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O DIA DA CAÇA E
O DIA DO
CAÇADOR Peça teatral de autoria de Dejair Cardoso da Silva
Vencedora, em 3º lugar, do
1º Concurso Nacional de Dramaturgia - Prêmio
Carlos Carvalho/1988
PERSONAGENS
SETÚBAL
VIVALDO
ELISEU
ONÉSIO
VAGALUME
BENEDITO
AMANTE
RÚBIA STEFÂNIA
ALICE
PRIMEIRO ATO
Cena 1
VIVALDO e SETÚBAL estão frente a frente, no
imaginário escritório do último. VIVALDO é jovem,
bonito. SETÚBAL, beirando sessenta anos, usa paletó,
e está sempre fumando charuto. Ele passa para
VIVALDO um pedaço de papel.
VIVALDO (Lê) - Benedito Vaz de Oliveira, Estrada das
Pedras, casa sete, Vila Nova. (Encara SETÚBAL.) Pra
quando?
SETÚBAL - Amanhã.
VIVALDO - Deixa comigo. (SETÚBAL enfia a mão no
bolso, pegando um maço de dinheiros.) Quando é que
eu vou ter aumento, Setúbal?
SETÚBAL - Na próxima tarefa.
VIVALDO (Guarda o pacote de dinheiro, sem conferir)
- Quanto é que você vai aumentar?
SETÚBAL - Talvez eu dobre.
VIVALDO - Nada mais justo. Faz tempo que você vem me
pagando a mesma quantia pelas tarefas. Até amanhã.
SETÚBAL - Até amanhã. (Blecaute.).
Cena 2
VIVALDO está diante de uma casa imaginária (Ou
desenhada no telão de fundo.). Noite escura. Ruído
de vento.
VIVALDO (Referindo-se ao número da casa) - Sete.
(Bate palmas. Cão late, ao longe.) Ó de casa! (Pausa.
VIVALDO olha para os lados, ajeita o chapéu no
rosto, de modo a cobri-lo um pouco. Se posta diante
da casa com a firme intenção de esperar alguém, o
tempo que for necessário. Tempo. Blecaute.).
Cena 3
VIVALDO em pé, diante da casa, em guarda,
vigilante. Fuma um cigarro. Tempo. Ouve-se o
assovio de alguém que se aproxima. Sobressalta-se.
VIVALDO (Música de suspense. Tempo. Surge um
homem assoviando uma canção) - É Benedito. (Ele
aproxima-se de VIVALDO.).
BENEDITO (Cordial) - Boa noite.
VIVALDO - Boa noite.
BENEDITO - O amigo tá querendo falar comigo?
VIVALDO - Benedito Vaz de Oliveira? (Enfia a mão no
bolso.).
BENEDITO - Seu criado. (VIVALDO saca de um
revólver, apontando-o para BENEDITO. Espanto,
horror.) Por que, amigo? (VIVALDO atira em BENEDITO
na altura do coração. BENEDITO solta um grito,
caindo de costas. VIVALDO joga o resto do cigarro no
chão. BENEDITO agonizando.) Por quê? Por quê?
(Morre. VIVALDO, frio, amassa a guimba do cigarro
com o bico do sapato. Blecaute.).
Cena 4
Dia seguinte, pela manhã. SETÚBAL, com o seu
charutão, está junto a uma persiana, como que
olhando para fora. Fuma concentrado, pensativo.
Tempo. VIVALDO entra em cena, dirigindo-se a
SETÚBAL.
VIVALDO - Com licença. Bom dia, Setúbal.
SETÚBAL (Sem virar-se para o outro) - Bom dia.
VIVALDO - Missão cumprida, Setúbal.
SETÚBAL (Com aspecto sinistro, vira-se para
VIVALDO) - Eu já fui informado que a missão foi
cumprida. (Tira do bolso um pacote de dinheiro,
estendendo-o para VIVALDO.).
VIVALDO - Pra quando é a próxima?
SETÚBAL - Nem eu ainda sei. Mas eu te aviso.
VIVALDO - Fico te aguardando. Até a próxima.
SETÚBAL - Até a próxima. (VIVALDO vai-se afastando.
SETÚBAL o chama.) Vivaldo!
VIVALDO (Volta-se para SETÚBAL) - Fala.
SETÚBAL - Eu gosto de você. (VIVALDO sorri surpreso
com a confissão.) Como de um filho.
VIVALDO (Comovido) - Obrigado, pai Sigismundo
Setúbal. Até outro dia.
SETÚBAL - Até outro dia. (VIVALDO sai. SETÚBAL volta
para perto da persiana, olhando para “fora”. Luz
fecha sobre SETÚBAL, que fuma o charuto.
Blecaute.).
Cena 5
VIVALDO chega à sala de sua casa, carregando
alguns pacotes. Grita esfuziantemente para o interior
da casa.
VIVALDO - Ei, gatona! (ALICE surge, correndo para
VIVALDO, que deixa os pacotes caírem, abrindo os
braços para a amante.).
ALICE - Meu gatão, que saudade! (Eles se abraçam e se
beijam com voracidade. ALICE aconchegando-se ao
amante, após o beijo.) Que saudade, que saudade! Não
faz mais isso comigo, Viva. Foram três dias: assim eu não
agüento meu amor!
VIVALDO - Eu precisei demorar um pouquinho mais do
que eu tinha programado. Desculpa benzão! (Apontando
os pacotes no chão.) Presentinhos pra você!
ALICE (Encantada) - Quantos presentes!
VIVALDO (Sensual, abraçando-a repentinamente) -
Depois você abre. Primeiro vamos matar a saudade do
nosso ninho de amor! (VIVALDO pega ALICE nos
braços. Surpresa, ALICE solta um gritinho, depois ri
deliciadamente. VIVALDO saindo apressado com
ALICE nos braços.) Eu não agüento mais esperar nem um
segundo! (Saem VIVALDO e ALICE. Blecaute.).
Cena 6
Sobre uma colcha colorida esticada no palco, a cama;
VIVALDO e ALICE, nus, se amando. Ele por cima.
Tempo. Atingem o orgasmo. Ficam abraçados, na
aprazível sensação de bem-estar advinda após o
embate sexual. Tempo longo.
VIVALDO - Alice.
ALICE - Hmm?
VIVALDO - Eu sou o homem mais feliz do mundo: sou
amado por uma mulherzinha maravilhosa que se chama
Alice Nogueira.
ALICE (Sorrindo feliz) - Eu sou a mulher mais feliz do
mundo: sou amada por um homão maravilhoso que se
chama Vivaldo Nascimento. (Eles riem. Depois se beijam
rapidamente - uma “bicota”. VIVALDO sai de cima de
ALICE, deitando-se ao lado dela.).
VIVALDO - Ontem, em Campos, eu vi seu pai.
ALICE - Ah, é? (VIVALDO faz que sim com a cabeça.) E
ele também te viu?
VIVALDO - Viu. A gente quase se chocou. Eu ia entrando
num bar, e ele ia saindo. Acho que ele quase quebrou o
pescoço quando virou a cara pra não me olhar.
ALICE (Senta-se, sombria) - Eu tenho certeza que foi
mamãe que ligou hoje de manhã pra aqui. Eu atendi, e a
pessoa do outro lado da linha não deu um pio. Depois eu
liguei pra lá, e ela que atendeu. Ficou calada quando eu
disse que era eu, depois ela desligou.
VIVALDO - Não liga amorzinho. Um dia todos eles vão
entender que eu só quero te amar, que eu só quero fazer o
bem pra você. (Pausa.).
ALICE - Por que você demorou tanto, meu amor?
VIVALDO (Senta-se) - Não foi tanto assim, benzinho: só
um dia a mais.
ALICE - Pra mim foi uma eternidade! Mas você ainda não
contou o que aconteceu.
VIVALDO (Ergue-se, aproximando-se de uma cadeira
mais ou menos próxima da “cama”) - É que eu tive que
ir a Vila Nova. (Contorna a cadeira.) Seu Setúbal
comprou uma fazenda lá. Depois de consertar as máquinas
do engenho de Campos, eu tive que correr pra Vila Nova
pra consertar as máquinas do engenho de lá. (Senta-se na
cadeira.).
ALICE (Ergue-se, indo para VIVALDO) - Eu fico tão
preocupada com essas suas viagens estranhas.
VIVALDO (Que não gostou da observação dela) - Não
tem nada de estranho nas minhas viagens, e não há
nenhum motivo pra você se preocupar, Alice.
ALICE (Desprotegida) - Eu tenho tanto medo, Viva!
Agora eu só tenho você no mundo.
VIVALDO (Puxa-a para si, fazendo-a sentar-se no seu
colo) - Confia em mim, meu amor! (Excitado.) Confia no
seu homem! (O casal inicia o jogo amoroso, com
carícias, gemidos. VIVALDO penetra ALICE. Luz vai-
se extinguindo sobre o casal fazendo amor na
cadeira. Blecaute.).
Cena 7
Bar sugerido por uma mesa acompanhada por três
cadeiras. ELISEU, vestindo uniforme de trabalho, está
sentado nela, bebendo refrigerante. Amigo de
VIVALDO regula a idade deste. Tempo. Surge
VIVALDO, aproximando-se da mesa ocupada por
ELISEU.
VIVALDO (Fazendo grande estardalhaço) - Grande
Eliseu Miranda! (Feliz por avistar o amigo, ELISEU
levanta-se para recebê-lo, também fazendo
estardalhaço.).
ELISEU - Grande Vivaldo Nascimento! (Eles se apertam
as mãos, depois se abraçam calorosamente.).
VIVALDO (Abraçado ao outro) - Eu sou o homem mais
feliz do mundo, Eliseu! Tenho uma mulher que me adora, e
um grande amigo que é mais do que um amigo: é um
irmão!
ELISEU (Comovido) - Obrigado, Viva. Você sabe que pra
mim você também é um irmão.
VIVALDO - Devemos agradecer a Deus por essa amizade
sagrada. Eu agradeço sempre. (Eles sentam-se.).
ELISEU - Eu também. (Muda de tom.) Vai de cerveja?
VIVALDO - Vou.
ELISEU (Grita para uma determinada direção) -
Vagalume, solta uma lourinha!
VIVALDO - Falar em Deus, que camarada legal comigo,
manão! Me dá saúde, duas pessoas superimportantes na
minha vida, e alguns trocadinhos no bolso. Eu posso
reclamar desse sujeito super gente-fina?
ELISEU (Rindo) - De jeito nenhum! (Noutro tom.)
Mudando de assunto: você chegou quando?
VIVALDO - Há umas duas horas atrás.
ELISEU - O que aconteceu? Você disse que voltava ontem.
(Entra VAGALUME, jovem empregado do bar. Leva a
garrafa de cerveja e copo para a mesa onde estão
sentados VIVALDO e ELISEU. Silenciosamente, ele
abre a cerveja, depois vai embora, enquanto os dois
amigos prosseguem conversando.).
VIVALDO - Apareceram muitas coisas pra eu consertar pro
ricaço lá de Campos.
ELISEU - Rapaz, você perdeu uma grande caçada!
VIVALDO - É mesmo?
ELISEU - Se perdeu!... Eu matei dois gambás e um tatu
bola; o Onésio matou um baita veado! Só faltou você, Viva!
VIVALDO - A minha presença tá garantida pra caçada do
próximo domingo.
ELISEU – Rapaz: aconteceu uma coisa tão chata com o
pobre do Onésio, quando voltamos da caçada.
VIVALDO - O quê?
ELISEU - Ele entrou em casa todo feliz com o veadão nos
braços, aí deu de cara com a mulher trepando com o filho
do vizinho.
VIVALDO (Perplexo) - Outra vez?!
ELISEU - Pois é!
VIVALDO - É a terceira vez que ele leva chifres né?
ELISEU - A quarta. Coitado: ele não tem mesmo sorte com
mulher. Também, só arranja vagabunda. Ele tava crente
que a Jojó tinha virado santa.
VIVALDO - E aí? Ele matou os dois sem-vergonhas?
ELISEU - Não, jogou o veadão em cima dos dois sem-
vergonhas. Mas não deu pra matar.
VIVALDO - E onde tava a arma dele?
ELISEU - Com ele, mas sem bala. Ele tinha descarregado
todos os tiros no veadão.
VIVALDO - Era preferível ele não ter matado o veado.
ELISEU - Graças a Deus que ele matou! Se não tivesse
matado, a essa hora ele estaria vendo o sol nascer
quadrado numa cadeia, por causa de uma vagabunda. Por
falar em vagabunda, rapaz, anteontem, no trabalho, eu fui
tentado por uma dessas mais que a serpente que tentou
Eva no Paraíso. (Blecaute.).
Cena 8
ELISEU, vigia de uma fábrica, está com o radinho de
pilha colado ao ouvido, sentado numa cadeira, ao
fundo do palco. Rádio transmite música. Tempo.
Entra RÚBIA, aproximando-se de ELISEU. É uma
jovem mulher bonita, visivelmente maquiada, usando
sapatos de salto alto, vestido justo, curto e decotado.
RÚBIA (Coquete) - Olá!
ELISEU (Formal) - Boa noite. (Desliga o rádio.).
RÚBIA (Apontando o prédio invisível, ao fundo) - É
fábrica de quê?
ELISEU - De pedra pra isqueiro.
RÚBIA - Eu tou perguntando, porque eu não conheço nada
na cidade. Sou nova aqui. (Estende-lhe a mão.) Rúbia
Stefânia.
ELISEU (Aperta-lhe a mão, apresentando-se) - Eliseu.
RÚBIA - Muito prazer, Eliseu.
ELISEU - Rúbia Stefânia. Que nome, hein?
RÚBIA (Envaidecida) - Gostou?
ELISEU - É diferente.
RÚBIA - Eu é que tive que botar a cabeça pra funcionar,
pra criar esse nome diferente. Os burros dos meus pais não
tiveram um pingo de imaginação. Tascaram no meu
registro dois palavrões: Maria Jupira. Eu tenho cara de
Maria Jupira? (ELISEU sorri discreto.) Claro que não
tenho! Eu me considero uma artista com um nome de
encher a boca.
ELISEU - Artista de quê?
RÚBIA - Artista da vida!
ELISEU (Olha-a de alto a baixo, maliciosamente) -
Entendi...
RÚBIA (Ofendida) - Entendeu o quê?...
ELISEU - Que você parece mesmo uma artista de
televisão, de cinema...
RÚBIA (Envaidecida) - Obrigada. (Pausa.) Você é daqui
mesmo de Trajano?
ELISEU - Nasci e me criei aqui.
RÚBIA - Eu nasci e me criei em Rio Bonito. Conhece?
ELISEU - Não.
RÚBIA - Saí de lá com quinze anos e não voltei mais.
