem aceitas em sua opinio.
Baker lista em seu estudo algumas tendncias observadas nas tradues para o ingls a
partir de corpus como:
simplificao da lngua alvo;
normatizao da pontuao quando o texto da lngua fonte foi pontuado de forma
experimental;
finalizao de sentenas que so deixadas em suspenso no texto de lngua fonte;
omisses de hesitaes ou enunciados fora do contexto gramatical no texto fonte.
Ao observar essas tendncias, Baker percebe um terceiro cdigo evidente presente nos
textos que tende a normatizar as tradues:
Esta tendncia a "normatizar" a linguagem da traduo e acompanhar de perto as convenes
da lngua-alvo sugere, mais uma vez, que os tradutores respondem inconscientemente
6 communicative event which is shaped by its own goals, pressures and context of production (BAKER, 1998 , p. 175).
30
percepo que tm do status do texto ou do enunciado que eles produzem.7 (BAKER, 1998, p.
4) [traduo nossa]
O tradutor, de forma consciente ou no, normatiza seu texto final com vistas ao idioma
alvo, mesmo que o texto fonte no siga a mesma variedade da lngua.
Schaffner (1998) descreve essa relao norma/traduo como um fenmeno ligado aos
conceitos de exatido, preciso, boa formao e relacionamento com a qualidade da traduo.
Nas tradues, as normas desempenham um papel importante e representam o conceito de
correto a partir das variedades cultas ou estigmatizadas. Partindo de estudos comparados com
intuito de criar mecanismos de princpios normativos na traduo, Schaffner discute a ideia de
que as normas do idioma de partida alcanam o idioma de chegada.
As normas e convenes nas abordagens da lingustica textual definem o texto como
unidade bsica de comunicao e, portanto, como o objeto principal da pesquisa.
Para os estudos de traduo, isso significa que o texto em si considerado como a
unidade de traduo. A traduo no mais definida como transcodificao de signos
lingusticos e sim como texto reescrito. Meschonnic (2010) se refere ao ato de traduzir como
uma reelaborao de texto. A traduo no deve ser considerada como um meio de se atingir a
lngua de chegada no texto da lngua de partida. H nesse crculo vicioso, segundo
Meschonnic (2010), uma valorizao do signo em detrimento do discurso. A equivalncia
signo/signo mais valorizada do que o discurso final do texto traduzido. O autor considera
que esse olhar sobre a lngua de partida um olhar em direo forma (p. 14) e
complementa:
Claro, o problema terico no negar que a cada vez h uma lngua de partida e uma lngua de
chegada, mas que esta posio do problema totalmente viciosa, porque conhece apenas a
noo de lngua e a noo de signo. (MESCHONNIC, 2010, p. 27)
Relativamente s normas, o tradutor percebe a norma lingustica do texto inicial da
lngua de partida, mas em geral suas escolhas estaro mais influenciadas pela normatizao
mais aceita no idioma de chegada, isso principalmente pelos julgamentos do pblico e das
7 Cette tendance normaliser la langue de traduction et suivre de prs les conventions de la langue cible laisse croire, encore une fois, que les traducteurs rpondent inconsciemment la perception qu'ils ont du statut
du texte ou de l'nonc qu'ils produisent. (BAKER, 1998, p. 4 )
31
normatizaes mercadolgicas, aqui includas as regras das editoras em relao publicao
das tradues.
Refletindo sobre o uso desses conceitos na traduo de quadrinhos, ainda preciso
considerar a questo de que a especificidade da linguagem das HQ est na ideia de que o
tradutor traduzir o texto dos bales aliado imagem indissocivel. Os bales so estratgias
de representao da oralidade que Ramos (2012) chama de turnos conversacionais (p. 63)
segundo o conceito de unidade conversacional de Urbano: Unidade conversacional uma
unidade estrutural que se define como aquela em que o falante diz alguma coisa durante uma
abordagem interativa continuada (RAMOS, 2012, p. 91).
H na linguagem dos quadrinhos uma oralidade representada a partir de recursos
grficos e lingusticos especficos.
Nos recursos grficos e icnicos encontraremos bales com linhas contnuas ou
descontnuas designados como balo-fala, balo-pensamento, balo-cochicho, balo-berro,
balo-sonho (RAMOS, 2012, p. 37). Estar presente tambm o negrito nas fontes, letras com
tamanhos variados para indicar uma entonao diferente na fala ou volume de voz mais
elevado (RAMOS, 2012, p. 57).
