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UNIVERSIDADE DE BRASLIA
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA
O QUE FAZEM OS HISTORIADORES, QUANDO FAZEM HISTRIA?
A teoria da histria de Jrn Rsen e Do Imprio Repblica, de
Sergio Buarque de Holanda
Arthur Oliveira Alfaix Assis
Orientador: Prof. Dr. Estevo C. de Rezende Martins
BRASLIA
2004
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ARTHUR OLIVEIRA ALFAIX ASSIS
O QUE FAZEM OS HISTORIADORES, QUANDO FAZEM HISTRIA?
A teoria da histria de Jrn Rsen e Do Imprio Repblica, de
Sergio Buarque de Holanda
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Histria da Universidade de Braslia como requisito parcial para a obteno do grau de mestre em Histria. Defendida a 05 de julho de 2004, perante banca examinadora composta pelos professores Luiz Srgio Duarte da Silva (UFG), Lus de Gusmo (UnB) e Estevo de Rezende Martins (UnB).
BRASLIA
2004
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AGRADECIMENTOS
Apresentam-se aqui os resultados da investigao que desenvolvi tendo em vista a
obteno do grau acadmico de mestre pelo Programa de Ps-Graduao em Histria da
Universidade de Braslia. Durante os pouco mais de dois anos de estudos que nele
resultaram, contei com o suporte financeiro de uma bolsa da Coordenao de
Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior (CAPES) do Ministrio da Educao, que
me permitiu dedicao exclusiva s atividades de freqncia a seminrios acadmicos,
leitura de textos e redao da dissertao. importante lembrar que, no encaminhamento
das diversas renovaes da bolsa, houve sempre compreenso e empenho por parte da
coordenao do programa e de seus funcionrios. Sem essa ajuda financeira, o que se
segue teria que se fazer acompanhar de pretenses ainda mais modestas.
Contei tambm com o apoio do Servio Alemo de Intercmbio Acadmico
(DAAD), que me custeou, durante os dois primeiros meses de 2004, uma viagem de curta
durao Alemanha pelo programa DeutschlandkundlicherWinterkurs. O curso de
aperfeioamento no idioma alemo, de que participei por ocasio dessa viagem, revelou-se
de grande importncia para o desenvolvimento da etapa final da investigao. Estive,
durante esse perodo, em contato com o professor Jrn Rsen, com quem conversei
brevemente acerca de alguns aspectos deste trabalho. A ele agradeo a gentileza da
recepo e a disponibilidade para ajudar na seqncia de meu percurso intelectual.
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Em novembro de 2002, consultei, no Arquivo Central da Universidade de
Campinas, os documentos do antigo arquivo pessoal de Sergio Buarque de Holanda. Parte
do material pesquisado com a ajuda dos prestativos e competentes funcionrios do arquivo
foi empregado na elaborao do captulo 4.
O curso da investigao me levou a estabelecer e/ou aprofundar relaes pessoais e
profissionais com professores e pesquisadores, que contriburam, cada um a seu modo,
para o desenvolvimento de minha reflexo pessoal. O professor Luiz Srgio Duarte da
Silva foi quem, em 1999, quando eu cursava a graduao em Histria em Goinia,
apresentou-me o pensamento de Jrn Rsen. De l para c temos nos mantido em
constante contato e ele tem persistido como um importante estimulador de minhas
tentativas de reflexo no campo da teoria da histria. Outro amigo que tem me encorajado
e auxiliado nesses propsitos o professor Carlos Oiti Berbert Jnior, com quem tambm
estudei na Universidade Federal de Gois. O dilogo freqente com ele em muito ajudou a
compreender os diferentes pontos de vista presentes no debate contemporneo sobre teoria
da histria e a precisar melhor minha prpria posio. Alm deles, gostaria de mencionar
tambm os nomes de Vanessa Brasil, Pedro Caldas, Astor Diehl, Nelson Gomes, Lus de
Gusmo, Jordino Marques, Marlon Salomon, No Freire Sandes e Robert Wegner. A todos
os aqui lembrados e aos outros, que, embora no mencionados, de alguma maneira,
ajudaram-me a desenvolver a investigao que culminou neste trabalho, gostaria de
manifestar minha gratido.
Tenho tambm uma enorme dvida de gratido para com meu orientador, o
professor Estevo de Rezende Martins. Ele tem sido h muito tempo no Brasil o mais
importante agente e divulgador da reflexo terica acerca da histria e a proximidade
acadmica e pessoal com ele me foi de suma importncia para o desenvolvimento do
trabalho. A ele agradeo no somente pela disposio em ajudar a encontrar caminhos para
a investigao e para a dissertao que a apresenta, mas tambm pelo empenho com que
muitas vezes liquidou questes burocrticas, que poderiam interferir negativamente no
andamento da pesquisa, e pelo auxlio nas decises quanto ao futuro de minha trajetria
profissional.
quase desnecessrio dizer que, se, eventualmente, a boa vontade das sugestes,
indicaes e conselhos desses colaboradores foi seguida de equvocos na construo de
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minha argumentao e na redao do texto, a responsabilidade por estes somente pode ser
atribuda a mim.