Sabe: eu não sou de ficar muito tempo num só lugar. Me
dá uma comichão na alma, aí eu tenho que pegar a
estrada. Imagine você que eu já rodei quase que esse
Brasil inteiro!
ELISEU (Sem muito interesse) - É mesmo?
RÚBIA - Juro! Eu sou assim: chego num lugar estranho, e
faço logo amizade. Não tinha dois meses que eu tava
morando em Petrópolis, aí cismei de conhecer Trajano de
Moraes. Resultado: no ônibus eu fiz amizade com uma
moça que me convidou pra morar com ela. Conhece a
Arilza que mora na Rua da Feira?
ELISEU - Conheço, e muito!
RÚBIA - Tou morando com ela. (Muda de tom.) E você?
Mora também aqui pelo centro da cidade?
ELISEU (Lacônico) - Não. (Pausa.).
RÚBIA - Noite bonita, né?
ELISEU - É.
RÚBIA - Faz muito tempo que você trabalha como vigia
dessa fábrica?
ELISEU - Há doze anos, quatro meses e seis dias.
RÚBIA - Bastante tempo! Eles pagam bem aí?
ELISEU - Dá pra viver.
RÚBIA (Como que o completando) - E manter mulher,
filhos...
ELISEU - Não tenho mulher nem filhos.
RÚBIA - Ah, solteirinho?...
ELISEU - Graças a Deus.
RÚBIA - Credo! Você fala de um jeito que dá a impressão
que casamento pra você é sinal de desgraça.
ELISEU - E é mesmo. Não quero padecer o que o meu pai
e minha mãe padeceram um na mão do outro.
RÚBIA - Com eles não deu certo, mas pode dar certo pra
você.
ELISEU (Um pouco rude) - Não adianta gastar palavra,
moça, que você não vai mudar a minha opinião.
RÚBIA - Está bem. Não tá mais aqui quem falou. (Pausa.)
Você larga a que horas, Eliseu?
ELISEU - As seis da matina.
RÚBIA - Você gosta de trabalhar à noite?
ELISEU - Já tou acostumado. (Pausa.).
RÚBIA - Bem, vou indo. Vou dar uma voltinha por aí, pra
conhecer um pouco mais a cidade. Aparece na casa da
Arilza pra tomar um café comigo.
ELISEU - Vou aparecer.
RÚBIA (Afastando-se) - Tchau.
ELISEU - Tchau. (No seu jeito irônico.) Bom passeio...
RÚBIA - Obrigada. (Sai.).
ELISEU (Consigo mesmo, olhando na direção por
onde saiu RÚBIA) - Do meu bolso, você não tira um
centavo, grande artista! (Pelo lado oposto surge
ONÉSIO, também trajando uniforme de trabalho.).
ONÉSIO (Brincalhão) - Gostei de ver, simpático! A ruiva
passou por Maneco e por mim, e não deu a menor bola,
mas montou acampamento no seu posto. Me conta o
segredo do seu sucesso, ô destruidor de corações!
ELISEU - Antes eu não tivesse feito sucesso nenhum com
ela. Você precisava ver Onésio: ela fez mais de mil
perguntas sobre a minha vida: onde eu moro, se tenho
mulher e filhos, quanto eu ganho... Porra! Pior do que
investigador de polícia!
ONÉSIO - Mas isso quer dizer que ela tá mesmo
interessada em você, cara.
ELISEU - Só que eu não estou nem um pouquinho
interessado nela.
ONÉSIO - Agora é sério, Eliseu. Já tá passando da hora de
você arranjar uma companheira pra você. Até quando você
vai ficar morando sozinho num quartinho, nos fundos de
uma casa de gente estranha?
ELISEU - Antes só do que mal acompanhado. Você não
reparou no tipo, não? Ela chegou na cidade, e foi logo fazer
dupla com a famosa Arilza da Rua da Feira.
ONÉSIO - Isso é o de menos. A minha Jojó vivia metida
com a Arilza, e hoje é uma santa companheira pra mim.
ELISEU - Você esqueceu o que as suas outras santas
companheiras que viviam metidas com a Arilza da Rua da
Feira fizeram com você?
ONÉSIO (Bravo) - Eu já não disse pra você não tocar
mais nesse assunto comigo, porra?
ELISEU - Desculpa. Eu esqueci.
ONÉSIO - A Jojó é diferente daquelas três piranhudas. É
uma santa criatura! A minha santinha!
ELISEU - Pois eu digo e repito: estou muito satisfeito
sozinho. Não vai ser essa pistoleira que vai me tirar do
quartinho de fundo da casa da viúva Alencar. (Blecaute.).
Cena 9
VIVALDO e ELISEU no bar.
ELISEU -... Aí saí do trabalho, e não sei por que me deu na
veneta de mudar de rumo e peguei a Rua da Feira. Quando
eu tava passando na frente da casa da Arilza, para um
carrão. Adivinha quem saltou dele?
VIVALDO - A artista.
ELISEU - Ela mesma. Ficou toda sem graça quando me
viu.
VIVALDO - Quem era o cara que tava com ela?
ELISEU - Não conheço. Era um velhote.
VIVADO - Eu vou passar na Rua da Feira pra conhecer a
nova moradora da cidade. (Surge RÚBIA, aproximando-
se da mesa onde estão os dois homens. ELISEU logo
a vê. RÚBIA sorri para ele.).
ELISEU (Tom baixo de voz) - Não vai precisar; olha ela
chegando!
VIVALDO (Olha encantado para RÚBIA) - É a Rúbia
Stefânia?!
ELISEU - Cuspida e escarrada!
VIVALDO - Lindona, cara!
ELISEU - A lindona tá me perseguindo.
RÚBIA - Olá! Boa noite!
OS DOIS - Boa noite.
RÚBIA - Tudo bom, Eliseu?
ELISEU - Tudo bem. (Apresenta VIVALDO.) Vivaldo, um
amigo.
RÚBIA (Aperta a mão de VIVALDO) - Muito prazer,
Vivaldo. (Apresentando-se.) Rúbia Stefânia.
VIVALDO - Tudo bem, Rúbia?
RÚBIA (Esfuziante) - Tudo divino, maravilhoso! Posso
sentar um pouquinho com vocês?
VIVALDO - Claro! (Puxa a cadeira para ela sentar-se.).
ELISEU - Coincidência. Eu tava falando de você com o
Viva.
RÚBIA (Bem humorada) - Bem ou mal? (Acende um
cigarro.).
ELISEU - Nem bem, nem mal. Eu tava contando pra ele
como a gente se conheceu.
VIVALDO - Bebe o quê, Rúbia?
RÚBIA - Pode ser cerveja.
VIVALDO (Grita para uma determinada direção) -
Vagalume, mais uma! E copo.
RÚBIA (Para ELISEU) - Você falou em coincidência;
imagina você que, no sábado, eu encontrei na pracinha da
cidade um amigo da minha família. Logo depois que eu
passei pela fábrica; tá lembrado?
ELISEU - Claro!...
RÚBIA - Ele me convidou pra dar um passeio; aí fomos
parar em Teresópolis. Só voltamos de manhã; na hora em
que você ia passando na Rua da Feira... (Breve silêncio
incômodo.).
VIVALDO (Para dar cabo do silêncio) - Tá gostando da
cidade, Rúbia?
RÚBIA - Tou amando! As pessoas daqui são umas fofuras!
(VAGALUME entra, trazendo garrafa de cerveja e
copo. Abre a garrafa na mesa.).
ELISEU (Olhando para o relógio no pulso) - Tá na
minha hora.
RÚBIA - Mas já?! Eu cheguei e você vai embora...
ELISEU - Não é porque você chegou; eu tenho hora certa
pra chegar no trabalho. Faltam só dez pras dez. (Volta-se
para VAGALUME.) Vê quanto é Vagalume.
VIVALDO - Não, eu pago! Deixa por minha conta.
(VAGALUME sai.).
ELISEU - Falou. (Levantando-se.) Deixa eu puxar a
carroça.
VIVALDO - Aparece amanhã lá em casa pro almoço,
Eliseu.
ELISEU - Vou aparecer. Até amanhã.
VIVALDO - Até amanhã.
ELISEU - Até a próxima, senhorita Rúbia Stefânia. (Sorri
para ela.).
RÚBIA (Sorrindo) - Até a próxima, senhor Eliseu Miranda.
(ELISEU sai apressado.) O seu amigo não foi nada com a
minha cara.
VIVALDO - Que é isso! Impressão sua.
RÚBIA - Mas eu acabo conquistando ele. Eu sou dura na
queda. (Blecaute.).
Cena 10
ELISEU está sentado em sua cadeira, de braços
cruzados, cochilando. Cão late ao longe. Tempo.
RÚBIA entra, aproximando-se lentamente dele.
RÚBIA (Bem próxima a ele, sussurrando-lhe no
ouvido) - Sonhando comigo?
ELISEU (Acordando) - Ahn?... (Espantado por vê-la.)
Você?!
RÚBIA - Desculpe eu ter te acordado.
ELISEU (Levanta-se, ainda meio impressionado com a
aparição dela) - Eu tava sonhando com você.
RÚBIA (Arrebatada) - Jura?
ELISEU - Juro! (Descrevendo o sonho.) O dia tava
amanhecendo, e você chegou aqui com um copo de café
pra eu tomar.
RÚBIA - Você não entendeu a moral do sonho? Isso é sinal
que você deve aceitar o meu convite pra tomar um café
comigo.
ELISEU (Sem muita convicção) - Eu não acredito no que
acontece em sonhos. (Boceja.).
RÚBIA - Eu acredito. Sonhar é uma coisa muito séria. Eu
só acredito em Deus porque existe sonho.
ELISEU - O Vivaldo ficou até agora com você lá no bar?
RÚBIA - Não. Ele foi logo embora. Parece que é amarradão
na gata dele.
ELISEU - E é mesmo. (Pausa. RÚBIA boceja.).
RÚBIA - Bem, deixa eu ir pra casa descansar os ossos.
(Afastando-se.) Tchau, Eliseu.
ELISEU (Subitamente agitado, tomado por visível
excitação) - Rúbia!
RÚBIA (Volta-se para ele, estacando) - Chamou?
ELISEU (Tremendamente encabulado) - Você... Você...
(Cala-se.).
RÚBIA - Eu o quê?
ELISEU (Rápido, despejando as palavras) - Eu posso
passar amanhã na casa da Arilza, pra tomar o café da
manhã com você?...
RÚBIA (Num largo sorriso, sentindo-se triunfante) -
Mas é claro que sim, meu amor! Eu vou te servir um café
bem reforçado!...
ELISEU (Cabisbaixo) - Eu saio do serviço e vou direto pra
lá.
RÚBIA - Eu tinha certeza que você ia acabar aceitando o
meu convite, Eliseu. Aliás, desde a primeira vez que eu te
vi. Você não sabe, eu te vi antes de você me ter visto.
ELISEU (Que não entendeu) - Como assim?
RÚBIA - No primeiro dia em que eu cheguei à cidade, o
ônibus deu uma parada aqui na frente desse portão, porque
uma jamanta tava manobrando aí na rua. De repente, eu
olhei pela janela e te vi. Você tava sentado aí. (Aponta a
cadeira.) Não sei por que eu não despregava os olhos de
você. E então falei comigo em pensamento: “Esse simpático
vigia noturno ainda vai tomar um café comigo”.
ELISEU - Aí você saiu à luta pra me convencer a tomar o
café com você?
RÚBIA - É. Quando eu quero uma coisa, eu luto com unhas
e dentes pra conseguir.
ELISEU - Falando desse jeito, eu fico até com medo de
tomar o seu café. (RÚBIA ri divertida, não se abalando
nem um pouco com as palavras dele.).
RÚBIA (Rindo) - Fica tranqüilo, querido! Eu não vou coar
o seu café na minha calcinha.
ELISEU (Também rindo) - Espero que não.
RÚBIA - Agora deixa eu ir preparar o pó e o coador pro
nosso café especialíssimo da manhã... (Dá-lhe um beijo
no rosto.) Até amanhã às...
ELISEU -... Seis e meia.
RÚBIA - Seja pontual, meu bem!
ELISEU (Sorrindo) - Eu vou ser. (RÚBIA vai embora
cantando alto, vitoriosa.).
RÚBIA - Amanhã de manhã, / Vou servir o café da
manhã... (Sai. Pelo lado oposto, logo entra ONÉSIO,
torturado, sofrendo, com aparência meio descuidada,
o cabelo um pouco arrepiado.).
ONÉSIO - Quando ela te beijou no rosto, eu quase corri
aqui pra cair de cacete naquela vaca!
ELISEU (Radiante, esfregando as mãos) - Amanhã eu
vou sair daqui direto pra casa dela!
ONÉSIO - Você vai ter coragem de se meter com uma
puta, Eliseu, depois do que você viu o que aconteceu
comigo?
ELISEU - Eu quero só me divertir um pouquinho, Onésio.
ONÉSIO - Nem pra se divertir você devia se meter com
essas escrotas. Com nenhuma delas. Mulher nenhuma
presta cara! Eu te juro uma coisa: de agora em diante, ou
eu viro veado, ou compro uma boneca de plástico do meu
tamanho pra dormir comigo. (Blecaute.).
Cena 11
Num cemitério, fim de tarde. VIVALDO e ALICE
entram de braços dados, como se caminhassem por
entre túmulos. VIVALDO traz flores. O casal para
diante de um túmulo imaginário. Ambos benzem-se.
Depois VIVALDO inclina-se, pondo as flores no chão.
Ele está comovido. Tempo.
VIVALDO (Fixo no túmulo invisível) - Mês que vem vai
fazer seis anos que ele... (Sem coragem de dizer a
palavra morreu, faz um gesto vago correspondente.),
mas pra mim é como se tivesse acontecido ontem.
ALICE - Eu gostaria tanto de ter conhecido o seu padrinho!
Aliás, todas as outras pessoas que fizeram o bem pra você.
VIVALDO - Quem dera que eu tivesse outras pessoas que
fizessem o bem pra mim. Só o padrinho fez Alice. No dia
em que ele chegou no orfanato pra me buscar, eu vi logo
que tava salvo do inferno. E, quando ele mo... quando ele
foi embora, eu me senti de novo jogado no inferno.
ALICE (Abraçando-o carinhosamente, com ar
brincalhão) - Mas aí eu cheguei e te salvei do inferno.
VIVALDO - Foi isso mesmo o que aconteceu. Se não
tivessem existido o padrinho e você na minha vida, eu não
sei o que ia ser de mim.
ALICE (Angustiada, afastando-se dele) - Até quando
vão ser apenas nós dois? Oh, meu Deus! Eu queria tanto te
dar um filho!
