Post on 23-Apr-2018
O Amordaçado
Por Christiano de Almeida Scheiner
Registro 175.280 pela Fundação Biblioteca Nacional – EDA
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Uma cela.
O prisioneiro e o senhor.
O prisioneiro nu.
O prisioneiro: (está só e nu deitado no palco, uma luz pequena o desperta, são os
pequenos raios de sol que entram por sua cela. ajoelha-se tapando o rosto das pequenas
luzes) Claridade... há quanto tempo não a vejo assim... estou só... e consciente de
que não sendo sonho apenas acordo só. Nem tão só assim, não tarda muito e ele
vem me acordar. Ele vem dizer que o céu está bonito, que lá fora as pessoas
perguntam por mim. Ele vem dizer que tudo lá fora é bonito, mas que nada é mais
bonito do que me ver aqui, do que me ter aqui, nu, e só. Ele vem dizer que é pra
eu não desesperar, que serei feliz, que serei... meu novamente. Ele vem mostrar
seu rosto e sua voz pra eu perceber... (um barulho interrompe sua fala. passos).
O senhor: (entra. traz na mão um copo com água e pão. sério, calado. põe o copo perto
do prisioneiro e lhe entrega o pão) Vejo que você acordou mais cedo. Antes eu vinha
te acordar.
O prisioneiro: Já não é necessário. Mais.
O senhor: Eu coloquei geléia. Você me disse, ontem, que gostava. Mas eu me
esqueci de te perguntar qual a preferida?
O prisioneiro: Qualquer uma.
O senhor: Você está bem?
O prisioneiro: Fui acordado pelo sol. Ou não seria o sol?
O senhor: O sol lá fora está bonito.
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O prisioneiro: (comendo do pão) O senhor escolheu bem. Está gostoso.
O senhor: Para o seu estômago geléia é o sol.
O prisioneiro: Água também.
O senhor: Hoje... Eu... Eu vi seus pais hoje de manhã, quando acordei para
comprar pão.
O prisioneiro: Eles perguntaram por mim? (pausa) Havia me esquecido, me
desculpe.
O senhor: Pareciam mais felizes. Eu não sei o porquê. Acho que eles têm
alguma pista.
O prisioneiro: O senhor acha que...?
O senhor: Não, não acho que desconfiem de mim. Somos muito amigos.
Parece que a pista indica que você não morreu, acho que a polícia pensa já ter
encontrado o seqüestrador.
O prisioneiro: Assim, tão rápido?!
O senhor: Duas semanas.
O prisioneiro sorri. Termina de comer sorrindo.
O senhor: Por que sorri?
O prisioneiro: Agora eu sei quanto tempo... o senhor não notou? O senhor não
queria que eu soubesse...
O senhor: Não, realmente, mas agora, duas semanas, não é? Está mais calmo.
O prisioneiro: Me acostumei.
O senhor: A estar aqui?
O prisioneiro: A não ser o que eu era.
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O senhor: A dormir aqui?
O prisioneiro: A ser como se é aqui.
O senhor: Acha que... por muito tempo?
O prisioneiro: Muito tempo e já não serei nem o que sou agora.
O senhor: Você é belo.
O prisioneiro: O que estou agora.
O senhor: Hoje você acordou mais belo.
O prisioneiro: O que restou de mim.
O senhor: Não foi isso que eu...
O prisioneiro: Não foi só a beleza...
O senhor: Não resta só beleza em você.
O prisioneiro: O que restou em mim é o que estou agora.
O senhor: E será pra sempre.
O prisioneiro: (sorri) O senhor me ensinou a mudar.
O senhor: Eu?
O prisioneiro: Me ensinou a não crer na eternidade.
O senhor: Mas existe!
O prisioneiro: Eternidade?
O senhor: Sim!
O prisioneiro: E acha que serei belo para sempre?
O senhor: Não pense nisso!
O prisioneiro: Aqui e eu não teria pensado nunca ou muito tardiamente que um
dia deixarei de ser belo.
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O senhor: Não!
O prisioneiro: E me abandonará.
O senhor sai exaltado, se esquece do copo. Assim que ele sai, o prisioneiro o esconde
num canto escuro da cela.
