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UNIVERSIDADE SO JUDAS TADEU
Emerson Ferreira da Rocha
O ESTADO DE NATUREZA: MEDO E ESPERANA EM HOBBES
So Paulo 2010
2
UNIVERSIDADE SO JUDAS TADEU
Emerson Ferreira da Rocha
O ESTADO DE NATUREZA: MEDO E ESPERANA EM HOBBES
Dissertao de Mestrado apresentada ao Departamento de Filosofia da Universidade So Judas Tadeu USJT, sob a orientao do Prof. Dr. Paulo Jonas de Lima Piva.
3
Rocha, Emerson Ferreira da
O estado de natureza: medo e esperana em Hobbes / Emerson Ferreira da
Rocha. - So Paulo, 2010.
99 f. ; 30 cm
Orientador: Paulo Jonas de Lima Piva
Dissertao (mestrado) Universidade So Judas Tadeu, So Paulo, 2010.
1. Hobbes, Thomas, 1588-1679 - Crtica e interpretao. 2.
Natureza humana. I. Piva, Paulo Jonas de Lima. II. Universidade
So Judas Tadeu, Programa de Ps-Graduao Stricto Sensu em
Filosofia. III. Ttulo
CDD 192
4
FOLHA DE APROVAO EMERSON FERREIRA DA ROCHA
O ESTADO DE NATUREZA: MEDO E ESPERANA EM HOBBES
Dissertao apresentada ao Programa Ps-Graduao para obteno do ttulo de Mestre em Filosofia na Universidade So Judas Tadeu - USJT.
So Paulo, 09 de agosto de 2010.
Orientador:
_____________________
Prof. Dr. Paulo Jonas de Lima Piva
Universidade So Judas Tadeu
Examinador:
______________________
Prof. Dr. Floriano Jonas Cesar
Universidade So Judas Tadeu
Examinadora:
______________________
Profa. Dra. Eunice Ostrensky
Universidade de So Paulo- USP
5
DEDICATRIA
aos meus pais, que, muito cedo, deixaram o serto nordestino para construir uma vida na cidade grande; e minha noiva e futura esposa Denize Donato, a qual,
com todo amor, me ajudou nos momentos difceis deste trabalho.
6
AGRADECIMENTOS
coordenao e ao corpo docente da Universidade So Judas - USJT, em especial ao professor Dr. Paulo Jonas Lima Piva, que, com enorme pacincia, ajudou-me; minha famlia e noiva pela ajuda prestada; e aos meus amigos, em especial, a Leandro Lopes e Juliana Moura.
7
RESUMO
O propsito principal deste trabalho tratar do estado de natureza em
Thomas Hobbes (1588-1679), mais exatamente, promover uma reflexo sobre o
papel das paixes humanas nessa situao, na qual o Estado inexiste, em
especial, o papel do medo e da esperana. Para tal empreendimento, tomaremos
por base sobretudo o Leviat (1651), obra mais desenvolvida e pertencente fase
de maturidade do filsofo. Faremos isso em trs momentos. Num primeiro
momento, apresentaremos as paixes humanas e a sua origem de acordo com o
nosso autor. Em seguida, passaremos a expor como as paixes agem entre os
homens durante o estado de natureza. Finalmente, abordaremos o tema da
passagem dos homens do estado de natureza para o estado civil e como essas
paixes impulsionam tal passagem.
Palavras chave: estado de natureza- paixes esperana medo.
8
ABSTRACT
The main purpose of this study is to address the state of nature, Thomas Hobbes (1588-1679), more exactly, to promote reflection on the role of human passions in this situation, in which the state does not exist, in particular the role of fear and hope. For this undertaking, we shall mainly based on the Leviathan (1651), a work further developed and owned by the maturity of the philosopher. We will do this in three stages. At first, we present the human passions and their origin according to our author. Then we will expose how the passions of men act during the state of nature. Finally, we discuss the theme of the passage of men from the state of nature to the marital status and how those passions drive this transition.
Keywords: state of nature- passions - hope - fear.
9
SUMRIO
INTRODUO..........................................................................................................p. 10
CAPTULO 1 O homem que deseja: Hobbes e as paixes...............................................................p. 18 CAPTULO 2 O homem que deseja: as paixes entre os homens....................................................p. 40 CAPTULO 3 Razo e esperana: as paixes no estado civil...........................................................p. 67 Concluso..................................................................................................................p. 96 Bibliografia....................................................................................................................p. 98
10
INTRODUO
Thomas Hobbes figura entre os mais importantes filsofos da histria da
filosofia poltica. Nasceu em 1588, na Inglaterra, em Malmesburg, durante o ano
da incrvel armada, que foi uma esquadra reunida pelo rei Filipe II, rei da
Espanha, em 1588, na tentativa de pr fim sua guerra contra a Inglaterra. Esta
batalha foi a maior batalha da Guerra Anglo-Espanhola e consolidou a tentativa de
Filipe II se impor no domnio dos mares. Hobbes tambm viveu durante o
conturbado perodo da guerra civil inglesa. Segundo Julio Bernardes, no seu livro
de introduo ao pensamento do filsofo, o perodo histrico no qual viveu
Hobbes marcado por contendas ideolgicas, conflitos polticos e religiosos e
pelas recentes descobertas de novos continentes 1. Os escritos do nosso autor
sero profundamente marcados por esses conflitos. O filsofo viveu at 1679.
Hobbes fora um aluno brilhante e a sua facilidade com as letras rendeu-lhe
alguns trabalhos na rea de traduo. Essa habilidade para traduzir textos antigos
era extremamente valorizada na poca em que viveu, tanto que, em 1629, ele
publica uma traduo da Guerra do Peloponeso, de Tucdides.
O filsofo tambm trabalhou durante muitos anos para a famlia Cavendish,
com quem esteve ligado, mesmo que indiretamente, por toda a sua vida. A famlia
Cavendish, vale dizer, era uma das famlias aristocrticas mais ricas e influentes
na Inglaterra desde o sculo XVI. Nosso autor foi nomeado, em 1608, preceptor
do filho de Willian Cavendish, primeiro conde de Devonshire. O trabalho na casa
dos Cavendish rendeu a Hobbes o contato com muitas pessoas influentes do
mundo poltico e acadmico, dentre elas, personalidades como cardeais de Roma
e personalidades de Genebra. Em 1634, por exemplo, Hobbes encontrar-se com
Galileu numa viagem. Esses encontros foram possibilitados nas trs primeiras
viagens de Hobbes com o filho do conde. O prprio Hobbes, na carta dedicatria
1 Bernardes. Julio. Hobbes & A Liberdade. p. 08. Jorge Zahar Editor. Rio de Janeiro, 2002.
11
do De Cive (1642), cujo livro foi dedicado ao conde William de Devonshire,
reconhece a importncia e a influncia dessa famlia nos seus estudos. Vejamos:
Por conseguinte, ofereo este livro em primeiro lugar, no ao
favor de vossa senhoria, mas a vossa censura. (...). Vossa senhoria h
de aceit-lo como penhor de minha gratido, pois que os meios de estudo
que sua bondade me proporcionou eu consagrei a procurar merecer o
seu favor 2.
Alm do contato do filsofo com o ambiente dessas personalidades, o
contato com as mudanas provocadas pela nova cincia tambm foi
determinante na sua formao. A esse respeito, Bernardes afirma: Pode-se dizer
que duas coisas mudaram definitivamente a vida intelectual de Thomas Hobbes: o
espanto com as verdades a priori da geometria de Euclides e a fsica de Galileu 3.
J Renato Janine Ribeiro, na introduo da edio brasileira do De Cive,
afirma que devemos salientar esse enamoramento de Hobbes pela cincia dos
corpos4. Alis, o prprio Hobbes confirma que, ao terminar o Leviat em 1651, ele
ficara feliz em poder voltar para as suas especulaes iniciais sobre os corpos
naturais. Na verdade, ainda segundo Janine Ribeiro, as questes polticas da
Inglaterra, especialmente as ocorridas entre os 1625 e 1649, e os conflitos
internos, fizeram Hobbes adiantar-se na publicao dos seus estudos sobre a
poltica5. Janine Ribeiro continua:
Hobbes planejava escrever a sua obra em trs etapas. A
primeira se voltaria para o exame dos corpos; seria sua fsica. Na
segunda, consideraria, dentre os corpos, em particular o dos homens o
2 Hobbes, Thomas. De Cive. p. 3. Ed. Martins Fontes. So Paulo, 2002.
3 Bernardes, Julio. Hobbes & A Liberdade. p. 12.
4 Cf. Ribeiro, Renato Janine. In. De Cive. p. 21.
5 Cf. Idem. p. 22.
12
que em linguagem de hoje chamaramos sua psicologia. Na terceira,
finalmente estudaria os homens enquanto cidados: a poltica 6.
Com o Renascimento, carreiras como a escolhida por Hobbes, isto , ser
preceptor do filho de um conde e tradutor de textos clssicos, eram extremamente
valorizadas. Para os renascentistas, conhecer os clssicos era um meio de formar
homens que pudessem, mediante a poltica, melhorar a vida social. A retomada da
literatura clssica, como a de Ccero, por exemplo, podia fazer do homem
moderno um cidado mais atuante na transformao do seu meio social. Vejamos
como Richard Tuck, na introduo do Leviat, apresenta esse contato dos
renascentistas com Ccero:
O objetivo do conhecimento dos clssicos era equipar um
homem para o tipo de servio pblico que heris como Ccero haviam
desempenhado: o melhor modo de vida (acreditavam eles) era a do
cidado ativo e comprometido, lutando pela liberdade da repblica ou
usando as suas habilidades oratrias para convencer outros cidados a
lutar com ele 7.
Esse ideal presente na poltica ciceroniana ser por Hobbes abandonada,
trocando-o pelo pensamento de Tcito. No foi s Hobbes que comeou a
abandonar Ccero; muitos intelectuais da poca fizeram o mesmo, como nos diz o
mesmo Tuck: No lugar de Ccero, liam (e escreviam como) Tcito, o historiador
dos primrdios do imprio romano 8. Nos escritos de Tcito a poltica aparece
como domnio da corrupo e da traio e a noo de manipulao dos
governados est mais presente:
a ideia que a tradio de Tcito tinha dos agentes humanos era
precisamente de que estavam abertos manipulao causal de um tipo
6Ribeiro, Renato. P.22.
