O Mundo é Feito Para Resultar Num Atlas - PÚBLICO

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O mundo é feito para resultar numatlasANTÓNIO GUERREIRO 25/12/2013 ­ 16:49 (actualizado às 15:26 de 23/12/2013)

É um empreendimento monumental, aquele a que Gonçalo M. Tavaresdeu o nome de Atlas, mas que é no fundo inclassificável quanto ao géneroe, até, quanto à matéria literária e de pensamento que ele expõe

Num sítio do seu Atlas do Corpo e da Imaginação, Gonçalo M. Tavaresintroduz um “distribuidor de começos” que leva à seguinte interrogação:“Por onde se começa? Onde se acaba?” (pág. 40). Tal pergunta ésuscitada por uma reflexão sobre o fragmento: “O fragmento é, pela suanatureza, um ponto onde se inicia; um fragmento nunca termina, mas éraro um fragmento não começar algo. Poderemos dizer que o fragmentoé uma máquina de produzir inícios, uma máquina da linguagem, dasformas de utilizar a linguagem, que produz começos – pois tal é a suanatureza” (pág. 41). Este Atlas é uma grandiosa montagem e colagem defragmentos, uma máquina de distribuir começos, de disseminar

pensamento. Por isso, devemos seguir uma prescrição que Georges Didi­Huberman faz logo na primeira página do seu Atlas ou a GaiaCiência (cuja edição portuguesa, pela KKYM + EAUM, antecedeu apenasum pouco o Atlas de Gonçalo M. Tavares): “Não se ‘lê’ um atlas como selê um romance, um livro de história ou uma dissertação filosófica, daprimeira à última página. Além disso, um atlas começa amiúde – nãotardaremos a verificá­lo – de forma arbitrária ou problemática, muitodiferente do início de uma história ou da premissa de uma tese”. Averificação do que afirma, fá­la Didi­Huberman com o BilderatlasMnemosyne, o grande projecto inacabado de Aby Warburg (1866­1929).Mas nós podemos fazer a mesma verificação com o Atlas de Gonçalo M.Tavares, que começa com este incipit paradoxal, que nos instala não noinício, mas in media res: “Começar aqui é interromper uma tarefa noutrolado, claro”. Deixando o leitor livre, convidando­o até a passear nointerior dele à maneira de um flâneur, este Atlas não é apenas, como ofragmento, um distribuidor de começos, isto é, de caminhos. É tambémum distribuidor de entradas e de saídas, como estas que aqui escolhemose às quais demos uma ordem alfabética.

ATLAS ­ O que é um Atlas? Não é uma enciclopédia, nem um arquivo, esó por razões práticas é que adquire a forma de livro, já que o materialque reúne e o saber que transmite requerem geralmente outra forma deexposição, muito mais espacializada, mais simultânea (as páginas dolivro criam um lógica da sucessão, uma diacronia, que servem malqualquer Atlas), onde a dimensão de montagem é patente. A categoria doespaço e não a do tempo preside à forma do Atlas enquanto medium deexposição de um saber. Mas que saber é aquele que nos fornece o Atlasde Gonçalo M. Tavares? Um saber indefinido, heteróclito, díspar, ondetudo se pode constituir como objecto de pensamento. Mas tais objectosdo pensamento, exteriores a ele, não são mais importantes no Atlas doque a própria intransitividade do pensamento, quando ele se volta paraas suas próprias operações. Chamando­se muito embora Atlas do Corpo eda Imaginação, este empreendimento (sentimos alguma resistência achamar­lhe livro) tem um alto teor reflexivo, isto é, entrega­se a umaactividade que retorna a si mesma e funda nela o conhecimento. Daí adificuldade em dizer do que trata este Atlas, qual a sua matéria, qual ocampo do saber que ocupa, como podemos classificá­lo quanto ao género(talvez possamos dizer que ele actualiza, no domínio da escrita, o antigoconceito de “obra de arte total”. Não será errado afirmar que a suaciência é uma disciplina da interdisciplinaridade, talvez uma ciência semnome que se situa algures num intervalo ou numa terra de ninguém.Como um bibliotecário de Leibniz, Gonçalo M. Tavares encarregou­se de

uma mathesis universalis.

