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7/22/2019 O Duplo Em Frankenstein
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O Duplo em F r a n k e n s t e i n
Marlia Mattos
UFBA PPGLLmariliamattos@ig.com.br
ResumoO romance Frankenstein, de Mary Shelley, ser enfocado atravs de uma leitura domonstro enquanto duplo antagnico de seu criador e signo emblemtico da alteridade,a partir de um vis mitolgico e psicanaltico. Este ltimo ser baseado sobretudo nostextos O estranho e O retorno de recalcado, de Sigmund Freud; O dualismo, deEduardo kalina e Santiago Kovadloff Santiago e na noo de parania desenvolvidapor Melanie Klein.
Palavras-chave: Duplo, Romantismo, Parania, Monstro.
AbstractThis paper focuses the monster, in Mary Shelleys Frankenstein, as the doubleantagonic being of his creator, and also as a powerfull sign of alterity. It has twoapproaches: mythological and psycho-analitical. The latest one will be basedespecially on Freuds texts, on the book called The duality, by Eduardo kalina andSantiago Kovadloff and on Melanie Kleins concepts about paranoid.
Key-Words: Double, Romantism, Paranoid, Monster.
A figura do duplo tem sido, desde tempos imemoriais, um constante tema
literrio. Calmaud, em seu estudo sobre Robert Stevenson, chega a afirmar
que:
Em uma primeira aproximao, o tema do duplo um tema raro, que parece nohaver interessado mais que meia dezena de escritores: Hoffman, Andersen, Poe,Dostoivski, Pirandello e um ou dois mais. Uma demonstrao mais aguadademonstra, no entanto, que este um tema fundamental de toda literatura. Porltimo, e sobretudo, ele nos conduz ao corao dos problemas de nosso tempo. (apudKALINA e KOVADLOFF, 1989, p.15, grifos meus).
No pretendo, aqui, verificar a real extenso de tal afirmao. O que julgo
irrefutvel sua aplicao literatura romntica, como ser visto
posteriormente.
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O crtico Harold Bloom observa que, em Frankenstein1 clebre romance de
Mary Shelley (escrito em 1818) sobre um cientista que criou um ser vivo a
partir de cadveres a dualidade est presente em sua intensidade mxima, e
afirma:
a anttese entre o cientista e sua criatura em Frankenstein, muito complexa e podeser descrita mais completamente no maior contexto da literatura romntica e suacaracterstica mitolgica. A sombra, ou o duplo do ego, uma imagem constante emBlake e Shelley e, mais freqente, mais carnal e descritiva, nos outros grandesromnticos, especialmente em Byron. Em Frankenstein a imagem dominante erecorrente, e responsvel pelo muito da fora latente que a novela possui. (BLOOM,1985, p.214)
Para melhor compreender a questo do duplo no romantismo e,
principalmente, em FR, buscarei auxlio na mitologia e psicanlise, que tm
dedicado a este tema especial ateno.
1.O enfoque mitolgico
O primeiro a empregar a palavra dualismo, segundo Kalina e Kovadloff (1989),
foi Thomas Hayde, em 1700, em sua Histria da religio dos antigos persas(K.K., 1989, p.103). Hayde empregou este conceito, para designar a doutrina
religiosa que admite a coexistncia dos princpios do Bem e do Mal, ambos
eternos. Em termos metafsicos, pontuam K.K., conhece-se como dualismo a
doutrina que admite dois primeiros princpios ou entidades irredutveis, como a
noo do bem e da matria, em Plato (1989, p.103).
A dualidade, fenmeno atravs do qual o dualismo se manifesta, ope-se aoprincpio lgico de no-contradio, que postula que algo no pode,
simultaneamente, ser e no ser. A dualidade seria, assim, a expresso
simultnea de foras divergentes. K.K. concluem, portanto, que o dualismo se
manifesta no fato de que duas tendncias antitticas disputam um mesmo
segmento temporal e idntico espao. Quando se tenta a sua separao, ou se
provoca a reduo de uma outra, se produz a destruio de ambas (K.K.,
1989, p.103). importante pontuar que a afirmao acima sobre o dualismo
11 DDoorraavvaanntteeFFRR..
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explica em grande parte sua presena na tragdia, que tem no conflito seu
principal trao distintivo.
