Post on 08-Nov-2018
"A grande angústia de nosso tempo é um sentimento de excomunhão. Não sentindo em si uma
existência própria, uma atividade própria, o homem precisa desesperadamente de um apoio
exterior, muito mais, e muito mais nervosamente do que as exigências de sua natureza. Um
andaime que lhe falta, ele logo se sente desvairadamente infeliz, como quem, num pesadelo, se
achasse numa sala onde todo o mundo se divertisse em chinês (...) O resultado aí está: uma
sociedade em pânico, que tudo aposta na estridência e na visibilidade; uma sociedade de
aterrorizados que pisa os pobres, os pequeninos, os doentes, na fúria de atingir um estrado em
praça pública, de onde possam fazer, uns aos outros, sinais febris e sem significação. Para a
moça que se debruça ansiosa sobre um figurino, a fim de saber o que deve fazer com seus
próprios cabelos; para o jovem poeta que procura qual é o nome em voga, o livro que deve ser
lido e falado; para a patroa que vai à conferência; para a cozinheira que vai ao carnaval, o que
importa, acima da realidade do cabelo, da poesia, do humanismo e do pandeiro, é entrar no
grande palco iluminado, e pegar a deixa dos outros personagens desse drama confuso, que três
bilhões de atores mal ensaiados representam, durante anos e anos, à luz da desdenhosa
Aldebarã."
GUSTAVO CORÇÃO, “LIÇÕES DE ABISMO”
“Há, neste estrambótico e complicado negócio que é a vida, certos períodos estranhos em que o
homem considera o universo inteiro como uma simples e enorme farsa, ainda que mal vislumbre
em que pode consistir a brincadeira e tenha bastante desconfiança de que esta se realiza à sua
custa”.
HERMAN MELVILLE, “MOBY DICK”
“Que dirán de mi poesía
los que no tocaron mi sangre?”
PABLO NERUDA
PRÓLOGO
Apontei uma arma para a cara do destino
E apertei o gatilho:
Era a liberdade.
A liberdade é um assassinato.
ANGELUS PRIMUS
“Ein jeder Engel ist schrecklich”
RILKE
Quando – pergunto – ruiu a escada que
Outrora levou meus lamentos a Deus?
Quando rompeu-se a barreira do silêncio que impus
A mim mesmo e ao mundo? Eu, que só andei
Em busca da dor – por que eu, Sônia? –
E procurei, passo a passo, cândido, esquecer
O que fui: contínuo de um universo falido.
Teu suspiro, diáfano, chega aos tempos primeiros.
Longe, mil línguas de fogo me roçam a pele.
Logo estarás ao meu lado; logo, ainda hoje.
E os que não acreditaram serão perdoados,
Pois retorna ao lar o mau filho, Sônia.
O Dilúvio de suas misérias fecundou a terra:
Está prenha, de amor e desgraça.
A ti, degradada filha de Eva, cabe cuidar-nos!
Consola-te: teu corpo é o campo de batalha.
Tua boca abençoa os homens.
Descansa – ó anjo!
Amanhã dormirás nos braços de Dele.
NÔMADE
"Já que a ordem do mundo é regulada pela morte, talvez convenha a Deus que não acreditemos
nele e que lutemos com todas as nossas forças contra a morte, sem erguer os olhos para o céu,
onde ele se cala".
ALBERT CAMUS, “A PESTE”
I
Já não posso dormir ou falar,
Por que tudo é imundo
E todo gesto é uma violação.
II
Eles vieram e se acomodaram.
E a mim nada disseram.
Adentraram minha alma e a envenenaram.
III
O preciso momento:
Fluxo de pensamento.
O nômade encontra o lar
No mundo.
IV
Controle, cátedras, corcéis
Espancando a dor e moendo
Carne na máquina do medo.
V
Pensei, aprendi e esqueci.
E me tornei vil
Pela vontade de lembrar.
VI
Vai mundo!
Corra aos tropeços pelas ruas de Deus!
Flutue imóvel sobre a jangada do universo.
VII
A lógica fascista;
A lógica budista;
A lógica com a vontade de comer.
VIII
Aquele homem ali sentado
Parece imóvel, parece morto.
Parece esquecido, parece esquecer.
IX
O poeta cantou o concreto
Em sua dureza e aridez.
Tirou lágrimas de pedras.
X
O teu beijo é como uma faca.
Tua boca corta meu corpo.
O vermelho dos teus lábios é meu sangue.
VAMOS!
Precisamos ser rápidos:
O tempo é curto!
A vida termina a cada segundo.
Não temamos a morte,
Mortos estamos há muito.
Vamos! Vamos!
O tempo é curto!
A vida?
A vida é o tempo que temos
Para desperdiçá-la.
LIBERDADE: UM PRECIPÍCIO
“Meu passo esmaga ruas e verstas.
Que fazer, com o inferno no peito?
Que Hoffmann celestial
Te pôde inventar, maldita!”
VLADIMIR MAIAKÓVSKI
Não preciso olhar teus olhos
Pra entender que a noite será longa,
Que o frio chegará e que teremos chuva hoje.
Pensava em te encontrar
Pela cidade,
Por acaso.
Seria feliz.
Dançaríamos como deuses,
Como homens além-do-homem.
Eu te perderia e te veria
Outras tantas vezes; e
Outra vez diria o que
Sempre ouviste: mais e mais
Morrerias.
Neruda nos falava
Na canção desesperada
Da dura y fría hora que
La noche sujeta a todo horario.
La hora de partir é, agora, nossa.
Pra onde vamos,
O vento nunca dirá.
É só a liberdade: um precipício.
Se possível, quero estar só.
E farei ao tempo uma oração:
Ai de nós! Amarga onipotência,
Inexorável duração.
E como falhar em nossa vida?
Se nunca pensamos na humanidade,
Ela não existe.
Cuspimos em toda a filosofia,
Pusemos uma pedra sobre a moral
E olhamos a arte de cima.
E agora? Que nos resta?
O amor é uma idéia velha,
Eu sei. Mas como queria
Ouvir o contrário.
Como no cinema, viveríamos
Uma aventura, uma noite,
Um eclipse, e, quem sabe, os
Sorrisos de uma noite de amor.
Mas o tempo chega
E cada segundo é uma morte,
Uma punhalada que espera
Em cada movimento dos ponteiros.
E posso te ver, ainda uma vez,
Sorrindo para o nada
Com o olhar de quem ainda
Não sabe que pode enxergar.
SOL DO NOVO MUNDO
Lá no alto, topo do mundo:
A vida adentro, a noite escura.
Estradas musicais, rancorosas.
A Moderna homofonia
Sem razão de ser.
Luta de classes na elite,
Clássicos fast food,
Sonhos e sorrisos aqui,
A perder de vista: o céu.
Nosso teatro mambembe,
Imbecil. Pensadores de cabeça quente.
Esplendores e misérias no circo do povo.
Flagrante alegoria de uma comédia sem graça.
