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O Homem da Arte de Escrever ... – Pereira & Júnior
Revista Diálogos – N.° 18 – Set. / Out. – 2017 118
O HOMEM DA ARTE DE ESCREVER E PINTAR DEUS: UMA
COMPARAÇÃO SIMBÓLICA NA PINTURA “A CRIAÇÃO DE
ADÃO” DE MICHELANGELO E NOS “POEMAS MALDITOS,
DEVOTOS E GOZOSOS” DE HILDA HILST.
d.o.i. 10.13115/2236-1499v2n18p118
Paulo Fernando de Sousa Pereira1
Francisco Pereira Smith Júnior 2
Resumo: Este trabalho tem como objetivo estabelecer uma leitura comparativa
entre a pintura de Michelangelo intitulada “A criação de Adão” e o Poema de
Hilda Hilst “poemas malditos, devotos e Gozosos” em que será observada a
relação que há entre essas obras com foco na figura de Deus. Para isso será
estabelecido como ponto de referência entre essas artes uma análise que
contemplará os símbolos para demonstrar semelhanças e divergências para
entender esse processo comparativo. Como referencial teórico para este artigo
serão utilizados os estudos de CARVALHAL (2004), que trata da literatura
comparada e seu método de estudo; MARTINS (s/d) que apresenta um estudo
sobre Michelangelo e sua constituição enquanto pintor e escultor; CHEVALIER
& GEERBRANT (2003) que estuda o símbolo e seus significados e
MACHADO & PAGEAUX (1989) sobre a literatura, a interdisciplinaridade e
a relação desses estudos com outras artes.
Palavras-chave: Literatura comparada, Artes, Símbolo.
Abstract: This work aims to establish a comparative reading between
Michelangelo 's painting titled "The Creation of Adam" and Hilda Hilst' s poem
"cursed, devout and joyful poems" in which will be observed the relation
between these works with focus In the figure of God. For this, an analysis that
will contemplate the symbols to demonstrate similarities and differences to
1 Especialista, UFPA. 2Prof. Dr., doutorado pela PDTU/NAEA/UFPA
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understand this comparative process will be established as a point of reference
between these arts. As theoretical reference for this article will be used the
studies of CARVALHAL (2004), which deals with comparative literature and
its method of study; MARTINS (s / d) who presents a study on Michelangelo
and his constitution as painter and sculptor; CHEVALIER & GEERBRANT
(2003) that studies the symbol and its meanings and MACHADO & PAGEAUX
(1989) on literature, interdisciplinarity and the relation of these studies with
other arts.
Keywords: Comparative Literature, Arts, Symbol.
Introdução
A sociedade em que coexistimos é constituída de pensamentos
diferentes sobre aspectos da vida que nos é comum, podemos perceber
isso na constituição do pensamento sobre a origem da vida que é
considerado algo divino, mas também algo puramente natural, biológico.
As artes como o todo, são objetos desse questionamento, demonstrando
assim a capacidade que o homem tem de criar a sua maneira a visão sobre
algo que constitui o nosso mundo e universo.
Nessa busca por uma explicação e resposta aos questionamentos
está um tema que é muito debatido no universo científico e artístico que
é Deus, porém não é um tema fácil de discutir e representar como fazem
as artes, pois torna-se polêmico devido a sua projeção na vida social e
religiosa de cada pessoa. Sendo assim, as obras de artes no geral
comumente utilizam a Bíblia, onde encontramos a base do cristianismo e
da existência de Deus para reformular e questionar tais pensamentos que
lá se constituem. Ou seja, da mesma forma que a bíblia pode ser
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entendida como um objeto criado pelo homem (mas que apresenta um
caráter religioso capaz de mudá-lo), assim também os autores como
homens e mulheres compreendem que podem reescrever essa história e
criar um novo pensamento sobre o ser Divino. Um exemplo maior dessa
reescrita e mudança de pensamento é o Evangelho Segundo Jesus Cristo
de José Saramago, por isso que muitas obras de artes apresentam
semelhanças em sua composição, devido beberem da mesma fonte ou
mesmo de dialogarem entre si.
