O livro didático de história hoje: um panorama a partir do PNLD

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É assente, entre os historiadores, que os sujeitos sempre se posicionam apartir de um lugar social e que os olhares que assumem são permanentemen-te contingenciados por circunstâncias que emergem em função de tais luga-res. Parece pertinente, portanto, que se faça um esclarecimento inicial acerca

Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 24, nº 48, p.123-144 - 2004

O livro didático de história hoje: um panorama a partir do PNLD

Sonia Regina MirandaUniversidade Federal de Juiz de Fora

Tania Regina de LucaUnesp–Assis

RESUMO

O artigo objetiva delinear uma breve ra-

diografia do livro didático contemporâ-

neo em função de algumas temáticas

centrais que têm ocupado o cenário de

investigações relativas ao saber históri-

co escolar, porém sob o escopo daquilo

que se apresentou no interior dos pro-

cessos de inscrição, triagem e avaliação

das obras inscritas para o Programa Na-

cional do Livro Didático para o ano de

2005. Consideraram-se, para efeito de

categorização global, os resultados des-

sa última avaliação de livros de História,

divulgada no início de 2004, na qual as

autoras desempenharam papéis vincu-

lados diretamente à execução do proces-

so avaliativo.

Palavras-chave: Livro didático de Histó-

ria; PNLD; Ensino de História.

ABSTRACT

The main objective of this article is to

point out a brief radiography of contem-

porary Historic didactic books, analy-

zed from some central thematic present

on the investigations related to educa-

tional knowledge. The example is for-

med by the book collection that partici-

pated on 2005 National Program of

Didactics Books (PNLD), sponsored by

Brazilian government. In order to com-

pose a global categorization were used

the results of the last History books eva-

luation, published in the beginning of

2004. The authors had participated in

the execution of the whole process of

evaluation.

Keywords: History didactic books; Na-

tional Program of Didactic Books

(PNLD); Teaching History.

do lugar a partir do qual se enunciam as análises aqui apresentadas, referen-tes ao perfil do livro didático de História hoje.

Enquanto membros, respectivamente, da Comissão Técnica do MEC eda Coordenação da Área de História para a avaliação do livro didático, nãopoderíamos apresentar as perspectivas compreensivas a respeito dessa ferra-menta pedagógica de modo desvinculado dessa posição específica. Nesse sen-tido, procura-se delinear uma breve radiografia do livro didático contempo-râneo em função de algumas temáticas centrais que têm ocupado o cenáriode investigações relativas ao saber histórico escolar, porém sob o escopo da-quilo que se apresentou no interior dos processos de inscrição, triagem e ava-liação das obras para o PNLD 2005 e, mais especificamente, dos resultadosglobais dessa última avaliação de livros de História, cujos resultados vieram apúblico no início de 2004.

POLÍTICAS PÚBLICAS PARA O LIVRO DIDÁTICO E O MERCADO EDITORIAL

Contrariamente à apreensão predominante no âmbito do senso comum,o livro didático é um produto cultural dotado de alto grau de complexidadee que não deve ser tomado unicamente em função do que contém sob o pon-to de vista normativo, uma vez que não só sua produção vincula-se a múlti-plas possibilidades de didatização do saber histórico, como também sua utili-zação pode ensejar práticas de leitura muito diversas.1 Tampouco os efeitosda ação avaliativa implementada pelo Ministério da Educação podem ser vis-tos exclusivamente com base em uma premissa homogeneizadora de práticase perspectivas quanto à História, sobretudo se considerarmos um breve his-tórico a respeito do papel regulador e/ou intervencionista do Estado nesse ni-cho particular de mercado e as circunstâncias políticas contemporâneas re-sultantes da prática avaliativa.

Observando-se a cronologia das ações do governo brasileiro em relaçãoao livro didático, constata-se que, embora a estruturação de um programa deavaliação determinante dos processos de compra seja algo relativamente re-cente, o estabelecimento de uma política pública para o livro didático remon-ta ao Estado Novo, quando se instituiu, pela primeira vez, uma Comissão Na-cional de Livros Didáticos, cujas atribuições envolviam o estabelecimento deregras para a produção, compra e utilização do livro didático.2

Naquele contexto, a despeito da diversidade de projetos políticos e cul-turais, reservava-se à educação lugar privilegiado na formação da nacionali-

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dade, tarefa assumida pelo Ministério da Educação e Saúde, que não descui-dou do controle do material educativo utilizado pela população escolar.3 Nes-se sentido, a educação constituiu-se em veículo privilegiado para introduçãode novos valores e modelagem de condutas, sobretudo com base nos meca-nismos prescritivos no campo do currículo e do material instrucional, dentreos quais o livro didático emergia como peça ideológica fundamental, que de-sempenha importante papel estratégico na difusão dos valores apregoadospelo regime.4

Sob o período militar, a questão da compra e distribuição de livros didá-ticos recebeu tratamento específico do poder público em contextos diferen-ciados — 1966, 1971 e 1976 —, todos marcados, porém, pela censura e au-sência de liberdades democráticas. De outra parte, esse momento foi marcadopela progressiva ampliação da população escolar, em um movimento de mas-sificação do ensino cujas conseqüências, sob o ponto de vista da qualidade,acabariam por deixar marcas indeléveis no sistema público de ensino e quepersistem como o seu maior desafio.5 Neste contexto particular, destaca-se opeso da interferência de pressões e interesses econômicos sobre a história en-sinada, na medida em que os governos militares estimularam, por meio deincentivos fiscais, investimentos no setor editorial e no parque gráfico nacio-nal que exerceram papel importante no processo de massificação do uso dolivro didático no Brasil.6 Cabe destacar que a associação entre os agentes cul-turais e o Estado autoritário transcendeu a organização do mercado consu-midor da produção didática e envolveu relações de caráter político-ideológi-co, cujas repercussões sobre o conteúdo dos livros didáticos foram marcantes,sobretudo pela perspectiva de civismo presente na grande maioria das obras,bem como pelo estímulo a uma determinada forma de conduta do indivíduona esfera coletiva.