O prisioneiro: (sozinho) E me abandonará. (pausa) Eu já não tenho mais
como... Duas semanas. Achei que fosse mais tempo. Achei que já fosse
eternidade. (sorri): O que digo? Eternamente aqui! Eu. Sozinho. Não. Sozinho,
mas tendo voc... (ri): Antes não era assim. Ou era? Antes eu sabia a noção do
tempo? Antes eu sabia quanto tempo tinha duas semanas? Mas elas me pareciam
tão mais rápidas e tagarelas! Antes, acho, que nem sabia de mim. Quanto tempo?
(pausa): Quanto tempo já fiquei sem pensar? Ou melhor, quanto tempo pra pensar
em algo, menos fútil, menos... belo...? Aqui eu tenho tempo até para não pensar
(ri).
Passos. O senhor entra com uma câmera e um cinto nas mãos.
O senhor: Trouxe a câmera!
O prisioneiro: De novo?
O senhor: Belo. Eternamente belo.
O prisioneiro: Já, nunca mais vi nenhuma foto minha.
O senhor: Vamos! Trouxe a câmera! (ameaça com o cinto)
O prisioneiro: Não precisa me ameaçar. Eu só queria ver. Me. Me ver.
O senhor: Vamos. Aquelas mesmas posições.
O prisioneiro: Repetidas?
O senhor: Não me amole. Aquelas mesmas.
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O prisioneiro: Agora vejo que nunca me baterias.
O senhor: Vamos!
O prisioneiro: Mas agora não precisa mais. Também nem precisa mais abaixar
o cinto.
O senhor: (super alterado) Vamos!
O prisioneiro: Eternamente belo.
O prisioneiro faz uma pose sentado. A máquina não funciona.
O senhor: Droga! Não funciona.
O prisioneiro: Não precisa.
O senhor atira a máquina no chão. Olha admirado para o seu prisioneiro.
O senhor: Eternamente belo.
O prisioneiro: E se eu morresse?
O senhor: Nunca!
O prisioneiro: Teria as fotos.
O senhor: Não!
O prisioneiro: Só delas necessita. (silêncio) Não é?
O senhor: (calmo) Cala a boca.
O prisioneiro: É só delas.
O senhor: Cala a boca! A máquina não funciona. Preciso arranjar outra
máquina. Por que foi pifar logo agora?
O prisioneiro: Não está contente comigo?
O senhor: Me deixa pensar. Me deixa pensar.
O prisioneiro: E se eu morresse agora?
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O senhor: Nunca! Não! Cala a boca, você me atrapalha.
O prisioneiro: Você me tirou a vida.
O senhor: Não. Não te tirei nada.1
O prisioneiro: (pega a máquina) Porque se eu morresse agora, só as fotos
valeriam.
O senhor exaltado e ameaçadoramente pega o prisioneiro pelo pescoço.
O senhor: Não fale mais.
Solta o prisioneiro. O prisioneiro brinca com a máquina.
O prisioneiro: Por quê? Não teria graça se eu morresse agora?
O senhor: Você me tirou mais do que eu a você.
O prisioneiro: Nunca foi minha intenção.
O senhor: Precisava ter aparecido?
O prisioneiro: Precisava ter me prendido?
O senhor: E haveria outra forma?
O prisioneiro: Haveria. Haveria. Eu sei que haveria.
O senhor: Você nunca teria me notado.
O prisioneiro: E adiantou alguma coisa?
O senhor: Você não vai morrer agora.
O prisioneiro: Eu sei.
O senhor: Queres morrer? É isso? Achei que já estivesse acostumado?
O prisioneiro: Eu estou. (sorri): Não está contente?
O senhor: Por quê? Por que haveria se acostumado? Deve ser um jogo seu?
1 Pelos personagens falarem coloquialmente optei por variar o te e o lhe no uso da próclise, como comumente tenho observado; no entanto para o seu/sua e teu/tua os personagens seguem conforme a concordância com o
7
O prisioneiro: Nem houve jogo.
O senhor: O que você está dizendo?
O prisioneiro: Poderia ter tido. Você. Poderia ter... era só pelas fotos, então?
O senhor: Cala a boca. Será que não me entendeu.
O prisioneiro: Eu nunca serei seu.
O senhor: E haveria outra forma? Haveria?
O prisioneiro: Não posso estar em você, nem aqui a toda hora. Nem lá fora.
Eu não poderia ser de ninguém.
O senhor: O quê? Pare de falar! Eu quero sempre.
O prisioneiro: Acha que vai me guardar em segundos fotográficos? Acha que
vai me prender na sua máquina ou prender qualquer coisa de mim?