A idia de dualismo remonta mitologia grega e ao hindusmo, de onde os
gregos receberam muitos de seus mitos. Neste estudo, porm, centrarei minhaanlise na origem grega do mito, por sua notria influncia na cultura ocidental
atravs de Prometeu, de quem FR uma releitura moderna. O clebre mito
relata a coragem e o suplcio do Tit Prometeu. Este, quando o senhor do
Olimpo mandou-o criar a humanidade a partir do barro, roubou o fogo de Zeus
para anim-la, o que fez Zeus, irado, puni-lo acorrentando-o no monte
cucaso, com um abutre a comer seu fgado durante o dia que, noite,
regenerava-se.
Para K.K., significativo que Zeus tenha repudiado o homem e que os gregos,
apesar disto, o reverenciem como pai da criao, e enfatizam:
No podemos deixar de ver, nesta atitude, a busca culposa de perdo ereconhecimento por parte de quem, como o homem, se considera participante no
reconhecido da natureza divina. Zeus, por sua vez, se parece ao homem no fato deque, como este, sua existncia deve-se uma transgresso: a de sua me, emprimeiro lugar, e a sua prpria contra Cronos, a quem arrebata o poder pela violncia(K.K., 1989, p.105)
A criatura de Frankenstein nosso Prometeu moderno tambm deve sua
existncia a vrias transgresses, a saber: a ousadia de Frankenstein em
desafiar a lei natural e criar, atravs da cincia (e no do sexo), um novo ser,
a partir da profanao de cadveres (uma transgresso lei dos homens) e,
finalmente (como o fez Zeus), voltar-se contra seu criador at destru-lo. Mas
retornemos elucidativa anlise de K.K. do mito de Prometeu. Os autores
chamam a ateno para o fato de Cronos dotar o homem de uma constituio
hbrida. Feito de terra e fogo divino, o homem dual desde sua origem.
Embora pertena a duas ordens distintas, o homem no consegue inscrever-se
plenamente em nenhuma delas (K.K., 1989, p.105). Como veremos, este
sentimento de no-pertencimento a principal marca da criatura de
Frankenstein.
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portanto, a contradio que sustenta, como um nexo, tanto as partes do
homem terra/fogo; finitude/ transcendncia como os vnculos entre este e
os deuses, seus benfeitores e inimigos, marcando indelevelmente, com a
dualidade, a condio humana.
Cronos no vacila em exterminar os prprios filhos, contudo proteger
Epitemeu, inimigo e, ao mesmo tempo, parte de sua descendncia, pois o
homem tambm fogo celestial. O conflito funciona como o motor propulsor
da ao mitolgica, configurando os pactos e envolvendo a todos no combate e
na violncia. Tais elementos so definidores, em FR, da conflituada relao
entre o criador e a criatura, arqui-inimigos, que vivem, apenas, para
exterminar um ao outro.
Atentemos, agora, para a concluso a que chegaram K.K, acerca de nossa
mtica origem dual:
Feito de p e conscincia, o homem se acha dividido entre sua vinculao ao
transitrio e sua inscrio na eternidade. Graas conscincia pode estar alm daimediatez do devir; devido sua carnalidade no pode seno permanecer imersonela. Hbrido em sua estrutura ontolgica, o ser tambm em seu comportamento, etoda a sua obra, quer dizer, toda a sua prxis, oscilar entre a profundidade dalucidez e a cegueira da sua impulsividade. (1989, p.107)
Foi precisamente por ansiar deixar sua marca na humanidade atravs de uma
obra que Victor Frankenstein foi cegado pelo invencvel impulso de criar uma
nova espcie. Quando recupera a lucidez, j demasiado tarde, restando-lhe
apenas o horror e o arrependimento.
Quero, agora, chamar a ateno para o tratamento dado ao tema da dualidade
pela mitologia judaico-crist, por ser ela, como foi dito na Introduo, uma
forte referncia em FR, atravs de John Milton. Nicole BRAVO (1997, p.262)
pontua que, no Gnesis, o homem comea sendo um e Deus corta-o em dois,
identificando a a mesma idia subjacente ao mito platnico de O banquete2: a
22 OO sseerr hhuummaannoo ,, eemm ssuuaa oorriiggeemm,, hheerrmmaaffrrooddiittaa (( PPllaattoo,, 11998877 ))
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ciso resulta num enfraquecimento, pois a partir disso que o homem pecar.
