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doi: 10.4025/10jeam.ppeuem.03025
O ENFRAQUECIMENTO DO MITO E A ASCENSÃO DA
RACIONALIDADE: O FENÔMENO FORMATIVO SOB A ÓTICA
SOFOCLIANA
FERNANDES GOMES, Renan Willian (CAPES/PPE/UEM-GTSEAM)
ROSSETTO, Mariana de Souza (CAPES/PPE/UEM-GTSEAM)
PEREIRA MELO, José Joaquim (DFE/PPE/UEM-GTSEAM)
Considerações iniciais
Predominava na Grécia Antiga, especialmente nos séculos VI-VIII, uma concepção
mítica para explicar o mundo e a existência humana. Os épicos A Ilíada e A Odisséia, que
se acredita serem de autoria do poeta Homero, retratam o imaginário popular que
predominava na Grécia, ou seja, uma concepção mitificada da realidade, que tinha como
função justificar/explicar os fenômenos naturais, bem como o destino do homem.
Essencialmente, os cidadãos criam que os deuses lhe traçavam tudo o que lhes acontecia,
de modo que não podiam lutar contra um destino arquitetado previamente pelas forças
olímpicas.
Para melhor entender esse período, importa considerar que o sistema político/social
dele estava baseado no génos, organização tipicamente familiar, cuja crença principal era
na religião doméstica. Economicamente, significativo era nessa sociedade a agricultura,
porquanto garantia a subsistência e a vida de toda uma comunidade.
O mito era a fonte de todo o pensamento grego, era sobre ele que se
fundamentavam os princípios e valores desse povo, que, como já mencionado, se
organizava pelo sistema do génos. Sistema econômico-social que, com o advento da
racionalidade, passou a deixar de corresponder às demandas sociais.
O motivador desse processo foi, entre outras coisas, as novas relações de troca, o
comércio em maior escala em substituição às trocas simples entre os integrantes de um
mesmo génos e até com outros, fato que promoveu e fomentou expansões marítimas a fim
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de se buscar novas terras “[...] A onda de colonização ultramarina dos séculos VIII e VI foi
a expressão mais evidente deste desenvolvimento” (Anderson apud PINSKY, 1982, p.
170).
Houve, então, espaço para que a racionalidade ascendesse e um novo sistema de
organização social se consolidasse, a Cidade-Estado, que substituía agora as antigas
comunidades gentílicas. Contudo, isso não quer dizer que esse novo modo de se organizar
socialmente tenha de todo rompido com o velho sistema patriarcal. Seu aparecimento, no
plano intelectual e no controle/domínio das instituições, só no fim alcançou suas
conseqüências.
Em outras palavras, os resultados desse reordenar-se social-político-econômico-
cultural (a pólis), somente mais tarde, alcançou/evidenciou reflexos de maior importância
na vida grega, ou seja, conheceu etapas de caráter múltiplo e formas diversificadas, mas,
indubitavelmente, “[...] marca um começo, uma verdadeira invenção; pois a vida social e
as relações entre os homens tomam uma forma nova, cuja originalidade será plenamente
sentida pelos gregos (VERNANT, 2002, p. 53).
Com essa nova etapa de desenvolvimento social, o homem helênico se viu frente à
necessidade de participar nos rumos da sociedade, das decisões, enfim, sua conduta agora
deveria ser voltada para o bem e/ou manutenção dessa nova ordem, que exigia dele uma
posição mais ativa como cidadão.
Daí entender que, orientando-se por um código de leis escritas, não mais divinas e,
sim, racionais, escritas pelas suas próprias mãos, o homem passar a tirar seus olhos da
tradição mítica e voltar sua atenção ao que agora se desenvolvia em sua sociedade, a razão.
Em meio a esse processo, o cidadão podia perceber que mudanças profundas
concernentes à sua forma de se produzir a vida ganhavam forma, tuteladas não mais pelo
mito, mas, sim, pela racionalidade. Entrementes, importa considerar que esse processo de
reorganização tanto da sociedade quanto do próprio pensamento/imaginário grego não se
deu de maneira abrupta, pois, frente a essa nova fase, o grego vivenciou
contradições/conflitos.