O senhor: Pára.
O prisioneiro: Não, não pode. Acha, então, que ali estará minha beleza? Não!
E toda vez que olhar para estas fotos irá se lembrar que não as teve como queria,
como deveria ser! Ali, acaso eu estou, naturalmente com eu sou... (dando por si):
ou como eu já fui... ?
O senhor: Você não entende!
O prisioneiro: Nem você entende. (silêncio) E não lhe peço nem que me
entenda. Mas olhe para essa máquina. Ela falhou, assim como nós falhamos.
O senhor tira a máquina da mão do prisioneiro.
O senhor: Não quero mais falar nisso.
O prisioneiro: E se te pegarem?
pronome você.
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O senhor: Não vão me pegar!!
O prisioneiro: Você terá as fotos...
O senhor: Não vão me pegar.
O prisioneiro: Mas terá as fotos!
O senhor: Não sei, não vão me pegar.
O prisioneiro: (incisivo) Terá ou não terá?!
O senhor: Terei.
O prisioneiro: Uma hora você não terá mais fotos. Sempre repetidas, sempre
repetidas. Você vai querer mais. Uma hora todas as angulações vão se acabar.
Uma hora você não terá mais. Uma hora as repetidas serão repetidas. Pra que
repetidas?
O senhor: Eu não quero que se acabem.
O prisioneiro: E se eu morrer e a casa pegar fogo e as fotos forem queimadas
com o resto e comigo que já estarei morto e ainda por cima virarei cinzas!?
O senhor: CALAABOCA!!!
Pega novamente o prisioneiro pelo pescoço.
O senhor: (voz rouca de raiva) Isso não vai acontecer!
O prisioneiro: Então não são só as fotos?
O senhor: (ainda o segurando, olha para ele com muita admiração e o joga no chão
com violência) Não!
O prisioneiro: O senhor não quer me dizer, não é? Mas eu sei que não são só
as fotos.
O senhor: Eu não tenho nada para lhe dizer.
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O prisioneiro: O senhor me ama.
O senhor dá um tapa forte na cara do prisioneiro. Este, não reclama.
O prisioneiro: O senhor me ama.
Mais um tapa. Um chute. Outro chute. O prisioneiro não reclama.
O prisioneiro: Está me deixando feio.
O senhor: (pára. volta a si) Você me obrigou. (silêncio) Me desculpa, eu...
(desconcertado) Eu vou pegar algo, está sangrando? Está doendo? Eu trago
remédio. Eu...
O prisioneiro: É só a beleza, então.
O senhor: Não comece, por favor. Eu. Eu trago um curativo. Eu vou.
Sai sem graça para pegar curativos.
O prisioneiro: (novamente pega a câmera, desta vez tentado se ver pelo reflexo da
lente) E se eu fosse feio? Se eu fosse feio, eu não estaria aqui. Você não teria
fotos. Não teria nada de mim. Eu não teria descoberto que eu... Nem você teria
descoberto... Você não teria feito o que fez. Você não teria me batido. Você nunca
me bateu. Hoje eu acordei mais feliz. Hoje você me bateu. Meu avô me dizia que
para uma boa notícia há sempre outra má, ou pior, ou melhor... ou se eu fosse feio
talvez ninguém houvesse me batido. Talvez ninguém houvesse se apaixonado,
ou... mas não se apaixonaria por fotos... não seria assim. Você não sofreria. Ou
não lembraria nunca que me amava...
Passos. O homem entra com curativos.
O prisioneiro: Não é necessário. Estou bem.
O senhor: Deixa. Quero cuidar de você.
O prisioneiro: Você já cuidou.
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O senhor: Quero cuidar mais.
O prisioneiro: Você nunca tinha me batido.
O senhor: Eu sei, me desculpe.
O prisioneiro: É difícil?
O senhor: Me desculpar?
O prisioneiro: Me desculpar! (pausa) Por ter nascido belo?
O senhor: A culpa não é tua.
O prisioneiro: E se eu não fosse?
O senhor: Mas você é.
O prisioneiro: Mas se não fosse?
O senhor: Eu não sei.
O prisioneiro: Você não teria me amado.
O senhor: Eu não disse que te amava!
O prisioneiro: Então, por quê? São só as fotos?!
O senhor: Eu não disse que te amava! Não são só as fotos!!!
O prisioneiro: É difícil, não é? Diz! Diz que é, só isso.