Quanto aos recursos lingusticos, a pontuao diferenciada sem pausas ou com muitas
reticncias pode indicar uma forma rpida de falar. A repetio de slabas ou palavras pode
indicar engasgos ou reformulao de pensamentos. H ainda a escolha do vocabulrio que
ser feita com base na caracterizao de cada personagem.
Considerando que, na maioria dos casos, as HQ so textos que representam uma
oralidade conversacional, a questo das normas para o tradutor recai sobre os conceitos muito
explorados de lngua escrita e lngua falada e suas normas.
2.3. Lngua falada/ lngua escrita: mais um caso de hibridismo
Ao tratar de lngua falada e lngua escrita, convm mencionar que h uma tendncia
tradicional a evidenciar suas diferenas primordiais. A lngua falada considerada mais
informal e catica, enquanto a lngua escrita vista como mais formal e estruturada. Para
Roberts & Street (1997) h uma posio alternativa que pe em relevncia os sentidos de um
32
texto nas prticas sociais e no discurso e no nas propriedades formais da lngua (p. 169). A
partir dessa posio, o foco da anlise de lngua falada e lngua escrita deixa de ser suas
diferenas e passa a ser os sentidos construdos por elas, oferecendo assim uma possibilidade
de anlise contextualizada de cada uma delas. Roberts &Street complementam:
A aplicao dessa perspectiva s prticas orais e letradas desloca o foco da preocupao
tradicional com as diferenas entre os canais para lan-lo sobre os modos como os sentidos
so construdos localmente dentro de contextos particulares. Tambm sinaliza que os sentidos
no discurso oral e escrito so processos estruturadores que se nutrem de formaes sociais mais
amplas. (ROBERT & STREET, 1997, p. 168)
O conceito de prticas letradas, para o estudo da relao entre lngua oral e lngua
escrita, tem como base os estudos de letramento em referncia s prticas de leitura e escrita,
segundo Corra (2010). O autor define prticas letradas em seu sentido restrito como:
[...] proponho lidar com dois sentidos de letramento, que convivem em vrios trabalhos sobre o assunto, os quais, porm, tm sido reduzidos a um deles, a saber o que chamarei
sentido restrito. Nesse sentido restrito, letramento designa a condio do indivduo que exerce,
direta ou indiretamente, prticas de leitura e escrita. (CORRA, 2001, p. 137)
Esse sentido de letramento traz a alfabetizao como caracterstica essencial para um
letramento formal desenvolvido e no considera as prticas de letramento que envolvem a
tradio oral e que nem por isso desmerecem o ttulo de letradas. H, no entanto, uma anlise
mais ampla de letramento para Corra (2001), a saber:
O sentido mais amplo do letramento, muito menos explorado nas pesquisas lingusticas que
lidam com essa questo, designa um outro aspecto da escrita. Nesse segundo sentido,
letramento liga-se ao carter escritural de certas prticas, presente mesmo em comunidades
classificadas como de oralidade primria (aquelas que no tiveram contato algum com a escrita
tal como a conhecemos). Esse tipo de registro que aparece nas prticas orais apresenta um
carter de permanncia no tempo semelhante ao que normalmente se atribui escrita.
(CORRA, 2001, p.137)
Partindo, assim, de uma anlise mais ampla do letramento que confere fala um
carter permanente caracterstica atribuda anteriormente s escrita a relao lngua
falada/lngua escrita pode ser vista mais pelas suas caractersticas comuns do que pelas
diferenas apontadas. J que tanto as prticas orais quanto as escritas so manifestaes de
uma mesma lngua, o recurso de aproxim-las, ampliando o conceito de letramento, oferece
uma ponte metodolgica mais coerente para uma aceitao de que lngua falada e escrita tm
33
mais semelhanas do que diferenas. A partir desse sentido amplo possvel usar o termo
letramento no plural, aceitando que no h s um conceito para os possveis letramentos.
A relao entre oralidade e letramento faz justia a uma demanda de vrios estudiosos
da lngua que pretendem mostrar que a escrita uma manifestao do oral em seus diversos
registros de usos.
Bagno (2012b) se refere aos estudos sobre a lngua falada e a