Ambos os mitos enfocados, apresentam o ser humano como dotado de uma
natureza dupla, especialmente masculina e feminina. Dessa idia deriva-se a
separao entre alma e corpo, presentes nas religies tradicionais, assim como
todo pensamento maniquesta acerca do Bem e do Mal (BRAVO, 1997).
Podemos perceber semelhanas entre os mitos acima narrados: em ambos h
uma ambigidade na constituio humana (masculina e feminina; terra e
fogo), alm da desobedincia ao Criador e conseqente punio.
precisamente,o par transgresso/culpa o motor da trama em FR onde os
personagens Prometeu e Ado so representados, respectivamente, pelo
cientista e sua criao.
Bravo relata, ainda, que na passagem do sculo XVIII para o XIX, surgiram
hipteses pseudo-cientficas acerca do magnetismo animal. Tais hipteses
partiam do princpio de que existe um fluido que penetra toda a natureza,
responsvel pela hiper-sensibilidade que causa os estados de vidncia, sonhos
premonitrios, etc. Esse fluido serviria, portanto, como o princpio espiritual
capaz de ligar o homem natureza (BRAVO, 1997, p.271). Sabe-se que o
casal Shelley era amigo prximo de um eminente cientista que pesquisava o
poder do magnetismo e a da eletricidade. Mary registrou, em seu dirio, o
quanto lhe impressionou assistir a uma experincia em que esse amigo tentou
animar um sapo atravs da eletricidade. Essa pseudo-descoberta acerca do
magnetismo atraiu, diga-se de passagem, vrios outros romnticos. Segundo
BRAVO (1997, p.271), eles extraram da sua crena de que, atravs dossonhos e do inconsciente, uma continuidade liga o amorfo ao vivente, pelo
magnetismo, em tudo presente, convertendo o duplo espiritual (magntico),
em metfora da relao com o mundo.
Bravo aborda, tambm, o tema da unio do vivente com o simulacro,
explorado na literatura por E.T.A Hoffmann, especialmente. Em seus contos, o
homem artificial eleva-se da matria condio de ser vivo, graas ao heri.Esse ser artificial, refere-se Bravo, uma criatura brotada de sua
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subjetividade, ainda que necessite de pais como Spalanzani, Coppelius, para
construrem o arcabouo, o boneco propriamente dito, como em Der
Sandmann (O homem de areia, 1816) de Hoffmann (BRAVO, 1997, p.271).
O protagonista desse conto, apaixona-se por uma autmata, convencido detratar-se de um ser vivo. nesse sentido que Bravo afirma ter sido a
subjetividade do heri que lhe conferiu vida (1997, p.271).
No caso de FR, como veremos no item a seguir, o homem artificial(o monstro)
tambm eleva-se condio de ser vivo graas subjetividade do heri, que
se corporifica na criatura projeo de seu duplo antagnico. Ainda segundo
Bravo, para os romnticos alemes o duplo autmato simboliza a
degenerescncia do humano (1997, p.271). Tal concepo refora a viso
crist, referida na Introduo, que situa o monstro abaixo dos humanos, na
escala do Ser. Frankenstein compartilha dessa viso, pois considera sua
criatura um ser demonaco, ameaador ao futuro da raa humana e que deve,
por isso, ser destrudo.
Esclarecidas algumas concepes mitolgicas acerca do duplo, vejamos como a
dualidade ontolgica, revelada pelos mitos, abordada pela psicanlise.