O senhor: Cala a boca. Não diz mais nada. Não é isso. Eu...
O prisioneiro: É difícil dizer, não é? É difícil? É difícil? É só uma pergunta.
O senhor: Eu não vou responder.
O senhor joga os curativos ao prisioneiro.
O prisioneiro: E se o senhor morresse primeiro? E se morresse primeiro do
que eu?
O senhor: Seria melhor.
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O prisioneiro: Poderia ter se matado.
O senhor: Era o que você queria, não é? Realmente, eu poderia ter me
matado. Mas não tive coragem.
O prisioneiro: Mas teve coragem de me prender.
O senhor: Eu enfrento as conseqüências.
O prisioneiro: E as conseqüências do lado de lá?
O senhor: Não são pra se pensar. Importa aqui.
O prisioneiro: É, tem razão, importa aqui comigo, preso, só teu! É isso que
importa? Só isso? E você, terá fotos minhas, de um Eu que eu já nem me lembro!
Nem lembrarei! Acha que vou sair daqui como você me conheceu? Você se
engana! Se não fosse só a beleza... Mas que importa, não é? A minha beleza
também não será sempre essa! E naquela beleza eu era outro, mas se for só a
beleza, não importa, não é? É isso, as fotos nunca serão repetidas, porque nunca
na mesma pose eu serei o que já fui. Cada dia, cada segundo que passo nesse
lugar você não percebe que mudo? Não, você só quer minha carne! Você só quer
minha imagem, nem a carne quer! Mas por quê? Por que eu não sou pra você?
Ou por que tem medo que eu também não te ame? Por que tem medo que eu não
sofra do mesmo mal que você sofre?! Também sou homem.
O senhor: Você é um moleque.
O prisioneiro: Não sou mais. Duas semanas. Duas semanas sem me ser. É
isso.
O senhor: Eu sei quais são suas preferências.
O prisioneiro: Não eram as mesmas que as suas.
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O senhor: Eu também não preferia!
O prisioneiro: Mas prefere agora e não admite!
O senhor: Não!!
O prisioneiro: Não há preferências... Me desculpe. Eu descobri muito mais de
mim ou do meu não-ser... Me desculpe, eu não me sinto belo, mas pelo menos
não tenho nojo de mim mesmo.
O senhor: Eu não tenho nojo de mim!
O prisioneiro: Mas quando me aprisiona, e quando me bate, e quando me
deixas assim, não era a si mesmo que queria aprisionar e bater?
O senhor: Não! (silêncio): Era.
O prisioneiro: Eu não te culpo.
O senhor: Eu sei, você me odeia.
O senhor sai.
O prisioneiro: (sozinho) Ás vezes eu sinto ódio. Sim. Quando eu me lembro dos
desejos que você roubou de mim. Não questiono nada, porque mesmo que eu
saia daqui esses desejos já estão roubados... eu sinto um vazio... e não me
assusta... porque só estando aqui eu posso sentir... é como se eu sentisse
saudades de agora, como se no futuro isso por que eu passo fosse me fazer
chorar de saudades... nostalgia. Será que é pra ser assim? Será que apenas não
tendo desejos eu consigo encarar seus olhos e perceber que não há diferença
nenhuma entre você e eu? Sem saber... eu chego a te amar... e me pergunto
sinceramente se eu não faria o mesmo que você faz agora... e sabe qual a
resposta? Sim, eu faria. E não me sinto culpado por isso, porque me alivia...
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Percebe que eu te perdôo e tão somente por mim eu te perdôo? É o que me dói,
pois mesmo nesse caso não deixo de ser egoísta, e então me encontro
novamente em você, aquele que rouba o que lhe é de direito só porque no fundo
tem essa certeza, e novamente em você eu te perdôo, pois não haveria como
perdoar a mim mesmo...
O senhor: (entra repentinamente) Você fala coisas estranhas.
O prisioneiro: É estranho ficar aqui.
O senhor: Ás vezes eu não me entendo.
O prisioneiro: O estranho é o vazio.
O senhor: Eu não entendo o estranho.
O prisioneiro: É estranho o que sente por mim.
O senhor: Eu não entendo você.
O prisioneiro: Eu não era estranho.
O senhor: Agora, eu não entendo você.
O prisioneiro: Nem quando eu não era estranho.
O senhor: Eu não te entendia.
O prisioneiro: Nem quando eu era apenas o filho dos teus vizinhos.
O senhor: Eu já te olhava diferente.