CONCEITO/INCONCEPTUALIDADE – Tratando­se de uma obra depensamento, o Atlas não só recorre em larga escala a conceitos mastambém reflecte sobre a sua própria conceptualidade. E, neste processo,não se limita a inventar “conceitos como matéria”, como materialutilizado no pensamento, alimenta­se também daquilo a que Blumenbergdefiniu como inconceptual. Não vamos aqui expor a teoria dainconceptualidade, que este filósofo desenvolve na sua “metaforologia”.Basta talvez dizer que no estudo que ele faz de certas metáforas (de ondesobressai a relação entre metáfora, pensamento e linguagem) mostracomo há um estrato da reflexão e do conhecimento que não advém doabsolutismo do conceito. Ora, é esta região da inconceptualidade, dametáfora como fenómeno cognitivo chamado a suprir as carências e oslimites do conceito, que Gonçalo M. Tavares constantemente visita. Nãose trata de pensamento “poético”, mas de uma poética do pensamento,isto é, do conjunto de regras programáticas e metodológicas que tornamrepresentável o pensamento do mundo e o Todo da realidade.

ESPAÇO/ ESPACIALISTAS – “Abandonar a cronologia” é o título deuma página do Atlas. A lei que a ele preside dita o triunfo daespacialidade sobre a temporalidade. Toda a dimensão narrativa foievacuada e não há a mínima sujeição aos ditames da storytelling. Poroutro lado, sendo um Atlas, na sua definição genérica, um meio de darforma visual ao saber, ele aspira a ser uma apresentação espacial e nãocronológica. O Atlas erradica a história. Abandonar a cronologia significaa possibilidade de formar constelações de pensamento em que tudo écontemporêaneo de tudo e os vários pólos da história, por maisseparados que estejam entram em contacto uns com os outros. Opensamento, em suma, instaura um mundo onde tudo é presente epresença: “É este processo de tornar contemporâneo que pode tambémser descrito como processo de conhecer. Conhecer é tornar presente;conhecer algo do passado é resgatá­lo desse tempo e puxá­lo para aqui epara hoje” (pág 37). A colaboração de Gonçalo M. Tavares, na elaboraçãodeste Atlas, com um grupo de arquitectos/artistas chamados “OsEspacialistas” não poderia ser mais bem sucedida nem mais eloquentequanto ao triunfo da categoria do espaço. Sem o trabalho de OsEspacialistas, sem as centenas de fotografias que eles fizeram para oAtlas e o percorrem como um discurso paralelo e autónomo (que, por suavez, suscita um terceiro discurso que são as legendas), teríamos um livroque dificilmente poderia ser chamado Atlas. Curioso é verificar que osarquitectos Espacialistas se revelam autores de uma escrita, tanto quanto

Gonçalo M. Tavares se revela (ou melhor, confirma algo que já se revelouhá muito tempo) como um escritor arquitecto.

GÉNERO – O Atlas do Corpo e da Imaginação não só convida o leitor aopasseio errante, à flânerie no seu imenso território, como é ele próprioum exemplo da arte de passear enquanto algo consubstancial aopensamento. Ele caracteriza­se pelo pensamento que deambula, poraquilo a que Ernst Bloch chamou “pensar efabulante”. Manifestando umatensão permanente e muito rica entre a percepção e a reflexão, entre ocódigo poético­literário e o código do pensamento, o Atlas de Gonçalo M.Tavares parece ter uma dívida para com este preceito de Nietzsche,formulado em Ecce Homo: “Estar sentado o menos possível, não confiarem nenhum pensamento que não tenha nascido ao ar livre e em plenaliberdade de movimentos”. O Atlas não é tanto o resultado de umpasseante solitário, à maneira de Rousseau, mas mais de um Wanderer, àmaneira do senhor Walser (o Robert Walser, obviamente): “Quando sepasseia, ideias, como lampejos, apresentam­se e atropelam­se paraserem elaboradas com cuidado”. Ora, as figuras do pensamento quedecorrem do movimento do passeio e do modo de percepção que elepromove deram origem a um género de prosa curta, um género híbrido, ameio caminho entre a poesia e teoria, a que, no âmbito germanístico, sechamou Denkbild, imagem do pensamento, dialéctica da imagem e dopensamento. Esta forma é a expressão de uma escrita ensaística querenuncia conscientemente a sobrepor a ordem argumentativa a ummodelo de percepção, de pensamento e de escrita que procura o“hieróglifo objectivo das coisas”, como escreveu uma vez WalterBenjamin. Também ele cultivou oDenkbild, considerando que namodernidade já não é com as formas do “grande estilo” que se podeproceder à análise do “aparelho gigante da vida social”.Deste Atlastambém podemos dizer que é composto por uma massaenorme de Denkbilder, de formas fragmentárias que se justapõem, numtrabalho de montagem e colagem.