A problematização e a teorização relativas a esse contexto histórico par-ticular acabariam por gerar discussões a respeito da formação da consciên-cia histórica pensadas genericamente sob o ponto de vista da manipulação,do controle ideológico e da formação de mentes acríticas em função de falsi-ficações deliberadamente inseridas no material didático destinado às crian-ças e aos jovens. Vários trabalhos acadêmicos debruçaram-se sobre a produ-ção didática nacional desse período e evidenciaram os compromissosideológicos subjacentes, seu caráter manipulador, falsificador e desmobiliza-dor, que mal disfarçava o intento de formar uma geração acrítica.7 Em rela-ção à história ensinada, a alusão às perspectivas analíticas ensejadas, sobre-

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tudo por Marc Ferro,8 constituía-se como uma tendência acadêmica siste-mática que acabaria por exercer um papel importante no sentido de consti-tuir uma forma de pensar o livro didático de História e as políticas públicasa ele associadas exclusivamente enquanto políticas sociais discriminatórias ehomogeneizadoras.

A partir da década de 1980, na conjuntura da reconstrução democrática,algumas tímidas ações no âmbito da Fundação de Assistência ao Estudantetangenciaram a discussão acerca dos problemas presentes nos livros didáticosdistribuídos no território nacional. Esse movimento coincidiu com impor-tantes debates a respeito dos programas oficiais de História, levados a efeito,sobretudo — mas não exclusivamente — nos estados de Minas Gerais e SãoPaulo. Marco na política em relação aos materiais didáticos foi a criação, em1985, do Programa Nacional do Livro Didático — PNLD. A partir desse mo-mento, progressivamente foram sendo incluídas no programa as distintas dis-ciplinas componentes do currículo escolar e o programa foi se delineando nosentido de incorporar os professores no processo de escolha. Cabe destacar,contudo, em relação a esse aspecto, a existência de pontos de estrangulamen-to derivados, sobretudo, da segmentação formal entre o MEC — instância deplanejamento e normatização do programa — e o FNDE — braço adminis-trativo e executor das ações que envolvem o processo de escolha, compra edistribuição das obras. Tais problemas, que remontam à origem do programaem sua versão atual, ainda hoje carecem de equacionamento sistemático e seapresentam como um desafio a ser enfrentado pelos gestores das políticas pú-blicas. Pesquisas realizadas em território nacional e patrocinadas pelo pró-prio MEC indicaram,9 em momentos distintos, que há problemas incontestá-veis envolvendo atrasos sistemáticos na edição e distribuição do guia para asescolas, incongruências de toda ordem no tocante à escolha feita pelos pro-fessores e envio das obras pelo FNDE, atrasos na recepção dos livros por par-te das escolas, bem como fragilidades envolvendo o processo de utilização dasobras enviadas, que chegam até mesmo a ser desprezadas e desconsideradaspelos professores. Todos esses problemas, no entanto, derivam do processode operacionalização administrativa do programa e, portanto, escapam porcompleto à competência da comissão avaliadora, que não tem nenhuma pos-sibilidade de ingerência nessas questões. Vale destacar que todos os relatóriostécnicos apresentados ao MEC insistiram, de forma sistemática e incisiva, naurgência de medidas que solucionem os problemas apontados.

Entretanto, foi apenas em 1996 — portanto num cenário político não

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mais caracterizado pela presença de um Estado autoritário, que se iniciouefetivamente a avaliação pedagógica dos livros didáticos, processo marcadopor tensões, críticas e confrontos de interesses. Desde então, estipulou-se quea aquisição de obras didáticas com verbas públicas para distribuição em ter-ritório nacional estaria sujeita à inscrição e avaliação prévias, segundo regrasestipuladas em edital próprio. De um PNLD a outro, os referidos critériosforam aprimorados por intermédio da incorporação sistemática de múlti-plos olhares, leituras e críticas interpostas ao programa e aos parâmetros deavaliação.

Em relação aos livros de História destinados ao segmento de 5ª a 8ª sé-ries, foram realizados três processos consecutivos de avaliação vinculados, res-pectivamente, aos programas de 1999, 2002 e 2005. Cumpre destacar que hou-ve variações de forma e substância em cada programa. Se, em 1999, cada volumeera avaliado de modo unitário e independente frente à coleção, o que geravacircunstâncias conflitivas com relação à variabilidade no processo de escolhae uso das obras, tal situação foi alterada a partir do PNLD 2002, quando a uni-dade básica de avaliação e escolha passou a ser a coleção didática. Além disso,caminhou-se de um procedimento classificatório e distintivo, baseado em es-trelas e menções discriminatórias, para um quadro meramente indicativo dasobras aprovadas, o que modificou a própria organização do guia do Livro Di-dático que, na versão de 2005, apresenta-se ao professor como um catálogoorganizado em ordem alfabética. Os critérios de avaliação, por sua vez, tam-bém foram sendo aprimorados, bem como as bases de cálculo utilizadas paraa ponderação e tratamento estatístico das coleções avaliadas.

Ainda que o processo de aperfeiçoamento dos critérios e procedimentosde avaliação seja bastante recente, a relação de continuidade dessa políticapor quase uma década teve efeitos incontestáveis na forma e no conteúdo dolivro didático brasileiro. Na área de História é patente a transformação: deum cenário marcado pelo predomínio de obras que veiculavam, de modo ex-plícito ou implícito, todo tipo de estereótipo e/ou preconceitos, para um qua-dro em que predominam cuidados evidentes, por parte de autores e editores,em relação aos critérios de exclusão de uma obra didática. Nos vários editaise nos Guias publicados, tais critérios têm sido exaustivamente repetidos: exis-tência de erros de informação, conceituais ou de desatualizações graves; vei-culação de preconceitos de gênero, condição social ou etnia, bem como dequaisquer formas de proselitismo e, por último, verificação de incoerências

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metodológicas graves entre a proposta explicitada e aquilo que foi efetiva-mente realizado ao longo da obra.10

O fato de uma obra não estar presente no Guia publicado pelo MEC trazefeitos financeiros indesejáveis que, em alguns casos, culminaram no desapa-recimento de editoras e/ou em fusões de grupos editoriais. A instituição deuma cultura avaliativa, num contexto político democrático, acabou por de-sencadear poderosos mecanismos de reajustamento e adaptação no mercadoeditorial.