VIVALDO (Envolvendo-a nos braços, caloroso) -
Calma, meu bem! Não fica assim! Ainda não aconteceu,
mas se Deus quiser vai acontecer. Tá tudo em ordem com
você. É só a gente ter um pouquinho de paciência.
ALICE (Transtornada) - Vamos indo?
VIVALDO - Vamos. (Eles persignam-se, depois se
afastam, de mãos dadas.) Eu vou passar a visitar o
túmulo do padrinho mais vezes, ele merece por tudo o que
fez por mim. (Blecaute.).
Cena 12
ONÉSIO está sentado numa cadeira, ouvindo música
num radinho de pilha. Tempo. Entra ELISEU,
aproximando-se de ONÉSIO. Está sem o uniforme de
trabalho.
ELISEU (Alvoroçado) - Oi, Onésio.
ONÉSIO - O que aconteceu, cara? (Desliga o rádio.).
ELISEU - Eu vim só avisar que eu não vou trabalhar hoje.
ONÉSIO - Você tá doente?
ELISEU (Agitado) - Não. Eu vou viajar. Vou a Rio Bonito
ver o que tá acontecendo com Rúbia.
ONÉSIO (Ar de censura) - Não tá acontecendo nada. Ela
deve ter resolvido não voltar mais pra Trajano. Você deve
levantar as mãos pro céu e agradecer a Deus por isso.
ELISEU (Áspero) - Eu é que sei da minha vida, Onésio.
ONÉSIO - Mas como é que você vai pra Rio Bonito,
homem, se não tem ônibus pra lá, a essa hora? (Entra
RÚBIA, sem que ELISEU a veja, posto que ele
encontra-se de costas para o local através do qual ela
surge. ONÉSIO imediatamente a vê, mas RÚBIA faz
sinal para ele não fazer alarde a respeito de sua
presença, e vai aproximando-se pé ante pé, com jeito
de sapeca. ONÉSIO a encara com desprezo.).
ELISEU (Aflito) - Eu tenho que dar um jeito. Acho que
vou alugar um carro.
ONÉSIO (Olhando para RÚBIA com desprezo) - Você
não vai precisar fazer isso. (RÚBIA, por trás de ELISEU,
cobre-lhe os olhos com as mãos. ELISEU de pronto
faz o reconhecimento.).
ELISEU (Emocionadíssimo) - Rúbia!!! (Vira-se para
RÚBIA, abraçando-a arrebatadamente, em verdadeiro
êxtase.) Oh, Rúbia!
RÚBIA - Tudo bem, amor? (ELISEU a beija
apaixonadamente na boca.).
ELISEU - O que aconteceu, Rúbia? Você disse que ia ficar
três dias, e acabou ficando duas semanas.
RÚBIA (Calmamente) - Eu já te explico o que aconteceu.
(Volta-se para ONÉSIO.) Boa noite, Onésio. Tudo bem?
ONÉSIO (Seco) - Tudo péssimo.
RÚBIA (Para ELISEU) - Doença na família, querido.
Minha afilhada. Teve que ser operada. Te explico em casa.
Vamos? Tou cansada, preciso de um banho.
ELISEU (Para ONÉSIO) - Avisa o Gilmar que eu precisei
faltar hoje. Diz que eu não tou me sentindo bem.
ONÉSIO (Dando uma indireta) - É a primeira vez que eu
vejo você faltando ao trabalho...
RÚBIA (Para ONÉSIO, meio debochadamente,
filosófica) - Tudo nessa vida tem uma primeira vez...
ELISEU (Para ONÉSIO) - Até amanhã.
RÚBIA - Tchau. (ELISEU e RÚBIA afastam-se de
braços dados, conversando.).
ONÉSIO (A si mesmo, vendo o casal afastar-se) - Você
tá desgraçado, Eliseu. Essa pistoleira vai chupar até a
última gota do seu sangue. (Saem ELISEU e RÚBIA.
Blecaute.).
Cena 13
Sobre uma colcha colorida estendida no palco, a
cama. ELISEU e RÚBIA se amando. RÚBIA por cima,
sentada sobre o amante, como que o cavalgando.
Ambos gemem. Tempo. Atingem o orgasmo. RÚBIA
deita-se por cima de ELISEU. Tempo.
ELISEU (Deliciado) - Foi maravilhoso!
RÚBIA - Eu sou maravilhosa, meu bem! (Sai de cima
dele, pegando cigarro na bolsa jogada ao lado da
“cama”.).
ELISEU (Acariciando-a) - Maravilhosísísíssima!
RÚBIA - Você não acha que uma mulher
maravilhosísísíssima merecia coisa melhor que um
quartinho de fundo pra brincar com seu homem? (Deita-se
de costas ao lado dele, fumando.).
ELISEU - Eu vou procurar uma casinha pra nós.
RÚBIA - O mais urgente, meu amor. Eu já não agüento
mais o olhar emputecido da sua senhoria quando eu passo.
ELISEU - Ela tem razão de tá puta. Antes eu nunca havia
trazido mulher aqui no quarto. (Pausa.).
RÚBIA - Meu bem.
ELISEU - Hmm?
RÚBIA - Tou querendo te pedir outra coisa, mas tou
morrendo de vergonha.
ELISEU - Pode pedir florzinha.
RÚBIA (Senta-se) - Sabe o que é? A minha afilhada foi
operada por médico particular. Os pais dela, coitadinhos,
tão sem um puto pra pagar a operação. Você me arranja
essa grana, meu doce?
ELISEU (Já meio sobressaltado) - Quanto que é?
RÚBIA - Trinta mil cruzeiros.
ELISEU (Horrorizado, sentando-se rapidamente) - O
quê!?!
RÚBIA - Trinta mil a operação.
ELISEU - Você tá louca, Rúbia?! Eu não tenho essa grana
toda!
RÚBIA (Firme) - Você tem sim, fofo!
ELISEU (Irritado) - Se eu tou dizendo que não tenho, é
porque não tenho!
RÚBIA - Você quer que eu pegue a carteirinha da sua
caderneta de poupança pra te mostrar que você tem até
mais de trinta mil cruzeiros no banco?
ELISEU (Sem graça) - Ei! Então você vive fuçando nas
minhas coisas, escondido de mim?
RÚBIA (Ergue-se, ofendida) - Eu não fuço porra
nenhuma sua! Encontrei a caderneta de poupança por
acaso. Mas se você não tem confiança em deixar que eu
toque nos seus bagulhos, é melhor eu desaparecer da sua
vida. (Pega a calcinha do chão para vesti-la.).
ELISEU (Arrependido, põe-se de pé, indo para ela) -
Não, meu amor! Desculpa, desculpa! Esquece o que eu
falei.
RÚBIA (Dura) - Você vai me arranjar a grana?
ELISEU - Vou sim.
RÚBIA (Suaviza-se, largando a calcinha e abraçando-
o) - Eu tinha certeza que você não ia negar esse favorzinho
pra esta criatura desesperada de amor por você, meu gato!
(Toma a iniciativa de beijá-lo vorazmente na boca.
Blecaute.).
Cena 14
Telefone toca sobre uma mesinha. ALICE entra para
atender.
ALICE (Ao telefone) - Alô. (Luz sobre a outra
extremidade do palco. SETÚBAL fala através de um
telefone sem fio. Na outra mão o charuto.).
SETÚBAL (Tom autoritário) - Eu quero falar com o
senhor Vivaldo Nascimento. É o senhor Sigismundo Setúbal
quem está falando. (Fuma.).
ALICE - Um momento, senhor Sigismundo. (Cobre a boca
do aparelho, gritando para uma determinada
direção.) Viva! Telefone!
VIVALDO (Entrando) - Quem é?
ALICE - Senhor Sigismundo Setúbal.
VIVALDO (Apressando-se em atender ao telefone) -
Alguma máquina dele deve ter dado defeito... (Ao
telefone.) Alô.
SETÚBAL (Agora caloroso) - Como vai, Vivaldo?
VIVALDO - Bem, e você?
SETÚBAL - Eu vou ótimo, como sempre. Tenho uma nova
missão pra você. Estou te esperando amanhã.
VIVALDO - Combinado. Até amanhã.
SETÚBAL - Até amanhã. (Luz extingue-se sobre
SETÚBAL.).
VIVALDO (Põe o aparelho na mesinha) - Eu vou ter
que ir amanhã pra Campos, meu amor. Deu defeito numa
das máquinas do engenho do grande Setúbal. (Blecaute.).
Cena 15
SETÚBAL, perto da persiana, olhando através dela,
com o inseparável charuto. Tempo. Surge VIVALDO.
VIVALDO (Radiante) - Grande Setúbal! (Aperta-lhe a
mão.) Como vai?
SETÚBAL - Eu vou ótimo, como sempre!
VIVALDO - E então? Qual é a missão que você tem pra
mim?
SETÚBAL (Olhando-o bem nos olhos) - Matar o sujeito
cujo nome está escrito neste papel. (Entrega-lhe um
pedaço de papel.).
VIVALDO (Lê) - Eliseu Miranda, Rua do Santuário...
(Interrompe-se, atônito.) Que brincadeira é essa,
Setúbal?!
SETÚBAL (Firme) - Você é que está dizendo que é
brincadeira.
VIVALDO (Lendo, estarrecido, rapidamente) - Eliseu
Miranda, Rua do Santuário, casa trinta e sete, fundos,
Trajano de Moraes. (Encara SETÚBAL.) É o meu grande
amigo Eliseu!
SETÚBAL (Insensível) - E daí? É amigo seu, e não meu.
VIVALDO (Atordoado) - Matar Eliseu... Mas por quê?
SETÚBAL - Você esqueceu o nosso acordo?
VIVALDO - Mas esse é um caso diferente, Setúbal! É do
meu melhor amigo que você quer que eu tire a vida,
homem! Eu preciso saber o que ele te fez, pra merecer
isso.
SETÚBAL - Você já executou doze pessoas pra mim sem
saber o motivo da execução; não vai ser agora no caso
número treze que eu vou te explicar o motivo.
VIVALDO - Eu já entendi tudo: você tá querendo me
testar, tá querendo uma prova de mim.
SETÚBAL - Que prova?
VIVALDO - Sei lá! Acho que você quer saber se, pra você,
eu sou capaz de matar até o meu melhor amigo.
SETÚBAL - Você acha isso, e eu não tenho poderes pra
fazer você deixar de achar que é isso.
VIVALDO (Implorante) - Pelo amor de Deus, Setúbal,
então diz logo qual é a razão pra você querer que eu mate
o meu amigo Eliseu!
SETÚBAL (Perde a paciência) - Basta! Eu não vou mudar
o meu procedimento, só pra satisfazer a um capricho seu!
Eu sou um homem de ética, eu tenho os meus princípios! E
não vou mudá-los por sua causa!
VIVALDO (Num tom calmo, controlado, de quem
tomou uma decisão definitiva) - Tá bem, Setúbal. Você
não precisa mudar o seu procedimento. Mas arranja outra
pessoa pra executar essa missão.
SETÚBAL (Desmontado) - Ora, Vivaldo! Você sabe que
eu não tenho outra pessoa pra executar esse tipo de
missão.
VIVALDO - Isso é problema seu. Eu não vou matar um
amigo que é pra mim mais do que um irmão, só pra
satisfazer a sua vontade.
SETÚBAL (Ponderado) - Você não precisa tomar essa
decisão agora. Vai para casa, pense bem, reflita com
calma, depois você se apresenta pra cumprir a missão. Eu
vou aumentar o preço. Você vai receber pela décima
terceira tarefa a quantia de quinhentos mil cruzeiros.
VIVALDO - Dinheiro nenhum vai fazer eu tirar a vida do
meu melhor amigo.
SETÚBAL (Convicto) - Você vai acabar mudando de
opinião, meu rapaz. (Blecaute.).
Cena 16
ELISEU irrompe no palco guiado por RÚBIA, que
caminha atrás dele, cobrindo-lhe os olhos com as
mãos. É como se o casal entrasse na casa deles.
RÚBIA (Alegremente) - Surpresa! Surpresa! (Tira as
mãos dos olhos de ELISEU.).
ELISEU (Leva um grande choque, olhando em torno
com os olhos esbugalhados) - Mas o que é isso, meu
Deus!?!
RÚBIA - Troquei todos os nossos cacarecos por esta
mobília tinindo de nova! (Aponta os móveis invisíveis.).
ELISEU - Trocou como? Com que dinheiro, Rúbia?
RÚBIA - Com o seu, querido!
ELISEU - Eu não te dei nenhum dinheiro pra você comprar
móveis novos!
RÚBIA - Você não sabia que você tem crédito na praça,
amorzão?
ELISEU (Alarmado) - Ai, meu Deus! Conta essa estória
direito, Rúbia!
RÚBIA - Eu fui à loja de móveis do seu amigo Cazuzinha, e
comprei a nossa mobília a crédito.
ELISEU (Esbravejando) - O Cazuzinha não podia vender
nada a você em meu nome! Eu não dei nenhuma
autorização a ele pra isso.
RÚBIA - Eu disse a ele que queria fazer uma surpresa a
você.
ELISEU (Com amarga ironia) - E fez, mesmo: uma bela
surpresa...
RÚBIA - Depois você tem que passar na loja pra dar a
grana da entrada e assinar toda a papelada da bela
surpresa que eu preparei pra você.
ELISEU - Em quanto ficou a bela surpresa?
RÚBIA - Ai, que mania que você tem de se preocupar
tanto com dinheiro! (Lhe pega na mão.) Vem ver os
móveis do quarto.
ELISEU - Você trocou os móveis do quarto também?!
RÚBIA - Troquei tudo, querido! Eu já não agüentava mais
olhar pra aquelas porcarias. (Apontando um móvel
imaginário.) Olha só que armário chique!
ELISEU (Desesperado) - Pelo amor de Deus, Rúbia, me
diga logo quanto foi a dívida que você fez na loja do
Cazuzinha!
RÚBIA - Toda a mobília ficou em duzentos e trinta mil
cruzeiros.
ELISEU (Arregala os olhos, com horror, dando um
passo atrás) - Duzentos e trinta mil cruzeiros!?!
RÚBIA - Não tá baratinho?
ELISEU (Trágico) - Tou arruinado, meu Deus?
RÚBIA - Você é tão exagerado, criatura!
ELISEU (Com cara de choro) - Onde eu vou arranjar
esse dinheiro, Rúbia?
RÚBIA - É à prestação, Eliseu! Prestação de oito mil
cruzeiros.
ELISEU - Eu só ganho quatorze mil. Como posso pagar
uma prestação de oito mil cruzeiros?
RÚBIA - Deus dá o jeito.
ELISEU - Até agora ele só deu jeito de estrepar cada vez
mais a minha vida.
RÚBIA - Deve ser porque você não tem feito os agradinhos
que Ele gosta.