2.O enfoque psicanaltico
Foi Otto Rank quem, em 1841, no ensaio intitulado Der Doppel Gnger (O
duplo) introduziu este conceito na literatura psicanaltica. Freud tambmabordou este tema, especialmente no trabalho denominado Das Unheimlich (O
estranho) escrito em 1919. Seu foco o sentimento de estranheza causado
pela sbita perda da distino entre imaginao e realidade, provocando temor
e tremor. Para melhor elucidar seu significado, Freud, recorre a um recurso
lingstico: a palavra alem unheimlich (estranho). Seus opostos so heimlich
(ntimo, secreto, obscuro) e heimich (natural), cujo oposto familiar. Entre
as diferentes nuances de significado, a palavra heimlich pode exigir umaidntica a seu oposto unheimlich. Ele ento parte do conto O homem de areia,
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de E.T.A Hoffman, para ilustrar como estes dois antnimos chegam a coincidir
semanticamente.
No ensaio O retorno do Recalcado (1938), Freud trata dos processos de
represso do instinto e sua posterior manifestao. Estes dois ensaios, se lidosjuntos, esclarecerem a contribuio freudiana ao conceito de dualismo. Para a
compreenso do significado do que Freud chama o retorno do recalcado
expresso que d nome ao ensaio fundamental que tenhamos claro o
conceito de sintoma. Este refere-se a alteraes que, embora realizadas no
prprio ego, so por ele percebidas como estranhas, algo com o qual se
confronta. Para ilustrar suas idias, Freud faz uma longa digresso, na qual
utiliza um episdio da infncia de Goethe como exemplo. O que importa reter
aqui, sua concluso de que a experincia dos cinco primeiros anos de uma
pessoa so as que causam o efeito mais determinante em sua vida; um efeito
que, mais tarde, poder vir a enfrentar. Se, por qualquer razo, o ego vive um
determinado instinto como ameaador o caso daqueles aos quais a cultura
associa o pecado e a culpa tende a neg-lo e reprimi-lo. Porm, vaticina
Freud, tal instinto, sob certas circunstncias, redespertar-se-, quando ir,
ento, renovar sua exigncia e, como o caminho lhe permanece fechado, pelo
que podemos chamar de cicatriz da represso, alhures, em algum ponto fraco,
ele abre para si outro caminho, sem a aquiescncia do ego, mas tambm sem
sua compreenso. (FREUD, 1959, p. 150)
O referido processo o retorno do recalcado, e tem como trao distintivo a
deformao sofrida pelo material que retorna em relao ao original;deformao de graves consequncias, tais como a neurose e, mesmo, a
psicose.
Retomemos, agora, o ensaio sobre o estranho. dito a que a sensao de
estranheza, o unheimlich, intensifica-se quando o que a suscita tem por
caracterstica a ambivalncia. O estranho , portanto, experienciado como algo
secretamente familiar heimlich e unheimlich que foi um dia recalcado e,posteriormente, liberado; talvez possamos, mesmo, considerar que tudo que
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nos parece incomodamente estranho (ou incomodamente familiar) preencha
essa condio. Tal experincia pode ocorrer quando algum revive seus
complexos infantis recalcados ou, em um nvel coletivo, onde as crenas
primitivas j superadas confirmam-se uma vez mais (FREUD, 1975).
Uma possibilidade interpretativa para o termo unheimlich a idia de aflio
ou reao de averso temerosa, proveniente de um mal indefinido, que deveria
manter-se oculto mas que se tornou manifesto. Essa definio coincide com o
que foi descrito como retorno do recalcado, confirmando a relao
complementar existente entre os dois textos.
Melanie Klein, que est entre as mais notrias discpulas de Freud, foi quem
desenvolveu a questo da dissociao do ego. Freud chamou-a ciso do ego
sem, no entanto, aprofundar este tema. (apudKalina e Kovadloff, 1989)
Klein afirma que o fenmeno da dissociao surge com o nascimento do ego,
que a projeta para fora, atravs de uma relao polarizada com os objetos.
Estes passam a ser vistos como bonssimos (ou idealizados) ou malssimos (ou
persecutrios), etapa denominada esquizo-paranide (apudK.K., 1989, p. 30).
O ego acima de tudo uma vivncia corporal. A polarizao, portanto,
predominantemente vivenciada pelo corpo, atravs do qual a pessoa
experimenta momentos dissociados que vo do mais extremo prazer mais
terrvel frustrao (K.K., 1989). K.K definem esses momentos como vivncias
paradisacas ou catastrficas com as quais o ego opera de forma inteiramentedissociada ou, em outros termos, a vivncia do bem e do mal no aparecem
integradas e sucedendo-se linearmente num contnuo, no h, ainda,
integrao. (1989, p. 32).