Para compreender um pouco dessas escritas sobre Deus, este
trabalho busca fazer um diálogo entre a pintura de Michelangelo “A
criação de Adão” e os “poemas malditos, devotos e gozosos” de Hilda
Hilst por meio da literatura comparada como forma de perceber as
semelhanças que podem ter ambas as obras, assim como possibilitar uma
reflexão acerca da possível relação entre uma pintura e um poema, já que
são bastante diferentes em termos de composição, mas que podem ter um
certo contato que possibilita tais semelhanças, competindo assim para a
literatura comparada enquanto ciência que busca estabelecer esse pontos
de contatos para tal investigação.
A semiótica também contribuirá para este estudo devido se
utilizar de um método que abarca ambas as obras em discussão, visto que,
contempla uma discussão mais interdisciplinar. Como não se pode
utilizar um método de estudo totalmente literário (a outra obra trata-se de
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uma pintura) parte-se de uma perspectiva diferente e que tem seus
métodos próprios de análise.
Por fim, este artigo busca por possibilitar uma leitura que mostre
as influências que a literatura pode sofrer de outras artes, como a pintura,
e demonstrar que a escrita(literatura) pode ser influenciada por esse tipo
de linguagem, assim como a possibilidade de artes de épocas e estilos
diferentes estabelecerem pontos de diferenças e semelhanças.
Literatura Comparada: um olhar interdisciplinar e intertextual
A Literatura comparada é um ramo da literatura que tem seu
nascimento nas ciências naturais e nessa era usada para “comparar
estruturas ou fenômenos”, mas ela realmente se consolida como um
método de investigação literária na França. Mas é a partir de várias
publicações de autores que começa a ganhar seu espaço dentro da
literatura como uma disciplina que hoje é essencial para estudarmos as
influências de uma ou mais literaturas ou até mesmo de outras áreas do
conhecimento e da cultura.
Esse método de estudo é útil para compreendermos como
acontece no contexto literário o contato entre obras de épocas e contextos
diferentes, pois além de termos o contato entre obras literárias, temos a
possibilidade de haver o contato entre tipos diferentes de artes como a
possibilidade de termos um diálogo entre uma pintura e um poema,
sendo assim é possível por meio da comparação perceber como essas
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obras podem absorver umas as outras para criar a sua visão acerca do
objeto retratado, como exemplo, as práticas de vida e os modos como
criamos os nossos mundos míticos.
Assim compreendida, a literatura comparada é uma forma
específica de interrogar os textos literários na sua interação
com outros textos, literários ou não, e outras formas de
expressão cultural e artísticas. (CARVALHAL, 2006 p.
73).
Ou seja, a literatura comparada é uma forma de possibilitar uma
leitura de obras tão diferentes como é o caso de uma pintura e um poema,
além de mostrar o quanto que hoje a linha de contato é bem menos expeça
e que se apropriar e reinventar ou mesmo aumentar uma possibilidade de
visão é demonstrar o quanto que o contato entre obras de expressões
diferentes é muito comum e que não pode ser visto como plágio, mas
como uma forma de releitura, pois para Carvalhal (2006, p.54) “a verdade
é que a repetição, quando acontece, sacode a poeira do texto anterior,
atualiza-o, renova-o (por que não dizê-lo?) o re-inveta”.
A comparação pode possibilitar o entendimento sobre o processo
de absorção ou contato que uma literatura tem com outra percebendo a
influência que esta recebe, não só de uma obra, mas de várias outras
formas da cultura em que esta se encontra; “o processo de escrita é visto,
então, como resultante também do processo de leitura de um corpus
literário anterior. O texto, portanto, é absorção e réplica a outro texto (ou
vários outros).” (CARVALHAL, 2006, p. 50), nesse caso cada obra
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recebe por meio da leitura a outros textos a influência e tornar-se uma
réplica, mas não em um sentido de cópia, pois como citamos acima, o
texto se renova, demonstrando assim o seu ponto de partida que sempre
é o outro, pois cada escritor ao longo de sua vida fez muitas leituras de
autores diferentes e muitas das vezes se identificou com aquela escrita ou
também fez várias leituras do próprio mundo que o cerca, mas decidiu
apenas por uma visão acerca da coisa retratada e é nesses pedaços de
diferentes leituras que podemos identificar os resquícios do outro que é
um caminho da qual podemos compreender como que se construiu
determinada obra e quais influências recebeu, já que o inédito é algo
considerado como que inexistente, porque já se comentou tudo, então o
que resta é a renovação “desse eu” que foi absolvido do outro.