ELISEU - Cadê os móveis antigos?
RÚBIA - Eu dei pros mendigos da cidade. Você precisava
ver a festa que eles fizeram aí em frente. Disputaram na
tapa os cacarecos.
ELISEU (Severo) - Não tinha nenhum cacareco aqui
dentro! Eram móveis muito bons!
RÚBIA - Pra você, porque pra mim eles não prestavam. Eu
ficava jururu só de olhar pra eles.
ELISEU - Vê se você me entende, Rúbia: eu não tenho
condição de pagar essa dívida. Vamos ter que devolver
tudo agora mesmo.
RÚBIA (Cruel, ameaçadora) - Se os móveis saírem
daqui, eu vou embora com eles, e não volto nunca mais.
(Segue para a “sala”.).
ELISEU (Indo atrás dela) - Mas criatura, você quer que
eu roube, quer que eu mate, pra pagar a prestação dos
móveis?
RÚBIA (Dura, encarando-o) - Eu não quero saber de que
jeito você vai pagar! Eu só não aceito que os móveis saiam
daqui. Sempre vivi no conforto, e não vai ser agora que eu
vou viver mal. (Suaviza-se.) Puxa, meu bem! Será que eu
não mereço que você faça um pouquinho de sacrifício por
mim? (Acaricia-o no rosto.).
ELISEU (Mártir) - Eu não vou agüentar esse sacrifício.
RÚBIA - Agüenta, sim! Você é tão forte, querido! (Toma a
iniciativa de beijá-lo com ardor. VIVALDO chama por
ELISEU, lá fora.).
VIVALDO (Voz sofredora) - Eliseu!
RÚBIA (Afastando-se de Eliseu) - Seu amigo Vivaldo.
ELISEU - Entra Viva! (Surge VIVALDO. Seu olhar vai
direto para ELISEU; olha para ele transtornado, com
o corpo trêmulo. ELISEU também está abalado com
tudo o que aconteceu.) Oi, Viva. Tudo bem? (Aperta-
lhe a mão.).
VIVALDO (Olhando-o fixamente nos olhos, com
expressão desvairada) - Vou bem... vou bem...
ELISEU (Notando o mal-estar por que passa o outro)
- Vai bem, não! Você tá pálido, tremendo!
VIVALDO (Com a consciência culpada, desvia o olhar)
- Impressão sua.
RÚBIA (Aperta a mão de VIVALDO) - E Alice? Como
vai?
VIVALDO (Alheado) - Ela vai bem.
RÚBIA - Você não notou nada de diferente aqui na sala,
Vivaldo?
VIVALDO (Dá uma olhada circular pela “sala”) - O
quê?
RÚBIA - Ai, que homem distraído, meu Deus! (Muda de
tom.) Os móveis novos, Vivaldo!
VIVALDO - Ah, é mesmo.
RÚBIA - Gostou?
VIVALDO - Bonitos.
RÚBIA - Eu cheguei há pouco em casa, e encontrei toda a
mobília renovada. Seu grande amigo me fez uma bela
surpresa!
ELISEU (Enraivecido) - É mentira dela, Viva! Foi ela que
me fez uma horrível surpresa! Me arruinou pra comprar
esses móveis. Fez uma dívida em meu nome de duzentos e
trinta mil cruzeiros.
RÚBIA (Docemente ríspida, trincando os dentes,
afetada) - Querido, seu amigo não precisa ficar sabendo
das nossas particularidades. (Apontando uma cadeira).
Senta Vivaldo. Você me dá licença; eu vou fazer um café
pra nós. E vou servir numa das xícaras novas que
chegaram hoje... (Olha significativamente para
Eliseu.).
ELISEU (Agoniado) - Xícaras novas também!?
RÚBIA (Alegremente) - Tudo novo, meu bem! (Retira-
se.).
ELISEU (Quase chorando) - Tou fodido!
VIVALDO (Mergulhado em suas preocupações, com
expressão sombria) - Eliseu, você conhece...
ELISEU (Sem ouvi-lo, corta-o, em desespero) - Essa
mulher vai acabar comigo, Viva! Me salva dela, me leva pra
longe dela! (Contraditório.) O pior é que eu não consigo
viver sem a bruaca! Onde eu tava, meu Deus, quando fui
cair de quatro por essa mulher? (ELISEU prossegue
conversando sem que ouçamos a sua voz, posto que
irrompe a voz gravada de SETÚBAL, numa evocação
de VIVALDO. Este olha transposto para ELISEU, sem
ouvi-lo.).
SETÚBAL (Voz gravada) - Matar o sujeito cujo nome está
escrito neste papel. (Cessa a voz gravada de
SETÚBAL.).
ELISEU - Conhece?
VIVALDO (Voltando a si) - O quê? (Levanta-se.).
ELISEU - Eu perguntei se você conhece algum agiota pra
eu arranjar dinheiro.
VIVALDO (Tenso, angustiado) - Conheço não.
ELISEU - Eu tenho que descobrir um.
VIVALDO - Posso te fazer uma pergunta, Eliseu?
ELISEU - Claro! Diga aí.
VIVALDO - Por acaso você conhece um homem chamado
Sigismundo Setúbal?
ELISEU (Meditativo) - Sigismundo Setúbal?
VIVALDO - É.
ELISEU - Não conheço. Por que você tá perguntando isso?
VIVALDO - Por que... Bem, esse Sigismundo Setúbal é o
tal ricaço que é o dono de várias destilarias de cachaça em
diversas cidades. Sou eu que conserto e faço a manutenção
das máquinas dele.
ELISEU - Eu sei disso. Mas, e daí? Ainda não entendi
aonde você quer chegar.
VIVALDO - É que, na última vez em que eu estive com
Setúbal, ele me falou sobre um Eliseu Miranda.
ELISEU - Falou o quê?
VIVALDO - Que conhece uma pessoa aqui em Trajano de
Moraes com esse nome.
ELISEU - Então deve existir outro cara aqui na cidade com
o meu nome, porque eu não conheço esse Sigismundo
Setúbal. Só agora eu tou sabendo que seu patrão tem esse
nome.
VIVALDO - É, deve ser mesmo outra pessoa...
ELISEU - Ele te falou como é esse Eliseu Miranda que ele
conhece?
VIVALDO - Ele só falou que vinha a Trajano de Moraes pra
se encontrar com um conhecido dele chamado Eliseu
Miranda. Aí eu disse a ele que eu tenho um amigo com esse
nome. Ele respondeu que não devia ser a mesma pessoa.
Só isso. Eu não quis perguntar mais, pra não dar uma de
intrometido. Mas, de qualquer jeito, eu fiquei com a pulga
atrás da orelha. Por isso eu vim aqui saber se você conhece
esse Setúbal.
ELISEU - Quem será esse Eliseu Miranda? Eu nunca fiquei
sabendo que existe na cidade uma pessoa com o mesmo
nome meu.
VIVALDO - Nem eu.
ELISEU - Agora eu tou curioso. Eu vou atrás desse seu
patrão pra saber quem é esse Eliseu Miranda, de Trajano
de Moraes, que é cupincha dele.
VIVALDO - Não, Eliseu! Não faça isso!
ELISEU - Ora, por que não?
VIVALDO - Por que... Bem, o Setúbal é... é um cara muito
esquisitão. Cheio da nota, poderoso, ele detesta ser
incomodado, detesta ser contrariado. Eu conheço a figura,
cara! E tem mais: você pode me deixar mal com a fera, se
ele ficar sabendo que eu te contei essa parada. Ainda mais
que as coisas agora com a gente não tão nada legal. Eu
acho que ele me odeia. Sempre me odiou.
ELISEU - Por que você acha isso?
VIVALDO - É uma história longa. Começou quando o meu
padrinho me pegou no orfanato, e me levou pra morar com
ele numa das propriedades do pai de Setúbal. Ele era o
mecânico das máquinas da fazenda. Setúbal, nessa época,
estudava no Rio de Janeiro. Só veio morar de vez na
fazenda quando o pai dele morreu, e ele teve que encarar
os negócios da família. Setúbal não foi com a minha cara
desde a primeira vez em que me viu.
ELISEU - Por quê?
VIVALDO - Porque, pra falar a verdade, eu nunca quis
mesmo nada, quando eu morava com o meu padrinho. Só
pensava em caçar, pescar, dormir o dia inteiro. Eu era
ótimo de pontaria! Me lembro de um dia em que eu tava na
frente da destilaria, perto do padrinho, Setúbal e um outro
empregado da fazenda, o Nono. Nono tava com uma
espingarda. De repente, eu olhei pro céu e vi um pombo se
aproximando bem lá no alto. Eu arranquei a espingarda do
Nono, mirei no pombo, e bum! O pombo se espatifou no
chão. Cara, Setúbal teve um ataque: caiu de sopapos em
mim! Só não fui massacrado, porque padrinho e Nono me
acudiram.
ELISEU - O pombo era dele?
VIVALDO - Era da fazenda.
ELISEU - Então ele fez bem em cair de porradas em você.
VIVALDO - Fez, sim. Acho que ele passou a me odiar
ainda mais, depois desse dia. Me aturava na fazenda por
causa do meu padrinho... Meu padrinho era um empregado
antigo e muito querido por todos. É claro que eu me
mandei da fazenda, quando ele morreu. Caí no mundo.
Viajei por esse Brasil inteiro, até que, muitos anos depois,
eu fui encontrado pelo Setúbal. Adivinha o que ele me
propôs!
ELISEU - Não faço a menor idéia.
VIVALDO - Ele me convidou pra voltar a morar na
fazenda. Fiquei um tempão ganhando sem fazer nada, até
que um dia... Até que um dia ele me ordenou que eu... que
eu fosse consertar as máquinas ...
ELISEU - Mas como, se você acabou de dizer que, na
fazenda, você só queria caçar, pescar e dormir?
VIVALDO - Não, eu... Quer dizer, às vezes, eu via meu
padrinho mexendo lá nas máquinas. Aí aprendi alguma
coisa...
ELISEU - Ah.
VIVALDO (Sorrindo dissimulado) - Também não sei por
que eu tou te contando toda essa história...
ELISEU - Nem eu.
VIVALDO - Eu vou indo.
ELISEU - O café!
VIVALDO - Outra hora eu tomo. Tchau, Eliseu.
ELISEU - Tchau, Viva. (Sai VIVALDO.).
RÚBIA (Fora) - Só mais um instantinho, rapazes, que eu
já tou indo com o café!
ELISEU - Não precisa mais, Rúbia! A visita já foi embora!
RÚBIA (Entra contrariada) - Como foi embora?
ELISEU (De mau humor) - Saindo pela porta!
RÚBIA - Que falta de educação! Não espera o café, sai
sem se despedir de mim.
ELISEU - Você parece que foi fabricar a xícara nova que
você trouxe da loja.
RÚBIA (Ri sapeca) - É verdade: eu tou tão elétrica com
as coisas novas, que levei um ano pra coar o café. Mas eu
pensei que ele não fosse logo embora. Seu amigo é muito
esquisito, Eliseu.
ELISEU - Hoje ele tá mesmo esquisitão. Ficou o tempo
todo aqui num blablá sem fim sobre a história da vida dele
que até hoje não tinha me contado. Fez até eu me
esquecer do meu problema.
RÚBIA (Abraçando-o) - Mas você não tá com nenhum
problema, nego.
ELISEU (Ar abatido) - Meu problema custa duzentos e
trinta mil cruzeiros com juros e correção monetária...
(Blecaute.).
Cena 17
Telefone toca sobre uma mesinha. ALICE entra para
atender. Logo atrás dela surge VIVALDO, seguindo-a.
VIVALDO (Aflito) - Se for o Setúbal, você diz que não
tou!
ALICE (Ao telefone) - Alô. (Luz sobre SETÚBAL, numa
das extremidades do palco.).
SETÚBAL (Ao telefone) - Eu quero falar com o senhor
Vivaldo Nascimento. É o senhor Sigismundo Setúbal quem
está falando. (Fuma charuto.).
ALICE (Olhando para VIVALDO) - Ele não tá, senhor
Setúbal.
SETÚBAL (Implacável) - Eu tenho certeza que ele está
em casa, minha senhora. É bem provável que esteja ao seu
lado. Pois bem, diga a ele que eu mandei dizer que ele não
passa de um grande covarde! (Luz extingue-se em
SETÚBAL. ALICE desliga o telefone, nervosa.).
VIVALDO (Ansioso) - E então? O que ele falou?
ALICE (Nervosa) - Que tem certeza que você tá em casa,
bem ao meu lado. E que você é um grande covarde!
VIVALDO - Filho da puta!
ALICE - O que tá acontecendo, Viva?
VIVALDO - Eu já te contei Alice: ele brigou comigo porque
acha que eu não consertei direito uma máquina dele. Agora
quer voltar atrás, mas eu é que não quero mais negócio
com ele.
ALICE - Isso não é verdade, Viva! Eu quero saber a
verdade! Você tem que me contar a verdade, tem que me
contar o que tá se passando entre você e o seu patrão!
(Blecaute. Fim do primeiro ato.).
SEGUNDO ATO
Cena 18
VIVALDO (Zangado) - Eu já te contei várias vezes o que
tá acontecendo. Não vou repetir mais uma vez.
ALICE - Eu não acredito que isso que você disse seja
motivo para você nem querer atender o senhor Setúbal no
telefone.
VIVALDO (Fazendo-se de vítima) - Eu não posso fazer
nada se você não acredita em mim, Alice. E fico muito triste
com isso. (Dá-lhe as costas, retirando-se. ALICE,
sofrendo, começa a chorar. Esconde o rosto nas
mãos. Blecaute.).
Cena 19
ONÉSIO, sentado na sua cadeira, de braços cruzados
ao peito. ELISEU próximo a ele, em pé, nervoso,
agitado. ONÉSIO o ouve tranqüilamente.
ELISEU - Porque a amiga Arilza ganhou um carro do
macho, ela também quer um. Isso pode? Onde eu vou
arranjar dinheiro, meu Deus, pra comprar um automóvel,
se eu tou devendo até a alma?
ONÉSIO (Ergue-se) - Eu tenho uma solução pro seu caso,
meu amigo. Você vai largar essa vigarista e arranjar uma
esposa igual a minha.
ELISEU (Espantado) - Esposa sua!? Que estória é essa?
ONÉSIO (Superior) - Eu arranjei uma esposa na última
viagem em que eu fiz ao Rio. (Arrebatado.) Uma moça
fantástica, Eliseu! Loura, linda, obediente! Ela só faz o que
eu quero.
ELISEU - E por que só agora você veio me dizer isso?