O antagonismo torna-se, assim, o trao distintivo desses dois tipos de
vivncia, fazendo deste mundo polarizado um mundo divalente.
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O estudo de Melanie Klein levou-a a tipificar vrias dissociaes. A que mais
interessa para minha anlise de FR a parania, patologia que ocorre
quando o objeto persecutrio localiza-se fora da pessoa e o idealizado dentro.
O duplo gerado por este processo chamado duplo antagnico, pois
percebido como antagonista do ego. A viso rousseauiana, com sua crena nobem intrnseco do homem, em oposio ao mal projetado na sociedade
(exterior), ilustrativa deste processo. Outra patologia que aqui merece
destaque a histeria, que associa o mal ao corpo e o bem mente (ou
esprito).
K.K consideram que a problemtica da dualidade est intimamente ligada ao
temor morte, e corre o risco de tornar-se patolgica. A questo, segundo
eles, agrava-se ainda mais no mundo atual, onde o emprego da energia
nuclear com fins destrutivos, aliada destruio da natureza, constituem uma
tentativa inconsciente de ludibriar o destino biolgico da espcie e um esforo
cego para negar nossa condio finita e afirmam:
Se de um modo geral a problemtica do duplo tem que aparecer com a luta contra a
morte como parte intrnseca e inalienvel da realidade humana, essa problemticatoma hoje a forma de exaltao desenfreada da racionalidade tecnolgica em prejuzoda afetiva (K.K, 1989, p. 35, grifo meu).
esta a situao que o romance FR prenuncia atravs de sua crtica ao
cientificismo iluminista.
Na modernidade, a noo de sujeito definitivamente consolidada. Marshall
Berman enfatiza que, em tempos como esses o indivduo ousa individualizar-
se (BERMAN, 1998, p. 21). Parece que essa individualizao intensifica o
medo da morte, pois precisamente no Romantismo que o duplo torna-se,
literariamente, uma figura recorrente. Tal tema, como ressaltou Bloom,
central em Frankenstein, obra tipicamente romntica.
Quero, por fim, chamar a ateno para a natureza trgica do processo gerador
do duplo, pois nele atuam, como agentes independentes, foras antagnicas e
dilacerantes muito semelhantes s encontradas nas tragdias clssicas. A
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referida semelhana , alis, bastante compreensvel, j que a inaceitao de
nossa condio finita, motor gerador do duplo, nada mais do que a velha
hybris em suaperformance predileta.
3.O monstro como duplo
O grotesco uma categoria esttica que remonta aos primrdios da arte, e
tem recebido, ao longo de sua histria, diferentes conceitos e significaes.
Wolfgang Kayser (1986), na obra denominada exatamente O Grotesco, de
1957, faz um estudo cronolgico da presena desta categoria artstica,
enfocando-o desde o final do sculo XV at as primeiras dcadas do sculo XX,
mais especificamente no Surrealismo.
La grotescca e grotescco, como derivaes de grotta (gruta), foram cunhadas,
segundo Kayser, para designar uma espcie de ornamentao encontrada em
escavaes realizadas em Roma, no fim do sculo XV, provavelmente em
grutas. Estes ornamentos de origem brbara, que representavam seres
hbridos e fantsticos, escandalizaram o gosto clssico dos crticos de arte
romanos. Tal fato, entretanto, no impediu que o grotesco virasse moda. Os
comentrios sobre a nova moda, tecidos por Virtrurio, um intelectual do sculo
XVI, so reveladores de seu impacto na esttica tradicional, e j revelam sua
face revolucionria:
(...) todos esses motivos que se originam da realidade, so hoje repudiados comouma voga inqua. Pois, aos retratos do mundo real, prefere-se agora pintar monstrosnas paredes. Em vez de colunas, pintam-se talos canelados (...). Nos seus tmpanos,brotam das razes flores delicadas que se enrolam e desenrolam, sobre as quais seassentam figurinhas sem o menor sentido. Finalmente, os pendculos sustentammeias figuras, umas com cabeas de homem, outras com cabea de animal. Taiscoisas, porm, no existem, nunca existiro e tampouco existiram. Pois como pode,na realidade, um talo suportar um telhado (...),e como podem nascer de razes etrepadeiras seres que so metade flor, metade figura humana (apudKAYSER, 1986,p.18).