Encerro meus olhos pasmos na tela que atrai.
Contemplo, com um escândalo comportado,
Teorias estúpidas: retalhos de pensamentos amputados.
Procuro e alcanço a salvação num cigarro barato.
A única liberdade (ainda) é fumar...
A agonia dos que não tem mais nada me arrebata.
Sei-me estrangeiro e banal, mas não covarde.
Política em versos é covardia,
É não dar a cara ao soco.
Arte limpa, politicamente limpa:
Slogan do novo fascismo, travestido de rigor.
Ossos amontoados proclamam o direito à vida,
Ossos que nunca viveram.
São grandes estátuas berrando dinamismos
No caos do pântano onde todos se afogam.
VOLVER
“Dónde está el niño que yo fui,
Sigue adentro de mí o se fue?”
PABLO NERUDA
Aquele lugar inóspito:
Amável, maldito,
Esquecido na infância.
Perdido para o homem
Crescido.
Nas escadas escuras,
Cheias de pó,
A saudade da vida do corpo,
Da vida de menino,
Da vida um pouco coisa
Que era boba e boa,
Da verdade desconhecida.
A cabeça dói,
O suor é a única verdade.
Caminho no escuro e sonho.
Sonho a beleza materna,
Sonho a inocência do amor
E realizo a impotência humana.
A criança que criava liberdades
Condenada a uma vida de papel.
Inebriada pelo orgulho de não ser um rato...
Como tantos outros.
CAMINHADA PELA PRAÇA DA ESTAÇÃO
Cada passo é uma pedra.
Cada pessoa, um deserto.
Passo por ela, uma porta:
Um fim de tarde num poema concreto.
A TERRA PASSA
No escuro, penso:
América livre,
Doce delírio.
Peço desculpas.
Tudo em ti
Foi desespero.
Casados e sós:
Vida e morte.
Pelas antenas
Do rádio
Chegam notícias
Da queda do muro
De nossa solidão.
Preciso lavar-me,
Limpar tua boca,
Limpar teu olhar,
Limpar teu adeus.
OS HERDEIROS
Toda a minha liberdade feita de sangue:
Felicidade artística do que não sou.
O mundo brada, aos quatro ventos, que me perdeu.
Eu, desatento, miro a alegria ao longe.
JANEIRO PELA JANELA
O mês de janeiro,
Chuvoso e quente:
Brasileiro.
O mais forte,
Mais duradouro.
Com dias de século,
Janeiro sem fim.
Esgota-me.
O suor no fim da tarde
Gotejando sobre o papel branco.
A humanidade passiva,
Esperando o carnaval.
31 dias
De um vagar fantasma.
Tudo morto e úmido.
A chuva morna
E os trovões secos
Não amenizam
O tédio.
A roda da fortuna parada.
AVE MARIA
“Quivi perdei la vista e la parola;
nel nome di Maria finí; e quivi
caddi, e rimase la mia carne sola”.
DANTE, “PURGATÓRIO”
Não sei se devo seguir uma estrela
Ou ficar aqui parado, estupefato
Diante de tanta grandeza.
Esta vida não me atrai e
O amor é muito frágil
Para que ensine
Alguém a viver.
Ela sabe que não pode amar.
Eu insisto na possibilidade,
Minhas teorias que falham:
Com Maria, é tudo incerteza.
A palavra é violação;
O poeta, violador.
Procuro os pensamentos certos
No bolso do casaco.
Mas não estão lá,
Já cruzaram os oceanos.
Alcanço a cidade em sonho
E rezo a um deus que dorme
Em um canto da rua, seminu.
Sei que há uma prece na memória,
Que a criança recitara e mãe ouvira,
Que pede a paz na hora da morte.
Não consigo trazê-la à tona.
Com Maria, é tudo incerteza.
O PENSAR POEMA
Criação de versos, idéias...
Criação de mundos, desmundos.
Coração e pulso e sangue e dor.
Criação de dor.
A CHEGADA
Foi na madrugada em que acordei de mãos atadas.
O fogo queimava tudo o que outrora fora doce,
Mas já se acabava, era o amanhecer...
Cheguei após a vida, e por toda a morte estarei aqui.
Receberam-me os bons homens, que pereceram na terra,
E outros ainda, que a ela se dirigiam.
Cheguei portador de letras, de datas, de horas...
Ao amanhecer nada terei.
Saquearam-me a alma, a razão e a história,
Encontro-me despido de humanidade.
Levar-me-ão a Deus, e meu desespero nascerá.
Minha espera, a última gota de sangue:
Sangue morto e podre, solidão.
Sangue lânguido, grande pecador.
A divina bestialização e o abandono...
Vieram me levar.
CIDADE DA TARDE
Ruas inusitadas,
Enfumaçadas e belas.
O caminho de uma tarde.
Um sábado jogado na cara.
Belo Horizonte é uma janela
Voltada para o nada.
ACORDAR NO VELHO MUNDO
Sozinho, no quarto imenso, neste sábado de nuvens secas:
Contemplo, pasmo, o meu rosto no espelho... ainda jovem.
Um dia ele será passado: existirá ainda na memória (talvez?)
E nas fotografias que eu odeio tirar.
E estarei velho e não terei aprendido nada.
Saberei que morrer é como contar o tempo,
É algo que fazemos, mas que não tem nenhum sentido.
Penso em encontrar ainda a velha casa em que cresci;
O avô com a certeza de Deus; o pai com a luta no sangue.
E eu, eu mesmo, tão vil, tão indigno: escravo de ideias que não são minhas.
Escrevendo linhas pobres por medo de sentir.
Ah! Porque não deixar que o universo passe sem saber de nós?
ÀS PORTAS DO CAOS
Adormeço enfim, sobre o que agora desaba.
Toda cor acorda com o vento, e eu o vejo.
Tudo é cor, é caos, é sonho e dor.
Todos aqui clamam e choram.
Choram pelas vidas esquecidas,
Deixadas sozinhas, no calvário da dor.
Clamam por alguma virtude perdida,
Que as ruínas do passado esconderam.
Finalmente a luz; o sub-céu...
Unidade disforme, renascer,
Refazer um homem.
Deus? Ou algo que o valha?
Desfeito o nó atado a muito, minha alma:
Lacuna recém preenchida com o eu.
Vejo as portas do lugar de onde vim,
Convidado a entrar no eterno, acabar...
Voltar eterno, amargo; amar...
Eterna dor, amargo, e vão amar.
Embriagam-me, arrancam algo de mim,
Não vejo; nada mais vejo.
Ele esconde-se sob escombros de uma rosa,
Sim, eu o vejo. E nada mais posso ver.
O PERDÃO
Em todas as minhas horas,
Só a luta foi virtude;
Cego pela Tua perfeição,
Perdi tudo o que não tinha.
Embriaguei-me por não ser como Tu...
Perdi a razão, me fiz homem.
DESESPERO...
Hoje vi um pássaro sobrevoando o amanhecer.