ONÉSIO - Porque eu não quero que ninguém saiba que eu
me casei. Você é a primeira e a única pessoa que vai
conhecer Santinha. (Esclarecendo.) O nome dela é
Shirley, mas eu botei nela o apelido de Santinha, porque,
cara, a minha gatinha é realmente uma santa!
ELISEU - Cumé que você conheceu essa santa?
ONÉSIO - Numa loja. Eu entrei e paguei doze mil cruzeiros
por ela.
ELISEU (Sem entender, estranhando) - Ué! Então você
comprou uma piranha? Como pode isso?
ONÉSIO (Veemente, irritado) - Mas que piranha! Graças
a Deus, eu já passei dessa fase, cara! (Fascinado.) Eu
comprei pra mim foi uma linda senhorita de plástico!
ELISEU (Arregala os olhos, estupefato) - Senhorita de
plástico!?
ONÉSIO (Inabalável, de bom humor) - Desarregala
esses olhos, homem, que eles tão quase saltando pra fora!
ELISEU (Transtornado) - E não é pra tarem? Você chega
pra mim e diz, na maior calma, que casou com uma mulher
de plástico!
ONÉSIO - Melhor do que ter-me casado com uma vigarista
de carne e osso, que só pensa em me cornear, em me
sugar até a última gota! Santinha não faz isso comigo!
Quando ela veio comigo, bastou eu ir soprando, soprando,
e Shirley foi crescendo, os peitos estufaram, as pernas, os
braços, o rosto. Botei nela uma peruca de cabelos louros,
calcinhas de seda, o porta-seios, a anágua, o vestido! Ficou
uma lindeza!
ELISEU (Chocado) - Isso é coisa de tarado, homem!
ONÉSIO - Pode ser tara pra você e pros outros, mas eu
não sinto assim. Pra mim é uma coisa normal. Amanhã de
manhã, quando a gente sair do trabalho, eu vou te
apresentar a Shirley.
ELISEU - Deus me livre! Nem passo mais perto da sua
casa. Eu prefiro ser sugado pela minha vigarista. E chega
dessa conversa doida! (Afastando-se rapidamente de
perto de ONÉSIO.) Eu vou voltar pro meu posto. (Retira-
se).
ONÉSIO (Na direção onde saiu ELISEU) - Babaca!
(Depois, consigo mesmo, tom apaixonado.) Ai, que
saudade, Santinha! (Blecaute.).
Cena 20
VIVALDO, barba por fazer, está sentado, pondo
bebida num copo. Depois coloca a garrafa numa
mesinha que está próxima a ele. Bebe. Tempo. Entra
ALICE, com uma bolsa a tiracolo.
VIVALDO (Irritado, já meio embriagado) - Que diabo!
Onde você esteve que demorou tanto?
ALICE (Nervosa, gaguejante) - Eeeu... Eu fui ao Correio
colocar a carta...
VIVALDO - E gastou mais de três horas pra fazer isso?
ALICE (Recuperando o controle de si, decidida a
enfrentá-lo) - Não. É que depois eu percorri várias lojas,
armazéns, quitandas, procurando um emprego pra mim.
VIVALDO (Ergue-se, enfurecido) - Porra! Você ainda
não esqueceu essa estória de arranjar emprego, Alice?
ALICE (Dramática, inflamada) - Como eu posso
esquecer isso, Viva, se a casa tá vazia, se tamos quase
passando fome?
VIVALDO (Humilhado, abatido) - Eu vou dar um jeito
nisso... Eu vou arranjar dinheiro.
ALICE (Abrandando-se) - Enquanto você não arranja,
não tem nada demais eu trabalhar pra colocar as coisas em
casa. Tantas mulheres trabalham fora, meu bem! Olha: eu
arranjei emprego na quitanda de dona Madalena.
VIVALDO (Indignado) - Emprego numa quitanda!? Você
enlouqueceu Alice! Eu não tirei você do conforto da casa
dos seus pais pra você agora ir vender tomate e cebola
numa quitanda! Como é que você acha que eu vou me
sentir, se eles souberem disso? Esquece esse negócio de
trabalhar em quitanda. Sou eu, o chefe da casa, que tenho
que me preocupar com dinheiro. (Blecaute.).
Cena 21
RÚBIA e ELISEU estão frente a frente. RÚBIA segura
uma mala. ELISEU, barba por fazer, está destruído,
em desespero.
RÚBIA (Encarando-o, desalmadamente) - Você não
acreditou né? Não acreditou que eu ia embora, pois agora
tá vendo!
ELISEU (Desesperado, implorante) - Por Deus, Rúbia,
me dá mais uns dias, só mais uns dias, pra eu descobrir um
jeito de arranjar dinheiro.
RÚBIA (Implacável) - Não! Eu já esperei demais! Eu
quero o meu carro hoje! Agora!
ELISEU - Só se eu assaltar um banco, mulher!
RÚBIA - Pois assalte!
ELISEU (Chorando) - Você é ruim, você é má, Rúbia!
RÚBIA - Sou sim! E mesmo assim você ainda me quer.
ELISEU - Tenha piedade de mim!
RÚBIA - Nunca ninguém teve pena de mim. Os homens,
então... Ah, os homens! Desde pequena me fizeram de
gato e sapato. Eu já te contei que eu fui ser empregadinha
numa casa só de homens, quando fiquei sem pai nem mãe.
Pois, dos treze aos dezesseis anos, eu tive que trepar com
o patrão e os dois filhos dele. Fui usada, fui explorada de
todas as maneiras! Agora, meu nego, chegou a minha vez
de usar, de explorar. (Afastando-se.) Já falei demais.
(ELISEU coloca-se na frente dela, impedindo-lhe a
passagem. RÚBIA o enfrenta: destemida, enérgica.)
Sai da minha frente, Eliseu!
ELISEU (Humilhando-se) - Não vai, meu amor! Fica
comigo! Você quer que eu peça de joelho?
RÚBIA - Não, porque não vai adiantar. Substitui o joelho
por um carro, que eu fico.
ELISEU (Para de chorar, tendo uma reação
inesperada: cai de tapas em RÚBIA, tomado de fúria)
- Pois toma o carro, sua vigarista!
RÚBIA - Ai! Ai! Ai!
ELISEU - Some da minha vida!
RÚBIA (Consegue desvencilhar-se de ELISEU,
encarando-o com ódio) - Você vai se arrepender
amargamente por ter-me batido, cara! Escuta bem o que
eu vou te dizer: Ainda vai correr sangue, por causa desses
tapas que você me deu! (Retira-se.).
ELISEU (Arrependido, cai no choro) - Oh, Rúbia! Não
vai embora! (Correndo atrás dela.) Volta, Rúbia! (Sai.
Blecaute.).
Cena 22
VIVALDO e SETÚBAL em cena, falando ao telefone.
SETÚBAL (Expectante) - E então? Já tomou a decisão
que precisa ser tomada?
VIVALDO (Sombrio) - Não.
SETÚBAL (Contrariado) - Então por que você me ligou?
VIVALDO (Doloroso) - Eu te imploro Setúbal: revela pra
mim o que Eliseu te fez, pra merecer a morte.
SETÚBAL (Perdendo a paciência) - Até quando você vai
insistir em me fazer perguntas que eu não vou responder?
VIVALDO - Se você me disser o motivo... e se esse motivo
for uma coisa que te fez mesmo muito mal, quem sabe eu
... não sei, quem sabe eu execute a tarefa.
SETÚBAL (Enervado) - Meu tempo é precioso, rapaz! Eu
não posso perdê-lo com qualquer coisa. Só ligue pra mim
quando você decidir executar a tarefa. (Luz apaga-se em
SETÚBAL. VIVALDO põe o fone no gancho.).
ALICE (Entrando, com expressão séria) - Quem era?
VIVALDO - Eliseu. (ELISEU irrompe em cena. Está
descabelado, a barba crescida, as roupas
amarrotadas e sujas. Assustam-se VIVALDO e
ALICE.).
ELISEU (Chorando desesperado) - Me ajudem! Me
ajudem!
VIVALDO - O que aconteceu, Eliseu?
ELISEU - Ela tá morando com Zeferino!
VIVALDO - Quem?
ELISEU - A puta da Rúbia!
ALICE (Faz ELISEU sentar-se) - Senta aqui, Eliseu. E se
acalma.
ELISEU - Ela foi morar com ele, porque ele tem carro! Eu
preciso comprar um carro! Me ajuda, Vivaldo!
VIVALDO - Ajudar como? Eu também tou na pior como
você.
ELISEU (Ergue-se, desvairado) - Se alguém não
arranjar o dinheiro pra eu comprar um carro, eu vou
cometer uma loucura! (Blecaute.).
Cena 23
VIVALDO sozinho no escritório de SETÚBAL, andando
de um lado para outro. Fuma nervoso. Tempo. Surge
SETÚBAL, indo ao encontro dele. VIVALDO apaga o
cigarro com o pé.
SETÚBAL (Animado) - Fico feliz por você finalmente ter-
se decidido a executar a minha tarefa!
VIVALDO (Nervoso) - Peraí, Setúbal: você não entendeu
bem. No telefone eu disse que primeiro eu precisava ter
uma conversa muito importante com você.
SETÚBAL - Desde que não seja sobre aquelas perguntas
que você vem insistindo em me fazer...
VIVALDO - Eu não vou te perguntar mais nada.
SETÚBAL - Então qual é a conversa importante que você
quer ter comigo.
VIVALDO - É sobre uma idéia que eu tive. (Muda de
tom.) Esse meu amigo que você quer que eu execute; o
Eliseu. Bem, ele... O Eliseu tá precisando de grana, de
muita grana. Ele se meteu com uma mulher, uma vigarista,
por causa dela perdeu o emprego, tá na maior lona,
coitado. Mesmo assim, ele quer ter de volta a bandida. E
ela só volta pra ele se ele der um carro pra ela. O Eliseu tá
disposto a tudo, até a roubar e matar, pra arranjar dinheiro
pra comprar o tal carro. Então eu queria que você fizesse o
seguinte: procurar Eliseu e oferecer a ele dinheiro pra me
matar.
SETÚBAL (Perplexo) - Matar você!? Você enlouqueceu,
ou quer me deixar louco?
VIVALDO - Eu quero testar o meu amigo Eliseu, como eu
acho que você tá me testando.
SETÚBAL (Irritado) - Eu não posso fazer nada, se você
acha que é isso.
VIVALDO - Acho, sim, mas isso não vem ao caso agora.
Onde é que eu...? Ah! Testar Eliseu; é isso o que eu quero.
SETÚBAL - Testar pra quê?
VIVALDO - Pra saber se a amizade dele por mim resiste
mesmo a tudo, se tá acima de tudo. Tanto ele como eu
tamos na maior pindaíba, tamos precisando de dinheiro,
tamos vivendo uma situação de desespero. Se ele topar me
executar, é porque a nossa amizade pra ele é menos
importante que dinheiro, aí eu tou livre pra cumprir a
missão.
SETÚBAL (Reflexivo) - Entendi.
VIVALDO (Triste) - Mas eu vou torcer, vou pedir a Deus
pra ele colocar a nossa amizade acima dos interesses dele,
porque, se isso não acontecer, pra mim vai ser o fim de
tudo, nada mais vai ter sentido. Você vai procurar o Eliseu
pra fazer esse teste? (Blecaute.).
Cena 24
ELISEU, braços cruzados, está diante de uma casa
imaginária, vigilante, com expressão de sofrimento.
SETÚBAL entra, aproximando-se dele.
SETÚBAL (Estacando ao lado do outro, cordial) - Boa
tarde.
ELISEU (Sem olhá-lo, com voz débil) - Tarde.
SETÚBAL (Olhando na mesma direção em que olha
ELISEU, amistoso) - Ela ainda não apareceu na janela?
ELISEU (Agora encara o outro, examinando-o bem,
estranhando-o) - Ela, quem?
SETÚBAL - A bela dama por quem você é apaixonado,
chamada Rúbia Stefânia.
ELISEU (Confuso) - Quem te contou isso?
SETÚBAL - Eu fiquei sabendo, de alguma forma. Como
fiquei sabendo também que a bela dama só volta pra você
se ganhar um carro.
ELISEU (Hostil) - Quem é o senhor, afinal?
SETÚBAL (Sorri divertido) - Faça de conta que eu sou
um deus, um deus que, de repente, pousou ao seu lado.
ELISEU - Pra mim só existe um Deus: o que tá lá em cima!
(Aponta para o alto.).
SETÚBAL - Quem sabe se eu não sou Ele? Ou o diabo!
(Gargalha divertido.).
ELISEU - Mas que papo besta é esse, hein? O que é que tá
acontecendo? O senhor tá a fim de gozar com a minha
cara?
SETÚBAL - Em absoluto, Eliseu! Eu vim aqui te ajudar a
comprar o carro pra você ter de volta a sua bela Rúbia
Stefânia.
ELISEU (Atônito) - Me ajudar a comprar um carro!?
SETÚBAL - É.
ELISEU - O senhor deve ser louco.
SETÚBAL (Calmamente) - Eu te garanto que não.
ELISEU - Em troca de quê o senhor quer me ajudar?
SETÚBAL - Eu vou te explicar o que eu quero de você. Mas
em outro local.
ELISEU (Desconfiado, olhando-o de alto a baixo) - Eu
não tou gostando nada dessa estória.
SETÚBAL - Eu vou esclarecê-la muito bem pra você. (Põe
a mão no ombro de ELISEU, conduzindo-o para fora
de cena.) Vamos a um lugar tranqüilo onde possamos
conversar. (Saem SETÚBAL e ELISEU. Blecaute.).
Cena 25
Mesa com duas cadeiras, sugerindo um bar. SETÚBAL
e ELISEU aparecem, dirigindo-se para a mesa.
SETÚBAL - Vamos sentar ali. (Aponta a mesa. Sentam-
se SETÚBAL e ELISEU.) Você bebe o quê? (Acende
charuto.).
ELISEU - Não quero nada. Só quero saber o que o senhor
quer comigo.
SETÚBAL - Eu vou direto ao assunto. Meu nome é
Sigismundo Setúbal.
ELISEU - Peraí, alguém já me falou no seu nome.
SETÚBAL - Deve ter sido seu amigo Vivaldo Nascimento.
ELISEU - Ele mesmo. O senhor é o patrão dele, né?
SETÚBAL - Sou.
ELISEU - Outro dia ele veio me perguntar se eu conhecia o
senhor, porque o senhor disse a ele que conhecia um Eliseu
Miranda aqui em Trajano de Moraes. Sou eu esse Eliseu?
SETÚBAL - É.
ELISEU - Mas como o senhor me conhece, se eu não
conheço o senhor?
SETÚBAL - Eu sempre me interessei em conhecer, em
saber tudo sobre os amigos de quem trabalha pra mim.
ELISEU - Então o senhor andou investigando a minha
vida?