7 Tuck, Richard. In. Hobbes, Thomas. Leviat. p.15. Ed. Martins Fontes. So Paulo, 2003.
8 Ibidem
13
mais ou menos fidedigno, e a filosofia de Hobbes em relao a essa rea
incorporou as ideias dessa tradio 9.
Outra referncia importante para a formao intelectual de Hobbes foi
Francis Bacon, que era amigo dos seus patres e algum por quem eles nutriam
grande respeito e admirao.
Feitas essas rpidas consideraes sobre a vida do nosso autor, que
mostram o quanto Hobbes estava envolvido com o seu tempo, avancemos agora
para o foco deste trabalho.
O ponto central desse trabalho o estudo da concepo hobbesiana das
paixes humanas e a sua vivncia pelo homem, primeiro, durante o estado de
natureza, em seguida, no estado civil. Para isso, priorizaremos as reflexes de
Hobbes sobre o assunto contidas no Leviat, de 1651, sua obra mais acabada.
Recorreremos ao De Cive, de 1642, quando necessrio. Em suma, o que nos
importa aqui percorrer o itinerrio do pensamento hobbesiano sobre as paixes,
comeando pelas manifestaes destas no estado de natureza, em seguida, no
processo de passagem do estado de natureza para o estado civil, e, por fim, no
estado civil.
Num primeiro momento, iremos nos concentrar na investigao do filsofo
sobre a origem das paixes. Para tal, tomaremos como ponto de apoio o captulo
6 do Leviat, no qual Hobbes trata exatamente da origem das paixes.
Neste primeiro captulo trataremos das paixes no estado de natureza, da
sua origem e definio, portanto, lanaremos os fundamentos conceituais do
pensamento hobbesiano a respeito. Noes como movimento, desejo e averso
sero de importncia estratgica para a compreenso do processo no qual as
paixes efetivam-se como o motor dos homens durante as suas vidas,
influenciando principalmente suas escolhas.
Embora o Leviat seja a obra capital do nosso trabalho, comecemos
analisando o De Cive, o qual, de certa forma, no s retomado no Leviat,
9 Tuck, Richard. In. Leviat. p. XXIX.
14
como, sobretudo, ousaramos dizer, aprimorado e transformado na prpria obra
Leviat.
O De Cive est dividido em trs partes: Liberdade, Domnio e Religio. Na
primeira parte, com quatro captulos, Hobbes trata das questes relativas
condio humana fora da sociedade civil e tambm das leis de natureza. Na
segunda parte, Hobbes desenvolve os temas concernentes ao governo civil. Por
fim, a ltima parte ocupa-se da relao entre a obedincia ao soberano e a
obedincia a Deus. As reflexes que mais nos interessam so as da primeira e
segunda parte. Quando necessrio, recorreremos aos captulos dedicados
religio. O Leviat, por outro lado, est dividido em quatro partes: Do Homem, Da
Repblica, Da Repblica crist e do Reino das trevas. Interessa-nos
especificamente a primeira e a segunda parte, mais exatamente os captulos VI,
XIII, XIV, XVI e XVII.
Um aspecto que merece destaque o quanto Hobbes tenta transmitir de
maneira clara as suas ideias para os seus leitores. Como j salientamos, uma
chave de leitura para a compreenso do pensamento poltico hobbesiano o
contexto histrico dentro do qual suas idias foram geradas, ou seja, distrbios
sociais e a crise de autoridade vivida na Inglaterra no perodo da guerra civil
(1642-1649). O prprio Hobbes cita no De Cive que no h guerra travada com
tanta ferocidade como aquelas travadas pelos grupos de uma mesma cidade, ou
seja, a guerra civil10.
No nosso caso, o contexto histrico no ser o mais importante. Na
verdade, pretendemos tom-lo apenas como pano de fundo para salientar
algumas questes do pensamento do nosso autor. Sendo assim, no iremos nos
aprofundar em mincias histricas do perodo no qual viveu Hobbes. Mas,
evidentemente, no relegamos a importncia dos fatos histricos presentes nos
sculos XVII para a vida do nosso autor.
10
Hobbes, Thomas. De Cive. p. 30. Editora Martins fontes. So Paulo, 2002.
15
No segundo captulo, iremos mostrar como se efetivam as paixes entre os
homens. Se, no primeiro captulo, faremos uma anlise da gnese das paixes, no
segundo captulo iremos mostrar como as paixes influenciam o agir humano.
Num primeiro momento, abordaremos a questo do medo que os homens
vivenciam no estado de natureza e o quanto este sentimento leva os homens
antecipao no uso da violncia. Acuados pelo medo de serem atacados no
estado pr-social, onde no existe nenhuma regra e todos os homens tm direito a
todas as coisas, o indivduo, movido pelo instinto de autopreservao, ataca antes.
Depois, passaremos anlise do desejo de glria que h nos homens, do
quanto esse desejo de precedncia pode ampliar as tenses existentes no estado
de natureza. Em seguida, discorreremos sobre a lgica do homem hobbesiano, o
qual age sempre em benefcio prprio. Ou seja, iremos tratar do desejo que h
nos homens de tirar proveito, em seu prprio benefcio, de todas as coisas. E,
neste caso, como essa lgica egosta no estado de natureza os conduz a um
estado permanente de conflitos.
Finalmente, passaremos a expor como na raiz da sada dos homens do
estado pr-social para o estado civil esto as paixes do medo e da esperana.
Nestas duas paixes residiria a fora que move os homens na direo do pacto
social. Em outras palavras, sero o medo da morte violenta e a expectativa que os
homens possuem de uma vida longa e em segurana que os levaro a buscar um
acordo de paz.
J no terceiro captulo entraremos no debate em torno da dinmica das
paixes e suas conseqncias entre os homens durante o estado civil. Ou seja,
esse captulo vai mostrar como as paixes continuam atuantes mesmo depois do
estabelecimento do pacto e da coero com a consolidao do Estado. Contudo,
antes vamos discorrer sobre alguns aspectos que envolvem o pacto social.
Primeiramente, vamos tratar das leis de natureza. O objetivo entrar nas mincias
do trecho do Leviat que consideramos, seno o mais importante, certamente um
dos mais importantes, a saber:
16
Que todo homem concorde, quando os outros tambm o faam,
e na medida em que tal considere necessrio para a paz e para defesa
de si mesmo, em resignar o seu direito a todas as coisas, contentando-
se, em relao aos outros homens, com a mesma liberdade que aos
outros homens permite em relao a si mesmo 11
.
Nesse sentido, ao abordarmos o pacto social, trataremos de assuntos como
as condies para o acordo, a busca da paz, o direito natural de todos a todas as
coisas, e, por fim, a questo da liberdade.
No que tange s condies para que o pacto social acontea,
discorreremos sobre o quanto o Estado importante para garantir o pleno
cumprimento do contrato que h entre os homens. Em outras palavras, o Estado
que dar aos homens as garantias necessrias para que o acordo se realize.
Posteriormente, nos debruaremos sobre a busca da paz como marca
registrada da poltica de Hobbes. E ainda, que para se viver em paz e em
segurana preciso a presena forte do Estado.
O captulo ainda tratar de outro dois aspectos do pacto social: a alienao
do direito que os homens tm a todas as coisas e as consequncias do pacto
social, dentre elas a instituio do Estado como obstculo a determinadas aes
humanas.
Ainda no captulo 3, empreenderemos o debate sobre a relao entre lei de
natureza e razo em Hobbes. Para tal, iremos nos apoiar na ideia de que Hobbes
nos traz uma nova noo de razo. Contrariando os antigos clssicos que
colocavam a razo como elemento superior aos demais apetites, ele apresenta
uma razo calculadora e que tambm seria muito influenciada por fatores
externos.
Finalmente, concluiremos o captulo 3 na perspectiva de que Hobbes tinha
como projeto intelectual fazer da filosofia poltica uma cincia capaz de conduzir
os homens paz, a grande esperana, alis, dos homens do seu tempo. Cabe
11
Hobbes, Thomas. De Cive. p. 113.
17
ressaltar que Hobbes pretendeu ser o fundador de uma cincia poltica to precisa
quanto a geometria.
Ser o fundador de uma nova cincia poltica implica deixar de lado todo um
passado especulativo do pensamento poltico, o qual muitas vezes Hobbes far
questo de critic-lo. No difcil encontrarmos nos textos de Hobbes passagens
que falem abertamente que os homens que pensaram a poltica at ele ou nada
sabiam ou estava tratando a natureza humana muito superficialmente 12.
Hobbes, no pretendia ser apenas o fundador de uma nova cincia poltica;
ele tambm queria deixar essa cincia profundamente alicerada, o que a tornaria
praticamente irrefutvel. Para isso fez do rigor da matemtica o mtodo do seu
projeto:
O importante em sua obra porm foi trazer o mtodo dito
galilaico o que consistia em resolver o objeto dado em seus elementos
constituintes, para depois comp-lo novamente em sua complexidade-
para a considerao da poltica. Pretendeu com isso, tornar a poltica
uma cincia (...), e sobretudo faz-la irrefutvel 13
Mesmo correndo o risco do clich, impossvel no encontrar no
pensamento poltico de Hobbes elementos vivos e ainda atuais, alguns deles
tratados a seguir.
12
Cf. Hobbes, Thomas. De Cive. p. 26. 13
Cf. Ribeiro, Renato Janine. In. Apresentao. De Cive. p. 23.
18
CAPTULO 1
O HOMEM QUE DESEJA: HOBBES E AS PAIXES
Na primeira parte do Leviat, Hobbes ocupa-se do homem, ou seja, faz
uma anlise dos aspectos principais que compem a natureza humana. Conhecer
em detalhes a natureza humana, sua essncia, e, por conseguinte, a condio
humana num hipottico estado pr-social e pr-poltico.
J na introduo da obra, Hobbes assim define a vida: Pois, considerando
que a vida no passa de um movimento dos membros, cujo incio ocorre em
alguma parte interna, por que no poderamos dizer que todos os autmatos
possuem uma vida artificial? 14. Para ele, corao, nervos e juntas seriam
anlogas s molas, cordas e rodas; todas estas particularidades do corpo humano
lhe imprimiriam o movimento, esta, uma idia chave para compreender o
pensamento hobbesiano15.