Cumpre destacar que para o segmento voltado para as compras do setorpúblico importa menos a orientação metodológica ou a ideologia contida emuma coleção didática e mais a sua capacidade de vendagem e aceitação nomercado.11 Nesse contexto, o livro didático assume claramente sua dimensãode mercadoria, sujeita a múltiplas interferências em seu processo de produ-ção e vendagem.12 A esse respeito, há que se reconhecer que os pareceres téc-nicos de exclusão acabaram desempenhando, por vezes, papel primordial noprocesso de reformulação de coleções, patente no fato de um dos conjuntosexcluídos em determinado PNLD vir a ser recomendado com distinção naedição seguinte do programa, o que indica o quanto o processo de avaliaçãofoi tomado a sério por certos autores e editores. Outro ponto sensível, identi-ficado em todas as pesquisas mais recentes a respeito da escolha de livros di-dáticos, está no desempenho agressivo das editoras no mercado, que se valemde sofisticados esquemas de distribuição e vendas, a ponto de influir decisi-vamente nos processos de escolha nas escolas de todo o país. Naturalmente,as empresas mais bem estruturadas desfrutam de larga vantagem frente àseditoras menores.

Considerando-se o volume de recursos governamentais utilizados na aqui-sição e distribuição de livros didáticos, o setor editorial brasileiro estabeleceufortes dependências em relação ao programa. Há que se destacar, ainda, a cla-ra tendência em direção à monopolização do setor por algumas poucas em-presas, como atestam as crescentes fusões ocorridas desde o advento do pro-grama, o que possui indiscutíveis relações com as mudanças processadas aolongo dos processos avaliativos e com o movimento quantitativo de exclusões,conforme se pode depreender a partir dos dados apresentados no Gráfico 1:

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Gráfico 1 – PNLD - Área de história-histórico de inscrições e aprovações

Fonte: Relatórios Técnicos MEC/SEF.

Vale lembrar, mais uma vez, que para o PNLD 1999 tanto a inscrição deobras por editora como a avaliação pedagógica foram feitas por volumes isola-dos, o que não implica a necessidade de a editora possuir uma coleção comple-ta. Tal cenário modificou-se a partir do PNLD 2002, quando se observou redu-ção no número geral de coleções inscritas, quadro que novamente se alterariano programa de 2005, com nova elevação do número de inscrições. Foi tam-bém a partir de 2002 que a avaliação na área de História incorporou a análiseestatística, feita a partir de planilhas de cálculos, nas quais se registrou o desem-penho de cada coleção em relação aos quesitos que compunham a ficha de ava-liação, sempre divulgada nos Guias. Não se registraram modificações significa-tivas nas fichas de 2002 para 2005, embora tenham sido redefinidos os valoresponderados dos quesitos gerais.13 Essas mudanças projetam para as editoras de-mandas de adaptação que têm sido assimiladas com maior ou menor agilida-de, em razão do porte da empresa e de sua participação no mercado.

As profundas transformações ocorridas em tão breve período modifica-ram o perfil dos grupos editoriais no mercado do livro didático de História.Na primeira avaliação empreendida, o cenário de distribuição de obras poreditoras era o do Gráfico 2:

75.9%

85%

120%

84%

45.5%

112%

2005

2002

1999

número de volumes inscritos % de aprovação

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Gráfico 2 – PNLD 1999 - Número de coleções por editora

Fonte: Relatórios Técnicos MEC/SEF.

Tomando como referência o PNLD 2005, obtém-se um quadro signifi-cativamente distinto do inicial, como se pode ver no Gráfico 3:

Gráfico 3 – PNLD 2005 - Distribuição das obras por grupos editoriais - Áreas de história

Fonte: Relatórios Técnicos MEC/SEF.

Ática/Scipione

Atual/Saraiva/Lê/Formato

FTD

Moderna

IBEP/Editora do Brasil

Dimensão

Nova Geração

Quinteto

Módulo

Ediouro

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1

0

0

0

4

0

0

0

1

6

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3

3

2

1

1

1

aprovadas excluídas

3

2

2

2

2

2

1

1

1

1

1

0 1 2 3

Atual

Ftd

Saraiva

Livro técnico

Ed. Brasil

Vigília

Ufg

Scipione

Módulo

Moderna

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Observa-se uma mudança muito significativa em relação ao grupo do-minante e em relação à oferta de livros didáticos. Houve supressão de empre-sas, aparecimento de outras e, sobretudo, fusão de editoras, que formaramgrandes conglomerados, com poderosa organização em termos de distribui-ção e divulgação e que tendem a assumir posições hegemônicas no mercado.Os impactos da exclusão de uma ou de várias coleções de uma mesma em-presa podem significar sua inviabilidade econômica, sobretudo se o resultadonegativo se repetir em outras disciplinas. Essa situação não pode ser abstraí-da quando se avaliam as críticas dirigidas ao programa por autores e edito-ras. Noutras palavras, se é certo que todo e qualquer processo de avaliação éproblemático e sempre pode ter seus critérios questionados, é também evi-dente que no caso em apreço há um complexo jogo que atende a interessesbem definidos e que nem sempre se pauta por preocupações de ordem exclu-sivamente acadêmica.

O SABER HISTÓRICO ESCOLAR E O LIVRO DIDÁTICO DE HISTÓRIA:ALGUMAS QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS

O cenário que emerge dos resultados da avaliação, vistos em perspectivadiacrônica, revela um quadro amplo e diversificado, que permite refletir a res-peito das interfaces entre saberes históricos e pedagógicos.