SETÚBAL - Investigaram pra mim. Breve pausa.
(SETÚBAL fuma.).
ELISEU - Bem, o senhor ainda não falou o que tá querendo
de mim.
SETÚBAL - Como eu já te falei Eliseu, eu apurei que você
está precisando de muito dinheiro. Pois bem: eu estou
disposto a te pagar uma boa quantia em troca de um
serviçinho que eu quero que você execute pra mim.
ELISEU - Que serviçinho é esse?
SETÚBAL (Encarando-o bem nos olhos, em tom
enérgico) - Matar seu amigo Vivaldo Nascimento!
ELISEU (Atordoado, sacode a cabeça) - O quê!?! Eu
não ouvi direito!
SETÚBAL (Veemente) - Ouviu, sim!
ELISEU (Erguendo-se, estupefato) - Matar o meu amigo
Viva!?!
SETÚBAL - Eu não disse que você tinha ouvido?
(Enérgico.) Senta, rapaz!
ELISEU (Enfurecido, meio descontrolado) - Eu não
sento perto de um louco!
SETÚBAL - Fale baixo! Eu já disse a você que eu não sou
louco!
ELISEU - Então tá querendo brincar comigo. Uma
brincadeira muita filha da puta!
SETÚBAL - Nem uma coisa e nem outra. Senta pra gente
conversar com calma.
ELISEU - Eu não sei se eu devo me sentar, depois do que
eu ouvi.
SETÚBAL - Eu dou a minha palavra que não há nenhum
perigo, que eu não vou te fazer nenhum mal.
ELISEU (Mais para si mesmo, estarrecido) - Matar o
Viva!... Onde já se viu isso, meu Deus? Era a última coisa
que eu podia ter ouvido! (Encara SETÚBAL, hostil.)
Escuta aqui, meu senhor: eu nunca matei nem uma mosca!
SETÚBAL - Eu acredito.
ELISEU (Senta-se) - E por que então o senhor tá
querendo que eu mate um homem, e ainda por cima o meu
melhor amigo?
SETÚBAL - Eu estou lhe fazendo uma proposta; cabe a
você aceitá-la, ou não.
ELISEU - Mas por que o senhor tá me fazendo essa
proposta absurda, justamente eu, o melhor amigo do
homem que o senhor quer ver morto?
SETÚBAL - Não insista que eu não vou revelar nada sobre
isso.
ELISEU - Mas eu preciso saber por que eu fui escolhido pra
matar o meu melhor amigo.
SETÚBAL - As razões de eu estar te fazendo essa proposta
não vêm ao caso, elas dizem respeito apenas a mim.
ELISEU - Então me diz: por que o senhor quer que o meu
melhor amigo seja eliminado?
SETÚBAL - Também não vou revelar isso.
ELISEU (Insistente) - Ele fez alguma coisa de mal pro
senhor?
SETÚBAL - Alguma coisa ele fez; mas não me pergunte
qual, que eu não vou revelar.
ELISEU (Abalado) - Cada uma que me acontece! De
repente um estranho chega pra mim, e me oferece dinheiro
pra eu matar um grande amigo!
SETÚBAL - Dinheiro que você está precisando muito. Você
vai ter a coragem de desprezar a oportunidade de ganhá-
lo?
ELISEU - Vou, sim, porque acima de tudo tá a minha
amizade pelo Vivaldo!
SETÚBAL - Se é assim, esqueça o que eu te disse. Mas, se
mudar de idéia, entre em contato comigo. (Tira um cartão
do bolso.) Aqui está o meu cartão.
ELISEU (Pega o cartão, erguendo-se decidido) - Eu
vou agora à polícia contar tudo, e vou avisar ao Viva que o
senhor quer que eu dê cabo dele.
SETÚBAL (Sorri tranqüilamente) - Nem a polícia e nem
o seu amigo Vivaldo vão acreditar nas suas palavras.
ELISEU (Afastando-se rapidamente) - Vamos ver se
eles não vão acreditar! (Sai.).
SETÚBAL (Cantarola despreocupado) - Queremos Deus
que é o nosso rei, / Queremos Deus que é o nosso pai. (Dá
uma longa tragada no seu charuto. Blecaute.).
Cena 26
Rua. Ruído de trânsito. ELISEU surge apressado,
atravessando a cena. Está abalado. RÚBIA,
segurando uma mala, aparece na outra extremidade
do palco, como se viesse acompanhando-o.
RÚBIA (Chama) - Eliseu! (ELISEU estaca, virando-se
para RÚBIA.).
RÚBIA (Corre para ele, chorando dramática) - Oh,
Eliseu! (Larga a mala no chão, abraçando-o.).
ELISEU (Espantado) - O que aconteceu?
RÚBIA (Encara-o, chorando) - Me bate! Me bate!
ELISEU (Olhando-a como se ela tivesse
enlouquecido) - Te bater por quê?
RÚBIA - Por eu ter te abandonado! Eu não presto Eliseu!
Trocar um homem tão bom como você por um cavalo como
o Zeferino! Mas eu juro como nunca mais quero ver esse
cafajeste na minha frente! Acabei de largar o desgraçado!
Eu descobri que é você, só você que eu amo Eliseu! Você é
o homem da minha vida!
ELISEU (Com mágoa dela) - Só hoje você foi descobrir
isso?
RÚBIA - Eu tava cega, meu amor! Mas aconteceu um
milagre: eu comecei a enxergar! Isso aconteceu logo depois
que você saiu lá da frente de casa. Eu peguei as minhas
coisas, gritei pro bandido que eu tenho ódio dele, e vim
correndo atrás de você! (Agarrando-se nele, sôfrega.)
Eu quero ser só sua, Eliseu!
ELISEU (Afastando-a de si, com certo desprezo) - Eu
não sei mais se eu te quero, depois de tudo, depois de toda
a humilhação que você me fez passar.
RÚBIA (Empertiga-se, superior) - Se você não me quer
eu não posso te forçar. Esquece o que eu te disse.
(Apanha a mala, afastando-se.) Adeus.
ELISEU (Arrependido, trata de detê-la) - Não, espera!
Não vai!
RÚBIA (Ar triunfante) - Vou ficar fazendo o que perto de
você, se você não me quer mais?
ELISEU (Sucumbido, embriagado pela paixão) - Não,
não! Eu te quero, sim! (Abraça-a fortemente; a mala de
RÚBIA cai no chão.) Te quero muito, muito!
RÚBIA - Eu também te quero muito, gatão! (ELISEU a
beija na boca com voracidade.).
ELISEU (Após o beijo, febril, encarando-a) - Eu te
amo! Eu te odeio! Eu devia te matar! Eu devia acabar com
a sua raça!
RÚBIA (Arrebatada) - Me mata, mas de amor! Eu não
me importo de morrer pelas suas mãos, mas eu quero
morrer sendo muito amada, sendo esmagada de tanto
amor! (ELISEU torna a beijá-la.).
RÚBIA (Interrompe o beijo, sorrindo divertida) -
Vamos terminar essa cena em casa, que a gente tá dando
escândalo na rua.
ELISEU (Cai em si, recordando amarguradamente de
outras preocupações) - Eu não posso ir pra casa agora.
Eu tinha me esquecido: preciso ir à delegacia.
RÚBIA (Estranhando) - Fazer o que na delegacia?
ELISEU - Delegacia? (Torna-se pensativo,
introspectivo, como se, de repente, tivesse saído de
órbita.).
RÚBIA - É... (Ela olha para ELISEU com, cada vez
mais, estranheza, visto que ele como que ignora a
presença dela ao seu lado. Isso acontece durante
certo tempo.) Eliseu! O que tá acontecendo?
ELISEU (Voltando a si, aéreo, agitado) - Hein? Nada, tá
acontecendo nada não. Eu ia visitar um amigo que trabalha
na delegacia, mas depois eu vou. (Bastante perturbado,
pega a mala.) Ou talvez eu não vá mais, não sei. (Lhe
pega no braço, conduzindo-a.) Vamos pra casa.
RÚBIA (Aconchegando-se a ele, toda amorosa) -
Vamos querido! (Saem ELISEU e RÚBIA. Blecaute.).
Cena 27
VIVALDO, semblante sombrio, encontra-se sentado à
mesa, bebendo e fumando. Tempo. Surge ELISEU
(com outra roupa), sem que VIVALDO o veja. ELISEU
estaca, hesitando em aproximar-se de VIVALDO.
Chega a dar meia-volta para ir embora, mas termina
decidindo-se a avançar lentamente para a mesa onde
está o amigo.
ELISEU (Com mal-estar) - Oi, Viva! (Força um sorriso.
VIVALDO, que estava distraído, leva um susto,
olhando o outro como se tivesse sido flagrado em
algum ato comprometedor.).
VIVALDO - Oi!... É você?... (Estende-lhe a mão,
perturbado.) Tudo bem? (ELISEU demora a apertar a
mão de VIVALDO.).
ELISEU (Com dificuldade de encarar o outro) - Tudo...
(Pausa.).
VIVALDO - Não quer sentar?
ELISEU - Não, eu... (Senta-se.) A demora é pouca...
VIVALDO - Vai de cerveja?
ELISEU - Não. Quero beber nada, não. Obrigado.
(Silêncio. De repente, impulsivo, num rompante,
demonstrando grande agitação.) Viva, eu preciso falar
uma coisa muito... (Interrompe-se, acovardado,
olhando para os lados.).
VIVALDO - Fala!
ELISEU (Ri nervoso, dissimulador) - Bobagem minha!
Deixa pra lá.
VIVALDO - Você tá com algum problema, Eliseu?...
ELISEU - Tou, sim: liso! Eu ia te pedir uns trocados
emprestados, mas aí me lembrei que você também tá sem
grana.
VIVALDO (Suspira, amargo, pensando na sua
situação) - Tou, sim. Na maior dureza, cara. (Bebe.).
ELISEU - Vou pedir a outra pessoa. (Silêncio.).
VIVALDO - Como vai a Rúbia Stefânia? Eu soube que ela
voltou pra você...
ELISEU - É, voltou.
VIVALDO - Ela continua exigindo que você compre um
carro pra ela?
ELISEU (Desconfiado) - Por que você tá perguntando
isso?
VIVALDO - Aquela vez ela não foi embora por que você
não deu um carro pra ela?...
ELISEU (Cabisbaixo, demorando a responder) - Ela
não tá exigindo nada de mim...
VIVALDO - Fico feliz por isso. (Silêncio.).
ELISEU - E Alice? Como vai?
VIVALDO - Bem.
ELISEU (Perscrutador) - Você tem ido consertar as
máquinas do seu patrão?...
VIVALDO - Não. Eu não tenho mais patrão.
ELISEU (Surpreso) - Ah, não?
VIVALDO - Não.
ELISEU - Você pediu demissão, ou foi ele que te demitiu?
VIVALDO - Eu é que pedi demissão.
ELISEU - Por quê?
VIVALDO - Eu briguei com Setúbal. Ele sempre me
explorou, sempre pagou pouco pelos meus serviços. Eu fui
reclamar com ele, aí tivemos uma discussão, quase caímos
no tapa.
ELISEU (Distrai-se, falando para si mesmo, sombrio)
- Então é isso...
VIVALDO - Isso o quê?...
ELISEU (Perturbado, gaguejante) - Aaaa... a briga de
vocês. Por causa dela que você pediu demissão, né?...
VIVALDO - É... (Silêncio.).
ELISEU - Você tá tão triste, Viva.
VIVALDO - Eu também tou te achando triste.
ELISEU - É essa situação difícil que tá me deixando assim.
VIVALDO (De repente, em grande exaltação,
agarrando sofregamente ELISEU pelo pulso) - Vamos
embora de Trajano de Moraes, Eliseu!
ELISEU (Espantado) - Ir embora? Pra onde?
VIVALDO - Pra qualquer lugar! Eu vou com Alice, e você
com a Rúbia. Nós dois vamos trabalhar, vamos ganhar
dinheiro honestamente, vamos ser felizes!
ELISEU (Atordoado) - É, podemos pensar nisso.
VIVALDO (Ansiado) - Vamos amanhã mesmo?
ELISEU - Calma Viva! Isso não pode ser decidido assim de
uma hora pra outra.
VIVALDO (Angustiado) - Eu já não agüento mais ficar
nessa cidade, nesse estado! Eu quero ir pra bem longe!
(Surge ONÉSIO, aproximando-se deles, apressado.).
ONÉSIO (Visivelmente agitado, olhando para ELISEU)
- Até que enfim te encontro!
ELISEU - Oi, Onésio.
ONÉSIO - Vim da sua casa. (Cumprimenta VIVALDO.)
Como vai, Vivaldo? (VIVALDO faz um gesto vago pra
ele, informando que está bem.).
ELISEU (Indicando uma cadeira) - Senta.
ONÉSIO - Não posso. Tá na minha hora de pegar no
batente.
ELISEU (Notando a agitação em que se encontra
ONÉSIO) - Aconteceu alguma coisa?
ONÉSIO - Eu descobri por que a sua queridinha voltou pra
você.
ELISEU - Descobriu o quê?
ONÉSIO - Ela te contou que largou o Zeferino, né? Pois é
mentira! Foi o Zeferino que expulsou ela de casa. Sabe por
quê? Porque ela comprou um cordão de ouro na dona
Gegê, pra ele pagar. Zeferino ficou uma fera quando soube.
Botou ela e o cordão pra fora de casa. Aí ela veio correndo
te procurar, dando uma de santinha.
ELISEU (Rude) - Isso é mentira!
ONÉSIO - Pergunta à dona Gegê. Foi ela que me contou.
Eu já te disse mil vezes que aquela mulher não presta
Eliseu! Expulsa logo da sua casa aquela vigarista!
ELISEU (Ergue-se ameaçador) - Eu não admito que você
ofenda a mulher que eu amo!
ONÉSIO - Pois eu ofendo! A mulher que você ama não
passa de uma pistoleira perigosa! (ELISEU aplica um
violento soco no rosto de ONÉSIO, derrubando-o.
VIVALDO procura segurar ELISEU.).
VIVALDO - Para com isso, Eliseu!
ELISEU (Selvagem, segurado por VIVALDO) - Não se
mete mais na minha vida!
ONÉSIO (Levanta-se, esfregando a parte do rosto
atingida; está arfante, com ódio) - Eu não vou mais me
meter! Eu quero assistir de camarote você ser destruído
por ela! (Blecaute.).
Cena 28
Sonho de VIVALDO. Música. Cena em ritmo
acelerado. Aparece SETÚBAL segurando uma corda,
no esforço para puxar a pessoa que está amarrada à
corda, ainda invisível. Quando ele atinge a metade do
palco, surge ELISEU, vestido apenas de tanga (como
Cristo na cruz), com as mãos amarradas pela corda.