O filsofo compara o corpo natural do homem ao Estado, este, um corpo
artificial. Seguindo o raciocnio do autor na introduo do Leviat, o corpo humano
comparado ao corpo poltico, ou seja, ao corpo social. Na viso de Hobbes, o
Estado seria o homem artificial e o principal objetivo deste deve ser garantir
proteo e defesa ao corpo natural daqueles que juntos formam esse corpo
artificial, ou seja, os sditos. Segundo nosso autor, a alma artificial a soberania,
pois ele entende que a soberania que d vitalidade a todas as partes do corpo:
a soberania uma alma artificial, pois d vida e movimento ao corpo inteiro 16.
14
Hobbes, Thomas. Leviat. p. 11. Ed. Martins fontes. So Paulo, 2003. 15
Cf. Idem. p. 11 16
Idem. p. 11.
19
Magistrados e funcionrios seriam as juntas desse corpo; a funo dos nervos
seria promover a recompensa e os castigos; a riqueza e a prosperidade
corresponderiam fora; os conselheiros seriam a memria do corpo; as leis, a
vontade, a equidade e a razo17. J a concrdia corresponderia ao que no corpo
a sade; a sedio, por sua vez, seria a doena. Por fim, a guerra concebida
como a morte do corpo social18. Em seguida, Hobbes refere-se ao pacto social,
que seria aquele momento em que cada homem aliena o seu direito a todas as
coisas para um soberano, que leva ao nascimento do Estado. Para tal, Hobbes
compara a instituio do Estado criao do homem encontrada no livro bblico
do Gnesis. De acordo com o nosso autor, o pacto assemelha-se ao Fiat
(Faamos) de Deus quando este criou o homem19.
Aps esta breve apresentao da descrio hobbesiana do homem contida
na introduo do Leviat, a questo que devemos pensar : at onde essa
explicao do homem serve como base para fundamentar a sua teoria poltica?
Ou seja, at que ponto a anlise que Hobbes faz das paixes determinante para
as concluses a que ele chegou posteriormente no campo da poltica? E ainda,
qual a fora que teriam as paixes na passagem de um estado pr-social para o
estado civil? Mais: as paixes so a fora motriz que impulsiona os homens a
fazer o pacto social?
Nesse sentido, mais indagaes se colocam: o que a natureza humana e
como se articulam as paixes no seio da teoria de Hobbes sobre a poltica? Qual
seria a importncia do estudo das paixes para chegarmos ao cerne do
pensamento do nosso autor?
Sobre o estudo das paixes, a propsito, escreve Maria Isabel Limongi:
Desta cincia das paixes ou, se no dela, pelo menos da experincia das
paixes se retiram, por sua vez, os princpios da cincia civil 20.
17
Cf. Idem 12. 18
Idem. p. 11. 19
Idem. p. 11. 20
Limongi, Maria Isabel. O homem excntrico: paixes e virtudes em Thomas Hobbes. Edies Loyola. So Paulo, 2009. p. 36.
20
Vejamos ento como no estado de natureza as paixes se originam e se
manifestam em cada indivduo, sobretudo pelo estudo do captulo VI do Leviat,
intitulado da Da origem interna dos movimentos voluntrios vulgarmente
chamados PAIXES, e da linguagem que os exprime. Na verdade, Hobbes, ao
analisar as paixes, vai ater-se mais a um juzo de fato do que de valor. Em outras
palavras, ele est mais preocupado em descrever as paixes do que propriamente
julg-las como boas ou ruins. Primeiramente, ele faz um levantamento daquilo que
a natureza humana . Vamos a ele.
O autor do Leviat, no captulo seis, destaca a origem das paixes e como
elas so expressas mediante a linguagem. Primeiramente, Hobbes distingue os
tipos de movimentos. No seu entender, h dois tipos de movimentos fsicos: um
vital e outro voluntrio. O vital, que tambm poderamos cham-los de
involuntrios, so aqueles que encontramos na circulao do sangue, nos
batimentos cardacos, nos processos respiratrios e digestivos. J o movimento
voluntrio seria uma resposta a aquilo que primeiramente passa pela imaginao,
em ltima instncia, pelo crivo da razo: O outro tipo de movimento dos animais,
tambm chamamos movimentos voluntrios, como o andar, o falar, mover
qualquer dos membros, da maneira como primeiro imaginamos em nossa mente
21. Para Hobbes, o movimento seria a causa primordial das aes humanas. Em
breves palavras vamos situar a teoria hobbesiana das paixes em relao sua
concepo de movimento, que ser permeada pelos elementos da fsica do sculo
XVII.
Em linhas gerais, poderamos afirmar que a viso que Hobbes tem da
natureza e dos corpos uma viso mecanicista. Sem entrar na complexidade e no
mrito da questo, limitamo-nos a dizer a respeito que Hobbes deixa de lado a
viso teleolgica de natureza, segundo a qual todos os corpos dirigiam-se para um
fim determinado, e passa para viso mecnica e causal, segundo a qual os corpos
21
Hobbes, Thomas. Leviat. p. 46.
21
dirigem-se para um fim no determinado, mas almejado. Observemos a mudana
de paradigma na questo do movimento contrapondo muito rapidamente Hobbes
e Aristteles.
De acordo com Iara Frateschi, ao estudarmos Aristteles, um dos alvos
privilegiados da filosofia poltica de Hobbes, que encarna perfeitamente essa viso
teleolgica, podemos chegar seguinte concluso: Para Aristteles, o movimento
natural teleolgico, causado pela tendncia natural do corpo a obter a sua
completude, a atualizar a sua essncia 22. Em Hobbes, a ideia de movimento
apenas mudana de lugar, indiferente a qualquer processo teleolgico: os homens
se movem no na direo da atualizao do que so potencialmente, mas na
direo dos benefcios almejados, exclusivamente por efeito de causas eficientes
23.
Podemos perceber que o pensamento do filsofo sobre a origem dos
movimentos, ou seja, sobre a sua causa, tem uma forte relao com a fsica. Na
verdade, o que Hobbes faz com a sua teoria sobre o movimento dos corpos uma
fsica do movimento. Ele comea o captulo II do Leviat, no qual trata do tema da
imaginao, com as seguintes palavras: Nenhum homem duvida da verdade da
seguinte afirmao: quando uma coisa est em repouso, permanecer sempre em
repouso, a no ser que algo a coloque em movimento24. O movimento dos corpos
seria ento o resultado de uma ao causal eficiente que, no limite, tende a faz-
los movimentarem-se ao infinito caso no haja uma fora contrria que os faa
parar.
Dessa reflexo sobre o movimento dos corpos podemos levantar algumas
questes: seria o homem, na concepo hobbesiana, um corpo descontrolado?
Por isso a necessidade de um poder, no caso o do Estado, para dar-lhe uma
conteno e direo? Em outras palavras, a funo deste Estado seria disciplinar
22
Frateschi, Iara A. A fsica da poltica: Hobbes contra Aristteles. Ed. Unicamp. Campinas-SP, 2008 p. 62. 23
Idem. p. 62. 24
Thomas, Hobbes. Leviat. p. 17
22
os apetites humanos, dos quais falaremos com mais detalhes adiante, para uma
direo que os faa sair do estado de guerra perptua para o estado social?
Surge, nesse caso, outra questo pertinente s consequncias promovidas
pelo novo modelo de movimento sustentado por Hobbes: a questo da liberdade,
mais precisamente, da liberdade entendida como livre-arbtrio. Se os movimentos
dos corpos so infinitos, conseqentemente, Hobbes tambm entender a
liberdade, como ausncia de obstculos ao movimento, como infinita. E
exatamente o que se percebe na prpria definio de liberdade dada pelo nosso
autor:
Por LIBERDADE entende-se, conforme significao prpria da
palavra, a ausncia de impedimentos externos, impedimentos que muitas
vezes tiram parte do poder que cada um tem de fazer o que quer, mas
no podem obstar a que use o poder que lhe resta, conforme o
julgamento e poder que lhe reste25
.
Para Hobbes, toda relao de movimento pressupe outro corpo que aja
sobre aquele corpo em repouso ou em movimento26. Toda a fsica do movimento,
em Hobbes, ser marcada pelos corpos que so capazes de agir ou padecer
diante da ao de outro corpo, ou seja, de um obstculo que se coloque como
fora contrria ao movimento desses corpos.
Voltando, a propsito, ao texto do Leviat, aps breve pausa para tratamos
da questo do movimento, Hobbes, para tratar do desejo e da averso, comea
falando de esforo. Segundo ele, quando um esforo efetiva-se na direo de um
objeto, a isso damos o nome de desejo ou apetite. Caso esse movimento seja
contrrio ao objeto, o nome que dado averso: As palavras apetite e
averso vm do latim e ambas designam movimentos, um de aproximao e o
outro de afastamento 27. Interessante perceber que Hobbes, quando trata das
25
Idem. p. 112. 26
Cf. Limongi, Maria Isabel. O homem excntrico: paixes e virtudes em Thomas Hobbes. p. 40 27
Hobbes, Leviat. p. 47
23
paixes, prefere falar de movimento. Maria Isabel Limongi d-nos uma
contribuio importante sobre o assunto ao afirmar o seguinte: A paixo parece
no ser seno o nome que normalmente se d ao que Hobbes prefere, no entanto
conceitualizar em termos de movimento 28. Na verdade, o que Hobbes diz que,
o que normalmente as pessoas chamam de paixo o nome vulgar que se utiliza
para movimentos da mente 29. O prprio ttulo do captulo 6 do Leviat, alis, d-
nos clareza a respeito do assunto: Da origem interna dos movimentos voluntrios
vulgarmente chamados paixes; e da linguagem que os exprime 30
Lemos no Leviat que o prprio homem quem determina o que bom ou
mal com base nesse critrio de desejo e averso. Segundo ele, seja qual for o
objeto do apetite ou do desejo de qualquer homem, esse objeto aquele que cada
um chama de bom; ao objeto do seu dio e averso chama de mau31. As ideias
de amor e dio tambm esto relacionadas s coisas que os homens desejam
perto ou longe deles: Aquilo que os homens desejam se diz tambm que AMAM,
e que ODEIAM aquelas coisas que sentem averso 32.
Na verdade, o critrio para dizer o que bom ou ruim subjetivo, no
sendo a moral, portanto, um conhecimento objetivo: descrio sobre bom ou
mal so projees de nossas sensaes internas sobre o mundo externo, assim
como vermelho e verde33. Estaria ento o homem hobbesiano agindo sempre
em benefcio prprio uma vez que o critrio do que bom ou mal determinado
pelo desejo ou pela averso que tem de determinadas coisas?