significativo que nas primeiras consideraes sobre a arte grotesca de que setm notcias, o substantivo monstro j aparea associado a ela. Tal
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associao, que permanecer nas pocas posteriores enfocadas por Kayser,
fruto de um olhar estrangeiro, como o do Romano sobre o brbaro, e nada tem
a ver com a proposta esttica de seus criadores, para quem aquela arte tinha
como objetivo embelezar a arquitetura. O que importa, aqui, de sua extensa
anlise, a concluso a que chegou KAYSER (1986) quanto aos elementosinseparveis do grotesco, a saber: a mescla do heterogneo, a confuso, o
fantstico e o estranhamento do mundo. Essas caractersticas assemelham-
se, em diversos aspectos, noo freudiana de estranho, pois o grotesco liga-
se menos forma do objeto, do que sensao que este desperta no
observador.
O mais importante trao da arte grotesca, ainda segundo KAYSER (1986), a
suspenso das diferenas entre as espcies, a anulao das ordens da
natureza, pela mistura do animalesco e do humano, o que torna o monstruoso
o principal motivo dessa arte. Logo, compreensvel e coerente que no
romantismo, cuja proposio romper com a esttica clssica, o grotesco
ocupe lugar privilegiado. Suas formas hbridas e insubordinadas desptica
simetria clssica fundamentada no mundo real condizem com a
dionisaca mentalidade romntica, que se ope s apolneas regras clssicas.
Vrios escritores romnticos teorizaram a respeito do grotesco. Para Victor
Hugo, este assunto ocupou o centro de suas reflexes. Hugo tornou o grotesco
a caracterstica essencial e diferenciadora de toda a arte ps-antiga, incluindo
a medieval. Desde o sculo XVIII, com a commedia dellarte, associam-se, no
grotesco, o aspecto sinistro e o cmico e caricato. Victor Hugo no nega talaspecto, porm o considera secundrio. Para ele, o ponto decisivo dessa arte
est no monstruoso e no horripilante, ou simplesmente no feio, que tm
infinitas variantes, frente unicidade do belo (apudKAYSER, 1986, p.59-60).
Todavia, Hugo no esgota sua definio de grotesco ligando-o meramente
aparncia, e sim concebe-o como funo em uma totalidade maior, vendo-o
como plo oposto ao sublime (le sublime). Sob tal perspectiva, o grotesco se
desvela em toda sua profundidade. Pois, assim como o sublime dirige nossoolhar para um mundo mais elevado, sobre-humano, do mesmo modo abre-se
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no ridculo-disforme e no monstruoso-horrvel do grotesco, um mundo
desumano do noturno e abismal (apudKAYSER, 1986).
O monstro de Frankenstein um exemplo emblemtico do grotesco romntico.
Ao mesmo tempo em que provoca horror com sua gigantesca e medonhaaparncia, est ligado a algo sublime, no atravs de Deus, mas, ao contrrio,
por uma divinizao do humano, ou humanizao do Criador. A associao de
Frankenstein a monstro to marcante, que a criatura tomou,
popularmente, o nome do criador. Na lngua Inglesa, essa palavra se encontra
dicionarizada como substantivo. Eis como o Webster define frankenstein: 1:
a work or agency that ruins its originator. 2:a monster in the shape of a man
(Webster, 1981)3. No h qualquer referncia a Victor, e muito menos a Mary
Shelley, o que evoca a matriz edipiana do mito Frankenstein, e faz com que o
criador seja, uma vez mais, destrudo pela criatura, e a autora por sua
personagem. Tal fato sintomtico do impacto que seu aspecto monstruoso e
ameaador (no obstante sua bondade e sofrimento), causa nos leitores e,
acima de tudo, naquela maioria que s o conhece por filmes de terror; estes,
invariavelmente, o apresentam como um ser agressivo, notvel somente por
sua aparncia horrenda e fora fsica, sem qualquer atributo intelectual. Tais
pelculas enfocam caricaturalmente o aspecto sinistro da criatura, o que a faz
beirar o cmico. As inmeras comdias cinematogrficas sobre Frankenstein
confirmam sua vocao pardica, tpica do grotesco. No entanto, inegvel
que o monstro, em suas incontveis representaes, conserva um fascnio e
mistrio, que no o permite se desvincular totalmente da ambigidade de sua
origem grotesca, que remete ao sublime, ao estranhamento e crtica a umaidia oficial e nica de belo, pautada nos princpios realistas da mmese
aristotlica (Aristteles, 1999).