LEGIBILIDADE ­ O Atlas não é exactamente um livro (ou, pelo menos,deixa que o pensemos para além da forma livro) mas faz apelo à metáforado livro como uma “metáfora absoluta”, estudada por Hans Blumenbergem A Legibilidade do Mundo (Die Lesbarkeit der Welt). Podemosapreender nele a ideia do mundo como livro, uma metafórica do mundocomo escrita ou código a decifrar, segundo aquele princípio formuladopor Hofmannsthal: “Ler o que nunca foi escrito”. O momento dalegibilidade significa o momento da cognoscibilidade. Ler, compreender,introduzir um princípio de ordem, organizar, formar um cosmos: tudo

isto se equivale, é a estas operações que procede Gonçalo M. Tavares. Nofinal, o que se obtém é uma cartografia. Não a cartografia de umterritório físico, ou de uma soma disparatada de objectos, mas acartografia de uma metafísica (diga­se, aliás, que o corpo de que se ocupaeste Atlas é muito mais um incorporal).

LIGAÇÕES – Não há operação do pensamento mais exaltada – e maisactuante – neste Atlas do que aquela que procede pelo estabelecimentode ligações, nexos, analogias, que abrem o campo dos possíveis e dopensável (por exemplo, “pele e interpretação”, “ligações e Estado”,“alimentos e arte”, etc.). Ler o mundo é ligar as coisas do mundo. Tudopode então ser posto em relação com tudo, não há senão conjunções,mesmo que sejam disjuntivas. Daí o facto de estarmos sempre a depararcom pensamentos paradoxais, hipóteses bizarras, proposições quedesafiam o senso comum. Este é um Atlas do Corpo e da Imaginação,não podemos esquecer. Aqui, a imaginação não é tanto a faculdade dafantasia, aquilo que não podemos ver nem sentir, mas uma operação comvalor epistémico.

LINGUAGEM – Pensar, reflectir, formular em termos teoréticos, ésempre, neste Atlas, uma experiência da linguagem enquanto tal. Torna­se assim bem claro que pensar não significa pura e simplesmenteexprimir opiniões mais ou menos justas e correctas sobre umdeterminado assunto. Mais do que expor teorias convincentes, ou não,sobre os mais desvairados objectos e assuntos, Gonçalo M. Tavares fazum experimentum linguae, mostra que não há verdadeiro pensamentoque não seja pensamento da própria linguagem. Assim, ele aproxima­semuito mais de um escritor­filósofo do que do pensamento oracular dos“pensadores”. Não é por acaso que Wittgenstein é um dos nomes maiscitados ao longo do Atlas e acaba por ser uma figura de invocação e umapresença tutelar.

PENSAMENTO – Se tivéssemos de decidir qual é o grande temadeste Atlas, a sua “matéria de Bretanha”, diríamos que é o pensamento, opensar. Trata­se de uma espécie de dança com o que vem à cabeça e seoferece à reflexão. Pensar é sempre um gesto de auto­consciência e deconsciência da linguagem. Isso mesmo, que é praticado, em acto, aolongo de todo o Atlas, é anunciado de maneira programática logo noinício: “Porque pensar também é mudar de posição relativamente àprópria linguagem. Não olhes sempre da mesma maneira para aspalavras” (pág. 46). Olhar para as palavras com insistência, até que por

fim são elas que olham para ele, eis o método de Gonçalo M. Tavares.Não é muito diferente da experiência do espanto de onde se originou afilosofia.

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