Se, de um lado, ele tinha a sua vida traçada pelos deuses — cuja palavra e desejos
não poderiam ser contestados sob pena de punições —, de outro, configurava-se a
possibilidade de agir a partir da sua vontade, escrever a sua própria história e responder por
seus atos.
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Essas questões foram devidamente representadas em expressões artísticas surgidas
na Grécia, particularmente na tragédia1: “[...] a contradição trágica pode situar-se no
mundo dos deuses, e seus pólos opostos podem chamar-se Deus e homem, ou podem
tratar-se de adversários que se levantam um contra o outro no próprio peito do homem”
(LESKY, 1996, p.31).
Sucintamente, a diegese trágica se trata, na realidade, de uma trama baseada na
crise acarretada pela ambigüidade. Isto é, seu cerne de sentido é um conflito entre duas
forças opostas, particularmente: o mítico e o racional, conflito este que, escrito pelo poeta,
evidenciava-se. Daí “[...] a função primordial da tragédia ser a palavra poética que
responde à situação do século V a.C.” (COSTA; REMÉDIOS, 1995, p.8).
Assim sendo, é pertinente entender o gênero trágico como um tipo de “fonte
histórica” para se compreender o processo pelo qual passou a Grécia, bem como das novas
maneiras que se pensavam para formar o homem a fim de viver os novos tempos. Esse
processo, vamos assim chamar de “readaptação”, deixou o homem fronteiriço entre o mito
e a razão; o helênico se encontrou carente de direções, necessitava de rumos. Foi então que
a tragédia, apesar de sua orientação cênico-artística vir em primeiro lugar, serviu como
uma maneira informal para se educar/formar o cidadão grego.
A tragédia como educadora dos gregos
A celebração ao deus Dionísio era o princípio do gênero trágico, uma vez que “Era
él, en efecto, el dios de las exaltaciones extáticas, y ejerció natural señorío sobre cuantos se
sentían en contacto con los secretos de la naturaleza o procuraban indagar los misterios que
gobiernan la existencia humana (BOWRA, 1948).
Para além, o mito se constitui em matéria-prima/fonte da tragédia, em sua forma
bruta; nele, o poeta trágico buscou inspiração para criar suas personagens, o que não
1Expressão artística que nasceu na cidade de Atenas em meados do século V a.C. Em princípio, os dramas eram representados nas festas populares em homenagem ao deus Dionísio, como parte das celebrações que ocorriam no começo da primavera. Inicialmente, as comemorações em homenagem ao deus Dioniso foram marcadas por danças e rituais de celebração a esse deus; de maneira gradativa, estas manifestações ganharam forma mais elaborada, o que, mais tarde, favoreceu a encenação. “Estes rituais eram constituídos por diversos componentes, como coro, sátiros e outros personagens, que utilizavam máscaras e fantasias para relembrarem do mito de Dioniso” (ROCHA, 2007, p.43).
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poderia ser diferente, pois, afinal, o mito foi a “[...] fonte de todo pensamento grego”
(GRIMAL, 1985).
Naquele período, expressões artísticas como a epopeia e a lírica já estavam prontas,
enquanto conhecimentos como a filosofia, a historiografia e a retórica estavam passando
por significativo desenvolvimento.
Ao lançar mão desses conhecimentos novos, a tragédia se apresentou como um
ponto de confluência das artes. Além disso, não se esqueceu da dança e da música, pois,
pela tendência a despertar um maior interesse, estas eram fundamentais na montagem da
representação (SCHULER, 1985).
A essa representação da realidade promovida pela dramaturgia, Aristóteles chamou
mímese.
A palavra mimese, mímesis, recebeu-a Aristóteles de seu mestre Platão, rejeitando, porém, in limine, a dialética platônica da essência e da aparência. Para Platão o poeta é um re-criador inconsciente. Reproduz tão-somente reproduções existentes, porquanto a matriz original, criação divina e perfeita, bela e boa, fonte e razão dos exemplares existentes neste mundo, encontra-se na região do eidos, no mundo das idéias (BRANDÃO, 2001, p.12-13).