Alain Choppin14 bem assinalou que os livros didáticos não são somenteferramentas pedagógicas, mas também suportes de seleções culturais variá-veis, verdades a serem transmitidas às gerações mais jovens, além de meios decomunicação cuja eficácia repousa na importância de suas formas de difu-são. Nessa perspectiva, os livros, para além de se constituírem em vetores ideo-lógicos, são fontes abundantes, diversificadas e, ao mesmo tempo, completas,visto que cada obra constitui uma unidade própria e coerente, com princí-pio, meio e fim. Dois aspectos particulares distintos, porém articulados, me-recem ser destacados quando se intenta radiografar os resultados da avalia-ção do livro didático: a diversidade dessa fonte e a lógica mercadológica queorienta sua produção.

A produção de livros didáticos envolve uma densa trama entre saberesde referência, autores e editoras. Já o seu consumo envolve tramas não menosimbricadas entre mercado, projetos escolares, compradores e leitores finais.Entre uma ponta e outra, os efeitos normatizadores implementados pela açãoavaliadora vinculada ao Estado agregam elementos que não podem ser des-

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prezados na compreensão das relações possíveis entre produção e consumo,uma vez que os efeitos determinantes do mercado impõem limites ao proces-so de renovação do perfil das obras e ao diálogo entre o saber escolar didati-zado e os saberes provenientes das ciências de referência. Porém, não se po-dem desprezar os elos possíveis entre a prática de avaliação vinculada a essapolítica pública e o seu efeito indutor quanto às dimensões do saber históricoescolar presentes nas obras didáticas.

O fato de se compreender o livro didático na sua complexidade e diver-sidade fez que, no âmbito da Coordenação de área e Comissão Técnica, des-de o advento dos processos regulares de avaliação, a dimensão não prescritivafosse uma meta a ser alcançada e aprimorada por todos os envolvidos no tra-balho. É importante ressaltar que cada coleção sempre foi avaliada individual-mente e sem nenhum critério preestabelecido em termos de seu enquadra-mento conceitual. Todas as avaliações realizadas até o PNLD 2005 pautaram-sepelo edital público e seguiram rigorosamente o que foi estabelecido nesse do-cumento de caráter público. Da análise de cada conjunto de quatro volumesinscritos e que perfaz a coleção, resultou uma planilha de desempenho e suarespectiva resenha. Do trabalho de avaliação, resultam instrumentos que per-mitem interpretações de cunho comparativo envolvendo todas as coleçõesinscritas para avaliação, conforme as aqui ensaiadas.

Atentando para os resultados alcançados pelas coleções inscritas no PNLD2005 nos grupos Metodologia da Aprendizagem e Metodologia da História,15

pode-se avaliar, com precisão, o nível de diversidade que particulariza a amos-tra, aqui referenciada por meio de números seqüenciais que aparecem no ei-xo horizontal do Gráfico 4.

A linha pontilhada contínua informa o desempenho obtido pelas 28 co-leções inscritas. No final, foram 22 as aprovadas e 6 as excluídas,16 estas últi-mas representadas no gráfico a partir do ponto 23. Em torno da linha ponti-lhada oscila uma linha preta mais espessa, que dá conta do resultado obtidoem relação ao quesito Metodologia da Aprendizagem, e uma linha branca, re-lativa ao quesito Metodologia da História. As relações que se estabelecem en-tre esses dois quesitos estruturantes para a composição do perfil de uma obradidática podem fornecer pistas interessantes acerca das múltiplas possibilida-des de organização e encaminhamento de propostas pedagógicas e de ensinoda História.

Observem-se, por exemplo, os casos marcados na linha horizontal sobos números 11 e 19. Embora esta última coleção tenha apresentado desempe-nho final sensivelmente inferior em relação à de número 11 — 1,8 pontos de

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diferença —, no cômputo geral a coleção 19 apresenta maior equilíbrio entreabordagem metodológica da História, proposições de didatização e diálogocom os saberes dos estudantes. Tal fato é registrado no gráfico pela aproxi-mação entre as duas linhas, no caso da coleção 19, e pelo seu sensível distan-ciamento, para a coleção 11. Esse distanciamento também é perceptível emoutros casos, como ocorre com as coleções 5, 8, 15, 16 e 22. Portanto, o mon-tante obtido pela coleção 19 vincula-se a outros quesitos associados a circuns-tâncias secundárias frente àquilo que se considerou essencial para uma obradidática, isso é, o diálogo entre o saber de referência e o saber escolar. Esta éuma das razões que justificam o fim das menções distintivas, que apresenta-vam uma classificação das coleções que não fazia jus à diversidade observadanos vários conjuntos analisados em três programas.

É fundamental ressaltar que o quadro resultante do processo de avalia-ção é marcado por enorme variabilidade de perspectivas metodológicas, te-máticas, recortes e possibilidades pedagógicas; em síntese, não se observa atão propalada homogeneidade.

No Brasil, data da década de 1990 a discussão a respeito das dimensõesinerentes à Didática da História, problemática que tem se renovado constan-temente desde então. Klaus Bergmann,17 já no início dos anos 90 introduzia

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metodologia da aprendizagem metodologia da História nota final

Gráfico 4 – PNLD - Desempenho das coleções na área de História

Fonte: Relatórios Técnicos MEC/SEF.

no Brasil uma discussão que hoje se renova através da divulgação em línguaportuguesa das abordagens propostas por Jorn Russen18 a respeito das dimen-sões inerentes à Didática da História. Segundo Bergmann, “refletir sobre aHistória a partir da preocupação da Didática da História significa investigaro que é apreendido no ensino da História (é a tarefa empírica da Didática daHistória), o que pode ser apreendido (é a tarefa reflexiva da Didática da His-tória) e o que deveria ser apreendido (é a tarefa normativa da Didática da His-tória)”.19 Isso significa dizer que, ao se discutir a natureza e as dimensões dosaber histórico escolar, é preciso levar em consideração as múltiplas faces des-se saber, desde os planos de prescrição até as representações difundidas a seurespeito e os efeitos da consciência histórica dentro e fora da escola, sem des-prezar os processos objetivos de apreensão do conhecimento histórico pelosalunos e a construção de conceitos dele derivados. Os livros didáticos de His-tória se apresentam, até pelo seu enorme grau de difusão, potencializado peladistribuição gratuita aos estudantes de escola pública de todo o país, comouma das mais importantes formas de currículo semi-elaborado, que nasce apartir de distintas visões e recortes acerca da cultura.20 Carregam consigo, por-tanto, múltiplas possibilidades de organização dessa relação entre o que é, oque pode ser e o que deveria ser aprendido em relação à disciplina.