Ao mesmo tempo, aparece VIVALDO na outra
extremidade do palco, imponente, hirto, de posse de
uma espingarda de caça, o que leva ELISEU a deixar
de resistir em ser puxado, estacando e olhando
apavorado para o seu algoz. VIVALDO aponta a
espingarda para ELISEU, que, desesperado, grita por
socorro, pede clemência. SETÚBAL, impiedoso,
indiferente ao sofrimento da vítima a ser fuzilada,
põe-lhe uma venda nos olhos. Depois dá ordens para
VIVALDO atirar. Ele atira. ELISEU cai no chão,
morrendo. Irrompe RÚBIA em disparada, aos
prantos. Ela usa um vestido preto, à antiga, comprido
até os pés, uma autêntica dama digna. Põe-se de
cócoras, atracando-se a ele, no maior desespero.
SETÚBAL e VIVALDO, num canto, acendem charuto,
conversando animadamente, dando risada. RÚBIA
vira-se para os homens. Sua expressão sofre uma
súbita e brusca transformação: ela cai na risada,
muito feliz, surpreendendo os homens. RÚBIA ergue-
se, requebrando-se ao ritmo da música de fundo.
Convida SETÚBAL para dançar. SETÚBAL aceita o
convite, sorridente. O casal dança. SETÚBAL faz sinal
para VIVALDO levar embora o cadáver. VIVALDO
obedece, arrastando o cadáver e a corda presa a ele.
Música em crescendo, o casal rodopiando ao ritmo.
Blecaute rápido, música fundindo-se com a cena
seguinte.
Cena 29
VIVALDO e ALICE deitados lado a lado, cobertos por
um lençol comum. Música da cena precedente
aumentando, aumentando, ensurdecedora. VIVALDO,
dormindo, agita-se na cama. Música atinge o auge
quando VIVALDO acorda gritando.
VIVALDO (Senta-se na cama, aos berros) - Aaaaah!
ALICE (Acorda assustada, sentando-se) – Viva: o que
foi?
VIVALDO - Ai! Um pesadelo! (Levantando-se.) Tive um
pesadelo horrível! (Coça o sexo.).
ALICE - Como era o pesadelo?
VIVALDO - Era... Eu nem me lembro mais como era...
ALICE - Deita.
VIVALDO - Tou com sede. (Afastando-se.) Vou beber
água. (Sai. ALICE deita-se, cobrindo-se. Blecaute.).
Cena 30
ELISEU anda de um lado para outro, nervoso,
fumando. Tempo. Modifica-se a iluminação. Surge
VIVALDO (imaginação de ELISEU), dirigindo-se ao
amigo.
VIVALDO (Inquisidor, veemente) - Você vai ter a
coragem de aceitar a tarefa de me matar, pra ganhar
dinheiro?
ELISEU (Aos prantos) - Eu tou desesperado, Viva!
Desempregado, devendo a todo mundo!
VIVALDO (Triste, arrasado) - E por isso vai tirar a vida
do seu melhor amigo?
ELISEU (Põe as mãos na cabeça, sacudindo-a,
demente) - Não, não! Eu não posso fazer isso! Eu não vou
fazer isso!
VIVALDO (Indo embora) - Assim espero, Eliseu. Assim
espero. (Sai.).
ELISEU - Eu não vou fazer isso! (Recupera o controle,
olhando ao redor, como se procurasse por VIVALDO.
Agita-se pelo palco, alarmado.) Meu Deus, eu tou tendo
visão! Eu tou enlouquecendo! Eu tenho que dar um jeito
nisso! (RÚBIA irrompe em cena num pranto
escandaloso.).
ELISEU (Corre para ela, assustado) - O que aconteceu,
meu bem?
RÚBIA - Eu nunca fui tão humilhada como aconteceu hoje!
ELISEU - Humilhada por quem?
RÚBIA - Pelas pessoas que você tá devendo! Todo mundo
me cercou na rua pra cobrar o que você tá devendo a eles.
(Ameaçadora.) Se isso acontecer de novo, eu sumo da
sua vida, Eliseu! Agora é sério mesmo!
ELISEU (Grave, encarando-a) - Isso não vai acontecer
de novo. Eu juro. Eu vou arranjar dinheiro pra pagar as
dívidas e comprar o seu carro.
RÚBIA - Como?
ELISEU (Desvia o olhar, com o corpo tremendo) - Não
importa como. O que importa é que o dinheiro vai aparecer.
(Trágico.) Depois é capaz que eu desapareça, que eu
acabe comigo mesmo.
RÚBIA (Assustada com o visível mal-estar físico dele)
- O que tá acontecendo, homem de Deus? Você tá
tremendo! (Toca-o.).
ELISEU (Com tremor crescente, falando com
dificuldade) - Isso passa! Isso passa! (Blecaute.).
Cena 31
Em cena SETÚBAL, VIVALDO e ELISEU, formando um
triângulo no palco. SETÚBAL e VIVALDO falam ao
telefone. ELISEU também segura um aparelho e faz a
mímica de discar, encontrando o telefone que disca
(o de SETÚBAL) em comunicação; mas ele não
desiste, tornando a discar repetidas vezes.
VIVALDO (Angustiado) - Ele não te procurou?
SETÚBAL - Não. Mas eu desconfio que seja ele que tem
ligado pra mim. O telefone toca, eu atendo, aí a pessoa do
outro lado da linha fica em silêncio durante um bom tempo,
depois desliga.
VIVALDO - Será que é ele mesmo?
SETÚBAL - Eu tenho certeza. Ainda não criou coragem pra
dizer que aceita a tarefa, por isso o silêncio.
VIVALDO - Eu peço a Deus que ele não crie coragem
nunca.
SETÚBAL - Você tem que pedir a Deus pra que ele crie
coragem, em seu próprio benefício.
VIVALDO - Eu prefiro morrer de fome a saber que meu
melhor amigo topa me matar, pra ganhar dinheiro.
SETÚBAL - Ora, rapaz, você não pode reclamar da
situação que você mesmo criou! Você é que tá levando o
seu melhor amigo a querer te matar.
VIVALDO (Atingido) - Não é verdade! Eu só tou querendo
testar se ele é mesmo meu amigo!
SETÚBAL (Rude) - E eu tou perdendo o meu precioso
tempo com esse seu teste! Tchau.
VIVALDO - Tchau. (Desliga, permanecendo perto do
telefone. SETÚBAL faz a mímica de colocar o aparelho
no gancho. Imediatamente o telefone toca. SETÚBAL
atende.).
SETÚBAL - Alô. (ELISEU está ao telefone, sem
coragem de falar com SETÚBAL. Este permanece
pacientemente ao telefone, consciente que é ELISEU
quem está do outro lado da linha.).
VIVALDO (Para si próprio, com a consciência pesada)
- Meu Deus, meu Deus! Será que eu tou levando mesmo o
meu melhor amigo a decidir me matar? (Luz extingue-se
em VIVALDO.).
SETÚBAL (Insistindo) - Alô.
ELISEU (Voz trêmula, hesitante) - É o... É o senhor
Sigismundo Setúbal?
SETÚBAL - Ele mesmo.
ELISEU - Quem tá falando é o Eliseu.
SETÚBAL - Eu sei que é você. E então? Você decidiu
executar a minha tarefa? (Silêncio.).
ELISEU (No maior sofrimento, caindo no choro) -
Decidi. (Luz apaga-se lentamente sobre os dois
homens. ELISEU chorando incontrolável, e SETÚBAL
ouvindo o choro do outro com ar triunfante.
Blecaute.).
Cena 32
Toca o telefone na casa de VIVALDO. Este entra para
atender.
VIVALDO - Alô. (Luz em SETÚBAL, ao telefone.).
SETÚBAL (Animado) - Oi, Vivaldo! Eu tenho boas notícias
pra você. Ou más.
VIVALDO (Pessimista) - Eliseu ligou?
SETÚBAL - Acabei de falar com ele. (Como sempre
cruelmente direto.) Ele aceitou a tarefa de te matar.
VIVALDO (Com expressão de horror estampada no
rosto) - Aceitou.
SETÚBAL - Hmm, hmm.
VIVALDO (Destruído) - Que horror, meu Deus! Isso não
podia ter acontecido!
SETÚBAL - Mas aconteceu. (Filosófico.) O coração do
homem é mais fraco do que ele pensa, meu caro Vivaldo.
VIVALDO (Em estado de choque) - O meu melhor amigo
decidiu me matar... Não existe amizade, não existe amor,
não existe porra nenhuma! Tudo acabou pra mim, nada
mais tem sentido. Agora tanto faz eu matar como morrer.
SETÚBAL - Calma, que essa sensação de que nada não
tem sentido vai passar. Você vai esquecer tudo isso, e
voltar a achar que viver é maravilhoso. (Noutro tom.)
Agora me diz: Você vai executar a minha tarefa?
VIVALDO (Muda rapidamente de estado psicológico,
tornando-se cruel) - Claro que eu vou! Agora eu tou livre
pra matá-lo. Ele não conseguiu resistir ao teste de ganhar
dinheiro à custa da minha morte.
SETÚBAL - Ótimo! Fico feliz pela sua decisão! Venha hoje
mesmo conversar comigo sobre os detalhes da tarefa a ser
executada, e também tomar conhecimento da conversa que
eu tive com o seu amigo. (Meio sarcástico.) Ou melhor:
ex-amigo.
VIVALDO (Amargo) - É: meu ex-amigo.
SETÚBAL - Estou te esperando. Tchau.
VIVALDO - Tchau. (Desliga. Apaga-se o foco de luz
sobre SETÚBAL. Pausa. A si mesmo, desabando no
choro.) Por que eu fui nascer meu Deus? Por que eu fui
nascer, pra agora tá vivendo semeando a morte? (Entra
ALICE, espantando-se com o choro de VIVALDO.).
ALICE - Viva! Por que você tá chorando?
VIVALDO (Dá-lhe as costas) - Por favor, Alice, não me
pergunte nada. (Procura controlar-se.).
ALICE - Claro que eu tenho que perguntar; saber o que tá
acontecendo!
VIVALDO - Não tá acontecendo nada.
ALICE (Veemente) - Isso não pode continuar assim, Viva.
Sabe o que aconteceu com a gente? Você acabou virando
um estranho pra mim, e eu me sinto uma estranha pra
você. Como não sentir isso, se você acorda nervoso
durante a noite, fala sozinho, e não me diz o que tá
acontecendo? Eu não me sinto bem vivendo assim, eu não
posso viver com uma pessoa que esconde de mim um
segredo, um segredo que parece ser grave.
VIVALDO - Olha Alice, tenha paciência, um dia eu conto o
que tá acontecendo!
ALICE - Por que não conta agora?
VIVALDO (Irritado) - Porque agora eu não posso contar;
santo Deus!
ALICE (Magoada) - Eu nunca tive segredo pra você.
VIVALDO - Eu também. Esse é o primeiro que eu tenho.
Primeiro e último.
ALICE - É por alguma mulher que você tá sofrendo?
VIVALDO - Ora, que bobagem! Não existe outra mulher na
minha vida que não seja você. (Abraça-a, desesperado.)
É você que eu amo, eu só tenho você pra amar e ser
amado, minha Alice!
ALICE (Fria, desvencilhando-se dele) - Se continuar
esse segredo entre a gente, eu não vou poder mais te
amar. (Sai.).
VIVALDO (Voltando a chorar, infeliz) - Que inferno!
Que inferno! (Blecaute.).
Cena 33
ELISEU está sentado no banco de uma praça,
fumando e balançando o corpo, nervosamente.
Tempo. Ele não suporta mais ficar sentado; levanta-
se, dando voltas no banco, inquieto, amargurado.
Surge SETÚBAL, aproximando-se do banco. ELISEU
estaca, olhando com pavor para ele.
SETÚBAL - Boa noite, Eliseu. (Estende-lhe a mão.).
ELISEU (Aperta-lhe a mão molemente, amedrontado)
- Boa noite. (SETÚBAL senta-se. ELISEU continua em
pé, rígido. Tempo.).
SETÚBAL (Ordenando) - Senta rapaz! (ELISEU
obedece, sentando-se distante de SETÚBAL, na ponta
do banco.) E então? Você já planejou a execução da
tarefa?
ELISEU (Sem encarar SETÚBAL) - Já.
SETÚBAL - Onde a tarefa vai ser executada?
ELISEU (Afrontado, com dificuldade de respirar,
demorando a responder) - Na... na caçada.
SETÚBAL - Que caçada?
ELISEU - Eu vou chamar o Viva pruma caçada. Tudo vai
parecer como se tivesse acontecido um acidente.
SETÚBAL (Gozador) - Então boa caçada pra você!
(Blecaute.).
Cena 34
Residência de VIVALDO e ALICE. ELISEU chama lá
fora.
ELISEU (Fora) - Viva! (ALICE entra; indo abrir a porta
imaginária.).
ALICE - Oi, Eliseu! Entra. (Aparece ELISEU, de mochila
e espingarda nas costas.).
ELISEU (Não consegue fixar o olhar em ALICE) - Tudo
bem, Alice?
ALICE (Circunspecta) - Mais ou menos.
ELISEU - E o Viva?
ALICE - Terminando de se aprontar. (Pausa.) Eliseu: você
sabe o que tá acontecendo com o Viva?
VIVALDO (Entra, vestido para ir caçar; ríspido) - Não
tá acontecendo nada, Alice! Para com suas cismas idiotas!
(Estende a mão para ELISEU, olhando-o
penetrantemente.) Como vai, Eliseu?
ELISEU (Pálido, trêmulo, sem coragem de olhar para
o outro) - Bem...
VIVALDO - Animado para caçada?... (ELISEU faz que
sim com a cabeça. VIVALDO volta-se para ALICE,
falando-lhe carinhosamente.) Para de se preocupar
comigo, meu amor. Tá tudo bem. Quando eu voltar da
caçada, nós vamos fazer uma viagem ao Rio. Você quer ir?
ALICE (Séria, cabisbaixa) - Se você quer...
VIVALDO - Claro que eu quero! A gente vai se divertir
muito no Rio. (Beija-lhe rápido.) Até amanhã. (Volta-se
hostil para ELISEU.) Vamos?
ELISEU - Até amanhã, Alice.
ALICE (Num impulso, chama VIVALDO, sofrendo) -
Viva!
VIVALDO (Vira-se para ela, estacando) - Sim, meu
amor?
ALICE (Triste, como que se despedindo dele) - Cuida
bem de você.
VIVALDO (Sentido nas palavras dela um mau agouro)
- Claro que eu vou me cuidar! Até amanhã. (Saem
VIVALDO e ELISEU. ALICE acompanha com o olhar,
perto da porta imaginária, o presumível afastamento
da dupla, lá fora. ALICE vira-se para o telefone,
encarando-o. Num ímpeto, corre para ele. Pega o
aparelho, mas hesita em discar, recolocando o fone
no gancho.).