O prisioneiro: Mas eu não era diferente quando eu era apenas o filho... ?
O senhor: (interrompe) Você não tinha de ser assim!!!
O prisioneiro: Agora eu era diferente.
O senhor: Você me obrigou. Você não tinha de ser assim.
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O prisioneiro: Você fala com a pessoa errada. Mescla passado e futuro. É a
pessoa errada. Quem você aprisionou?
O senhor: Você.
O prisioneiro: Quem você amou?
O senhor: Quem eu só queria belo.
O prisioneiro: Quem o senhor só queria pra ti?
O senhor: Só meu.
O prisioneiro: Eternamente belo?
O senhor: Eternamente.
O prisioneiro: Minha beleza não é eterna. Nem eu sou.
O senhor: Não pode.
O prisioneiro: E quando eu crescer? E quando a barba começar a nascer? E
os dentes, quando eles começarem a cair?
O senhor: Não vai acontecer.
O prisioneiro: Você é louco.
O senhor: Você é belo.
O prisioneiro: Você não sabe o que fez comigo.
O senhor: E você? Tem idéia do que sua beleza me causou.
O prisioneiro: Eu não queria. Eu juro.
O senhor: Você existe.
O prisioneiro: E você?
O senhor: Eu vou morrer primeiro.
O prisioneiro: Era só a beleza.
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O senhor: Ainda é. Ainda é.
O prisioneiro: E eu devo ficar feliz por isso?
Silêncio.
O prisioneiro: Por quê?
Silêncio.
O prisioneiro: Por quê?!
Silêncio. O senhor sai de cena.
O prisioneiro: (grita) Por quê?
Silêncio.
O prisioneiro: Não me abandona, por favor, agora eu só tinha você.
Black-out.
O prisioneiro: (no escuro) Duas semanas de vida. É isso. Espalhe aos outros
que eu já morri e renasci!!! Meu corpo agora, nu, é estranho. Não pelas tuas
marcas, ou pela penumbra que eu nunca havia me visto. Porque meu corpo é
cúmplice da dor que é uma dor física e não dói mais que as palavras, as sãs e as
doentes. E eu deveria te agradecer? (pausa) Não, esta não é a pergunta, a
pergunta é se você gostaria que eu te agradecesse.
Luz. Penumbra. O senhor está em cena. Estático pela beleza do rapaz com uma mordaça
nas mãos.
O prisioneiro: (como se estivesse ainda sozinho. mas ao mesmo tempo em que fala o
senhor vai acorrentando e amarrando o seu prisioneiro. este não reage) Não me lembro
mais do passado, não ouso lembrar. Estar sozinho é algo que nunca estive. Agora
é estar sozinho, porque agora é já não ter mais sonhos. É já não ter mais desejos.
É ter os objetivos que eu tinha tão somente como objetivos que eu gostaria de ter,
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existe diferença. É uma vaga lembrança dos futuros objetivos que agora eu já não
tinha. E ao invés de ódio, passo a sentir outra coisa, que se não amor, assemelha-
se à compreensão. Ao invés da raiva e da vingança, eu te pediria um abraço e não
muito que me fizesse um carinho... pois, não como disse para mim...
O senhor: (completa a frase do prisioneiro) Você é tudo o que eu tenho.
Coloca a mordaça em sua boca.
O prisioneiro geme. Está em pânico. Olhos arregalados. Pavor. O prisioneiro grita pela
mordaça.
O senhor: Acalme-se. Não lhe farei mal. Quer que eu lhe desamarre? Mas só
depois, quando estiver mais calmo. As pessoas lá fora nunca desconfiariam. Você
é tão bonito. Sua pele. Pena que um dia ficará velho. Assim como eu. Sua
fragilidade, seus membros ainda serão mais frágeis. Mas na sua idade eu também
o era, frágil. Dócil. Assustado. Não como está agora, é claro. Por que você tinha
que nascer tão belo? Sabe, quando você era criança eu nem notava tanta beleza.
Lembra daquela vez que você quebrou a vidraça da minha janela jogando taco
com os amiguinhos? Agora, você não é mais aquela criança, mas continua
indefeso. Seus traços? Delicados. É como se a infância não tivesse roubado sua
pele nem seus sonhos... Agora você é tudo o que eu tenho.
Tira a mordaça de sua boca. Parece beijar o rapaz e imediatamente black-out.