A dramaturgia, tanto em seu recorte artístico quanto formador, possibilitou uma
reflexão sobre esses novos tempos. Houve, pode-se assim dizer, um processo de
dessacralização do pensamento. O homem então retirava seus olhos do Olimpo e passava a
contemplar a pólis, a realização concreta e palpável da razão, do individual e também do
coletivo (NAGEL, 2006).
Dessa maneira, a pedagogia das peças teatrais abria campo para se discutir o pensar
racional versus o pensar mítico.
Coloca ao grande público (sem sistematizações acadêmicas), em uma visibilidade mais concreta, a condição humana de precariedade e de angústia pelo desconhecido. Mobiliza para a observação e a interpretação de princípios naturais, de necessidades internas dos fenômenos, ligadas, fundamentalmente, ao ciclo da vida, ou seja, nascimento, crescimento, realização, decadência, dissolução. Exerce, assim, um papel imprescindível na compreensão de um mundo movido por leis, basilar para o aprimoramento da auto-consciência que passa a reconhecer a diferença entre destino e necessidade” (NAGEL, 2006, p.87).
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O poeta, em seu papel formador, apresenta nos enredos as indecisões, as angústias,
as dores e os conflitos vividos pelos homens de seu tempo, situações provocadas por
decisões e/ou penalidades acometidas àqueles que infringiam a lei divina.
Dentre os dramaturgos dessa época, merece destaque Sófocles (496-405 a.C), cujas
tragédias de caráter fundamentalmente antropocêntrico e teosférico apresentam herois que
possuem vontade própria, um desejo de serem livres para conduzir sua vida
independentemente das consequências de seus atos. Contudo, Sófocles, ao colocar em tela
esses novos modelos de comportamento, não negou os velhos mitos/tradições gentílicas.
Os deuses, por sua vez, agem de forma distanciada, por meio de adivinhos e de oráculos
(BRANDÃO, 2001).
Em contrapartida, quando se leva em consideração as personagens humanas das
tragédias, avulta-se o fato de que seus personagens centrais, nos dizeres de Werner Jaeger
(1995, p.326-327), “[...] encarnarem a mais alta arete, tal como a conceberam os grandes
educadores do seu tempo.”
Nascido em Colono, o tragediógrafo vivenciou o tempo áureo do progresso na
cidade de Atenas. Nesses tempos de apogeu, por existirem divergências entre a antiga
aristocracia gentílica e os cidadãos da pólis, os quais, mais tarde, seriam a nova aristocracia
(Anderson apud PINSKI, 1982), uma nova classe de homens se revelou bastante
diversificada, visto que eles agora procuravam maior participação na política, ao contrário
de se deixarem ser guiados pelos desígnios dos deuses.
Sófocles, homem dessa era, presenciou todas estas transformações. Ele foi
testemunha ocular de uma série de contradições provenientes do embate entre o mito que
perdia seu sentido de ser e a racionalidade que se consolidava. Participante engajado na
vida política de sua pátria, foi tesoureiro-geral de Atenas (443-2) e foi eleito, no mínimo,
duas vezes estratego. Nessa atividade ele ficou muito aquém, em termos de renome, de sua
excelência como poeta (KURY, 2001).
Assim, pode-se dizer que, com a leitura do enredo trágico sofocliano, resquícios da
velha sociedade ainda se faziam presentes. Não era incrédulo o dramatista nas antigas
tradições patriarcais, porém, estava “contagiado” pelo sentimento que nascia/ascendia com
esses novos tempos racionais. “Também Sófocles tem uma piedade profundamente
enraizada. Mas as suas obras não são em primeiro lugar a expressão dessa fé” (JAEGER,
1995, p. 317).
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Em Antígona, a questão da queda do enfraquecimento do mito e ascensão da
racionalidade é apresentada.