O Signo
Semiótica é a ciência que estuda os signos, e nesse sentido
podemos entender que as possibilidades que esta ciência tem são vastas,
pois os signos estão presentes nos diferentes campos do conhecimento,
pois existe uma linguagem verbal que “é o uso da língua que falamos e
da qual fazemos uso para escrever” e uma linguagem não verbal que são
as outras várias possibilidades de comunicação que estão fora do âmbito
da língua, pois “Nos comunicamos e nos orientamos através de imagens,
gráficos, sinais, setas, números, luzes... Através de objetos, sons
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musicais, gestos, expressões, cheiro e tato, através do olhar, do sentir e
do apalpar” (SANTAELLA, 2004, P. 10).
Isto é, a esses outros tipos de comunicação damos o nome de
linguagem, porém não no sentido que a língua não faça parte desse meio,
mas é por meio destes outros modos de comunicar que a comunicação
sem a língua acontece. A linguagem engloba tudo que expressa o
pensamento e que é o campo de atuação da semiótica e como ela está
presente em todos os campos, acaba por fazer uma grande confusão e
para não causar determinadas polêmicas é definido o seu lugar no mundo
das ciências colocando os “fenômenos” que são produzidos como seu
objeto de investigação.
A nossa vida é composta de representações, imagens, símbolos e
tudo isso leva a construir um mundo de linguagem ao qual chamamos de
signo;
Um signo intenta representar, em parte pelo menos, um
objeto que é, portanto, num certo sentido, a causa ou
determinante do signo, mesmo se o signo representar seu
objeto falsamente. Mas dizer que ele representa seu objeto
implica que ele afete uma mente, de tal modo que, de certa
maneira, determine naquela mente algo que é
mediatamente devido ao objeto. Essa determinação da qual
a causa imediata ou determinante é o signo, e da qual a
causa mediata é o objeto, pode ser chamada de
interpretante. (PEIRCE apud SANTAELLA, 2004, p.58)
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Compreendendo o signo como algo que representa algo, então as
artes são signos que buscam por captar outras formas de representações,
ou seja, outros signos para assim produzir significações acerca da
constituição da vida. A literatura e a pintura são formas de representação
da vida, ou seja, são signos que podem ser compreendidos como objetos
que agem como interpretantes nessa função sígnica.
Pierce (2004) compreendendo a relação com o objeto divide o signo
em símbolo, ícone e índice, mas o que nos interessa nessa análise é o
símbolo e que segundo Chevalier & Gheerbrant (2003 p.11) “os símbolos
estão no centro, constitui o cerne dessa vida imaginativa. Revelam os
segredos do inconsciente, conduzem às mais recônditas molas da ação,
abrem o espirito para o desconhecido e o infinito”, ou seja, ele é o que
representa o mais íntimo do ser, sem que tenhamos a noção do que se
trata, e se diferenciando da natureza do signo, apresenta uma
homogeneidade, sendo assim a sua explicação parte de uma ideia coletiva
e não individual.
Michelangelo e Hilda Hilst: distâncias e semelhanças
Michelangelo nasceu na cidade de Capresse, no dia 06 de março
de 1475, mas passou parte de sua infância e adolescência em Florença,
seu pai era um homem muito severo e temente a Deus, sua mãe morre
quando estava com 5 anos de idade. Primeiramente foi aprendiz de
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Domenico Ghirlandaio, este percebeu seu talento e o enviou para
Lorenzo de Medici, recebendo influência de vários artistas da época,
morou em Bolonha durante 4 anos e recebeu um convite do Cardeal San
Giorgio para morar em Roma. Entre os anos de 1508 e 1512 pinta o teto
da capela sistina no Vaticano e morre em 18 de fevereiro de 1564. Suas
obras revelam um forte apego do homem perfeito que é “belo, bom e
verdadeiro”, considerava a arte como um dom de Deus, não se
considerava um pintor, mas sim um escultor e para atingir toda a
perfeição que considerava em suas esculturas e pinturas buscava por
meio da dissecação de corpos no estudo da anatomia uma forma para
transmitir os detalhes em suas obras.
Hilda Hilst nasceu no dia 21 de abril de 1930 na cidade de Jaú no
interior de São Paulo e faleceu no dia 04 de fevereiro de 2004, era filha
de Almeida Prado Hilst e Bedecilda Vaz Cardoso, ele era ensaísta,
jornalista e poeta. Com pouco tempo seus pais separam-se e vai morar
com sua mãe em uma fazenda, seu pai é internado em um sanatório e seus
estudos são no colégio interno Santa Marcelina e no curso clássico da
escola Mackenzie e direito na faculdade do largo de São Francisco na
cidade de São Paulo, levou uma vida considerada boêmia e para época
seu modo de se comportar escandalizava a alta sociedade paulista, pois
era uma bela mulher.