E nesse triste devaneio, percebi que não havia vida,
Que já não sabia viver.
SOLIDÃO
A vida é assim: tão certa e tão só,
Tão santa, incapaz de existir.
Veneno de outros, derramado em nós.
Só existe mundo, gente, Ser...
Palavras vazias como “vazio” e “solidão”.
Meu canto não supera, nada diz:
Como cantar sem nada dizer?
Digo Deus e nada digo.
Digo tu , nós, silêncio...
Uma ilha sem mar, sem espaço ou tempo.
Canto vago na noite eterna das coisas,
Enfim: tudo coisas, caos... vida assim.
ACORRENTADO
I
Que importa o espaço?
Que importa onde estou?
Eu, que sempre fui estrangeiro
Em meu próprio corpo.
Eu, que há muito
Não tenho identidade com o mundo.
Para mim os lugares,
Tais quais as formas de um prelúdio de Chopin,
Desmancham-se em meio ao oceano
De meus sentimentos esquecidos.
Não! Não importa onde estou:
Belo Horizonte, Paris ou Pequim.
Que diferença faz?
São só espaços cheios de consciências:
Consciências de inconsciência.
Espaços de solidão.
II
Estou cheio de medo,
Sou escravo do medo.
Um medo brasileiro,
Sincero e contido.
Olho em volta: tudo morto.
Meu sonho é dor.
Estou cheio de medo,
Sou filho do medo.
Medo que é o porto
Onde sempre chego,
Após longas noites...
Noites de fuga e amor.
Estou cheio de medo,
Sou o medo do medo.
Tenho um medo besta.
Medo bastardo e podre,
Filho das mais nobres idéias
E do mais pérfido terror.
Estou cheio de medo.
Sou o Deus do medo.
III
Viro a página, reviro a vida,
Escrevo um verso...
Escrevo um poema
Sobre a dignidade humana.
Mas já não tenho esperança,
Já transpus a porta.
Talvez o poema possa
Ser tudo o que não fui,
Ou, talvez, não será nada.
Se for o que não fui,
Ficará tudo como está.
Se não for nada,
Talvez as coisas melhorem.
E se um dia o universo acabar,
Louvarei, com fé, a Deus.
IV
Não, não há pátria para mim.
Não há solo em que eu possa pisar
E não sentir correntes e bolas de ferro
Atadas a meus pés.
Não há sossego, não há cansaço,
Só uma dor que parece dor,
Mas que, às vezes, é boa.
Daquelas dores que nos lembram
Que corre sangue em nossas veias.
Que vivemos como deuses,
Mas podemos sangrar, podemos sofrer.
É uma daquelas dores que trazem à consciência
O conhecimento, esquecido, de que não é por natureza
Que vivemos ajoelhados,
Mas porque temos muito peso nas costas.
V
Açoita-me, à noite, um sentimento insano.
Sob a noite, descanso.
Sinto o passar das horas,
O naufrágio austero do tempo.
Sei que a liberdade é um sonho,
Não um caminho.
Percebo que não sou livre,
Pois sou igual aos outros,
E os outros não conhecem a liberdade.
Para além de meus versos
Ainda sou capaz de levar comigo um sorriso,
Nobre ao menos em sua consciência de ser apenas
Humano...
De ser apenas devir.
VI
Mas se a vida é apenas realidade,
Por que dizem que devo ser feliz?
A felicidade não é real;
Não é senão a vontade humana
De não ser humana.
VII
Minhas correntes sólidas,
Espessas e fortes como eu.
Entrego-me à palavra:
Com meus versos avessos a métricas,
Sussurro aos ouvidos de Deus
Minha poesia desesperada.
VIII
Tenho tido muita tosse.
E, no fim das contas,
A única liberdade é tossir.
Tossir, tossir...
Até que rasgue o universo,
Junto com meus pulmões.
IX
Ah, meus amigos!
Só posso lhes dizer que vivi,
Porque hoje me sinto morrer.
Não sei bem se morro,
Ou se meu corpo adormece apenas.
Estou acorrentado, sempre estive,
Sempre estaremos.
Já não sou capaz de dizer mais nada.
Já não tenho versos para o último poema.
Hoje, estou absolutamente objetivado,
Não sou menos coisa que minha camisa,
Talvez seja até mais.
Tento me vingar,em vão,do mundo
Tão alheio às minhas agressões,
Tão sóbrio e tão cruel.
Ah, meus amigos!
Mas vejo minha euforia aumentar,
Meu coração dilacerado por uma grandeza sem fim.
E torno a ser homem, torno a ser sangue.
Amarrem-me a quatro cavalos,
Despedacem-me, e então verão
Meu sangue anônimo correndo nas ruas.
Eu, órfão de ciências,
Adotado por metafísicas não-científicas.
Eu, que nunca fui o que vocês quiseram,
Que já não sou o que posso querer.
Eu, que fui ao inferno...
E me apaixonei.
NUNCA MAIS
Ondas de silêncio gritam na noite:
O eterno morreu! O homem é livre!
Mas não há homem. O homem está morto.
O silêncio ainda o proclama...
Porém só existe silêncio...
POÉTICA
I
A palavra não dita que teima em existir
No coração dos loucos.
O pôr-do-sol sonhado, jamais vivido.
O grito insano de quem tem tudo a dizer.
O silêncio de quem sabe que tudo é nada.
A vida, com o véu rasgado, correndo nua
Pelas ruas de uma grande cidade:
O existir.
II
Não me atraem os acrobatas do verbo
Com a fórmula perfeita para um poema bom.
A eles, prefiro a mediocridade lírica
Dos que não tem nada a dizer.
O comentário sobre a tragédia cotidiana.
III
“Tenho meu dever,
e o orgulho de o pôr de lado,
Como tantos outros.”
RIMBAUD
Poesia fugaz, eterna.
A cor das vogais...
Os ais.
Uma vida valendo a pena.
Os universos: infernos
Líricos, lúcidos.
Embriaguez do moderno:
Tempos caducos.
Ciências: religiões.
Ciências: paixões.
Ciências, tendências,
Razões...
Tênue luz: o sol.
Deus, brincando, poeta.
Deus brincando Rimbaud.
IV
“A tragédia em cena já não me basta.
Quero transportá-la para minha vida."
ARTAUD
“A arte”, dizia o professor,
“É o constante aprimoramento
Do olhar sobre o belo.
A arte burguesa é
A cristalização que encarcera esse olhar.”
Com a poesia, aprendo a não ter medo:
Não é preciso ver.
Os poetas não têm olhos,
Contemplam o mundo audível,
Sentem o real com a palma das mãos.
Com a poesia, aprendo que ela não deve conter-se,
Deve explodir em todas as possíveis impossibilidades
Da linguagem, ou não será poesia: morrerá.
Com a poesia, aprendo o não trivial, o não humano.
O demasiado humano.
Aprendo o amor e o desamor.
Com a poesia, aprendo a não ser um só.