A partir do PNLD é possível depreender tendências globais quanto à His-tória ensinada que se vinculam mais a tipos diferenciados de saberes discipli-nares, curriculares e/ou derivados de tradições pedagógicas distintas21 do queaos efeitos supostamente normativos do programa. Os resultados globais daavaliação constituem-se em fonte privilegiada para compor um quadro com-preensivo a respeito de tendências contemporâneas da História, ou melhor,das Histórias, que se quer ver ensinadas.

Sobre essa ótica, busca-se apresentar um mapeamento das coleções ins-critas no último PNLD, em função de quatro temáticas centrais, selecionadaspor serem especialmente caras às pesquisas e discussões contemporâneas quetomam o saber histórico escolar enquanto objeto específico de investigação:a perspectiva quanto à visão de História, a relação com o processo de cons-trução de conhecimento pelo aluno, a orientação curricular e a relação gené-rica com o desenvolvimento da Historiografia. Para a apresentação detalhadade cada um desses blocos temáticos, empreendeu-se um esforço taxonômicocom finalidade estritamente didática, e vale alertar que se tem plena cons-ciência de que os agrupamentos poderiam receber outras designações.

Pierre Vilar,22 ao discutir a especificidade do vocabulário histórico e osconceitos mobilizados pelos historiadores, chama atenção para o duplo sen-

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tido da noção de História, aspecto igualmente já ressaltado por Marc Bloch.As palavras de Vilar, a “História designa ao mesmo tempo o conhecimento deuma matéria e a matéria desse conhecimento”. Em relação a essa ambigüida-de, Keith Jenkins23 também insiste na separação, temporal e espacial, entre opassado e a História: uma coisa é o recorte de tempo em que algo se passou,outra coisa é a narrativa construída sobre esse recorte, cuja lógica é direta-mente pertinente ao tempo de sua produção enquanto narrativa e não ao tem-po original do acontecimento.

O fato central que interessa destacar é que essa ambigüidade está postanos múltiplos projetos possíveis para a História ensinada e que ela pode serclaramente depreendida a partir de um olhar sobre o conjunto dos manuaisdidáticos avaliados no PNLD 2005. Sobre esse aspecto, distinguiram-se trêspossibilidades de abordagem. Há um grupo de obras que apresentam umaorganização de conteúdos, atividades e textos articulados de acordo com umagrupamento que se poderia designar como procedimental e, nesse sentido,valoriza a dimensão formativa que advém do procedimento histórico e do ti-po de leitura e problematização de fontes que caracteriza a ação do historia-dor, com ênfase em habilidades relacionadas à leitura, identificação de infor-mações, análise, comparações, bem como em discussões que priorizam umolhar sobre o contemporâneo; outro grupo cuja seleção de conteúdos, crono-logia e textos é feita segundo uma visão mais informativa acerca da narrativaacontecimental do passado e que, nesse sentido, prioriza aquela dimensão queVilar nos aponta como “conhecimento de uma matéria”; e, finalmente, umterceiro grupo, que pela ausência de uma expressão mais precisa, designou-sede “visão global”, por buscar articular, com relativo sucesso, as duas dimen-sões citadas, isto é, não abre mão da informação histórica derivada de um co-nhecimento socialmente acumulado, bem como dos recortes canônicos deconteúdo, mas explora também a dimensão construtiva do conhecimento his-tórico, problematiza as fontes, apresenta elementos que garantem a alunos eprofessores a compreensão acerca da dimensão de provisoriedade da explica-ção histórica.

Os aspectos descritos podem ser entendidos como indicadores relativosao grau de atualização das coleções em relação aos debates a respeito da di-mensão formativa do saber histórico escolar que, de certo modo, tem se feitomuito presente nas pesquisas contemporâneas a respeito da História ensina-da. Em termos quantitativos, os resultados são os apresentados no Gráfico 5,considerando-se as coleções que passaram pela análise:

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Gráfico 5 – PNLD 2005 - Perspectiva de História veiculada pelas coleções

Fonte: Elaborado a partir dos Relatórios Técnicos MEC/SEF

e Pareceres técnicos das coleções.

A despeito do desenvolvimento dos debates relativos à história ensinadae da crítica à ênfase em uma abordagem acontecimental e essencialmente in-formativa sobre o conteúdo histórico, quando se observa o perfil dos produ-tos que emanam da indústria editorial e sua inserção no mercado, constata-se que é ainda essa a perspectiva dominante. No entanto, não podemosdesconsiderar o fato de que, embora a abordagem relativa a uma visão proce-dimental da História — somada àquilo que aparece aqui designado como vi-são global — seja quantitativamente secundária frente à visão acontecimen-tal, que é hegemônica, deve-se ter presente que a projeção dessa perspectivaem meio a um universo maior projeta de modo objetivo, para a indústria cul-tural, uma possibilidade alternativa em relação à cultura histórica posta e,neste sentido, esse grupo numericamente inferior tende a cumprir um papelimportante enquanto artífice de uma nova possibilidade pedagógica posta noâmbito das reflexões sobre o ensino.

Vinculado a esse primeiro bloco temático, porém com uma nítida espe-cificidade no campo da pesquisa acadêmica sobre a História ensinada, emer-ge um segundo agrupamento possível, com ênfase nas questões relativas àcognição e aprendizagem. Há muito que as chamadas ciências da educaçãovêm se debruçando em pesquisas e discussões teóricas derivadas de um olharque se desloca do “como se ensina” para o “como se aprende”, e não caberiaenveredar por uma discussão específica a respeito de teorias cognitivas.