ALICE (A si mesma, desesperada) - Oh, meu Deus! O
que eu faço da minha vida? (Soa o telefone. ALICE
atende.) Alô... (Instante.) Alô... É você, mamãe?
(Patética.) Por favor, mamãe, fala comigo! Agora mesmo
eu peguei o telefone pra falar com você e papai, mas não
tive coragem, desliguei. Por favor, fala comigo, mamãe!
(Instante. ALICE comovida, chorando copiosamente.)
Oh, mamãe, você falou comigo! Obri... obrigada, mamãe!
(Luz apaga-se lentamente em ALICE, chorando ao
telefone na maior emoção. Blecaute.).
Cena 35
RÚBIA e AMANTE correm para os braços um do outro.
RÚBIA - Meu gatão!
AMANTE - Minha gatona! (Beijam-se com ardor.).
RÚBIA (Após o beijo) - Você conseguiu arranjar o carro
pra levar os móveis?
AMANTE - Claro! Vai chegar agora mesmo. (Gozador.) E
o caçador?
RÚBIA - Só chega amanhã. Quando chegar, não vai
encontrar nem uma cueca dele. (AMANTE cai na risada.
RÚBIA também ri. Blecaute.).
Cena 36
Residência de VIVALDO. ALICE entra, segurando uma
mala. Uma carta na outra mão. Ela olha em torno,
como que querendo fixar na memória todos os
objetos presentes no ambiente, despedindo-se deles.
Triste, abatida, percorre lentamente a sala, enquanto
ouve-se a voz gravada dela, lendo a carta de
despedida, carta esta que ela segura.
VOZ DE ALICE - “Viva: Estou voltando pra casa dos meus
pais. Não adianta você me procurar, que eu não vou voltar
mais pra você. Eu não agüento mais viver ao seu lado,
sabendo que um segredo nos separa. Eu larguei família,
larguei tudo pelo seu amor, para agora descobrir que meu
sacrifício não valeu à pena. Então eu prefiro voltar a ser
como antes”. (ALICE deposita a carta na mesinha do
telefone. Chora.) “Mas peço a Deus que você encontre
alguém a quem possa revelar esse segredo que tanto te
tortura e me tortura. Seja feliz. Alice”. (ALICE sai aos
prantos. Blecaute.).
Cena 37
Clareira na mata. Esta é sugerida através de
desenhos num telão ao fundo e nas tapadeiras
laterais. Canto de pássaro, perto e distante. Entram
VIVALDO e ELISEU, caminhando lado a lado,
precavidamente longe um do outro.
ELISEU - Vamos dar uma parada aqui pra descansar?
VIVALDO - Vamos. (ELISEU senta-se no tronco de
uma árvore derrubada. VIVALDO senta-se no chão,
distante do outro. Silêncio. Eles acendem cigarro e
fumam.).
ELISEU - Você tá diferente comigo.
VIVALDO - Diferente como?...
ELISEU - Esquisito. Desde muito. Agora, por exemplo:
sentou longe, como se eu tivesse uma doença perigosa,
que pega.
VIVALDO - Eu sentei por que... Ora, só tem esse tronco
derrubado nesta clareira. Você sentou nele. Eu tinha que
procurar um lugar no chão pra eu sentar.
ELISEU - Mas precisava ser tão longe de mim?
VIVALDO - Não foi de caso pensado que eu sentei aqui.
Calhou. Eu vinha caminhando nesta direção. Mas, se você
faz tanta questão, eu posso sentar mais perto de você.
(Ergue-se.).
ELISEU - Eu não faço questão de nada, cara. Fica onde tá.
Não liga pro que eu disse. Acho que eu tou imaginando
coisas que não existem.
VIVALDO (Sentando-se) - Eu também acho. Aliás, isso
de pensar que eu tou esquisito com você não é a primeira
coisa que sai da sua imaginação. Saiu também da sua
cachola a besteira de que tinha uma pessoa seguindo a
gente na mata.
ELISEU (Impressionado) - Não, cara! Isso não é coisa da
minha imaginação, não! Eu juro como vi! Eu olhei pra trás
e, bem longe, vi um homem se escondendo da gente.
VIVALDO - Você imaginou que viu. Eu procurei, procurei, e
não vi ninguém.
ELISEU - A pessoa deve ter-se escondido muito bem, ou
ido pruma outra direção. Bem, mas deixa isso prá lá. Eu
não quero mais pensar nisso. (Silêncio.) Na última vez
que eu vim caçar aqui, nós paramos neste lugar pra
descansar. Eu e o Onésio.
VIVALDO - É mesmo?
ELISEU – Hmm hmm. (Silêncio. Olhando ao redor.)
Bonito lugar! Parece um paraíso! E a tarde também tá tão
bonita, né?
VIVALDO - É. (Silêncio. VIVALDO apaga com o pé o
resto do cigarro, depois se ergue; afastando-se.).
ELISEU (Sobressaltado) - Você vai aonde?
VIVALDO - Mijar. (VIVALDO, próximo de uma das
extremidades do palco, fica de costas para ELISEU,
pondo-se a urinar. Tempo. Eliseu mexe,
distraidamente, na espingarda, provocando ruído.
Rapidamente VIVALDO volta-se para ele, apontando-
lhe a arma. ELISEU leva um grande susto.).
ELISEU (Com pavor na voz) - Que é isso, rapaz!?!...
(Ergue-se.).
VIVALDO (Voz enérgica, olhos faiscantes de ódio) -
Não se mexa, fica onde você tá!
ELISEU (Apavorado) - O que tá acontecendo, Viva? Você
ficou louco? Por que você tá apontando essa arma pra
mim?
VIVALDO - Se eu não apontasse logo a minha, você ia
apontar a sua pra mim!
ELISEU - Eu, apontar a minha arma pra você?! Eu não tou
dizendo que você tá mesmo louco? Por que eu ia apontar a
minha arma pra você, cara?
VIVALDO (Aproxima-se do outro, sempre com a arma
apontada, implacável) - Pra me matar! Você não marcou
essa caçada pra isso?
ELISEU (Tremendamente desconsertado) - Eeeu... Eu
não sei do quê você tá falando, rapaz! Você pirou de vez!
VIVALDO - Você sabe muito bem que eu não tou pirado,
Eliseu. Acabou: não adianta mais esconder o jogo. Chegou
a hora da caça e do caçador se enfrentarem.
ELISEU (Fazendo-se de desentendido) - Que caça? Que
caçadores?
VIVALDO - Nós dois. Não adianta mais bancar o
inocentinho, cara! Eu sei que você quer me matar! Sempre
soube. Por isso que você notou que eu tou diferente, que
eu tou esquisito com você. (ELISEU desaba no choro,
sentando-se no tronco. Tal reação deixa VIVALDO
estupefato, paralisado.).
ELISEU (Chorando forte) - Eu sou um monstro! Um
monstro! Atira em mim, Viva! Acaba logo comigo! Eu
mereço isso!
VIVALDO (Aproximando-se de ELISEU, arrependido,
comovido) - Esquece Eliseu! Vamos esquecer o que
aconteceu! (Toca-o no ombro.).
ELISEU - Esquecer como, se agora você sabe a
monstruosidade que eu ia cometer com você.
(Subitamente para de chorar; dirige-se intrigado ao
outro.) Mas peraí! Cumé que você ficou sabendo de tudo?
(Levanta-se.) Não é possível que tenha sido só uma
simples desconfiança. Alguém te contou! Quem?
VIVALDO - É uma longa história, Eliseu.
ELISEU - Eu quero saber dela.
VIVALDO - Eu vou te contar. (Noutro tom.) Bem, tudo
começou quando o senhor Sigismundo Setúbal, meu
patrão, ordenou que eu te matasse.
ELISEU (Fulminado, arregalando os olhos) - Você, me
matar!?!
VIVALDO - É.
ELISEU - Senhor Sigismundo Setúbal ordenou...?
(Interrompe-se.).
VIVALDO - Que eu te executasse.
ELISEU - Meu Deus, eu não tou entendendo mais porra
nenhuma! Você tá sabendo que foi ele que me ofereceu
dinheiro pra eu te matar?
VIVALDO - Tou por dentro de tudo.
ELISEU - Ai, meu Deus, eu vou enlouquecer! Cumé que
você tá sabendo que eu recebi ordem de te matar se você
também recebeu ordem pra me matar?
VIVALDO - Você já vai entender. Deixa eu continuar com a
história. (Noutro tom.) Como eu tava contando, Setúbal
mandou eu acabar com você.
ELISEU (Chocado) - Por quê? Eu nunca tinha visto esse
homem mais gordo antes, até ele aparecer com a tal
proposta pra eu te executar. Por que ele quer me ver
morto?
VIVALDO - Eu não sei. Eu fiz de tudo, implorei de todos os
jeitos, mas o monstruoso Setúbal não me revelou a razão
de querer te ver morto.
ELISEU - Peraí! Eu não tou entendendo outra coisa! Por
que cargas d'água ele te pediu pra você me matar? Você
não é nenhum pistoleiro!
VIVALDO (Ar abatido, como a mais infeliz das
criaturas) - Aí é que você se engana, Eliseu. Eu sou um
pistoleiro.
ELISEU (Recua, horrorizado) - O quê!?!
VIVALDO (Grita descontrolado, como que sentindo
prazer em auto flagelar-se) - É isso mesmo que você
ouviu! Eu mato por dinheiro! Sou um matador profissional!
ELISEU (Em estado de choque) - Não é possível! Você é
mecânico de máquinas.
VIVALDO (Arfante, acalmando-se) - O meu padrinho é
que era isso. Eu só mato... pra Setúbal. Já matei doze.
Você seria o meu morto número treze.
ELISEU (Afrontado, com a mão à altura do coração) -
Que horror, meu Deus! Todos esses anos convivendo com
um assassino, sem saber!
VIVALDO - Pois é.
ELISEU - Não se pode confiar mais nem no melhor amigo.
VIVALDO - É o que eu também penso; você me fez pensar
assim...
ELISEU - Ai! (Senta-se no tronco da árvore com
dificuldade.)
VIVALDO (Vai para ELISEU) - Você não tá sentindo
bem? (Toca-o.).
ELISEU (Repelindo-o) - Não me toca!
VIVALDO - Eu não vou te fazer nada, cara!
ELISEU - Eu posso acreditar nisso? Você não veio aqui pra
me matar?
VIVALDO - Você também veio me matar! (Silêncio.
ELISEU cabisbaixo, profundamente envergonhado,
sentindo-se o último dos homens.).
ELISEU (Doloroso, sem encarar VIVALDO) - Nós dois,
assassinos. Somos assassinos, nós dois.
VIVALDO - Somos sim. Foi só depois que eu descobri que
você era capaz de me matar que eu decidi aceitar a ordem
de Setúbal pra acabar com a sua vida.
ELISEU - Cumé que você descobriu?
VIVALDO - Fui eu que pedi a Setúbal que te procurasse e
oferecesse grana pra você dar cabo de mim.
ELISEU (Ergue-se, atônito) - Você!? Mas por quê? A
troco de quê, isso?
VIVALDO - É o seguinte: Depois de muito matutar sobre o
motivo de Setúbal ter exigido a sua morte pelas minhas
mãos, eu cheguei à conclusão de que ele tava me
testando... Me testando pra saber se era capaz de executar
qualquer pessoa, a mando dele. Aí eu pensei também em
fazer um teste com você.
ELISEU - Que teste?
VIVALDO - Você ainda não entendeu? O teste era pra
saber se você é mesmo meu melhor amigo; se você,
mesmo morrendo de fome, tinha coragem de recusar um
bom dinheiro pra me matar. Mas você não teve coragem! O
dinheiro falou mais alto que a nossa amizade! (A tarde
cai. O palco vai-se escurecendo aos poucos.).
ELISEU - Eu fui pego num momento de fraqueza! Eu tava
desesperado com as exigências de Rúbia!
VIVALDO - A nossa amizade deveria ser pra você mais
importante que a sua louca paixão por aquela bandida!
ELISEU (Com ódio) - Você é um monstro, Viva! De nós
três você é o pior! Você é que é o monstro da história! Foi
você que me levou a decidir cometer um crime! Foi você
que me transformou num assassino! Pois agora você vai
morrer pelas mãos do assassino que você criou! (ELISEU
atira em VIVALDO, não acertando. ELISEU atira outra
vez, e toma a errar o alvo. VIVALDO atira nele,
acertando-lhe em cheio, à altura do coração.
Sangue.) Ahn! (Gira sobre si mesmo, desabando no
chão.).
VIVALDO (Horrorizado com o que fez, deixa a arma
cair, correndo para ELISEU) - Eliseu! (Agacha-se,
segurando-o nos braços.).
ELISEU (Agonizando) - Me... Me perdoa, Viva! Perdão!
VIVALDO (Chorando) - Sim, eu te perdôo! E você me
perdoa?
ELISEU - Pe... pe... Perdôo... Você é o meu melhor amigo
que eu tive!
VIVALDO (Patético) - Você também é o meu melhor
amigo, Eliseu! (ELISEU morre. VIVALDO o abraça em
desespero, chorando copiosamente.) Oh, não! Meu
amigo! Meu melhor amigo! (Tempo. Surge SETÚBAL,
estacando.).
SETÚBAL (Frio, impassível) - Missão cumprida.
VIVALDO (Olha-o com estupor, arregalando os olhos)
- Você aqui!?
SETÚBAL (Gracejando) - Eu costumo estar sempre em
lugares que você não faz a menor idéia. (VIVALDO larga
ELISEU, dirigindo-se a SETÚBAL com ódio.).
VIVALDO - Fora daqui! Você é o culpado de tudo o que
aconteceu! (Apanha a espingarda de ELISEU,
apontando-a para SETÚBAL.) Mas você vai pagar por
isso, Setúbal! Agora chegou a sua vez!
SETÚBAL (Aproxima-se de VIVALDO, destemido) - Eu
não posso acreditar que você tenha coragem de atirar
numa pessoa que só quer o seu bem.
VIVALDO (Acovardado, fraquejando) - Eu vou atirar!
SETÚBAL (Avançando sempre) - E vai ficar sem o seu
protetor, sem o homem que está sempre disposto a te
estender a mão? (VIVALDO deixa a arma cair no chão,
chorando. Sente-se totalmente desamparado,
perdido. Abraça VIVALDO.) Eu gosto de você, Vivaldo.
Como de um filho. (O palco termina de se escurecer
por completo.).
FIM
Observação: O intérprete do personagem Onésio poderá
também desempenhar os personagens Benedito,
Vagalume e Amante.