Aprendo a morte do ego, o egoísmo:
A solidão.
Com a poesia, aprendo a liberdade:
Que despedaça e identifica, que cria e destrói,
Que é doce e amarga.
Com a poesia, aprendo a morte:
Justificativa máxima para tudo,
Eterna possibilidade distante.
Com a poesia, aprendo o poema:
Objeto raro, lição complexa;
Aprendo Rimbaud, aprendo Artaud.
V
À noite,
Todos os gatos são pardos,
Todas as mulheres são doces
E todos os poetas são Poe.
VI
"La desce a Noite
Onde se pressente
Um longo destino de sangue"
APOLLINAIRE
A Poesia concreta sempre intrigou-me:
Um poema é tão abstrato quanto um círculo,
Tão imaterial quanto uma alma.
A poesia concreta da alma às formas,
Da Luz à alma.
Concretiza-se no efêmero.
Não morre.
Imortal, não endurece.
Continua poesia:
Tênue gozo humano.
CENÁRIO
Olhos tontos,
Sonhos fortes.
Sobre a mesa
Um conhaque.
Um espanto,
Um acalanto.
Sobre a mesa
Um conhaque.
Rostos pálidos,
Nuevo tango.
Sobre a mesa
Um conhaque.
Filme francês,
Nouvelle vague.
Sobre a mesa
Um conhaque.
Versos fracos,
Poeta louco.
Sobre a mesa
Um conhaque.
Inverno triste,
Mulher bela.
Sobre a mesa
Um conhaque.
Arre!
Por que diabos
Sou incapaz de tragá-lo?
CENÁRIO II
Contas que tenho de fazer,
Lágrimas a derramar: um deserto.
O poder dos loucos,
Anjos insanos, desvairados, poetas.
Fecho a porta, derramo o vinho sobre a mesa posta.
Meu sangue derramado pela humanidade, humano demais.
Contas a pagar.
Dívidas com Deus.
Retratos na parede da sala,
Rostos que desconheço, ameaçadores.
Vidas cheias, dores astrais.
Desperto.
Vejo-me: universo.
Caligrafia trêmula, sombria.
Uma sinfonia: a quinta de Mahler.
Um filme: Visconti, Thomas Mann, Aschenbach.
A morte, a paixão: sentimentos.
A música, arte-mor.
Sobrevivo efêmero, desgastado e belo.
Escrevo: que me resta?
A HORA DA VIDA
É segredo, o que não é liberto.
E insano, o que não é igual.
É cego o que não vê
E nulo o que não é visto.
É cansado o que faz
E indigno o que deixa ser feito.
É feita de mortes a hora da vida,
Que torna podre o nobre amor.
É triste o que está perfeito
E desvairado o que busca.
É tão inusitada a existência,
Pois sempre nos deixa sós.
É pérfido o criador,
Que fez tudo para seu deleite.
RESTOS
Ah, se não tivesse perguntado sobre as coisas deste mundo,
De tudo o que é morto estúpido e bom.
Na vida colérica de ratos infames: homens, sangue e dor.
Meu passado único e inesgotável, fim em si mesmo, em mim.
Se pudesse dizer a inconstante palavra que me fere os lábios; ah se pudesse!
Aquela humanidade usurpada me confortaria como os braços de uma mulher,
[ou como a fúria de um deus.
POESIA DO ESQUECIMENTO
“As gerações dos mortais assemelham-se às folhas das árvores,
que, umas, os ventos atiram no solo, sem vida; outras, brotam
na primavera, de novo, por toda a floresta viçosa.
Desaparecem ou nascem os homens da mesma maneira”.
HOMERO, “ILÍADA”
Dizer sobre tudo o que não foi,
Algo que o dia nunca irá saber:
As migalhas do tempo à espera da unidade;
Os homens sem olhos dizendo mentiras.
Eu nasci de um mundo novo,
Admirei, entorpecido, às virtudes mais vãs.
Agora só faço olvidar, por opção, todo o humano.
Não penso em nada, sequer na noite...
Vejo o fogo dos novos dias a arder.
Apagar a luz de um céu imerso em estrelas,
E trazer de volta a natureza o amargo perdão humano:
É essa a nossa missão.
Sempre fomos desgarrados, nosso legado é a terra,
Nossa hora é de esquecer...
De tudo o que foi, o que fomos?
Nenhuma vida é sincera para amar.
O homem? Só homem...
Alguém que, no nada, vive,
E se esquece da incapacidade de no nada viver.
APENASMENTE MORRE
Só Freud explica.
Só Jesus Salva.
Só o homem peca.
Só a fome mata.
Só a ilusão alegra.
Só a solidão sufoca.
Só os mortos gritam.
Só a ciência prova.
Só a mentira é provável.
Só a loucura liberta.
Só a liberdade pesa.
Só o instante existe.
Só a existência é triste.
Só o tempo é humano.
Só a humanidade é tempo.
Só a humanidade é alma.
Só a alma morre.
Só o corpo é eterno.
Só a eternidade vale à pena.
Só a morte redime.
Só a dor desperta.
Só a loucura é sã.
Só a tragédia engrandece.
OUTRAS CANÇÕES
Das sombras fiz meu lar,
E no teu olhar vi a solidão.
No chão joguei as lágrimas,
As lástimas e o perdão.
Do pão restou-me o céu.
De um mar de mel, a escassez.
Desfez-se sonho do ópio,
A loucura e o cio da embriaguez.
Outra vez vi o medo,
E em segredo chorei.
Cruzei invernos e sóis,
Para enfim perecer.
Voltar a crer? Jamais!
Quero estar entre as flores.
Deixarei temores para trás
E não tornarei a amar.
TRANSE
Dedicado a Glauber Rocha e sua Solitária alma inquieta.
No alto desta noite escura e triste
Estendo meu frágil corpo
Sob um luar disperso em nuvens negras.
Bebo inconstância nas amargas fontes da razão
E me entrego à incerteza do todo e do nada.
Adormeço e acordo mil vezes a cada segundo
Sem perceber a fria ausência da morte em mim,
Perdôo-me por não pensar a ausente e parto, enfim,
Para afogar-me no solitário transe das almas inquietas.
O CONFORMISMO
Calmamente, a noite chega.
Caminhamos com firmeza,
De braços dados com a solidão:
Esquecemos... é o que se pode fazer.
“O mundo será sempre assim”,
Sussurram em uníssono...
Os que temem gritar.
RITUAL DOS TOLOS
Andar sem saber da estrada,
Caminhar, lugar-comum.
Sentam-se e bebem
E esquecem.
Vento soprando no rosto,
Sorriso alegre, bobo.
Destroça a vida,
O homem que pensa.
Se me permitem, digo:
Somos todos bufões,
Cansados e sem esperança.
E continuamos...
CAMINHOS DE MAÇÃ
“Tienes líneas de luna, caminos de manzana”.
PABLO NERUDA
A noite rasga a cidade, a volúpia se levanta.