No Brasil, o reflexo desse deslocamento na discussão relativa à História

visão global 24%

narrativa acontecimenta|

69%

visão procedimental 7%

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ensinada acabou por ensejar uma série de estudos relativamente recentes, bemcomo grupos de pesquisa ainda em processo de conformação, cujo foco es-sencial recai sobre a questão da construção da temporalidade e da aprendiza-gem dos conceitos históricos pelo aluno.24 Neste sentido é possível apreender,com base na análise e categorização das obras didáticas, a existência de dife-rentes perspectivas compreensivas acerca da aprendizagem, bem como dosdiálogos que podem ser estabelecidos entre as ferramentas didáticas utiliza-das e os saberes prévios do aluno.

Considerando-se a diversidade de possibilidades teóricas que compreen-dem os processos cognitivos, bem como as interfaces possíveis que podemsurgir, em uma mesma obra didática, de abordagens sócio-interacionistas epiagetianas, optou-se por utilizar uma classificação genérica que, embora pos-sa esbarrar nos riscos inerentes à arbitrariedade dos conceitos, ilustra grossomodo aquilo que se pretende demonstrar.

Por um lado, identifica-se um conjunto de obras que assumem perspec-tiva de transmissão vertical de conteúdos e, nesse sentido, a abordagem detécnicas e recursos didáticos vincula-se menos às estratégias de apresentaçãodos temas e de exposição dos conteúdos do que aos exercícios e atividadespropostos para os alunos. Para fins puramente didáticos, designou-se a pers-pectiva de aprendizagem assumida de modo explícito ou subliminar por essegrupo como paradigma informativo. Nesse paradigma, os objetivos educacio-nais selecionados centram-se na obtenção da informação e do conteúdo his-tórico, independentemente de como tal conteúdo é processado pelo alunosob o ponto de vista cognitivo; nesse sentido, o diálogo com os saberes dosestudantes, ou mesmo a proposição de situações cognitivas que possam geraro entendimento por meio da comparação de tempos e/ou circunstâncias, épraticamente nulo.

Outra possibilidade de enfoque dessa questão traz, como pressuposto,exatamente a construção desse diálogo como um ponto de partida para aprojeção de um recorte que seja significativo para o aluno, tanto no que serefere ao recorte temático, quanto às possibilidades de explicação e estabele-cimento de analogias. Esse segundo paradigma será tratado, aqui, como ‘cog-nitivista’. Ainda que sejam muitas as possibilidades de organização didáticadas obras — e, nesse particular seria possível projetar um quadro bastantediversificado sob o ponto de vista das filiações teóricas que sustentam as ope-rações de seleção —, pode-se dizer que, nessas obras, considera-se generica-mente uma base de saberes prévios dos alunos como ponto de partida parauma aprendizagem significativa. As obras constituídas sob tal orientação dia-

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logam com tais referências a partir de uma postura que valoriza a problema-tização enquanto forma de estabelecer relações entre passado e presente. Bus-ca-se, de modo geral, promover a aquisição gradual dos conceitos que, nessecaso, se sobrepõem às definições mecânicas e, coerentemente com tal opção,os momentos de introdução das unidades, as atividades e exercícios são pro-postos com a intenção de propiciar circunstâncias dialógicas e de construçãoconceitual. Considerando-se a relação entre tais premissas e uma trilha maisrecente de investigação e abordagem da História ensinada, esse segundo con-junto apresenta-se numericamente inferior em relação ao primeiro grupo,ainda hegemônico no mercado de livros didáticos. A presença desses dois pa-radigmas no interior do conjunto analisado pode ser observada com base noGráfico 6.

Gráfico 6 – PNLD 2005 - Perspectivas de aprendizagem presentes nas coleções

Fonte: Elaborado a partir dos Relatórios Técnicos MEC/SEF

e Pareceres técnicos das coleções.

É possível, também, pensar um macro-agrupamento das coleções segun-do uma temática bastante recorrente em relação à discussão relativa à histó-ria ensinada: a abordagem programática que orienta as operações de seleçãoe a organização temática das coleções. A proporção entre grupos, nesse caso,apresenta-se expressa no Gráfico 7:

paradigma informativo

68%

paradigma cognitivista

32%

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Gráfico 7 – PNLD - Perspectiva programática dominante

Fonte: Elaborado a partir dos Relatórios Técnicos MEC/SEF

e Pareceres técnicos das coleções.

Ao se levar em conta a variabilidade dos currículos de História e sua re-lação com a história da História ensinada no Brasil, vislumbra-se um cenáriomais global, no qual programas distintos se transformaram em textos oficiais,pertinentes a diferentes cenários históricos e que acabaram por se converterem tradições distintas, sustentadas essencialmente naquilo que Chesneaux25

designou como quadripartição histórica, da qual somos todos tributários, da-da sua profunda interferência nos processos de formação de professores.26 Emcerta medida, essa tradição encontra-se presente nas obras que fazem umaopção pela abordagem da chamada História integrada, isto é, pelo tratamen-to da História da civilização ocidental de modo articulado com os conteúdosde História do Brasil e História da América. Prioriza-se, desse modo, a com-preensão do processo histórico global, tendo por eixo condutor uma perspec-tiva de tempo cronológica e sucessiva, definida a partir da evolução européia.Integram-se, a partir desse epicentro, as demais culturas não européias peloviés cronológico. Esse é o grupo hegemônico, dentro do qual insere-se a maiorparte das coleções.

Tal perspectiva, ancorada em uma visão eurocêntrica do tempo e do pro-cesso histórico, acabou por se vincular, ainda que sob diferentes recortes te-máticos, a uma abordagem programática marcada pela valorização da identi-dade nacional, por intermédio da introdução dos conteúdos de História doBrasil no início da escolarização ou, mais precisamente, a partir do segundosegmento do ensino fundamental. De certo modo, a cultura instituída a par-

História temática

17%

História integrada 76%

História nacional 7%

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tir da Reforma Capanema, que consagrou a separação entre a História Gerale a do Brasil, deixou marcas bastante notáveis sobre um modo específico depensar a articulação das temáticas históricas.27 Somente após o estudo do Bra-sil, o aluno é inserido nas temáticas relacionadas à História Geral.