Decorrente de uma trama ulterior — Édipo Rei —, a peça em tela traz os filhos do
casamento incestuoso: Etéocles, Polínices, Ismene e a protagonista Antígona. Esta é a
heroína reacionária da peça. Resumidamente, o enredo traz: a luta de Antígona para fazer
valer os antigos costumes da sociedade grega, especificamente prestar honras fúnebres aos
mortos.
Assumindo o poder após a morte dos príncipes, Creonte se revelou um tirano, pois
ordenou (por meio de um édito) que o corpo de Polínices — considerado desertor de Tebas
— fosse deixado para os pássaros, sem merecer um enterro digno. Indo contra sua
determinação, Antígona, respaldada nos princípios religiosos que se recusava a abandonar,
decidiu prestar honras ao cadáver do irmão. Escusado é mencionar que sua postura
afrontou Creonte, que, para além de ser seu tio e rei de Tebas, também era pai de seu noivo
Hêmon.
Por transgredir o édito real, a pena angariada pela princesa foi sua sentença de
morte. Entrementes, Tirésias (personagem com o dom da adivinhação), quando convocado
por Creonte, premoniu infortúnios decorrentes do caráter tirânico da ordem real.
Infortúnios esses que favoreciam aos interesses da maioria dos tebanos, porquanto ainda se
tinha crença em costumes gentílicos. Apesar de relutar, o rei volta atrás na sua postura que
até então parecia irredutível, porém, já é tarde. Antígona fora exilada numa caverna e se
enforcara, deixando Hêmon devastado.
Importa destacar aqui alguns pontos sobre os personagens centrais da peça. Creonte
é o legislador que, em nome do bem coletivo, passa por cima das crenças presentes na
sociedade para impor o peso da lei escrita. Revela-se dono de uma personalidade que se
desvincula dos costumes mítico-religiosos, contrapondo-se à Antígona, defensora ferrenha
das antigas tradições.
Creonte é descrito como o homem que elabora as leis sob a égide dos princípios da
racionalidade, representando, assim, indivíduos que buscavam ascensão pela política e
interessavam-se pela participação ativa na vida pública, enquanto Antígona se empenhava
em recuperar o espaço perdido e fazer prevalecer as leis dos deuses.
ANTÍGONA
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Esse é o decreto imposto pelo bom Creonte a mim e a ti (melhor dizendo: a mim somente); vê-lo ás aparecer dentro de pouco tempo a fim de alardear o edito claramente a quem ainda o desconhece. Ele não dá pouca importância ao caso: impõe aos transgressores a pena de apedrejamento até a morte perante o povo todo. Agora sabes disso e muito breve irás tu mesma demonstrar se és bem-nascida ou filha indigna de pais nobres (SÓFOCLES, Antígona, vv 35-44, p. 202).
Creonte figura as atitudes esperadas pelo dirigente do Estado, corroborando o poder
individual. Sófocles destaca os resultados indesejáveis que são acarretados por decisões
irrefletidas, inerentes a um governo totalitário/tirânico. Para além, com a peça, é possível
apreender que o novo cenário que se configurava para a sociedade helênica causava
espanto, ou mesmo, resistência por parte dos homens, particularmente por aqueles que não
seriam de modo algum beneficiados pelo novo regime que se instaurava.
Exemplo disso é a postura adotada por Antígona, que luta por seus interesses.
Tendo em mente a idéia/noção atual de política, é interessante interpretar que Creonte tem
a perspicácia/astúcia de um chefe de Estado, pois procura moldar as particularidades da
sociedade que se organiza de acordo com as demandas de uma prática política impositora
de leis, as quais nem sempre estão preocupadas com o pensamento que reside na
mentalidade daqueles que obedecerão a ela.
Destarte, Sófocles se encarregou de atribuir a Creonte o papel do homem que se
afastava de qualquer tipo de desordem, postura mediante a qual desmandos e
arbitrariedades justificam a manutenção da ordem, sem a consideração por credos
particulares das minorias. Assim, o tirano é um verdadeiro exemplo de político: incita nos
cidadãos o sentimento da grandeza e do amor patriótico (JAEGER, 1995).