Para cantar (amor?), errados e belos,
Corpos desabrocham. Desde seios,
Suores nascem, encantam.
Pequenos pedaços de sonhos,
Aqui e ali, que fazem feliz
A quem concede encontros.
Puro desejo, oculto no sorrir.
Primavera batendo à porta,
Raparigas à janela, à sombra,
Em flor, pisando folhas mortas
Do outono que passou.
Paraíso posto, às pressas,
Cá no mundo.
Cobrindo de versos
Corações vagabundos.
Estas noites não esperam manhãs,
Só fazem deslizar docemente
Por longos caminhos de maçã.
No vagar dos homens,
Ébrios esta noite,
Não há nada a censurar.
Eles vão ao léu,
Pó no rosto, pé na estrada.
Vida ao vivo, bar em bar.
Nesta terra, onde doutos não podem reinar,
Pois terra de loucos, motivo de festa:
Reino de céus em cores de mar.
TARDE DE ESTUDOS
No fim do século, à noite,
Eu passeava pelos jardins de Deus.
Sobrevivente da história.
O vento, o vento, o vento:
O vento soprava a alma,
A alma despedaçava.
Afogada em números,
Inundada.
Imunda.
A alma humana.
O “homem-mundo”:
Deduções.
Lá, a terra morre.
Aqui, vive o caos.
Lá, a vida canta.
Aqui, o amor grita:
Agoniza.
COSMOGONIA
Ouçam: o rio passa.
Corre com a velocidade do pensamento.
Deus está a cismar: “O que pensam os homens?”
Cansado de cismar, esquece.
Esquece de si mesmo
E torna-se o mundo.
OS DEMÔNIOS
Hoje acordei lúcido. Uma palavra gritava em minha cabeça:
“Liberdade!”, “liberdade!”, gritavam os demônios de minha alma.
Ser humano: ser vaidade. Conquista futura da ausência.
Ardia-me o rosto. Eu pecava em cada olhar, em cada gesto.
Desde cedo aprendi a ofender a minha humanidade.
É certo que, não sendo santo, não fui hipócrita.
Um trago no cigarro que estava sobre a mesa e o universo retornaria
Impossível e trágico, recheado de cores rivais e harmônicas.
Dilacera-me o peito a pergunta que, à noite, foi feita por algum deus:
- “O que faz o homem tão grande e ao mesmo tempo tão medíocre?”
- “Liberdade!”, teimavam os demônios.
SOBREVIVO
Sobrevivo, mesquinho aos olhos de todos.
Como um lagarto, sobrevivo.
Atento a tudo o que já não é possível.
Olhos insanos de minha alma, constantemente
Provocados pelo dinamismo das vidas triviais das gentes.
Sobrevivo, como que por uma vontade sádica de Deus:
Sou capaz de desfazer-me de mim mesmo
Como de uma roupa velha que já não serve.
No meio da noite, a força,
Mãe de toda vaidade, superável e triste,
Persegue os cães vadios que dormem na calçada.
Eu, do alto de meu inferno, sobrevivo.
O OUTRO
Eu não me importo!
E a certeza de não me importar
É o que me mantém vivo no absurdo.
Em mim, uma máquina vazia:
Sem mundo, sem medo.
Não me importo!
Só me seduz o tempo.
Inexoravelmente livre,
Herdeiro de toda liberdade.
Realmente, não me importo!
Homem puro que sou, que fui...
Soberano da dor e escravo de vermes.
Sonho uma triste valsa
Para almas e nomes vãos.
Não me Importo!
Minha vida despojada, elevada aos céus,
Idéia digerida por alguém que não eu.
Não um eu, não um ser.
Não me importo, francamente,
Não me importo!
EPITÁFIO PARA RIMBAUD
Onde estão os nossos deuses?
Acaso cantam, agora, canções do exílio?
Acaso exalam, tristes, suas divindades?
Talvez escrevam cartas de terras distantes...
RAPSÓDIA PARA O FRACASSO
“Then, what is life? I cried”
SHELLEY
I
Corri pelos campos gritando blasfêmias,
Perguntando aos deuses sobre a vida.
Desejei ausências, odiei mistérios.
Agora renego tudo, quero apenas viver.
Os homens cantam, dançam, esquecem.
Os homens morrem, desencantam e calam.
Só nos restam o silêncio e a vontade de gritar.
II
Carros oprimem,
Cidades oprimem,
Amores oprimem.
Permanece tudo quieto,
Tudo morno.
Tudo morto até que surja o ato:
A explosão da dor humana,
Daqueles que ainda não desistiram.
Então tudo ferve, impera o caos.
III
Casas queimando, crianças queimando:
Corações em chamas.
Olhos secos, sem lágrimas.
O choro virá depois.
Quando houver tempo
O choro virá.
IV
Cuidaremos da terra, ela sobreviverá.
Levantem os mortos, eles trabalharão.
Cuidaremos da terra, cantaremos,
Daremos flores às nossas mães.
V
Corpo: só existe o corpo.
A eterna potência, o bem maior.
O corpo não pode morrer.
Nos corpos repousam os deuses.
VI
Coberto por imundices, num gozo pleno:
A dor.
O hino absoluto: o grito!
Elas desejam viver.
Devemos matá-las?
Não, ainda não.
A tortura é o maior dos prazeres.
Ajoelhados, escravos de máquinas,
Criamos a nova divindade.
Pusemos no o fracasso no altar.
O AMOR NAS CAIXAS DE CHOCOLATE
O amor existe,
Não há dúvida.
Está nas caixas de chocolate:
O amor bombom.
O amor passa,
Desfila pelas ruas,
Está nos pés:
O amor sapato.
O amor embriaga.
Ébrio, vagueia sem rumo
E chega ao vinho:
O amor uva.
O amor é caos,
É arma: fere, mata
E destrói cidades:
O amor guerra.
O amor apaixona,
Cheio de luz e desejo.
Personifica:
O amor mulher.
PASSEIO
Belo Horizonte é uma cidade ímpar,
Ensimesmada: Janela aberta para o espelho.
Lugar de acasos, de vida afora,
Suores e noites de paz.
Renasce todo dia
Saída de dentro do sol.
Herdeira de Minas, canções de Milton:
Sinos errantes e cristos pagãos.
Terra de calçadas, de olhares baixos,
De seres que rastejam, com a cabeça na lua.
Horizontes azuis, telhados de fogo e tapetes de asfalto.
Cumprimentos gentis, com pé-atrás.
Timidez que vem a calhar.
Sabe seu destino: esconde-o.
Serras de silêncio circundando o livre-arbítrio.
Pudores e excessos temperando a multidão errante.
RENDIÇÃO
Viajo, dormindo, ao inferno;
O inferno em mim,
O inferno nos outros.
Escondo escândalos em minhas mãos.
Escorrem entre meus dedos,
Sou humano como Cristo:
O Deus que perdeu.
Sou vil e amável e não sei o que devo,
Ou, sequer, o que quero fazer,
Vago...