Sobre essa questo do benefcio prprio, no podemos esquecer que, para
Hobbes, o comportamento humano determinado, principal e primeiramente, por
uma tendncia natural e no por imperativos irredutivelmente morais 34. Segundo
Richard Tuck, o fundamento da moral hobbesiana est na autopreservao, ou
28
Limongi, Maria Isabel. O homem excntrico: paixes e virtudes em Thomas Hobbes. p. 37. 29
Cf. Idem. p. 36 30
Hobbes, Thomas. Leviat. p. 46 31
Thomas, Hobbes. Leviat. p. 48. 32
Idem. p. 47 33
Richard, Tuck. In. Apresentao do Leviat. p. 29. 34
Frateschi, Iara. A fsica da poltica: Hobbes contra Aristteles. p. 72.
24
seja, os homens fogem daquilo que possa causar-lhes dor, sofrimento e,
consequentemente, a morte. A manuteno da vida, nesse caso, seria um valor
absoluto de todos os indivduos. Vejamos em linhas gerais como Tuck entra nesse
debate dos fundamentos da moral em Hobbes.
No entender de Tuck, Hobbes concebeu uma filosofia para resolver os
problemas do seu tempo. O filsofo nutria uma ambio utpica35 de pensar a
filosofia em termos prticos. Entre tantas questes prticas pensadas por Hobbes
est a de como encontrar um padro objetivo para definir o que certo ou
errado36. Para afirmar que o fundamento da moral, isto , de um saber que ajude o
homem a escolher entre o bom e o ruim, est na autopreservao, Tuck diz que o
desejo fundamental de se preservar da morte o nico desejo destitudo de um
componente cognitivo fundamental37. Dito de outro modo, nas palavras do
prprio Tuck:
As paixes que aparentemente nos movem tm na maioria dos
casos um componente cognitivo fundamental de modo que, por
exemplo, a alegria provm da imaginao do prprio poder e capacidade
de um homem, ao passo que a tristeza se deve convico de falta de
poder38
.
Tuck continua: O nico desejo destitudo de contedo cognitivo o desejo
fundamental de preservar se preservar da morte 39. Como podemos perceber, o
fim ltimo que movimenta os homens o de preservar a sua prpria existncia,
como dir mais tarde Hobbes: No pois absurdo, nem repreensvel, nem
contrrio aos ditames da verdadeira razo , que algum use todo o seu esforo
35
Richard, Tuck. Tuck. In. Apresentao. Leviat. p. 29. 36
Idem. p. 29. 37
Idem. p. 31 38
Idem. p. 31 39
Idem. p.31
25
para preservar e defender seu corpo e seus membros da morte e dos sofrimentos
40.
A linguagem tambm de fundamental importncia para definir o que seria
o bem e o mal, pois por meio dela que o homem diz o que considera prazeroso e
proveitoso ou recusa aquilo que causa desprazer e lhe nocivo. Para concluir
essa anlise sobre os fundamentos da moral em Hobbes, lembremo-nos que as
noes de justo ou injusto s existem no estado social, ou seja, no estado de
natureza os homens no podem falar em injustia; seriam, portanto, convenes.
Aps falar de desejo e da averso no captulo VI do Leviat, Hobbes
envereda por uma longa descrio das paixes humanas: medo, alegria, tristeza,
dor, sofrimento, entre outras. Mas antes de comear a descrever cada uma delas,
o filsofo trata do problema da linguagem. Ele afirma que pela linguagem que o
homem expressa o que para ele bom ou ruim.
Para prosseguirmos com a anlise desse captulo seis, julgamos
interessante valorizarmos mais essa relao entre linguagem e paixes humanas.
Para tal, o livro Uma descrio do humano no Leviathan, de Thomas Hobbes, de
Ismar Dias Matos, pode nos ajudar nesse debate. O autor discute alguns aspectos
importantes do problema da linguagem em Hobbes, a saber, a linguagem como
identificao do humano e a linguagem como instrumento poltico.
Segundo Matos, em sua anlise do captulo 6 do Leviat, o que diferencia
essencialmente os homens dos animais o uso da linguagem, uma vez que
ambos obedecem ao critrio das sensaes, ou seja, as noes de prazer e
desprazer so levadas em considerao por eles no momento em que fazem as
sua escolhas41. Neste caso, o que haveria no Leviat um processo de
hominizao, pois Hobbes, segundo Matos, tenta mostra que o homem loquens
transformado no homo faber, ou seja, naquele que capaz de construir a paz,
40
Thomas, Hobbes. De Cive. Ed. Martins Fontes. So Paulo, 2002. p. 31. 41
Cf. Matos, Ismar D. Uma descrio do humano no Leviathan, de Thomas Hobbes. Ed. AnnaBlume. So Paulo, 2007. p. 58.
26
de sair do estado de natureza para a vida em sociedade42. Em outras palavras,
nenhum outro animal teria essa capacidade.
Vejamos essa relao entre homem, linguagem e construo da paz nas
palavras do prprio Matos: Pela palavra o homem capaz de comunicar aos
demais homens o desejo de construir a paz, de criar um ambiente mais propcio
para a vida se desenvolver43. Essa relao entre linguagem, objeto e semelhante
importante no processo de entendimento das paixes, pois o homem procura,
por meio da linguagem, comunicar-se e dizer o que so os objetos aos outros e,
neste caso, se lhe so benficos ou danosos.
Sendo assim, seria intil ao homem fazer conhecer a sua vontade se no
houvesse um interlocutor, ou seja, por meio da linguagem que os homens
expressam aos outros os seus desejos, incluindo a o desejo de construir a paz.
Portanto, entender a questo da linguagem em Hobbes fundamental, pois pela
linguagem que os homens iro formalizar o pacto, portanto, pela linguagem que
os homens saem do estado de natureza e caminham para o estado civil.
Evidentemente, a linguagem sozinha no ter fora suficiente para controlar
os homens nas suas paixes. Para tal, preciso que haja a fora do Estado para
garantir o cumprimento daquilo que foi acordado por meio das palavras.
Para Hobbes, o critrio do que para o homem deleitoso ou perturbador do
esprito est nas sensaes. Assim, as sensaes de luz, cor, som e olfato
provocam em ns boas ou ms sensaes. Do mesmo modo so as paixes44. A
tendncia que o homem fuja daquilo que lhe cause algum tipo de desconforto e
procure as coisas que lhe dem conforto. Hobbes entende tambm que todos
esses movimentos esto ligados manuteno da vida: Este movimento a que se
chama apetite e, em sua manifestao, deleite e prazer, parece constituir uma
corroborao do movimento vital e uma ajuda prestada a este 45. Aps essas
consideraes sobre o movimento, a linguagem e as sensaes, Hobbes comea
42
Cf. Matos, Ismar D. Uma descrio do humano no Leviathan, de Thomas Hobbes. p. 58. 43
Matos, Ismar Dias de. Uma descrio do humano no Leviathan, de Thomas Hobbes. p. 60. 44
Idem. p. 49 45
Idem. p. 50
27
a descrever cada uma das paixes at quase o final de todo o captulo seis do
Leviat.
De acordo com Hobbes, chamamos de prazerosos os objetos que
contribuem para a manuteno da vitalidade e de molstias as coisas que nos
causam algum tipo de perturbao vital. Os prazeres podem ser divididos em duas
categorias: prazeres dos sentidos e prazeres do esprito. Hobbes entende que
todos os objetos que apetecem, ou seja, que atraem algum dos nossos sentidos e,
por conseqncia, nos trazem sensao de conforto e prazer, ns os
denominamos de prazeres dos sentidos, ao passo que os objetos que causam
transtornos a algum dos cinco sentidos, quando temos algum desprazer, essa
sensao recebe o nome de dor46. Quanto aos prazeres do esprito, afirma o
filsofo: Outros prazeres ou deleites derivam da expectativa provocada pela
previso do fim ou conseqncia das coisas, quer essas coisas agradem ou
desagradem os sentidos 47. Segundo o filsofo, tanto a alegria quanto a tristeza
residem nas consequncias de uma espera futura, na possibilidade ou no do
contato com um objeto que possa causar ou no algum benefcio ou dano
pessoa que entrar em contato com esse objeto.
Hobbes continua o captulo seis analisando cada um dos desejos humanos
e como esses so movidos por sucessivas causas. Dito de outro modo, um desejo
sempre impulsiona outro desejo que, consequentemente, gera um novo desejo.
Hobbes vai articulando os desejos e as paixes humanas. No final, constata que
eles se expressam e se realizam numa cadeia de causalidades.
Feita essa exposio sobre as paixes iniciaremos agora um esforo para
tentar explicar em que medida em Hobbes a sua concepo de ser humano seria
essencial na fundamentao da sua teoria poltica.
Quando observamos as paixes, de acordo com a leitura que Hobbes faz
delas, constatamos que as paixes geram guerras, conflitos e insegurana; do
mesmo modo, que elas so em parte responsveis pelo controle da natureza
46
Cf. Hobbes, Thomas. Leviat. p. 50 47
Idem. p. 50
28
humana. Vamos tentar entender ao longo deste captulo essa dupla funo das
paixes. Mas, para tal empreitada, ser necessrio seguir os passos da
apresentao das paixes feita pelo filsofo no captulo VI do Leviat. Vejamos
como o autor costura essa teia de relaes entre desejos e paixes.
O desejo, ou melhor, o apetite, quando ligado crena da conquista recebe
o nome de ESPERANA, ao passo que o desejo sem a crena da conquista
recebe o nome de DESESPERO. Quando somos repelidos pelo medo de alguma
das consequncias ruins que podem ser causadas por um objeto, damos o nome
a esse movimento de afastamento do objeto de MEDO. Se, ao contrrio,
decidimos enfrent-lo, a essa atitude de enfrentamento damos o nome de
CORAGEM. Hobbes pondera e diz que a coragem sbita pode tornar-se
COLRA, que entendemos ser a falta de controle no uso da virtude da coragem48.
Se considerarmos as paixes como o principal alicerce do edifcio poltico
do pensamento de Hobbes, certamente o medo e a esperana tero lugar de
destaque. Dito de outro modo, se as paixes tm um papel decisivo na cincia
poltica pensada por Hobbes, sero o medo e a esperana os pilares desse
projeto. Voltemos ao Leviat.
Para Hobbes, a esperana constante chama-se CONFIANA, essa falta de
confiana ou DESCONFIANA em si mesmo recebe o nome de desespero. Nesse
caso, o desespero aparece tanto para falar da falta de confiana num futuro
promissor quanto para falar da falta de expectativa em relao prpria vida.