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Uma definição bem concisa do que foi esta escritora tão
peculiar quanto surpreendente e polêmica está nas palavras
do escritor José Mora, que faz a conciliação entre a pessoa
e a artista: “Hilda faz as perguntas essenciais, comuns a
todos os seres humanos, por isso ela é uma escritora
universal. Era de fato um gênio. Tinha um olhar generoso,
emocionado e fraterno sobre o mundo, a vida e a
humanidade”. (NINA apud BORGES, p.01, 2008)
Michelangelo e Hilda Hilst, são artistas de épocas muitos
diferentes, mas que trazem em suas obras pontos semelhantes que fazem
serem muito próximos e que torna possível o diálogo entre ambos.
Michelangelo é de um período chamado Renascimento, onde a
centralidade é o homem, porém um homem que aparentemente é mais
ligado a Deus, neste período começa a se desenvolver algumas teorias
cientificas que vão contra alguns princípios que foram formulados pela
igreja católica, já Hilda Hilst é do Modernismo, onde neste movimento
busca-se uma libertação da arte dos moldes da qual algumas escolas
colocaram.
Percebemos em Michelangelo e Hilda Hilst questionamentos
muito parecidos como a retração do homem, da vida, porém cada um à
sua maneira e condizendo com o pensamento de suas épocas. Em Hilst,
encontramos um desapego com todas as formas que são constituídas
socialmente como certas e corretas, há um rompimento com os moldes
que são predeterminadas pelo contexto social, já em Michelangelo isso
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não é percebido de forma clara, mas em suas obras percebemos esse
rompimento com os pensamentos da época, principalmente em relação a
visão divina, ou seja, o ponto central de semelhança entre os dois pode
ser medido pelo Humanismo que é o homem no centro de tudo, tornando
assim as obras que serão analisadas semelhantes, mas que trazem as
singularidades cada autor.
“A Criação de Adão” e “Poemas Malditos, Gozosos e Devotos”:
estabelecendo uma comparação.
Fig.1 – “A criação de Adão, imagem que compõe os afrescos do teto da capela
Sistina”3
3 Fonte: - Disponível em http://noticias.universia.com.br/tempo-
livre/noticia/2012/08/22/960448/conheca-criaco-ado-michelangelo-buonarroti.html
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A pintura acima de Michelangelo é intitulada de “A criação de
Adão”, essa imagem busca transmitir uma cena bíblica descrita no livro
do Gênesis cap. 2 vers. 7, que diz: “Então javé Deus modelou o homem
com o pó do solo, soprou-lhe nas narinas um sopro de vida, e o homem
tornou-se um ser vivente”.
A Criação de Adão foi pintada entre os anos de 1508 e 1510
pelo italiano Michelangelo Buonarroti. A Criação de Adão,
do pintor italiano renascentista Michelangelo Buonarroti é
a obra homenageada hoje no projeto Um Pouco de Arte
para sua Vida. A pintura faz parte do teto da Capela Sistina.
Seu pintor é celebrado como o maior artista das três artes
visuais: escultura, pintura e arquitetura e também é um dos
três maiores artistas renascentistas, ao lado de Leonardo da
Vinci e Rafael. (UNIVERSIA, 2012)
A outra obra é o poema de Hilda Hilst que transmite uma imagem
de Deus onde o eu-lírico o narra a partir de uma visão humanizada e
diabólica, pois na primeira parte há uma visão de um ser divino e
diabólico, na segunda parte temos uma narração como se houvesse uma
relação amorosa e na terceira parte há uma relação de devoção e tendo
como base uma visão fundamentada no homem.
O ponto que podemos perceber entre essas duas artes é a maneira
como são compostas, pois ambas estabelecem um diálogo muito próximo
em relação a criação, vejamos alguns pontos por meio da comparação.
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Podemos perceber uma primeira relação de semelhança no poema
é quando no início o eu-lírico transmite a ideia de Deus ser humano, isso
construído a partir da figura de Cristo.
Nos pés de carne
Nas mãos de carne
No peito vivo. De carne.