Sófocles ilustra a postura creontina quando do diálogo com o filho, o príncipe
Hêmon. Este acusa o pai de não respeitar os interesses de seus concidadãos. Em sua fala, o
poeta transpôs habilmente a razoabilidade de estar atento a escutar a todos dentro de um
regime que é dito democrático.
HÊMON Os deuses, pai, implantaram no homem a razão - o bem maior de todos. Se falaste certo
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acerca dessas coisas, não posso dizer (jamais em minha vida eu seja capaz disso!) Mas outros também podem ter boas idéias. É meu dever notar por ti, naturalmente, tudo que os outros dizem, fazem ou censuram, pois o teu cenho inspirador de medo impede os homens simples de pronunciar palavras que firam teus ouvidos. Eu, porém, na sombra, ouço o murmúrio, escuto as queixas da cidade... (SÓFOCLES, Antígona, vv 776-784, p. 230-231).
Arguindo com o pai, o príncipe se afilia a um discurso que consiste no ouvir a
opinião dos demais habitantes da Cidade-Estado. Seu posicionamento é abertamente contra
o perfil tirânico do rei, seu pai. Creonte, por seu turno, é colocado numa posição de
dirigente de massas que não reflete/pondera acerca dos desejos da população, dado que ele
coloca um peso muito maior no édito do que propriamente nas velhas tradições que ainda
tinham guarida no imaginário helênico.
Ao estabelecer implicitamente uma defesa aos interesses dos indivíduos por meio
de Hêmon, o dramatista de Colono considera que o rei nutre, na verdade, desprezo pelas
leis naturais; do mesmo modo que alerta, que, mesmo sendo a maneira de se governar
coletiva na política, seria inviável perder/desconsiderar completamente o que havia sido
consagrado pela tradição.
Sendo assim, a força trágica sofocliana se expressa na punição imposta por Creonte
à Antígona, porquanto que tal feito resulta na morte de Hêmon e de sua esposa, Eurídice,
que se mata ao saber do suicídio do filho. Nem mesmo as profecias de Tirésias foram
suficientes para demovê-lo de transgredir as leis divinas. Daí entender o teatro como um
tipo de “pedagogo”, que alerta o público quanto às atitudes/feitos impensados/desmedidos.
Dessa maneira, estavam em pauta na diegese trágica tanto a desdita de Creonte, que
vê sua família entregue à morte trágica — consequência de suas decisões contrárias aos
quereres olímpicos —, quanto à desdita de Antígona, que justifica seu ato afirmando
prestar obediência às normas eternas e irrevogáveis.
Antígona aponta para o entendimento de que Creonte e suas imposições estão em
desarmonia com a vontade dos deuses e, ainda, com as tradições seculares dos tebanos.
ANTÍGONA Mas Zeus não foi o arauto delas para mim,
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nem essas leis são as ditadas entre os homens pela Justiça, companheira de morada dos deuses infernais; e não me pareceu que tuas determinações tivessem força para impor aos mortais até a obrigação de transgredir normas divinas, não escritas, inevitáveis; não é de hoje, não é de ontem, é desde os tempos mais remotos que elas vigem, sem que ninguém possa dizer quando surgiram. (ANTÍGONA, vv 511-520, p. 219)
A personagem deixava ao público algumas reflexões próprias do momento de
transição, como, por exemplo, o ideal de homem político para a pólis. Além da contradição
exposta nas figuras de Creonte e Antígona, Sófocles também imprimiu na peça aspectos
relevantes sobre a questão da democracia, sobretudo na figura de Hêmom, o qual instiga o
direito do cidadão em opinar nas decisões da Cidade-Estado.
Nessa esteira de raciocínio, pode-se considerar que a relação de poder estabelecida
entre o humano e o divino colocava o homem numa encruzilhada, sem saber qual rumo
tomar, qual ordem seguir (COSTA; REMÉDIOS, 1988). Dessa forma, a tragédia se
localiza onde os atos humanos se articulam com os dos deuses.