Muitas paixes, segundo Hobbes, assim como o desespero, so causadas por
expectativas futuras.
A clera, quando bem direcionada, pode tornar-se indignao. De acordo
com Hobbes, esse ato de indignar-se surge perante um grande dano feito a
outrem, quando pensamos que foi feito por injria 49. O que Hobbes entende por
injria est claro no De Cive: Violar um compromisso, ou exigir de volta algo que
48
Idem. p. 51 49
Idem. p. 50
29
j demos o que se chama injria 50. Essa palavra injria, no entender de
Hobbes, significa qualquer tipo de ofensa a um direito individual de alguma
pessoa, pois, segundo ele, a ningum se faz injria, exceto com queles que
contratamos 51.
Ao descrever a benevolncia, a boa vontade, a caridade e a bondade
natural, Hobbes relaciona todas essas paixes ao desejo que os homens tm de
ver o bem dos outros. O interessante perceber que no De Cive o autor fala que
os homens no tiram nenhum proveito da companhia uns dos outros, que muitas
vezes a convivncia social penosa e complicada 52.
Quando o desejo est direcionado para riquezas chama-se cobia.
Segundo Hobbes, a cobia sempre vista pelos civilizados com reprovao moral,
mas ela deve ser considerada e relacionada aos meios empregados para
conseguir quando se almeja riquezas 53. O mesmo pode-se dizer sobre a ambio,
que o desejo de por altos cargos.
A virtude da magnanimidade, que pode ser entendida como uma grandeza
de esprito, est ligada s grandes ajudas, aos grandes feitos de coragem,
sobretudo quando esses colocam em risco a vida do seu praticante. Ao contrrio,
o desejo pelas coisas pequenas chamado de pusilanimidade. O pusilnime, no
uso do dinheiro, torna-se mesquinho54. Da virtude do amor derivam a gentileza, a
lascvia natural, a luxria, a paixo do amor e o cime. J o cime provm do
medo de no ter o amor correspondido 55.
Quando Hobbes fala da curiosidade, ele ressalta que esse desejo de saber
a causa e a razo intrnseca das coisas no existe em nenhum outro ser vivente a
no ser no homem: Nos animais, o apetite pelo alimento e outros prazeres dos
sentidos predominam de modo tal que impedem toda e qualquer preocupao
50
Hobbes, Thomas. De Cive. p. 54 51
Idem. p. 55. 52
Cf. Idem. 26 53
Cf. Hobbes, Thomas. Leviat. p. 51. 54
Idem. p. 51. 55
Idem. p. 52.
30
com o conhecimento das causas 56. Para Hobbes, o homem no est apenas
sujeito ao efeito das coisas, mas ele tambm busca as suas causas, em outras
palavras, ele busca o conhecimento na tentativa de compreender as coisas.
Ainda no captulo seis, Hobbes fala da religio, da superstio e da
verdadeira religio. A superstio, no seu entender, teriam como fonte histrias
imaginadas:
O medo dos poderes invisveis, inventados pelo esprito ou
imaginados com base em histrias publicamente permitidas, chama-se
religio; quando essas histrias no so permitidas, chama-se
superstio. Quando o poder imaginado realmente o que imaginamos,
chama-se verdadeira religio 57
.
O medo seria a causa da religio? No entender de Hobbes, sim. Mesmo no
caso daquela religio que ele chama de verdadeira religio ele atribui ao medo o
seu principal fundamento. O medo que nos leva a imaginar e a inventar a religio
o mesmo para a falsa religio, para as religies oficiais e para a verdadeira
religio. O que fica claro que Hobbes diferencia a religio pblica daquela que
a verdadeira religio. Na verdade, nem sempre a religio que publicamente
aceita corresponde verdadeira religio. Em outras palavras, as histrias pelos
homens inventadas, na tentativa de solucionar um problema causado pelo medo
daquilo que eles no vem, podem ser proibidas e, por isso, chamadas de
superstio; podem ser aceitas e, consequentemente, serem chamadas de
religio; e se aquilo que os homens imaginam corresponde realidade, a essa
imagem pelo homem criada d-se o nome de verdadeira religio.
Parece que a verdadeira religio pode subsistir apenas no corao do
homem. Para Hobbes, a verdadeira religio no precisa ser necessariamente
aquela institucionalmente aceita. No sculo XVII, falar desse modo de religio era
pisar em um terreno minado, pois a influncia da religio nos assuntos da poltica
56
Idem. p. 52 57
Idem. p. 52
31
era constante. O problema de conceber Deus como uma inveno com base na
imaginao e no medo das coisas invisveis est no fato de que essa afirmao
contraria toda uma tradio crist, pois, para o cristianismo dominante na poca
de Hobbes, Deus teria se revelado ao ser humano.
Hobbes continua o texto falando da vangloria e do por que ela seria v. Ele
afirma que a alegria que produzida pela imaginao do poder que acreditamos
ter o que chamamos de glria58, ou seja, a glria fruto da expectativa que um
homem cria em relao quilo que os outros pensam dele e do seu poder. Sendo
assim, quando a glria no se concretiza, ela se torna vangloria, pois no
corresponde realidade. Diferentemente da confiana que tem resultados
eficazes, a v glria no conduz a nada. Nas palavras do filsofo, a confiana
bem fundada leva eficincia, ao passo que a suposio do poder no leva ao
mesmo resultado e portanto justamente chamada v59. Ao falar das relaes
humanas, Hobbes cita a vangloria como causa das discrdias entre os homens.
Vejamos como Hobbes encaminha essa anlise.
No De Cive, nosso autor afirma que as reunies humanas no so
motivadas pelo amor ou pela considerao ao prximo, mas o contrrio: Toda
associao (...) ou para o ganho ou pela glria- isto : no tanto para o amor de
nossos prximos, quanto pelo amor de ns mesmos 60. No Leviat, o filsofo
mais explicito ao tratar da relao entre v glria e discrdias: De modo que na
natureza do homem encontramos trs causas principais de discrdia. Primeiro, a
competio; segundo, a desconfiana; e terceiro, a glria 61. Aqui podemos
perceber como Hobbes articula as paixes humanas com as relaes sociais.
Ainda falando sobre o De Cive, nele que Hobbes desenvolve, no primeiro
captulo, as consequncias da vangloria para o convvio entre as pessoas.
Segundo Hobbes, a discrdia nasce da comparao das vontades 62, ou seja,
58
Cf. Idem. 53. 59
Idem. p. 53 60
Hobbes, Thomas. De Cive. p. 28. 61
Hobbes, Thomas. Leviat. p. 108. 62
Hobbes, Thomas. De Cive. p. 30.
32
quando uma pessoa discorda frontalmente da opinio da outra. Esta discordncia
gera uma situao de extrema ferocidade, pois ningum gosta de ser contrariado
na sua vontade; a esta atitude Hobbes d o nome de combate entre os espritos:
como o combate entre os espritos de todos o mais feroz, dele necessariamente
devem nascer as discrdias mais srias 63. Na opinio do filsofo ainda, quando
uma pessoa discorda da opinio da outra em muitos assuntos, o mesmo que
chamar essa pessoa de louca ou insensata64. E continua afirmando que todo
prazer da mente consiste em encontrar pessoas que, se nos comparamos com
elas, nos fazem sentir triunfantes e com motivo para nos gabar 65. Na viso
hobbesiana, a glria pessoal conta consideravelmente nas relaes humanas.
Para Hobbes, a glria no pode ser dividida, pois qualquer tipo de louvor
consiste na elevao da pessoa. Somos demais vaidosos, acredita o autor, de
modo que, se todas as pessoas so elevadas, ento, nenhuma delas tirar
proveito algum dessa elevao: essa glria como a honra, pois consiste em
comparao e precedncia66. Esse desejo de precedncia, na viso de Hobbes,
uma das causas do desejo que os homens tm de se ferirem mutuamente no
estado de natureza. O filsofo afirma que existem duas origens para os homens
quererem causar danos uns aos outros: a primeira causa surge da avaliao que
cada pessoa faz da igualdade que existe entre os seres humanos no estado de
natureza (Dessa causa nos ocuparemos no prximo captulo) e a segunda causa
o resultado justamente da v glria: (...), supondo-se superior aos demais,
querer ter licena para fazer tudo o que bem entenda, e exigir mais respeito e
honra do que pensa serem devidos aos outros 67.
Hobbes, ainda no captulo 6, continua a sua descrio das paixes
abordando a vergonha, a crueldade, a emulao e a inveja68.
63
Idem. p. 30. 64
Cf. Idem. p. 30. 65
Idem. p. 30. 66
Idem. p. 28. 67
Idem. p. 29. 68
Cf. Hobbes, Thomas. Leviat. p. 54.
33
Como j aludimos acima, Hobbes termina o captulo seis do Leviat, onde
ele fala da origem das paixes, falando sobre a liberdade. Quando os diversos
desejos e averses surgem ao mesmo instante no ser humano, quando ele
precisa tomar uma deciso sobre o que melhor ou pior, isto , o que ir lhe
causar mais prazer e menos dor, esse movimento em busca de uma alternativa
Hobbes o chama de deliberao.
Segundo Hobbes, antes da deliberao vem a vontade: Na deliberao, o
ltimo apetite ou averso imediatamente anterior ao ou omisso desta que
se chama VONTADE, ou ato(e no faculdade) de querer. 69 Para ele, os animais
tambm deliberam e, portanto, tambm tm vontade. Depois Hobbes contraria as
tradicionais definies de vontade, onde a vontade apetite racional 70. Ele
entende que a vontade no pode ser apetite racional, pois nenhum ato voluntrio
poderia ir contra a razo, ou seja, algumas vontades contrariam a razo, no
entender de Hobbes.
Segundo Matos, no que se refere vontade, Hobbes no poderia deixar de
afirmar que seres humanos realizam alguns atos deliberadamente, e define a
inteno desses atos como paixes 71. Dito de outro modo, quando um ser
humano procura se afastar de algum objeto, ele o faz em busca de menor ou
maior prazer, ou seja, o critrio para a escolha o que vai causar-lhe maior ou
menor dano. Ainda sobre a deliberao, afirma Matos: A diferena fundamental
entre os homens e as bestas o grau de desenvolvimento provenientes do uso da
linguagem 72. O prprio Hobbes afirma:
Fica assim manifesto que as aes voluntrias no so as que tm
origem na cobia, na ambio, na lascvia e em outros apetites em
relao a coisa proposta, mas tambm aquelas que tm origem na
69
Idem. p. 55. 70
Idem. p. 55. 71
Matos, Ismar Dias. uma descrio do humano no Leviathan, de Thomas Hobbes. p. 56. 72
Idem. p.56.