Há uma semelhança neste trecho com a pintura, pois percebemos
como o eu-lírico deixa claro a humanidade de Deus, pois segundo
Chevalier & Gheerbrant (2003) simbolicamente “pé” remete a ideia de
realidade, assim também é percebido na pintura, já que o homem é que
toca o chão, a terra, já Deus permanece no ar, ou seja, não toca o plano
da realidade.
Dedo alongado agarrando homens
Galáxias. Corpo de homem?
Não sei. Cuidado.
Neste outro trecho há uma relação com a pintura a partir do
‘toque’ que parece ter entre o homem e Deus, mas esse toque é segundo
Martins (2008, p. 13) “O Adão de Buonarrotti não só está em posição
vívida como também fita o criador com o amor e parcimônia. Além disso,
o quase toque de Deus em Adão poderia significar o infinito que separa
as duas personagens da pintura”, ou seja, tanto a pintura quanto o poema
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mostram esse distanciamento entre os dois, mas no poema há um alerta
para tal distância.
Ainda em outro trecho o eu-lírico Hilstiano mostra esse
distanciamento entre ambos como uma forma de libertação, pois a oração
para ela não é algo tido como essencial e por isso é rejeitada, já que Deus
é como se não existisse.
(...)
Se tenho a pedir, não peço.
Contente, eu mais lhe agradeço
Quanto maior a distância.
Essas semelhanças mostram o quanto as duas obras comungam
das mesmas concepções acerca de Deus. Uma outra questão que pode
mostrar que tanto o poema quanto a pintura têm em si uma semelhança é
a partir do seguinte trecho:
Rasteja e espreita
Levita e deleita
É negro. Com luz de ouro.
É branco e escuro.
Tem muito de foice
E furo.
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Percebemos na estrofe acima que a imagem que passa o poema é
de uma serpente e que segundo Chevalier & Gheerbrant (2003) este ser
pode representar tanto o bem como o mal, e nessa mesma estrofe ainda
podemos perceber que as palavras estão em forma de contrariedade,
assim como a pintura também mostra ambos o criado e o criador em
oposição o que é diferente da ideia bíblica onde o “ser criador está acima
e o ser criado está abaixo” ou pelo menos é essa a visão que é entendida
e compreendida pela sociedade, mas segundo Chevalier & Gheerbrant
(2003) o Contrário representa “forças opostas em todo ser, em toda
manifestação de energia”, ou seja, ambos mostram uma certa
contrariedade em Deus que pode sustentar tanto a divindade quanto a
humanidade o que é bem próximo do que o ser humano aparenta ser.
Corronhadas exatas
De tuas mãos sagradas.
Me queres esbatida, gasta
Neste trecho do poema percebemos uma certa semelhança com a
pintura, pois o eu-lírico se mostra como se estivesse cansada, gasta de ser
atingida por Deus, assim percebemos na imagem pelo olhar do homem
como se ele estivesse jogado, cansado, um olhar de passividade. Mas
abaixo perceberemos uma semelhança a partir da ideia de criação;
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Doem-te as veias?
Pulsaram porque fizeste
Do barro dos homens.
E agora dói-te a Razão?
Se me visses fazer
Panelas, cuias
Percebemos que o eu-lírico no poema mostra um ser que foi
modelado pelo homem, sendo que ele é capaz de fazer as coisas, além de
enfatizar a fragilidade da criação e este mesmo ponto é encontrado na
pintura de Michelangelo na forma onde se encontra Deus e os anjos, pois
ambos estão envoltos por um manto vermelho e que segundo Fróis (2005)
é a imagem de um cérebro, ou seja, percebemos que o pintor procura dar
uma ênfase na ideia de que todos os seres divinos, místicos são criados
pela ideia, pela imaginação não de algo que esteja em um plano distante
do ser humano, mas que comunga deste mesmo plano, sendo o próprio
homem, pois este é representado como frágil e a mesma coisa acontece
com suas criações.
E depois de prontas
Me visses
Aquecê-las a um ponto
A um grande fogo
Até fazê-las desaparecer
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Dirias que sou demente
Louca?
Assim fizeste aos homens.