, portanto, fundamental para este estudo, que compreendamos o significado
de monstruoso: a principal caracterstica do grotesco, em geral, e da criatura
frankensteiniana, em particular.
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O verbo latino monstro do qual originou-se o verbo portugus mostrar e o
substantivomonstro, em sua atual concepo deriva do substantivo
monstrum, cujo verbete reproduzo abaixo:
1. prodgio, facto prodigioso (que uma advertncia dos deuses). 2. Tudo o que no natural, monstro, monstruosidade. 3. (p1) atos monstruosos. 4. Desgraa, flagelo,coisa funesta. 5. Coisa, incrvel maravilha, prodgio. (FERREIRA, 1995, grifos meus).
J em monstro, que significa tanto advertir, quanto revelare acusar, so feitas
duas significativas ressalvas: monstro monstrum, porm com a perda do
sentido religioso; um vocbulo da lngua popular, evitado pelos prosadores
da poca de Ccero. (FERREIRA, 1995).
Esclarecidos, aps esta digresso etimolgica, os diferentes significados
presentes na origem da palavra monstro, enfocarei sua natureza contraditria,
que abarca sentidos to opostos quanto coisa funesta e maravilha, e,
principalmente, tentarei entender o que a fez perder sua conotao divina,
tornando-a, alm de profana, pejorativa e desprezada pela lngua culta.
Jeffrey Cohen sugere que a cultura seja lida a partir dos monstros que produz
(COHEN, 2000). De acordo com ele, o monstro existe para ser lido como uma
letra na pgina, significando sempre algo diferente de si prprio. E acrescenta:
Um princpio de incerteza gentica, a essncia do monstro, eis porque ele
sempre se ergue da mesa de dissecao quando seus segredos esto para ser
revelados e desaparece na noite. (COHEN, 2000, p. 27, grifo meu)
O monstro, por sua natureza hbrida e indefinida, um arauto da crise de
categorias pela qual passa o sujeito contemporneo em sua fragmentao.A
criatura de Frankenstein, formada por partes de distintos cadveres e,
portanto, de distintas identidades, cumpre perfeitamente sua funo
monstruosa de, duplamente, revelar e profetizar a crise do sujeito, cujos
sinais j podiam ser percebidos no sculo XIX. O mesmo sculo que levou a
noo de individualidade a um ponto at ento inconcebvel.
33 11:: ttrraabbaallhhoo oouu eemmpprreeeennddiimmeennttoo,, qquuee aarrrruuiinnaa sseeuu aauuttoorr..22:: mmoonnssttrroo ccoomm aa ffoorrmmaa hhuummaannaa..
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causa temor. Se o duplo o estranho, o ameaador desdobramento de si,
tambm o monstro, ao revelar, faz lembrar(e este um dos sentidos que o
dicionrio lhe atribui) e despertar o recalcado. Por que teria a revelao
degredado-se, de divina que era, para profana? Tal questionamento remete-
me hiptese de que o ntimo (heimlich) e o estranho (unheimlich),revelados pelo monstro, nem sempre foram abominados, mas sim divinizados
e reverenciados.
Na modernidade, consolidou-se a idia de um sujeito singular, com pleno
comando de sua vida e sem um Deus para castig-lo ou salv-lo na vida
eterna, o que tornou a morte ainda mais temvel. , portanto, compreensvel
que a cultura moderna tenha fortes traos histricos. Tememos o corpo por
sabermos, ineludivelmente, da inevitvel coincidncia entre seu fim e o nosso.