34
averso ou no medo das consequncias decorrentes da omisso da
ao 73
.
Na perspectiva hobbesiana, existe uma linguagem que o homem utiliza
para comunicar os seus desejos, como j aludimos anteriormente quando falamos
da linguagem como construo da identidade humana e da linguagem com uso
poltico.
O segredo de uma vida feliz estaria na previso, na capacidade de prever
as consequncias das aes. Para o nosso autor, o ser humano que consegue
prever com mais preciso quais as consequncias das suas deliberaes ser
feliz:
Como na deliberao os apetites e averses so suscitados pela
previso das boas ou ms consequncias e seqelas da ao sobre a
qual se delibera, os bons ou maus efeitos dessa ao dependem da
previso de uma extensa cadeia de consequncias, cujo fim ultimo
poucas pessoas so capazes de ver 74
.
O filsofo atribui ao bom uso da razo ou experincia essa capacidade de
enxergar longe os resultados das aes. Assim, quem possuir, graas
experincia ou razo, maior grau de segurana das consequncias ser mais
capaz de deliberar para si, e ter mais condies, (...) de dar aos outros
conselhos 75. O ser humano, na perspectiva de Hobbes, est sempre preocupado
ou calculando as suas decises com base nos seus anseios futuros.
A relao entre as paixes humanas e o futuro est sempre presente nos
textos de Hobbes. Quando o autor trata no De Cive e no Leviat da igualdade de
condio entre os homens, e, por conseguinte, da possibilidade que cada um tem
de usar da sua prpria vontade para se defender do jeito que melhor lhe aprouver,
73
Hobbes, Thomas. Leviat. p. 56. 74
Idem. p. 57. 75
Idem. p. 57.
35
Hobbes fala de uma ao futura. Ele afirma que os homens se antecipam a uma
possvel violncia que poder ser cometida contra ele. Dito de outro modo, quando
os homens esto no estado de natureza, no h alternativa para se proteger a no
ser o ataque, visto que no h nada nessa situao que contenha ou controle as
paixes humanas 76.
Hobbes termina o captulo VI falando da felicidade e da viso beatfica, que
seria o encontro com Deus no cu. O que podemos perceber desde j na anlise
das paixes que o homem, para Hobbes, conduzido pelas paixes. Nas
palavras do professor Matos, a filosofia hobbesiana apresenta uma multiplicidade
de seres humanos individuais, conduzidos, cada um, por suas paixes que so,
em si mesmas, diferentes formas de movimento 77. Em suma, para Hobbes, cada
ser escolhe o que melhor para si mesmo.
Pelo que podemos perceber, o filsofo d um papel de precedncia s
paixes nas aes humanas. Na verdade, os homens agem movidos por
impulsos, levado por paixes. Dito de outro modo, as relaes humanas esto
aliceradas nos movimentos das paixes.
Sendo assim, no estado de natureza, onde no h um poder comum que
controle as aes dos indivduos, cada homem relaciona-se com o seu
semelhante tendo por base os seus desejos e suas averses. Visto de outro
modo, procuramos sempre o que nos d prazer e deleite e nos afastamos do
sofrimento e do desprazer. Com isso, as relaes humanas ficam merc,
quando no h um poder comum capaz de colocar todos os homens na mesma
direo, dos critrios estabelecidos por cada um na hora de fazer as suas
deliberaes.
Neste caso, pergunta se as paixes so fundamentais para a filosofia
poltica em Hobbes, a resposta est no modo como o prprio autor articula as
suas duas principais obras, a saber, o De Cive e o Leviat. Em ambos, Hobbes
76
Cf. Hobbes, Thomas. De Cive. p. 32. 77
Matos, Ismar Dias. uma descrio do humano no Leviathan, de Thomas Hobbes. p. 57.
36
comea pela anlise dos homens no estado de natureza para depois falar deles
no estado civil. Vejamos melhor.
Na introduo do De Cive, Hobbes salienta quais seriam os passos por ele
desejado quando pensou na elaborao de um sistema filosfico: primeiro, o
estudo dos corpos, o que seria a fsica de Hobbes; depois, do homem; e por fim a
pesquisa sobre a poltica, que pretendia que fosse uma cincia to rigorosa como
a geometria 78. Acontece que, no meio do caminho desses estudos, a guerra civil
inglesa eclodiu e Hobbes se viu obrigado a adiantar o seu projeto, colocando a
poltica em primeiro plano, como ele mesmo afirma:
(...), aconteceu, nesse nterim, que meu pas, alguns anos antes que as
guerras civis se desencadeassem, j fervia com questes acerca dos
direitos de dominao, e da obedincia que os sditos devem, questes
que so as verdadeiras precursoras de uma guerra que se aproxima; e
isso foi a causa para que (adiantando todos os demais tpicos)
amadurecesse e nascesse de mim a terceira parte. Assim sucede que
aquilo que era ltimo na ordem veio a lume primeiro no tempo, e isso
porque vi que esta parte, fundada nos seus prprios princpios
suficientemente conhecidos pela experincia, no precisaria das partes
anteriores 79
.
Essa afirmao de Hobbes de que a poltica independe das outras duas
partes, ou seja, da fsica e da antropologia, para ser exposta, aparentemente
contradiz todo o nosso projeto de colocar as paixes como fundamento da poltica.
Pelo contrrio, essa afirmao que depois ser comprovada nos primeiros passos
que Hobbes d no De Cive vem corroborar com a nossa tese, uma vez que, logo
no incio da referida obra o autor afirma: As faculdades da natureza humana
podem ser reduzidas a quatro espcies: fora corporal, experincia, razo e
paixo. Partindo delas para a doutrina que se segue (...)80. Percebamos o quo
78
Hobbes, Thomas. Prefcio do autor. In. De Cive. p. 17. 79
Idem. p. 18 80
Hobbes, Thomas. De Cive. p. 25.
37
sutil o trecho em que Hobbes fala sobre o motivo que o levou a escrever
primeiramente sobre a poltica. Na verdade, ele no fala que a antropologia no
importante, mas simplesmente que a experincia, que a vivncia dos homens,
dispensava-no de expor os detalhes do homem no estado de natureza, coisa que
ele far no Leviat.
Tomando por base o assunto acima abordado, podemos salientar uma
diferena importante de outras entre os textos polticos do De Cive e do Leviat,
que a abordagem metodolgica que Hobbes utiliza em cada um deles. No De
Cive, Hobbes parte da experincia das paixes para justificar esse comportamento
belicoso, ao passo que no Leviat ele faz uma inferncia partindo das paixes.
Segundo Limongi, a condio natural do homem uma condio de guerra de
todos contra todos. Eis uma concluso qual se pode chegar por duas vias: pela
experincia de nossas paixes ou por uma inferncia, feita a partir das paixes 81.
bem verdade que o tempo todo Hobbes est inferindo da experincia os
resultados que mostram que a natureza dissocia os homens, mas, segundo ele
prprio, no seria preciso a experincia para confirmar a tese de que os homens
tendem por natureza guerra, como podemos ler a seguir:
Poder parecer estranho a algum que no tenha medido bem
estas coisas que a natureza tenha dissociado os homens, tornando-os
capazes de se atacarem e destrurem uns aos outros. E poder portanto
talvez desejar, no confiando nesta inferncia feita das paixes, que ela
seja confirmada pela experincia 82
Neste caso, a experincia apenas confirma o que j seria possvel inferir
pelo estudo das paixes. Afirma Limongi mais uma vez a esse respeito:
No De Cive, Hobbes percorre a primeira via, salientando que o
recurso experincia permite conferir certa autonomia cincia poltica
81
Idem. p. 85. 82
Hobbes, Thomas. Leviat. p. 109.
38
em relao s primeiras partes do sistema- uma cincia do corpo e uma
cincia do homem-, que na ordem das razes do hobbesionismo
deveriam anteceder poltica, no fosse a guerra civil inglesa ter exigido
que o posterior na ordem viesse primeiro na exposio 83
Onde est a diferena entre inferir a teoria poltica de Hobbes tendo como
ponto de partida as paixes e entend-la partindo da experincia? Para Hobbes,
no De Cive, possvel a cada homem, olhando para si mesmo, perceber como se
comporta em relao ao seu semelhante, bem como perceber que a natureza
dificulta nossa associao: Assim esclarece a experincia, a todos aqueles que
tenham considerado com alguma preciso maior ou mais usual os negcios
humanos, que toda reunio, por mais livre que seja, deriva da misria recproca 84.
Ainda que a experincia sirva como prova adicional inferncia, e ainda
que possa at mesmo tomar o seu lugar, como se faz no De Cive, no
preciso ter a experincia de tais paixes para que se possa inferir o
estado de natureza a parir delas85
Sendo assim, podemos concluir que no De Cive a teoria poltica
hobbesiana estava sem um dos seus pilares que anlise do homem? Segundo
Hobbes, no. Pois a experincia esclarece 86. Quando Hobbes mostra, no De
Cive, recorrendo experincia, como os homens no estado de natureza vivem em
estado de guerra, ele economizou um longo caminho que, posteriormente, foi
percorrido no Leviat, ou seja, no era preciso analisar pontualmente a natureza
humana para saber como o comportamento de cada homem, bastando a
experincia. A inferncia porm, permite das razes aos fatos, explicar o porqu
de nossas paixes, fornecendo-lhes a gnese 87.
83
Limongi. Maria Isabel. O homem excntrico: paixes e virtudes em Hobbes. p. 85. 84
Hobbes, Thomas. De Cive. p. 27. 85
Limongi. Maria Isabel. O homem excntrico: paixes e virtudes em Hobbes. p. 86. 86
Hobbes. Thomas. De Cive. p. 27. 87
Limongi. Maria Isabel. O homem excntrico: paixes e virtudes em Hobbes. p. 86.