Neste trecho do poema percebemos que o eu-lírico Hilstiano
mostra que o homem cria, mas ao mesmo tempo é responsável pela
destruição daquilo que cria, e há um questionamento acerca desse mesmo
poder que Deus tem, pois ele cria e também destrói a sua criação dando
a ela a morte, isso mostra a semelhança que Deus tem com o ser humano
que a loucura. E na pintura de Michelangelo essa semelhança entre Deus
e o Homem está na forma que é feita a composição de ambos na obra,
pois este são colocados em forma de espelho, ou seja, um reflete o outro
e também no título da obra, já que “adão” quer dizer homem e mostra
uma ambiguidade como se o homem tivesse criado Deus e vice-versa “a
criação do homem”.
Se mil anos vivesse
Mil anos te tomaria.
Tu.
e tua cara fria.
Teu recesso.
Teu encostar-se
Às duras paredes
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De tua sede.
Há uma outra ideia que é colocada nestas estrofes do poema que
mostram que pode ter um diálogo com a pintura, pois o eu-lírico mostra
por meio da simbologia do número “mil” e que segundo Chevalier &
Gheerbrant (2003) o número “mil” tem o significado de imortalidade da
felicidade, ou seja, o eu-lírico revela a imortal felicidade do ser humano
em tomar para si o lugar de divino ao qual realmente lhe cabe e viver sem
limites seus desejos, já que “rosto” simboliza o divino no ser humano
O mesmo está presente na pintura, pois temos essa ideia de
tomada para si o seu lugar como divindade criadora por que o toque entre
deus e homem se mostra como sendo recusado por este, já que na forma
da mão é percebido esta não disposição em tocar o seu criador, enquanto
que na imagem de Deus este esforço se mostra bem maior, além do que
a imagem do rosto de deus é algo frio sem vida, refletindo a mesma
composição da face humana.
Teu vício de palavras.
Teu silêncio de facas.
As nuas molduras
De tua alma.
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Para Chevalier & Gheerbrant (2003) “a palavra simboliza de uma
maneira geral a manifestação da inteligência na linguagem, na natureza
dos seres e na criação continua do universo; ela é a verdade e a luz do
ser.”, então o significado que está por trás é a não existência de deus, pois
o ser humano que é dotado da faculdade da linguagem é quem cria tudo
inclusive seu deus, mas revela uma natureza maléfica nessa criação com
a utilização do símbolo “faca”, porém tudo isso não está oculto segundo
o eu-lírico, porque “nudez” significa isso, mostrando assim que o homem
é quem cria seus próprios deuses com intenções maléficas e o homem
tem a consciência disso, e “alma” revela que é o homem, pois é ele quem
possui.
Destarte da mesma forma que o poema é baseado na bíblia sobre
a criação, a pintura também tem o mesmo embasamento, sendo ambos
dirigidos pelo elemento criador que é a palavra mostrando que é por meio
desta que as coisas são feitas, os seres são criados e nomeados e quem
domina este recurso único é o ser humano, o que portanto demonstra que
em ambas as obras o central é a figuração humana como principal
elemento criador e criado que conhecemos como criação.
Considerações finais
Enfim, percebemos que o diálogo entre a pintura de Michelangelo
e o poema de Hilda Hilst é muito próximo, mesmo que seja considerada
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uma análise muito subjetiva, mas ao aproximarmos ambos e fazermos a
leitura detalhada percebemos que há sim uma semelhança e que pode ser
demonstrada e captada pelo olhar.
A ideia percebida quando se faz essa análise, para resumir o
estudo, é como se Hilda Hilst estivesse olhando a pintura e transcrevendo
essa imagem de cores para uma imagem em palavras, onde o centro é o
tema sobre a criação.
É percebido que nas obras a imagem de Deus é construída a partir
do homem, como centro de tudo, consequentemente é a visão humanista
presente na escrita desses autores, o que os tornam semelhantes e
comparáveis, portanto a análise buscou por contemplar essa possível
semelhança o que não quer dizer que realmente seja assim, mas o que
ficou evidenciado é que há uma possibilidade abrangente de uma
absorção do pintor pela autora do poema.
Referências
BORGES, Gisele do Rocio. A via transcendente percorrida na escrita
de Hilda Hilst. 2008. 115 f. Dissertação (Mestrado em Letras) – Setor
de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná,
Curitiba.
CARVALHAL, Tania Franco. Literatura Comparada. São Paulo.
Editora ática. 2004.
CHEVALIER, Jean & GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos.
- 18ª ed.- Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 2003.
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FRÒIS, Katja Plotz. Adão, Deus e a criação que cabe a cada um.
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SAUTEL, Nadine. Michelangelo: biografia. São Paulo: Editora
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