A morte, a que estamos inevitavelmente condenados, conseqncia de nossa
corporalidade. Esta condio torna o corpo o duplo antagnico da razo, que
teima em neg-lo para, assim, preservar sua ilusria onipotncia. Isso faz com
que o progresso, principal veculo do racionalismo, tenha como meta
primordial vencer a morte. Se na Idade Mdia o corpo esteve associado ao
pecado, na modernidade sua malignidade provm de sua inexorvel finitude.
A anlise acima evidencia que o fortalecimento moderno da individualizao
implica o fortalecimento do duplo. Este duplo, no caso de Victor Frankenstein,
nitidamente antagnico, e denuncia (e este outro dos vrios sentidos de
monstro) a fragilidade do pretensamente onipotente sujeito moderno, da
mesma forma que a criatura de Frankenstein expe a vulnerabilidade de seucriador.
O medo da morte a semente que faz brotar o duplo. Na modernidade, como
pontua Walter Benjamim em O narrador (1993), a morte perde sua fora
pedaggica devido ao declnio da idia de eternidade, e de exemplar passa a
temida e execrada. Tal temor gera a estranheza incmoda, de que fala
Freud. Este processo , em tudo, semelhante quele pelo qual passa o monstro
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que, como a morte, decai de proftico mensageiro dos deuses a temvel
inimigo dos homens.
Se considerarmos o etnocentrismo como o individualizar-se de uma cultura,
atravs da exaltao de sua superioridade sobre as demais, fica bvio que adissociao seja marcada pela projeo do duplo antagnico no que
culturalmente distinto. Esse eu coletivo sente-se mortalmente ameaado por
culturas que lhe so estranhas e defende-se delas considerando-as inferiores,
negando e subvertendo seus traos identitrios e, muitas vezes,
exterminando-as.
Para Freud, como vimos, o recalcado retorna sob a forma de sintoma. Tal
sintoma o prprio monstro, o diferente, que por fazer lembrar a
mortalidade humana, recalcada pelo racionalismo , aterroriza a sociedade
moderna.
J vimos que o monstro, por sua prpria etimologia, pode ser maravilhoso ou
funesto. Enquanto aquele que revela tem carter benfico, pois atravs do
sintoma, que se detecta a doena e, assim, sua possibilidade de cura. No
entanto (e este parece ser o caso do sujeito moderno), se o tomamos pela
prpria doena, e o negamos e recalcamos por nos fazer lembrar de nossa
finitude e, para preservar o sentimento de onipotncia que mascara nossa
impotncia, o negamos e recalcamos, padeceremos da doena que ele
prenuncia.
A anlise acima leva-me a concluir que este horror ao Outro a doena da
qual padece a sociedade ocidental moderna. O escritor irlands Oscar Wilde,
no fim do sculo XIX, faz a perspicaz leitura dessa enfermidade: a averso do
sculo XIX ao Realismo a clera de Caliban por ver seu rosto no espelho, a
averso do sculo XIX ao Romantismo a clera de Caliban por no ver seu
rosto no espelho (WILDE, 1961, p. 55)
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A clera de Dr. Frankenstein (para utilizar a metfora wildeana), ao ver sua
criatura, o unheimlich da modernidade por ver no espelho romntico tudo o
que havia negado em si prprio. J a clera da criatura, o unheimlich
romntico ao no se ver no rosto da modernidade, que a rejeita e recalca. As
passagens abaixo referem-se, respectivamente, a estas duas situaes:
Eu considerava o ser que eu havia liberado entre a humanidade e dotado de vontadee fora para praticar horrores, como o que acabava de fazer, quase como meuespectro, meu prprio esprito fugido da sepultura, e obrigado a destruir tudo o queme era caro. (SHELLEY, 1985, p.74)Maldito criador! Por que voc me fez um monstro to horroroso que at mesmo vocfoge de mim! Deus em sua piedade fez o homem belo e atraente, mas a minha forma uma terrvel contrafeio da sua, mais horrvel ainda quando comparada sua(SHELLEY, 1985, p.126).
da tenso dramtica entre o sujeito e seu duplo, que na modernidade atinge
nveis extremamente crticos e dilacerantes, que surge emblematicamente o
mito FR, cujos aspectos esto presentes significativamente na cultura e cincia
contemporneas.
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