39
Trata-se talvez de um equvoco pensar a filosofia poltica de Hobbes
sem considerar os aspectos fundamentais do homem no estado de natureza, a
saber: primeiro, os homens so movidos por impulsos e esses impulsos, quando
no h um poder comum capaz de direcion-los, so descontrolados. Depois,
entender as paixes (mesmo que seja por meio da experincia) de fundamental
importncia para estudarmos a filosofia poltica em Hobbes. Em outras palavras,
ao que nos parece, no possvel dissociar a teoria poltica de Hobbes da sua
antropologia. Seja pela via da inferncia ou da experincia, a natureza humana
fundamenta e justifica a cincia poltica de Hobbes.
Sendo assim, procuraremos mostrar no captulo subseqente como se
comporta a natureza humana, como vimos, dominada pelas paixes, no estado de
natureza, nesse hipottico estado pr-social e pr-poltico.
40
CAPTULO 2
O HOMEM QUE DESEJA: AS PAIXES ENTRE OS HOMENS
Como as paixes humanas se expressam e se efetivam e quais suas
conseqncias nas relaes sociais? Como os impulsos, desejos e apetites
concernentes natureza humana se manifestam no estado de natureza e,
sobretudo, como sero administrados no estado civil, segundo Hobbes?
Enfrentaremos tais questes seguindo o itinerrio lgico-argumentativo do De Cive
e recorrendo sempre que necessrio ao Leviat.
Comecemos ento diferenciando as noes de estado de natureza e de
natureza humana. Em seguida, valendo-se de uma leitura bastante rente ao texto
do De Cive e do Leviat, apresentaremos o pensamento de Hobbes sobre a
condio da natureza humana fora do estado civil, ou seja, no estado de natureza.
O prprio ttulo do captulo 1 do De Cive j sugestivo, na medida em que
apresenta os fundamentos da teoria poltica de Hobbes, ou seja, a natureza
humana e as suas particularidades: Da condio humana fora da sociedade civil.
E uma questo que podemos impor de imediato aos textos do De Cive e do
Leviat : o que o estado de natureza?
A natureza humana e o estado de natureza podem ser facilmente
confundidos numa primeira abordagem do texto hobbesiano. Apesar de terem
uma relao intrnseca, elas no so a mesma coisa. Natureza humana para
Hobbes aquela situao na qual a prpria natureza colocou todos os homens,
sua situao original, digamos, aquela bem antes de viverem de maneira
organizada em sociedades. Alm disso, como mostrei no captulo anterior, uma
condio na qual os homens seguem sem rdeas os movimentos das mais
variadas paixes. Ao passo que, estado de natureza a condio natural dos
41
homens na vida pr-social. Em outras palavras, o que configura o estado de
natureza a ausncia de sociedade. Talvez, a melhor maneira de diferenciar o
estado de natureza da natureza humana seja por meio dos textos do filsofo. Ou
seja, da mesma maneira que apresentamos aspectos da natureza humana no
primeiro captulo, cabe agora salientar como agem os homens, evidentemente que
movidos pela natureza humana, no estado de natureza.
Duas caractersticas pelo menos- dos homens no estado de natureza so
medo e a esperana, ou seja, os homens no estado de natureza so impelidos,
sobretudo, por essas duas paixes. Em outras palavras, ao mesmo tempo em que
os homens no estado de natureza encontram-se numa situao de medo, eles
possuem a expectativa de uma vida longe de qualquer ameaa. Podemos ainda
salientar outras caractersticas do estado de natureza: todos os homens so
iguais; todos so juzes; no h paz; h guerra perptua de todos contra todos;
existe a desconfiana contnua; no h propriedade; no h sociedade.
O que leva os homens a viverem todas essas situaes, supracitadas, no
estado de natureza? Na nossa viso, so duas (podendo ter outras que se
configurem a elas) as principais causas: a igualdade natural e o direito natural.
De acordo com Hobbes, a natureza humana fez os homens todos iguais.
Lembremo-nos que Hobbes est falando de um estgio pr-social, pois podemos
incorrer no erro de tentar analisar essa igualdade do ponto de vista da vida social,
o que nos levaria a uma concluso errnea do estado de natureza, pois a
desigualdade, segundo Hobbes, fruto do estado civil88.
Essa igualdade, segundo o nosso autor, tem duas vertentes que so, a
saber, a de que os homens so iguais quanto fora corporal e quanto ao
esprito:
A natureza humana fez os homens to iguais, quanto s faculdades do
corpo e do esprito, que embora, por vezes se encontre um homem mais
forte de corpo, ou de esprito mais vivo do que o outro, mesmo assim,
88
Cf. Hobbes, Thomas. De Cive. p. 29.
42
quando se considera tudo isso no conjunto, a diferena entre um e outro
homem no considervel para que um deles possa com base nela
reclamar algum benefcio que o outro no possa igualmente aspirar 89
.
Quando fala de igualdade natural no estado de natureza, o filsofo
fundamenta a sua afirmao de que os homens so iguais, utilizando os seguintes
argumentos: Quanto fora corporal o mais fraco tem fora suficiente para matar
o mais forte, que por secreta maquinao, quer aliando-se com outros que se
encontrem no mesmo perigo 90.
E ainda, no diz respeito s faculdades do esprito, de acordo com Hobbes,
existe uma igualdade bem maior, pois O que talvez possa tornar inacreditvel
essa igualdade simplesmente a presuno vaidosa da prpria sabedoria, a qual
quase todos os homens supem possuir em maior grau do que o vulgo. (...) 91.
Expliquemos melhor. Segundo o filsofo, os homens tm uma viso sempre
positiva da prpria sabedoria, que ele mesmo chama de faculdades do esprito,
pois a maioria dos homens, normalmente, julga-se sempre mais sbio do que os
demais, ou seja, boa parte dos homens atribui a si mesmos uma sabedoria maior
do que aquela que eles possam realmente possuir. Para tal, o nosso autor, com
base na tese de que cada homem sente-se superior aos demais em sabedoria,
vale-se do seguinte argumento:
Pois a natureza dos homens tal que, embora sejam capazes
de reconhecer em muitos outros maior sagacidade, (...) dificilmente
acreditam que haja to sbios como eles prprios, porque vem a prpria
sagacidade bem de perto, e dos outros homens distncia. Ora, isto
prova que os homens so iguais quanto a esse ponto, e no que sejam
desiguais. Pois geralmente no h sinal mais claro de um distribuio
89
Hobbes, Thomas. Leviat. p. 106. 90
Hobbes, Thomas. Leviat. p. 106. 91
Idem. p. 107.
43
equitativa de alguma coisa do que o fato de todos estarem contentes com
a parte que lhe coube 92
.
Gostaramos de levantar duas questes em cima dos argumentos utilizados
para justificar a suposta igualdade existente entre os homens no que diz respeito
s faculdades do esprito: primeiramente, no seria essa igualdade fruto de uma
viso errnea que cada homem tem de si mesmo ao se auto-avaliar? Pois, na
medida em que os homens se comparam, e Hobbes afirma no De Cive que os
homens sempre se comparam93, eles acabam, normalmente, mesmo percebendo
que outros homens possuem mais eloqncia e sagacidade que eles, emitindo
sempre um parecer favorvel a sua pessoa. Em outras palavras, essa analise
estaria comprometida, pois cada um tende a buscar o prprio favorecimento.
Outra questo seria a de que os homens aceitam a distribuio feita pela
prpria natureza das faculdades referentes ao esprito. Pois bem, esse no seria
um sentimento de conformismo e at mesmo estratgico de cada homem para
benefcio prprio? Uma vez que, afirmar que os outros homens so mais
eloqentes, sagazes e astutos que ele, no seria colocar-se numa condio
extremamente desfavorvel, tendo em vista que o homem hobbesiano sempre
visa o benefcio prprio? O que pretendemos dizer que, em outras palavras, o
fato dos homens no reconhecerem em outros homens maior sabedoria, poderia
ser uma estratgia do homem que vive amedrontado no estado de natureza.
Pois bem, o fato que a igualdade natural vai ser uma das causas do medo
que existe no estado de natureza, pois, como afirmamos acima, o homem no
estado de natureza vive amedrontado.
Segundo Hobbes, o medo que existe no estado de natureza
conseqncia dessa igualdade que h entre os homens, conforme ele afirma no
De Cive: O medo recproco consiste, em parte, na igualdade natural dos homens,
92
Idem. p. 107. 93
Cf. Hobbes, Thomas. De Cive. p. 30.
44
em parte na mtua vontade de se ferirem 94. Sendo assim, de onde provm o
medo que alimenta os homens no estado de natureza?
A origem do medo e da desconfiana dos homens em relao aos outros no
estado de natureza surge de mltiplos fatores que permeiam a natureza humana.
Na verdade, como se existisse para Hobbes uma ao em cadeia no estado de
natureza que levar os homens fatalmente h um estado permanente de guerra e
intranqilidade. Dito de outro modo, a igualdade dos homens no estado de
natureza gera a desconfiana, que trs consigo o medo, que sugere, por sua vez,
a antecipao ao ataque alheio e que tem por conseqncia a guerra
generalizada.
Outro aspecto que cabe ressaltar que os homens, conhecedores da sua
prpria natureza, sabem quais so os sentimentos que tambm movem os seus
semelhantes, ou seja, o que move os homens s aes so basicamente os
mesmos desejos e averses pelas coisas. Neste caso, alguns desejos ampliariam
a tenso existente entre os homens no estado de natureza, a saber: o desejo de
glria; o desejo de lucro e o medo da morte, ou seja, a preservao da prpria
existncia.
Sendo assim, cabe-nos mostrar essa reao em cadeia que surge com as
paixes e que terminar por colocar os homens num estado de constante ameaa
e guerra no estado de natureza.
No entender de Thomas Hobbes, h nos seres humanos uma vontade
natural de causar dano aos outros95. Segue-se disso que a intranqilidade, mais
exatamente o medo que a marca registrada do homem hobbesiano no estado de
natureza, pois o medo que ele tem de receber algum tipo de ofensa fsica ou moral
constante. Hobbes tenta explicar de onde provm esse desejo de ferir os outros
seres humanos, ou melhor, o desejo de se ferirem mutuamente.
94
Hobbes, Thomas. De Cive. p. 29. 95
Cf. Thomas, Hobbes. Leviat. p. 29.