O prisioneiro começa a falar em black-out, enquanto isso vai se desamarrando. Assim
que se desamarra por inteiro a luz volta à penumbra.
O prisioneiro: E você não havia me dito que me queria. Então você faria tudo
para poder me ter? Eu não precisei lhe querer. Eu lhe tenho e lhe pergunto com
uma febre ambiciosa dos que vivem na carne: Posso? Eu posso ter você? Me dá a
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permissão para isso? Ter você nu assim como me tens? Mas tu não sabias que o
desejo viria comigo e, portanto, até a hora em que me colocou aqui, você apenas
achava que tinha conseguido o que tanto queria. Mas não pensou que o que sou e
o que você tem consigo ultrapassaria os limites do meu corpo, do meu cheiro, do
meu hálito. Até agora achava que me tinha, mas a certeza do que eu era, do que
eu sou, você não podia imaginar. Talvez o homem seja infeliz por ser incapaz de
imaginar certezas. (pausa) Você me compreende? Por favor, não te cale! Você me
compreende? Me diz, eu não sou tão diferente de você assim, não é? Me dá essa
certeza que meu alívio seria em dobro e suplantaria minha dor física e por vários
dias eu te agüentaria, porque já não seria uma questão de te agüentar, mas de te
amare como amo a mim mesmo... Responde: Somos tão diferentes assim?
As luzes se acendem.
O senhor: Vou lhe trazer algo para comer.
O senhor sai.
O prisioneiro: Pouco tempo sem você é pouco tempo sem mim. Você não me
responde e eu me pergunto se te amaria como amo agora se você não tivesse me
prendido. Não, seríamos tão distintos nessa vida cotidiana que estaríamos
incapazes de nos compreender e nossas dores e nossas pequenas semelhanças
seriam tratadas com a futilidade própria dos que sempre sorriem. Antes de me
aprisionar talvez nem chegássemos à amizade e se caso ocorresse seria pura
imprecaução, um jogo de interesses bem dissimulado com um aperto de mão e
uma boca-cordialidade. Mas agora é agora, já não é passado, tão pouco o futuro
de um passado, agora somos duas almas que se encaram mutuamente,
distanciadas pelas minhas palavras e pelo teu silêncio, e sabendo, ambos nós
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dois, que um carinho talvez fosse o sinal de que nos rendemos aos céus e de que,
enfim, um carinho era a simples resposta para nossos tormentos e que, enfim,
nunca nos atormentamos e mais uma vez, enfim, não nos atormentaremos mais...
nunca mais... porque agora estou tão próximo de você que me confundo contigo e
minhas palavras saem tanto da sua boca como o seu silêncio é o meu próprio, te
emudecendo. E mesmo assim eu vou lhe dizer: Não diga nada. E mesmo assim
eu vou lhe pedir que agora me toque, porque eu quero te tocar e assim você
também quer, pois nesse momento somos iguais. (black-out) E eu que tive ciúmes
das fotografias.
O prisioneiro começa a tossir. Está doente.
Luz. Penumbra. Passos. O senhor com uma câmera na mão. Enquanto conversam ele tira
fotos do prisioneiro.
O senhor: Você está mal.
O prisioneiro: Menos mal que aprisionado.
O senhor: Ultimamente não tem feito sol.
O prisioneiro: O sol também me abandona?
O senhor: Você está mais bonito.
O prisioneiro: Estou mais doente.
O senhor: Não. Não está.
O prisioneiro: Estou com febre.
O senhor: Seu rosto. Tudo está mais...
O prisioneiro: Magro. Você não se cansa? Pelo menos deixa eu ver como já
fui. Talvez eu me lembre de mim.
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O senhor: As fotos não estão prontas.
O prisioneiro: Mentira.
O senhor: Estão desconfiados que seja alguém da vizinhança.
O prisioneiro: Até me esqueci que já fui livre.
O senhor: Seus pais estão cada vez piores.
O prisioneiro: Não tenho mais pais (paz).
O senhor: Eles ainda se lembram de você.
O prisioneiro: Eles também têm fotografias.
O senhor: Eu vou dependurá-las na sala.
O prisioneiro: E se alguém ver? (pausa) Eu já não me lembro dos meus pais.
O senhor: Eles vão me pegar.
O prisioneiro: Eu estou ficando pior.
O senhor: Não.
O prisioneiro: Você percebe minhas olheiras.
O senhor: Não tem, não tem nenhuma.