Tento descrever...
Em versos...
A dor...
Que tenta ser...
Que é maior.
CANTO DOS CORVOS
Canos e águas,
Luto e dor.
América sangrada:
Desalento, um túmulo.
Que desejam?
Nossas almas?
América sangrada:
Latina e frágil.
Repleta de revoltas
Contidas e débeis.
Acasos te destroçam,
América sagrada,
Mãe dilacerada.
Que fizemos de ti?
Nós, os mortos,
Não fomos também
Os assassinos?
América sangrada,
Acaso não queres morrer?
Mas se toda a tua vida
Foi feita de mortes.
Se no mar do teu sangue
Há sempre Pilatos
Lavando as mãos.
Estranhos se banham
Deliciam-se, te mancham.
América deflorada
Num estupro universal.
Que mais te podem fazer?
Pobre puta, tão amada:
Geni do mundo.
Não morrerás!
Pois ainda há fogo
E há memória.
Há memória
E há fogo.
E as chagas abertas
Hão de fazer recordar
A necessidade da luta,
O amargo prazer de lutar.
OURO PRETO
Cidade alta, louca.
Fumegando traços,
Construindo laços,
Beijando bocas,
Caminhando...
Com passos largos
Pelas ladeiras,
Lugares calmos
Onde a vida voa.
Cantos Gerais,
Não de Neruda,
Mas das Minas.
Dois universos.
Museu a céu aberto,
Ancorada em dores
Escravas,
Que sofrem.
Terra da chuva,
Da mácula do tempo.
Sobrevive nova
E ébria.
Do outrora,
Se alimenta:
É eterna.
Templo barroco,
Encerra o belo
E o grotesco,
E algo mais:
O paradoxo,
A divindade.
Lugar-comum
Da humanidade,
Da poesia
Ignorante e
Sem verdades.
Instantes mortos
Em cada casa:
A vida pára,
O querer espera.
As cruzes pesam,
Os santos sonham
Uma morte vã.
Os homens calam
Quando sabem
Que não podem gritar.
PONTO DE CORTE
Poema é tiro no escuro.
O canto coisa, o papo reto.
Açoita a pele, o verso incerto:
Palavra pedra, falar duro.
GUERRA
I
Não me sinto bem,
A cabeça dói, estou enfermo.
Tirem daqui toda a humanidade!
Preciso ficar só para não morrer.
Minhas mãos estão inchadas,
Tenho febre e uma ânsia de embriagar-me
E enlouqueço
Cortando os pulsos
Com uma lâmina fria.
II
Podemos crer que Deus é justo,
Que os átomos sentem
E que “impossível” é uma palavra vazia.
O vento não saberá de nós.
III
O pó pregado ao chão da velha casa.
A religião, que trazia vida a tudo.
A lembrança que é pesada demais.
Infância distante, acenando adeus.
IV
Ia pelo caminho o velho homem,
Odiava o futuro que teimava em existir.
A vida caminhava junto, invencível.
A morte esperava à frente, com olhos maternais.
V
Veneno de cobras.
Rasgos no tempo,
Nas botas sujas
Na lama
Da guerra.
LUTO
Quando penso na morte,
Penso em violência.
Não na violência da noite,
Ou na violência das armas,
Mas na fria violência do silêncio.
HEREDITARIEDADE
A geração de meu pai
Habitava lugares inalcançáveis.
A minha alcança lugares inabitáveis.
O SONO
I
A minha vida inteira tem sido, sobretudo, um grande sono.
Não importando se estou a velar ou a dormir, estou sempre dormindo.
Dos sonhos que tive, os mais fantásticos, tive-os acordado,
Os mais reais, dormindo.
Seguro uma pedra em minha mão e ela parece feita de pó,
Desfaz-se...
Sonho constantemente com uma bela mulher que amo,
E, no sonho, ela existe tanto quanto eu mesmo.
Seria capaz de sentir com sua alma.
Em sonho, não existo e sou Deus.
Aqui, sou um verme pleno.
II
Eis a vida nua!
Eis a questão não colocada!
O limpar o corpo de um cadáver!
Se me erguesse de meu sono
Seria para morrer.
III
Um poema como um soco no estômago.
Um poema como um cachorro doente
Numa esquina qualquer.
Um poema incapaz, apolítico.
Um poema que arranque olhos, apocalíptico.
DIA DE OMBROS MOLHADOS
Uma constatação: chove.
Terça-feira, água fria.
Um dia de ombros molhados
Nas goteiras do universo.
Dia de homens cansados,
Que arrastam por aí o cadáver
Sem se preocupar;
Sem saber da verdade da chuva.
Tragédias no noticiário, doce sabor
Da desgraça alheia.
Cama quente, chocolate quente
Pra trazer o bom humor.
Pela janela, ônibus lotados de
Gente úmida.
Fumaça do cigarro aquecendo o corpo,
Os pulmões mofados;
Celas em forma de lar que abrigam
Letrados.
Carreiras aqui e ali.
Cheiro de mulher.
Uma transa para esquecer da lama
E chafurdá-la melhor.
Uma criança, em trapos,
Correndo na chuva,
Brincando de Deus,
Pedindo esmolas
No fundo do mundo.
FUTURO
As novas ordens trazem consigo um novo caos,
Que dá nova esperança aos velhos homens.
Homens que construirão um futuro
Igual ao novo passado,
Farão novas vitórias,
Para os eternos guerreiros.
Que hão de criar novas guerras
Para derramar novo pranto,
Dos novos olhos tristes
Que sofrem com a antiga dor.
SEM COR
Entrei pela porta do tempo.
Noites claras, mãos despedaçadas
Sob meu olhar atento.
Teima em existir minh’alma , calada.
Resisto a ti, ó tormento!
Meu retorno vão, atroz
Ao triste som, tua voz.
Negra razão, meu pensamento.
Homem máquina,
Sangue quente,
Mente e dor.
No papel, minha pena
Traz à vida ardente,
Meu querer sem cor.
DA DOR DE LEMBRAR
A memória nos esmaga,
Carregamos nos ombros
A tristeza de toda a vida:
A história humana.
Quem dera poder ter
Uma amnésia
Ao fim de cada dia.
IMAGINAÇÕES TORTAS
Lá vem o futuro!
Não o vêem?
Lá vem o futuro.
Tempo desconstruído,
Cheio de culpa e paz.
E me pego perguntando:
"Por que esta invenção?"
Não há resposta.
Silenciosamente, os fantasmas
Dançam ao meu redor.
O CÃO NA RUA
Um cão na rua
No meio de todos
Do nada
Ao léu
Escuta passos
O cão
À noite
Sonhando gatos
Brincando fomes
E chutes no rabo
Um cão na rua
O cão na rua
A morte no cão
A carne crua
O pneu
Esmagando
Sonhos e cães
Na vala
AFOGADOS
Corra!
Eles não podem te alcançar...
E sonhamos, e sobrevivemos...