45
De acordo com o filsofo, entre as causas da vontade de causar danos aos
outros, no estado de natureza, estariam a v glria e a necessidade de
autodefesa. Nas palavras do prprio Hobbes: No estado de natureza, todos os
homens tm desejo e vontade de ferir, mas no procede da mesma causa, e por
isso no deve ser condenado com igual vigor 96. E acrescenta: Pois um,
conformando-se aquela igualdade natural que vige entre ns, permite aos outros
tanto quanto ele requer para si (que como pensa um homem temperado, e que
corretamente avalia o seu poder) 97. Esse homem, avaliando a condio dos
outros seres humanos no estado de natureza, faz da antecipao aos ataques a
sua defesa, como sugere o prprio Hobbes ao dizer que a vontade de ferir o outro
provm da necessidade de se defender, bem como sua liberdade e bens, da
violncia daquele 98 Maria Isabel Limongi interpreta dessa forma:
Nota-se: no se trata de dizer que tendemos efetivamente
disputa, como se nossa natureza se inclinasse irremediavelmente a ela,
seja em que condies for, mas de dizer que, numa situao de
igualdade, e no caso de algum se colocar como obstculo consecuo
dos nossos fins, somos levados disputa. 99
Lembremos que o homem hobbesiano, que movido por paixes, no
aceita obstculos. Uma vez que, como vimos no captulo anterior, paixes so
movimentos e a noo que se tem de movimento aquela que est prxima da lei
dos corpos inerciais: o movimento tende ao infinito. Neste caso, qualquer pessoa
que se coloque como obstculo preservao do movimento das paixes ser
para aquele que impedido um inimigo.
Sendo assim, a antecipao a forma mais prtica de garantir a segurana,
melhor dizendo, a sobrevivncia, pois ela no d aos meus supostos adversrios
96
Idem. p. 29. 97
Ibidem. 98
Ibidem. 99
Limongi, Maria Isabel. O homem excntrico: paixes e virtudes em Thomas Hobbes. p. 88.
46
nenhuma possibilidade de ataque. Nas palavras de Limongi, esse comportamento
razovel:
A razoabilidade deste comportamento (que se segue da
circunstncia da nossa igualdade e que no pressupe nenhuma tese
acerca de uma inclinao irreparvel para a disputa que estivesse desde
sempre e para todo escrita nos nossos coraes) suficiente para tornar
razovel que cada um se antecipe a ela, garantindo-se pela fora ou pela
astcia
Limongi entende que esse comportamento belicoso dos homens que
Hobbes constata no tem origem em uma inclinao natural, mas conseqncia
de uma situao de igualdade natural. Ao contrrio do que pensa Limongi, parece-
nos que o homem hobbesiano tem um sentimento natural que o leva sempre a
uma antecipao dos seus atos, ou seja, a antecipao no apenas uma
conseqncia da igualdade natural como prope a autora, mas seria o resultado
de uma natureza que movida por impulsos e que no mudar nem mesmo no
estado civil. Em outras palavras, mesmo aps a passagem do estado de natureza
para o estado civil, vrios aspectos da natureza humana continuam latentes.
Sobre esse assunto, o prprio Hobbes nos adverte: E poder portanto talvez
desejar, no confiando nesta inferncia feita das paixes, que ela seja confirmada
pela experincia 100 Hobbes usa vrios exemplos prticos para mostrar que
mesmo depois da instituio das leis a preveno continua a existir. Dito de outro
modo, a intranqilidade e a desconfiana permanecem:
Que seja portanto ele a considerar-se a si mesmo, que quando
empreende uma viagem se arma e procura ir bem acompanhado; quando
vai dormir fecha as suas portas; mesmo quando est em casa tranca os
100
Hobbes, Thomas. Leviat. p. 109.
47
seus cofres, embora saiba que existem leis e servidores pblicos
armados, prontos a vingar qualquer dano que lhe possa ser feito 101
Observemos que Hobbes fala de leis e servidores armados, ou seja, ele
no est obviamente falando do estado de natureza. Sendo assim, podemos
concluir que o estado de natureza continua latente mesmo no estado civil, no qual
no h mais igualdade, pois, segundo Hobbes: a desigualdade que hoje
constatamos encontra-se na lei civil
Essa necessidade de antecipao da ao gera, como j aludimos acima,
uma condio perptua de guerra. Com isso, Hobbes est demonstrando os
passos que os homens seguem para chegar ao conflito permanente que a vida
no estado de natureza. Neste caso, a expectativa que cada homem cria em
relao ao outro homem importante para entendermos a lgica dessa guerra
perptua. Portanto, valiosa a apresentao da origem desse comportamento
hostil que h entre os homens, pois com base na gnese que fazemos do tema
que podemos entender o motivo desse comportamento:
Sendo possvel mostrar a gnese deste comportamento e, nessa
medida, oferecer sua razo, justificvel inferir que os homens assim se
comportem. E esta inferncia justifica que nos comportemos de igual
maneira a fim de nos precaver, o que, por sua vez, justifica o
comportamento dos outros no mesmo sentindo e assim por diante: a
lgica da guerra est instaurada 102
Como podemos notar, segue-se dessa situao, acima descrita, que o
medo vai se apoderando dos homens no estado de natureza e os leva a agir de
maneira violenta na direo do outro, que possivelmente, poder hoje ou amanh
tornar-se um obstculo s minhas aspiraes.
101
Ibidem. p. 110. 102
Limongi. Maria Isabel. O homem excntrico: paixes e virtudes em Hobbes. p. 89.
48
Nas palavras de Limongi: a lgica da guerra est instaurada 103. O que
podemos notar a reao em cadeia que leva os homens ao estado de guerra.
Primeiro existe uma igualdade entre os pares. Depois, dessa igualdade nasce a
desconfiana que, por sua vez, gera antecipao e que, por fim, traz a tona o
estado de guerra permanente.
Poderamos ento dizer que no existe paz no estado de natureza?
Na viso de Hobbes, sim. Pois, segundo ele, para a guerra no necessrio o
ato: Pois o que a guerra, seno aquele tempo em que a vontade de contestar o
outro pela fora est completamente declarada, seja por palavras, seja por atos?
O tempo restante denominado paz 104. Analisando essa passagem do De Cive e
confrontando-a com a lgica aqui por ns exposta, acreditamos que no existe
esse tempo restante que Hobbes usa para falar de paz.
A vida dos homens no estado de natureza, segundo Hobbes, est muito
longe de ser uma vida pacfica, pois o tempo todo ou existe o confronto ou o
desejo de confrontar-se (o que por vezes torna-se manifesto por meio da
antecipao). Sendo assim, conclui-se que uma das causas do medo existente no
estado de natureza decorre justamente dessa condio de guerra perptua.
Mas, no s a paz que no possvel no estado de natureza. No
verdade, no h sociedade e, sendo assim, no existe nenhuma possibilidade de
vida civilizada, pois em tempo de guerra no h motivos para que os homens
confiem nos seus semelhantes. Dito de outro modo, em tempos de guerra a
infidelidade, a desconfiana e o ataque so constantes, fazendo assim com que
qualquer tipo de pacto ou contrato no tenha nenhuma garantia de cumprimento.
Tendo abordado uma das causas que levam os homens a se feriem,
Hobbes salienta no De Cive e no Leviat outra causa: o desejo de glria. No
entender de Hobbes, a anlise que os homens fazem de si mesmos por vezes
103
Idem. p.89 104
Thomas, Hobbes. De Cive. p. 33.
49
est equivocada. Se, por um lado, existe aquele que vai atacar para se defender,
como vimos acima, o prprio Hobbes salienta que:
O outro, supondo-se superior aos demais, querer ter licena para fazer
tudo o que bem entenda, e exigir mais respeito e honra do pensam
serem devidos aos outros (o que exige um esprito arrogante). No
segundo a vontade de ferir vem da v glria, e da falsa avaliao que faz
da prpria fora 105
.
A v glria para Hobbes seria a falsa imagem que cada homem cria de si
mesmo e das expectativas que ele tem em relao aos outros. O desejo de glria
entraria como um fator multiplicador dos demais impulsos humanos, pois, como j
argumentamos, todos precisam defender-se de um futuro ataque ou de uma
possvel dominao. Deste modo, aquele que busca se defender o faz justamente
pelo fato de que h algum que busca por todos os meios, mesmo que
erroneamente, se impor pela dominao.
Podemos assim levantar uma questo: se o estado de natureza igual
em todos os homens, por que Hobbes diferencia o caso daquele que busca a
defesa por medo do ataque e aquele que procura por algum tipo de benefcio
mediante a dominao? Ele mesmo ressalta que ambos no devem receber a
mesma condenao 106.
O que conseguimos auferir das leituras dos textos hobbesianos aqui
analisados a de que os homens buscam o lucro (agem sempre em benefcio
prprio) e a conservao da prpria vida e que, nenhum homem est livre de
nenhuma desses aspectos, ou seja, eles so naturais. Dito de outro modo, esses
impulsos de glria e dominao (que garante a manuteno da prpria vida) so
expresses da natureza humana. Portanto, a v glria entraria como um elo entre
o desejo de lucro e a necessidade de lutar pela prpria segurana, pois, aos
homens, no suficiente apenas obter lucro, mas tambm receber as glrias que
105
Hobbes, Thomas. De Cive. p. 29. 106
Cf. Idem. p. 29.
50
uma posio superior pode trazer. Ao passo que, o lucro sem as garantias da vida
no tem nenhum sentido.
Nota-se que o desejo que cada homem tem de se sentir melhor que os
demais decorrente de uma condio intrnseca a ele, ou seja, esse desejo
conseqncia da vontade que ele possui de receber os ttulos de reconhecimento.
Segundo Limongi:
Dificilmente as duas primeiras causas da guerra nos conduziriam a uma
situao de disputa generalizada, no fosse este fator multiplicador que
nos dispe a disputar no apenas pelos bens necessrios
sobrevivncia mas tambm pelos signos de reconhecimento 107
. (Trata-
se da segurana e do lucro a referncia que o texto faz s duas primeiras
causas).
O desejo de glria conseqncia de um erro de clculo que os homens
comentem quando se analisam. Cabe aqui um olhar sobre esses dois conceitos:
glria e v glria. J deu para perceber que, para Hobbes, so conceitos distintos.
V glria uma falsa compreenso que os homens tm de si mesmo, seja do seu
prestgio ou da sua fora. J a glria so os benefcios que um lugar de destaque
pode trazer a esse homem. Por isso, os homens buscam a glria, mas so
acometidos pela v glria quando se investigam, pois, na maioria dos casos, no
conseguem fazer uma analise de si mesmos livre de erros.
Esse erro de clculo que leva os homens a vangloriar-se to grave que
Hobbes o coloca como mais uma das causas das discrdias que ele mesmo
chama de comparao das vont