Verifica-se, ainda, um outro conjunto de coleções que acompanha a evo-lução historiográfica do pós-1960 e que procura redimensionar a idéia evolu-tiva e processual. Esse grupo rompe com a dimensão de tempo visto estrita-mente a partir da cronologia e multiplica as possibilidades temáticas quenorteiam as operações de seleção. As obras didáticas organizadas sob tal dire-triz apresentam grande diversidade de recortes e foi o grupo que mais cres-ceu em relação ao PNLD 2002.

Por fim, há que mencionar uma das temáticas mais complexas e que, pa-ra ser efetivamente explorada, demandaria investigação detalhada e pontual,dado o seu grau de diversidade temática. Trata-se de inquirir a respeito dasrelações que as coleções estabelecem com o desenvolvimento da historiogra-fia e do modo como incorporam ou não as revisões derivadas de estudos con-temporâneos no campo da pesquisa histórica. A análise permite apontar ape-nas algumas tendências mais globais.

É claramente perceptível a presença de um grupo predominante — quese designa genericamente como Tradicional — que aborda a História em suadimensão meramente informativa e não valoriza o conhecimento históricoem seu aspecto construtivo. As narrativas são organizadas a partir de recortesjá consagrados, as fontes históricas ganham caráter mais ilustrativo e não sãoexploradas numa dimensão que aproxime o aluno daquilo que preside o pro-cedimento histórico; nesse sentido, uma concepção de verdade pronta e irre-futável preside a obra. Em geral, as coleções que integram esse subconjuntomantêm coerência com a visão processual e evolutiva do tempo e das socie-dades e não rompe com a quadripartição clássica de base eurocêntrica. Al-guns temas sustentam-se em uma historiografia tradicional e apresentam-sede modo absolutamente recorrente e naturalizado em termos de explicação,tais como: a explicação da economia brasileira a partir da teoria dos ciclos; aausência de dinamismo econômico na economia colonial; a análise da socie-dade colonial somente a partir do binômio patriarcalismo/submissão femini-na; a compreensão da industrialização brasileira a partir do paradigma pau-lista, em associação estrita com a acumulação de capital cafeeiro,28 entre outrasmuitas possibilidades analíticas que podem emergir se procedermos a umaanálise mais pontual, incabível nos limites deste texto.

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Outro grupo — indicado como Eclético — mantém a narrativa com ba-se nos recortes clássicos de conteúdos, mas as obras abrem-se de modo signi-ficativo e relevante para uma renovação historiográfica de caráter tópico. Re-lativizam-se os paradigmas explicativos em relação a temáticas e pesquisasespecíficas que vêm sendo objeto de debates historiográficos nas últimas dé-cadas e, nesse sentido, a explicação histórica ofertada ao aluno, com raras ex-ceções, já não mais se baseia em paradigmas que foram objeto de revisão nocampo historiográfico.

Há, por fim, um outro grupo — associado a uma historiografia Renova-da — que rompe com a perspectiva tradicional e incorpora na seleção de con-teúdos não só aquilo que advém da macro-renovação historiográfica do pós-1960, como também os resultados das pesquisas contemporâneas na área dosestudos históricos. Considerando-se que a soma das duas últimas tendênciasnão corresponde nem à metade das obras, é possível afirmar que ainda existeum enorme abismo entre a renovação historiográfica advinda da pesquisahistoriográfica e o saber histórico veiculado por meio do livro didático, con-forme se observa no Gráfico 8.

Gráfico 8 – PNLD 2005 - Relações das obras com desenvolvimento da historiografia

Fonte: Elaborado a partir dos Relatórios Técnicos MEC/SEF

e Pareceres técnicos das coleções.

Cabe ressaltar, à guisa de conclusão, que não é possível estabelecer umarelação unívoca entre os grupos em função das quatro grandes temáticas abor-dadas, o que aponta para o grau de complexidade do conjunto analisado, as-

Renovada 21%

Tradicional 54%

Eclética 25%

O livro didático de história hoje: um panorama a partir do PNLD

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pecto freqüentemente negligenciado nas avaliações a respeito da produçãodidática que, não raro, assumem perspectivas mais generalizantes.

Espera-se que os dados apresentados contribuam para o debate em tor-no da formação dos professores e das políticas públicas para os livros didáti-cos de História, bem como de seus múltiplos desdobramentos em relação àHistória ensinada e aos diversificados interesses e condicionantes que cercama produção e a compra dessa mercadoria chamada livro.

NOTAS

1 Sobre essa questão ver, entre outros, CHARTIER, R. (Org.) Práticas da leitura. São Paulo:

Estação Liberdade, 1996; e CERTEAU, M. de. A invenção do cotidiano. Petrópolis: Vozes,

1996. Para uma discussão que aborda a temática específica do livro didático de História e

as tramas que envolvem seus usos, ver BITTENCOURT, C. M. F. Livro didático e conheci-

mento histórico: uma história do saber escolar. São Paulo, 1993. Tese (Doutoramento) –

Universidade de São Paulo.

2 BATISTA, A. A. G. (Org.) Recomendações para uma política pública de livros didáticos. Bra-

sília: Ministério da Educação, SEF, 2002.

3 SCHWARTZMAN, S. et al. Tempos de Capanema. São Paulo: Paz e Terra, FGV, 2000.

4 CAPELATO, M. H. R. Multidões em cena: propaganda política no varguismo e peronis-

mo. São Paulo: Papirus, 1998.

5 CASTRO, C. de M. e CARNOY, M. (Org.) Como anda a reforma da educação na América

Latina? Rio de Janeiro: FGV, 1997.

6 FONSECA, S. G. Caminhos da história ensinada. São Paulo: Papirus, 1993.

7 DEIRÓ, M. de L. C. As belas mentiras: a ideologia subjacente aos textos didáticos. São

Paulo: Moraes, 1978; FREITAG, B. et al. O livro didático em questão. São Paulo: Cortez, Au-

tores Associados, 1989; OLIVEIRA, J. B. A. et al. A política do livro didático. São Paulo: Su-

mis, Campinas: Ed. Unicamp, 1984.