Louvamos o vinho e acendemos cigarros
Enquanto esperávamos a humanidade chegar
E ocupar aquele lugar vago na mesa
Para nos dizer que a liberdade é uma grande puta
Que nos engana desde sempre
Com uma divindade qualquer.
Então pudemos sair e atravessar as paredes
E as idéias.
E todo o conhecimento que tínhamos nos bolsos,
Oferecemos como esmola a um mendigo imundo.
Então choramos, como no teatro, com as almas entrelaçadas...
E fizemos amor.
SOBRE OS HOMENS
Canto, por meio de uma voz emancipada,
Canções que dizem que não existo.
Tudo o que faço (ou penso fazer?),
Já não faz parte de mim.
“Que sou eu então?”,
A poesia pergunta.
A realidade se cala e olha para o chão.
Tudo o que nos forma já não é nosso.
As vozes emancipadas se calam
Ao chegar ao fundo do frio abismo do silêncio.
JANELAS
Na poesia o tempo é falso,
Como estátuas de cera.
Cada passo é de uma vida pulsante
Inimaginável aos olhares alheios.
Um estado de imensidão
Que destrói toda a certeza
E abala as frágeis almas.
Não se deve amar, pois, a poesia,
Mas odiá-la com fervor
Por ser ela tão pura.
... E A REVOLUÇÃO?
Quero esquecer o mundo por enquanto,
Deitado na poltrona reclinada,
Nos braços da mulher que me ampara.
Quero rasgar suas vestes e cobri-la de amores.
O que excita a alma é o melhor do corpo.
Minhas tolas, queridas, infames:
Mulheres do mundo, mulheres de todos.
Esquecem que tenho
Amor vazando pelos poros e
Conheço sonhos e perversões mil.
Tenho carências que mostrar,
Súplicas que pronunciar.
Mordo os lábios ao pensar em dizer:
Não acharei ouvidos, não se atreverão a entender.
Passarão, passarei, passarinho.
“Larga disso, homem!”,
Gritos de Deus ao pé do ouvido.
Tudo pensado em minha cabeça:
Universos, cores, prazeres e, sim,
A urgência de dizer que sinto e que
Perco a mim mesmo na boca de alguém.
LADEIRAS
Ladeiras que sobem e descem,
Que carregam as dores,
As vidas e os amores
De quem as sobe e desce.
Ladeiras vivas,
Que vivem e sonham,
Que nascem e morrem
Em corações errantes.
Ladeiras tristonhas,
Em dias de chuva.
Que choram e clamam
Por alguma virtude.
Ladeiras em vãos momentos
Deixados em outros passados,
Que vêem os homens do alto
Rodando ladeira abaixo.
Ladeiras eternas,
Eternidades vividas.
Lágrimas contidas
Nesse digno sofrer.
E TODOS SÃO EU
Eu queria ter uma aposta para ganhar
E o direito de esquecê-la.
Queria ter um caso particular,
Uma luminária acesa em uma mesa de luxo.
Queria ser o gole de conhaque na noite fria
E a fumaça do cigarro que dá força aos solitários.
Na noite, acaba o tempo, acorda a vida,
Dorme o dia, sob escombros.
Adormeço e sou todos.
Acossado, sou liberdade.
Ofendido, sou gratidão.
Usurpado, sou doador.
Planetas e mistérios em minha cabeça que dói.
Cabeças de prego no tabuleiro de jogo da criança.
Eu, sentado ao lado dos amigos mortos.
Todos eles com o mesmo rosto:
A face partida ao meio por uma cicatriz terrível.
E todos são eu.
O SEGREDO DA VIDA
Tenho a boca seca.
Um irresistível cheiro de mulher preenche o ar.
Estou bêbado.
Bêbado das desgraças do mundo,
Bêbado das paixões que me devoram.
Passei a vida a desencontrar-me,
Tenho sido, até agora, o que nunca quis.
Já não reconheço a humanidade.
Eu quero reinventar o homem
Torná-lo novamente humano,
Sujo e vil.
A verdade não está na História.
O segredo da vida esconde-se
Nos olhares medíocres.
FACA NO TEMPO
“Elle est retrouvée.
Quoi ? - L'Eternité.
C'est la mer allée
Avec le soleil.”
RIMBAUD
I
O deserto quente.
A frieza da alma.
Vida criando dores,
Sonhando eternidades.
Amanhece. Luz!
Palco iluminado,
Teatro do tempo:
Soberbo.
Apaga o medo
O dia de sol.
Homens criando seiva,
Árvores sangrando.
II
Podes ver?
Criei asas e vi o mundo.
A liberdade é fantasia.
Palhaços incautos,
Devorando significado,
Caminhamos sozinhos.
III
Linguagem:
Um fantasma pisoteado.
O discurso sem poder,
Desordenado.
O tempo, ainda ontem,
Dilatado.
A metafísica brincando
De saber.
IV
O fim do caminho
Amanhã de manhã.
Enferma, a vida
Bate à porta.
Tem sede,
A boca seca.
O caminho escurece.
De negras nuvens,
A tempestade cai.
A vida pálida:
Com o medo na alma.
O medo da vida
Na alma do homem.
V
O homem social
Morto, atemporal.
Escada abaixo
A vida caminha,
Dança e cria mundos.
Povo é mentira.
Indivíduo, ficção.
Só resta o encanto
Do que não foi.
Vã alegria.
Pelo tempo,
Aos tropeços:
Humanidade tecendo
Teias.
Pelo avesso,
A vida avança.
A descrença cresce,
Eis a nossa herança.
Abismo, ismo, ismo,
Humanismo tolo.
HINO
Cantai homens!
Acaso esquecem
Da dor que sentiram?
Da alegria de poder
Dançar sobre o abismo?
Não são os deuses,
A natureza,
Ou a morte.
Sois vós!
Os responsáveis...
FACAS: UMA SÓ VÍSCERA.
Ouvimos erros,
Nos dizem não.
Cálice e corpo,
Alma e morte,
Pulso e sangue.
Grandes magos
Da vida séria,
Estéril.
Proclamem,
Agora,
A dor.
A vida enfim:
Contam histórias,
Vivem verdades
Eternas.
Antigas.
Pedras sobre túmulos
E facas: uma só víscera.
LIÇÕES DE HISTÓRIA
O universo do verso
Tornado o avesso
Da obra escrita.
Palavra cuspida,
Encarnada no corpo
Do artista.
O ato pensado,
O contrário da ação
Pensante.
O poema fraco,
Deleite burguês
No ócio.
O teatro da vida,
Seco e trágico
Sonho trivial.
Paraíso perdido.
Nas portas do inferno,
A esperança morta.
Agoniza, enfim,
POLÍTICAS
Camaradas! Boicote ao efêmero hoje à noite.
Não se percam nas mulheres, na vida.
Cuspam não arte que não é capaz de matar.
Torturemos a beleza em praça pública.
Um brinde:
À colônia!
À máquina!
Ao universo!