O prisioneiro: Você pode me ouvir? Você pode?
O senhor: E você vai falar de novo.
O prisioneiro: Que te amo.
O senhor: Não vai adiantar nada.
O prisioneiro: Já faz quanto tempo?
O senhor: Que o sol não aparece?
O prisioneiro: Que eu! Por favor, me diz isso?
O senhor: Quase dois meses.
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O prisioneiro: Fica comigo até eu morrer.
O senhor: Você. Eu não vou deixar, você não vai me abandonar.
O prisioneiro: É o que você quer? Se não, não me deixaria morrer.
O senhor: Eu tenho as fotos.
O prisioneiro: Estou cansado. Parece uma eternidade.
O senhor: Eu disse que ela existia.
O prisioneiro: Mas não disse que era assim tão má.
Silêncio.
O prisioneiro: A última vez que você me tocou.
O senhor: Foi quando eu te bati.
O prisioneiro: E quando eu te pedi carinho.
O senhor: Eu não dei.
O prisioneiro: Mesmo me amando.
O senhor: Nunca disse isso.
O prisioneiro: Mesmo eu te amando.
O senhor: Você escolheu.
O prisioneiro: Não! Você me aprisionou!
O senhor: E você? Por acaso eu não estou preso à sua beleza? À sua
imagem?
O prisioneiro: Só um abraço.
O senhor: Só um pedaço de ti.
O prisioneiro: Então seu hálito.
O senhor: Eu tenho as fotos.
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O prisioneiro: Então sua raiva.
O senhor: Eu tenho suas roupas.
O prisioneiro: Já não serviria em mim.
O senhor: E se eu te amasse?
O prisioneiro: Me soltaria?
O senhor: Não!
O prisioneiro: De dentro de você.
O senhor: Não!!
O prisioneiro: Eu sairia da sua cabeça.
O senhor: Eu não.
O prisioneiro: E prometeria nunca mais voltar.
O senhor: Você não me entende.
O prisioneiro: Eu sei. Até que eu apodreça para já não restar nada mais de
mim. Só assim teria paz, não é?
O senhor: Até que eu apodreça na sua beleza.
O prisioneiro: Na sua obsessão.
O senhor: Na minha.
O prisioneiro: Eu já não sou tudo o que você tem.
O senhor: Você é muito mais, tenho as fotografias... Agora eu só quero que
morra!
O prisioneiro: E o senhor, não vai morrer?
Silêncio.
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O prisioneiro: Você deveria morrer antes que eu. Esta seria a sua sorte. Mas
caso eu morra primeiro, como parece... (se encolhe) Eu não quero morrer tão cedo.
Mas já vivi uma eternidade. O que sou quando só tenho você? Quem eu amo
quando só tenho você? É isso, você me força a te amar... Você não pensou nisso
antes?! Às vezes de tanto silêncio eu até me esqueço das palavras.
O senhor: Se você morrer primeiro, eu terei as fotos.
O prisioneiro: Mas não me acompanhará. Não pensa que com o tempo eu
fique mais bonito?
O senhor: Teu auge é agora!
O prisioneiro: Minha beleza ainda pulsa, exala qualquer coisa vida. Ela quer
ser mais.
O senhor: Não tente me enganar.
O prisioneiro: Te forçar a crer que eu posso ficar mais.
O senhor: Mas não vai ficar. Vai ficar que nem eu, assim, velho...
O prisioneiro: Mas quanto tempo? Quanto tempo eu vou durar assim, belo?!
Até que eu fique como o senhor?
O senhor: Alguns anos.
O prisioneiro: Você pode me ter mais, por muitos anos. Não pensa nisso?
O senhor: Não seja tolo se pensa que acredito no que suas palavras tentam
me dizer. Mais alguns anos... bobagens! Achas que eu teria como te deixar preso
aqui por MAIS ALGUNS ANOS!!!??? E se eu te soltasse, não demoraria minutos
para eu nunca mais te ver.
O prisioneiro: Você tem as fotos.
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O senhor: (seco, rápido, se denuncia) Mas não tenho você. (silêncio) Eu não
queria dizer...
O prisioneiro: O senhor está mais frágil do que eu.
O senhor: Me desculpe, eu, não é você, eu tenho, eu tenho as fotos, eu...
O prisioneiro: Está mais doente.
O senhor: Eu não ia dizer isso.
O prisioneiro: Está mais, bem mais fraco... Sempre foi.