A antiga tirania é intermediária entre a realeza patriarcal dos tempos primitivos e a demagogia do período democrático. Embora conservando a forma exterior do Estado aristocrático, o tirano procurava reunir, tanto quanto possível, todos os poderes nas suas mãos e nas do círculo dos seus partidários. Para isso apóia-se numa força militar não muito grande, mas eficiente (JAEGER, 1995, p.275).
Destarte, em seu palco, Sófocles antagonizou dois personagens distintos, com
perspectivas diferenciadas de mundo, de sociedade e de homem: a princesa, que tinha em
vista a manutenção da(o) tradição/sagrado, e o tirano, que impõe a obediência às leis da
pólis, a manutenção da nova ordem social objetivando a sustentação do Estado, de maneira
a atender às necessidades que se configuravam então.
Considerações finais
Dadas as reflexões acima feitas, é possível concluir que Sófocles, do mesmo modo
que suas personagens, presenciou e/ou sentiu os conflitos existentes na pólis. Isso quer
dizer que o dramatista foi testemunha da ascensão cultural desse período, bem como da
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consolidação do regime democrático, o surgimento da racionalidade e a economia em forte
crescimento. Acrescente-se a isso que o poeta viu o enfraquecimento e a desestruturação da
sociedade em que, assim como Antígona, nasceu e foi criado.
Por ter respeitado as leis divinas, a heroína sofocliana encontrou sua perenidade na
morte, tornando-se, assim, exemplo a ser seguido pelo mundo grego. A forma com que
Sófocles representa o sofrimento de sua protagonista aponta caminhos para a realização de
um fenômeno formativo, uma vez que possibilita reflexão, bem como a preparação do
homem e o seu fortalecimento para viver em sintonia com sua sociedade em
transformação.
Com sua trama, dando expressão à ordem religiosa e moral, o poeta leva o público
a pensar sobre o mérito da questão, ou seja, a distinguir qual seria a melhor posição a ser
assumida entre a tradição e a inovação, ou seja, a definir juiz e réu, carrasco e vítima
(PULQUÉRIO, 1968), já que as duas personagens defendiam o que acreditavam ser o
melhor para a sociedade.
Dessa forma, por meio das idas e vindas de suas personagens, Sófocles criou
condições para que a reflexão sobre as transformações de seu tempo fossem decorrentes de
opiniões moderadas, respeitando a religião e a moral (BOWRA, 1976). Isso se explica pelo
fato de que, em boa parte, apesar da transição de ordem religiosa que se processava, além
do processo de reordenamento social, o mito e os deuses ainda serem presenças marcantes
na sociedade grega.
Assim, o desenvolvimento da ação da sua tragédia não inviabilizou a humanização
de suas personagens, dotadas de defeitos e vontades. Mais do que isso, o homem
sofocliano, apesar do clima de conflito em que se envolvia, é incentivado a buscar uma
“medida”, um equilíbrio para si (JAEGER, 1995). Esta busca pela “medida”, contudo, não
confere às personagens um comportamento estável: ora elas se apresentam certas de suas
ações, legitimadas pelos deuses, ora duvidosas e temerosas por estarem infringindo o que
teria sido traçado por forças superiores. Isto é, elas refletem o mundo instável em que
viviam — a crise do mundo grego.
Embora as tragédias terem sido escritas para serem encenadas como espetáculo de
arte, não se pode estimar se o poeta trágico tinha consciência da importância de sua
dramaturgia como instrumento formativo. Entrementes, vale reafirmar que sua obra
contribuía para formar concepções requisitadas para a vida na pólis.
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Essa preocupação pedagógica sofocliana permite compreender que havia, ainda que
não intencionalmente, a necessidade de se pensar um novo modelo de formação segundo
os reclames e necessidades daquela sociedade; importa aqui considerar que os problemas
enfrentados na Grécia podem se aproximar dos complexos problemas que os homens
enfrentam em nossos dias.
Para além, o estudo do enredo trágico, particularmente o sofocliano, pode levar ao
entendimento de que as preocupações com o aperfeiçoamento do homem apresentam
traços de semelhanças em todos os tempos, lugares e culturas, mas, sempre, ganham
diferentes matizes de acordo com as particularidades de cada época.
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