Ao Palco!
À primavera!
A todos os deuses mortos!
MADRUGADA NOS OLHOS
Outro caminha em mim nesta manhã.
Um outro, que se apossa de minha dor,
Devora meus sonhos e ri de meu desejo.
Ele tem a verdade do belo
E carrega na alma a tragédia do mundo.
Meus olhos fecham e sinto seu corpo.
Tenho a verdade do homem
E carrego na alma os prazeres do mundo.
Ouço delicadezas e pecados,
Sinto abraços e lábios:
Pudores violados, metades de mim.
Ele foge, seduzindo.
Sigo-o.
“Onde vai?”, indago.
O olhar me escapa.
Tem um olhar de céu:
Tem a madrugada nos olhos
E os deuses na boca.
TEORIA DA HISTÓRIA
O homem social
Morto, atemporal.
Escada abaixo,
A vida caminha,
Dança e cria mundos.
Povo é mentira.
Indivíduo, fantasia.
Só resta o encanto
Do que não foi,
Vã alegria.
Pelo tempo,
Aos tropeços:
Humanidade tecendo
Teias.
Pelo avesso,
A vida avança.
A descrença cresce,
Eis a nossa herança.
Abismo, ismo, ismo,
Humanismo tolo,
Uma história sem fim
No fim da história,
Esperando alguém.
LA BELLE HÉLÈNE
“Das Ewig-Weibliche
Zieht uns hinan.”
GOETHE
Encontro-me em ti, retorno a mim:
Idas e vindas, num furor ébrio,
E teimo. Temo sempre, o fim.
Retorno ao zero, sem equilíbrio.
No fim de tudo há um festim,
Espetáculo difuso, amor apenas:
Avançamos misturando nossas pernas.
Mergulho em teu vestido de cetim.
Procuro ainda teu rosto, Helena!
Cansado de fitar o espelho,
Cansado de inspirar pena.
Vivo; sem o teu apelo,
Morro em cenas obscenas.
Agarro, em sonho, teu cabelo.
O PALCO ILUMINADO
Prólogo ..................................................................................................................... 3
ANGELUS PRIMUS ............................................................................................... 4 Nômade .................................................................................................................... 5
I ........................................................................................................................... 5 II .......................................................................................................................... 5 III ......................................................................................................................... 5
IV ........................................................................................................................ 5 V .......................................................................................................................... 5 VI ........................................................................................................................ 6 VII ....................................................................................................................... 6 VIII ...................................................................................................................... 6
IX ........................................................................................................................ 6
X .......................................................................................................................... 6 Vamos! ..................................................................................................................... 7
Liberdade: um precipício ......................................................................................... 8 Sol do novo mundo ................................................................................................ 10 Volver ..................................................................................................................... 11 Caminhada pela praça da estação ........................................................................... 12
A terra passa ........................................................................................................... 13 Os Herdeiros........................................................................................................... 14
Janeiro pela janela .................................................................................................. 15 Ave Maria............................................................................................................... 17 O pensar poema ...................................................................................................... 19
A Chegada .............................................................................................................. 20 Cidade da Tarde ..................................................................................................... 21
Acordar no velho mundo ........................................................................................ 22
Às Portas do caos ................................................................................................... 23
O Perdão ................................................................................................................. 25 Desespero... ............................................................................................................ 26
Solidão ................................................................................................................... 27 Acorrentado ............................................................................................................ 28
I ......................................................................................................................... 28 II ........................................................................................................................ 28 III ....................................................................................................................... 29 IV ...................................................................................................................... 30 V ........................................................................................................................ 31
VI ...................................................................................................................... 31 VII ..................................................................................................................... 31 VIII .................................................................................................................... 32
IX ...................................................................................................................... 32 Nunca Mais ............................................................................................................ 34 Poética .................................................................................................................... 35
I ......................................................................................................................... 35
II ........................................................................................................................ 35 III ....................................................................................................................... 35 IV ...................................................................................................................... 36 V ........................................................................................................................ 38 VI ...................................................................................................................... 38
Cenário ................................................................................................................... 39
Cenário II ............................................................................................................... 41 A hora da vida ........................................................................................................ 42 Restos ..................................................................................................................... 43
Poesia do Esquecimento ......................................................................................... 44 Apenasmente morre ............................................................................................... 45 Outras canções ....................................................................................................... 46 Transe ..................................................................................................................... 47 O Conformismo ...................................................................................................... 48
Ritual dos tolos ....................................................................................................... 49 Caminhos de maçã ................................................................................................. 50 Tarde de Estudos .................................................................................................... 52 Cosmogonia ........................................................................................................... 53 Os Demônios .......................................................................................................... 54
Sobrevivo ............................................................................................................... 55
O Outro .................................................................................................................. 56
Epitáfio Para Rimbaud ........................................................................................... 57 Rapsódia para o fracasso ........................................................................................ 58
I ......................................................................................................................... 58 II ........................................................................................................................ 58
III ....................................................................................................................... 59 IV ...................................................................................................................... 59
V ........................................................................................................................ 59 VI ...................................................................................................................... 59
O amor nas caixas de chocolate ............................................................................. 61
Passeio .................................................................................................................... 62 Rendição ................................................................................................................. 63
Canto dos Corvos ................................................................................................... 64
Ouro Preto .............................................................................................................. 66
Ponto de corte ......................................................................................................... 68 Guerra ..................................................................................................................... 69
I ......................................................................................................................... 69
II ........................................................................................................................ 69 III ....................................................................................................................... 69
IV ...................................................................................................................... 69 V ........................................................................................................................ 70
Luto ........................................................................................................................ 71
Hereditariedade ...................................................................................................... 72 O Sono .................................................................................................................... 73
I ......................................................................................................................... 73 II ........................................................................................................................ 73 III ....................................................................................................................... 73
Dia de Ombros Molhados ...................................................................................... 75 Futuro ..................................................................................................................... 77 Sem cor................................................................................................................... 78 Da dor de lembrar................................................................................................... 79
Imaginações tortas .................................................................................................. 80 O cão na rua ........................................................................................................... 81 Afogados ................................................................................................................ 82 Sobre os Homens ................................................................................................... 83
Do Amor ................................................................................................................ 84
Janelas .................................................................................................................... 85 ... E a revolução? .................................................................................................... 86 Ladeiras .................................................................................................................. 87
E todos são eu ........................................................................................................ 88 O Segredo da Vida ................................................................................................. 89 Faca no tempo ........................................................................................................ 90
I ......................................................................................................................... 90 II ........................................................................................................................ 90
III ....................................................................................................................... 91 IV ...................................................................................................................... 91 V ........................................................................................................................ 92
Hino ........................................................................................................................ 94 Facas: uma só víscera. ............................................................................................ 95
Lições de história ................................................................................................... 96
Políticas .................................................................................................................. 98
Madrugada nos olhos ............................................................................................. 99 Teoria da História ................................................................................................. 100 La Belle Hélène .................................................................................................... 101