O senhor: Mas não era você. Eu tenho as fotos.
O prisioneiro: Mais doente, mais fraco, mais feio. Mais velho.
O senhor: Eu não quero te ouvir. Cale a boca. Deixa-me te ver, só isso.
O prisioneiro: Chego a sentir nojo.
O senhor tira o cinto das calças e bate no prisioneiro com raiva.
O senhor: (pára de bater) Então não me amas! Eu sabia! Era uma farsa!!!
O prisioneiro: Você chegou tão perto de mim! Eu me encontrei aqui, sem mim.
É claro, que só poderia te amar, mas quando sinto raiva de mim e ódio e nojo, eu
só posso sentir por você também! Não vê que já estamos iguais? Não em
palavras... Não! É mais, é sei lá, em essência!
O senhor: Essência do nada!
O prisioneiro: (abstraído) Essência é amar?!
O senhor: Cala a boca. Mais uma vez cala essa boca! Você também me enoja.
Por que tenta tirar de mim frases que não são minhas?
O prisioneiro: São minhas!
O senhor: Por que tenta ver que eu te amo?
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O prisioneiro: E unicamente me amas!
O senhor: Não era pra ser assim.
O prisioneiro: Por quê? É cruel demais? Ou por que tu és fraco o suficiente
para não agüentar nem a tua derrota nem a derrota do caos? O nada é o caos.
O senhor: A essência é o caos.
O prisioneiro: O caos é a essência. E a beleza não existe.
O senhor: Você é estranho. Nunca pensei que fosse.
O prisioneiro: Já não tenho como ser. Eu estou estranho. O verbo do homem é
estar.
O senhor: Não o meu verbo!
O prisioneiro: Você está me amando.
O senhor: Eu te odeio.
O prisioneiro: E agora odiando!
O senhor: Você é louco!
O prisioneiro: Eu, nunca mais (rasteja até o canto escuro onde escondeu o copo).
O senhor: Você me deixa confuso.
O prisioneiro: (está no canto escuro) O amor lá fora é confuso?
O senhor: Talvez eu te mate.
O prisioneiro: (ainda no escuro) Não vai adiantar. Já pensou: um túmulo e eu?
Não há muita diferença de agora. Há?!
O senhor: Eu não precisaria te ouvir.
O prisioneiro: Nem me ver.
O prisioneiro sai do canto escuro com o rosto cortado e ensangüentado.
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O senhor: (grita o mais alto, longo grito, estúpido. desesperado) NÃO!!!
O prisioneiro: Eu só tenho você pra me ter.
O senhor se contorce no chão. Sua alma dói seu corpo. Sua mente pesa o corpo. É uma
parada cardíaca, uma parada respiratória do centro neurológico. A dor. O prisioneiro
aproveita para amarrar o senhor, e amordaçá-lo. Black-out.
O prisioneiro: Agora a dor não te fala nada, que não é dor o nada nem vazio o
teu silêncio. Agora emudecido e eu estarei aqui e acompanharei teu sono. Trarei
pão e água. Darei remédio pra sua dor sabendo que seu alívio é minha beleza, e
não só a beleza, visto que já nem percebia o quão podre eu padecia. Eu acordarei
de manhã pra lhe dizer que o sol está belo. Acordarei pra dizer que as pessoas lá
fora perguntam por você. Se me acharem aqui me encontrarão em ti, verão que eu
envelheci, que eu já não me era, mas era no seu corpo como não pude ser no
meu. Que agora nem futuro pra tirar de mim esse lugar. E o tempo eterno se
repete na mesma batida que o dia e a noite quando eu dormia neste chão. E
você? Você dormirá por mim. Você me será, enfim, e acreditará ser tão belo
quanto eu sou. Ou fui. Já não me importa nem nunca me importou mais do que
importou a você. É verdade que se não fosse minha beleza eu não descobriria que
te amava. Agora me possuo do seu senso monstruoso, sádico talvez, e te prendo
em mim como já estava preso! As coisas se invertem, você está preso, eu
também. As coisas são recíprocas. Basta que um de nós queira, basta que um
atormente o outro num quarto-alçapão, num sótão-desejo e ratos! Estes que
esmigalham os sentidos pra que se descubra sentimentos e dor por trás dos
sentidos e dor nos pés da recíproca. Enfim, não há mais julgamento que culpe ou
redima qualquer um de nós. E mesmo que evite me amar, mesmo até que não me
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