8 FERRO, M. Falsificações da História. Lisboa: Europa-América, s.d.

9 BATISTA, A. A. G. (Org.) Escolha de livros didáticos de 1ª a 4ª série: padrões e processos

no PNLD. Brasília: MEC, SEF, 2002; e MIRANDA, S. R. O PNLD na escola: problemas, de-

safios e perspectivas. Relatório técnico apresentado ao MEC/SEF. Brasília, 2003.

10 Sobre os critérios de exclusão e de classificação, incluindo a ficha utilizada na avaliação

das obras, ver: GUIA DOS LIVROS DIDÁTICOS 2005. v.5. Brasília: Ministério da Educa-

ção, Secretaria de Educação Infantil e Fundamental, 2004.

Sonia Regina Miranda • Tania Regina de Luca

Revista Brasileira de História, vol. 24, nº 48142

11 FONSECA, op. cit., p.147.

12 Cf. BITTENCOURT, C. Livros didáticos entre textos e imagens. In: _______. (Org.) O sa-

ber histórico na sala de aula. 2.ed. São Paulo: Contexto, 1998.

13 São considerados atualmente, para efeito de contabilização final e classificação das obras,

os seguintes quesitos: Metodologia da Aprendizagem (30 pontos), Metodologia da Histó-

ria (30 pontos) Manual do Professor (15 pontos), Cidadania (15 pontos), Aspectos Edito-

riais (10 pontos).

14 CHOPPIN, A. Pasado y presente de los manuales escolares. In: BERRIO, J. R. La cultura

escolar de Europa: tendencias historicas emergentes. Madrid: Biblioteca Nueva, 2000.

15 Selecionamos para esta discussão somente os quesitos Metodologia da História e Meto-

dologia da Aprendizagem, em razão de seu peso na composição final das notas obtidas pe-

las coleções. Além desses quesitos, as coleções são também avaliadas em função dos quesi-

tos anteriormente indicados.

16 Duas coleções não foram pontuadas por terem sido excluídas, respectivamente, nos pro-

cessos de triagem inicial e na pré-análise, em virtude de terem infringido as regras do edi-

tal. Cabe destacar, contudo, que o processo de triagem inicial é de responsabilidade exclu-

siva do IPT e do FNDE, e que as obras ali definidas como impedidas sequer chegam à

comissão avaliadora para a análise pedagógica.

17 BERGMANN, K. A História na reflexão didática. Revista Brasileira de História, São Pau-

lo, v.9, n.19, fev.1990.

18 RÜSSEN, J. Razão Histórica: Teoria da História, fundamentos da ciência histórica. Brasí-

lia, UnB, 2001.

19 BERGMANN, K., op. cit., p.29.

20 GIMENO SACRISTÁN, J. Currículo e diversidade cultural. In: SILVA, T. T., MOREIRA,

A. F. Territórios contestados. Petrópolis: Vozes, 1995.

21 GAUTHIER, C. et al. Por uma teoria da Pedagogia. Ijuí: Unijuí, 1998.

22 VILAR, P. Iniciação ao vocabulário de análise histórica. Lisboa: Sá da Costa, 1985.

23 JENKINS, K. A História repensada. São Paulo: Contexto, 2001.

24 Em um recorte historicizante, poderíamos apontar alguns ícones dessa linha investigati-

va tais como: ZAMBONI, E. O desenvolvimento das noções de espaço e tempo na criança.

In: _______. (Org.) A prática do ensino de História. São Paulo: Cortez, 1985; NADAI, E.,

BITTENCOURT, C. M. F. Repensando a noção de tempo histórico no ensino. In: PINSKY,

J. (Org.) O ensino de História e a criação do fato. 7.ed. São Paulo: Contexto, 1997; ARAÚ-

JO, H. M. M. Tempo Rei: a noção de tempo em adolescentes de 10 a 14 anos: implicações

O livro didático de história hoje: um panorama a partir do PNLD

143Dezembro de 2004

para o ensino de História. Rio de Janeiro, 1998. Dissertação (Mestrado) – PUC/RJ; SI-

MAN, L. M. de C. A construção do conhecimento, do raciocínio histórico e da cidadania

nas crianças. IV ENCONTRO NACIONAL DE PESQUISADORES DO ENSINO DE HIS-

TÓRIA, IV, 1999. Anais... Ijuí: Unijuí, 1999; OLIVEIRA, S. R. F. A noção de tempo histórico

na criança: um estudo sobre a noção do passado, das idéias espontâneas relativas à histó-

ria da civilização e da relatividade dos conhecimentos e julgamentos históricos em crian-

ças de 7 a 10 anos. Marília, 2000. Dissertação (Mestrado) – Unesp/Marília; SIMAN, L. M.

de C. A temporalidade histórica como categoria central do pensamento histórico: desafios

para o ensino e a aprendizagem. In: ROSSI, V. L. S. de., ZAMBONI, E. Quanto tempo o tem-

po tem. Campinas: Alínea, 2003; DUTRA, S. F. As crianças e o desenvolvimento da tempora-

lidade histórica. Belo Horizonte, 2003. Dissertação (Mestrado) – UFMG.

25 CHESNEAUX, J. Devemos fazer tabula rasa do passado? São Paulo: Ática, 1995.

26 Sobre esse histórico dos programas oficiais de História na História do Brasil, ver: ABUD,

K. Currículos de História e políticas públicas: os programas de História do Brasil na esco-

la secundária. In: BITTENCOURT, C. (Org.) O saber histórico na sala de aula. São Paulo:

Contexto, 1998.

27 Ibidem.

28 Coletâneas contemporâneas que projetam uma revisão de paradigmas explicativos mais

globais podem ser importantes instrumentos auxiliares, sobretudo para o professor que

atua no ensino fundamental, no sentido de garantirem um redimensionamento de aspec-

tos presentes nessa tendência hegemônica, tais como: LINHARES, M. Y. (Org.) História

Geral do Brasil. Rio de Janeiro: Campus, 1990; FREITAS, M. C. (Org.) Historiografia brasi-

leira em perspectiva. 4.ed. São Paulo: Contexto, 2001.

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Revista Brasileira de História, vol. 24, nº 48144

Artigo recebido em 08/2004. Aprovado em 09/2004