Por fim, gostaria de registrar alguns agradecimentos, de ordem mais pessoal, a Ary,
David, Gustavo, Eduardo, Frederico, Helena, Juca (in memoria), Liliana, Marly, Patrcia,
Rogrio e William.
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SUMRIO
Agradecimentos 3 Resumos 7 Introduo 10 Captulo 1: A problemtica da orientao na cincia da histria 21
1.1. Carncias de orientao 22 1.2. Funes orientativas 32
Captulo 2: A problemtica da validao na cincia da histria 39
2.1. Perspectivas orientadoras da experincia do passado 40 2.2. Mtodos de pesquisa emprica 50
Captulo 3: A problemtica da representao na cincia da histria 61
3.1. Formas de apresentao 62 Captulo 4: A teoria da histria de Jrn Rsen prova de
Do Imprio Repblica 78 4.1. Palavras iniciais 81 4.2. Arquitetura categorial 83 4.3. Modos tpicos da constituio histrica de sentido 93 4.4. Contexto de orientao 104
Consideraes finais: Razo e garantias de validade na cincia da histria 113 Bibliografia 123
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RESUMO
O que fazem os historiadores, quando fazem histria? A teoria da histria de Jrn Rsen e Do Imprio Repblica, de
Sergio Buarque de Holanda Este trabalho trata da concepo de cincia da histria de Jrn Rsen, tal como exposta na trilogia Fundamentos de uma Teoria da Histria. Primeiramente (caps. 1 a 3) so apresentados e discutidos os componentes da matriz disciplinar da cincia da histria, conceito com a ajuda do qual Rsen interpreta o conjunto dos fundamentos dessa prtica profissional. Em seguida (cap. 4), ilustra-se a validade de tais idias, mobilizando-as para a compreenso de um texto historiogrfico, Do Imprio Repblica, escrito pelo historiador brasileiro Sergio Buarque de Holanda. Com base na teoria da cincia da histria de Rsen e nesse exemplar das manifestaes empricas de que tal teoria visa a dar conta, pretende-se discutir a natureza, o significado e as funes da prtica profissional dos historiadores.
ABSTRACT
What do the historians do, when they do history? Jrn Rusens theory of historiography and From Empire to
Republic, of Sergio Buarque de Holanda
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This work concerns to Jrn Rsens conception of professional historiography, focused on his triology Fundamentals of a Theory of History. Firstly (chapters 1 to 3) it presents the components of the disciplinary matrix, the concept with witch Rsen interprets the professional historiographys set of fundamentals. In the sequence it illustrates the validity of Rsens ideas, by using them in the interpretation of a historiographical text, Do Imprio Repblica, written by the brazilian historian Sergio Buarque de Holanda. Basing on Rsens theory of historiography and on that examplary of this theorys essential object one intends to discuss the nature, the significance and the func tions of professional historians scientifical practice.
ABRI
Was machen die Historikern, wenn Geschichte machen?
Die Geschichtstheorie Jrn Rusens und Vom Kaiserreich zur Republik, von Sergio Buarque de Holanda
Diese Arbeit befsst sich mit der Konzeption von Geschichtswissenschaft Jrn Rsens, wie sie in seiner Trilogie Grudzge einer Historik festgelegt ist. Erstens (Kapiteln 1 bis 3) werden die Bestandteile der geschichtswissenschaftlichen disziplinren Matrix dargestellt und diskutiert. Die disziplinre Matrix ist jener Begriff, mit dem Rsen den Grundlagenzusammenhang der Geschichtswissenschaft interpretiert. Anschliessend (Kapitel 4) wird die Relevanz und Anwendbarkeit seiner Ideen dadurch ilustriert, da sie fr die Erklrung eines historiographichen Textes benutzt werden, nhmlich des Do Imprio Repblica vom brasilianischen Historiker Sergio Buarque de Holanda. Anhand der Geschichtstheorie Rsens und eines solchen Beispiels ihres mglichen Gegenstandes d. h. die wissenschaftliche Geschichtschreibung verfgt man ber eine angemessene Grundlage, um die Natur, die Bedeutung und die Funktionen der professionellen Praxis der Historiker kritisch darzulegen.
9
A teoria da histria relevante para o historiador, porque ela investiga os fundamentos e pressupostos de sua cincia. Habitante do templo da cincia, o historiador deve responder a expectativas por um saber seguro quanto s estruturas e fundamentos desse edifcio. Sem esse conhecimento, ele permanece um provinciano, apesar de sua experincia de viagem na dimenso do tempo, porque no est em condies de, nesse edifcio, precisar o seu lugar.
Chris Lorenz1 Quando leio um autor, creio nele, perteno inteiramente a ele. Torno-me Espinosa quando leio Espinosa. Esse hbito vem de muito longe. Quando eu era um jovem professor em Estrasburgo, em 1948, decidi ler um autor de cabo a rabo durante o ano, portanto viver num autor. Para ensinar bem um autor preciso habit-lo.
Paul Ricoeur 2 O projeto terico de Jrn Rsen melhor concebvel no como uma tentativa de oferecer uma viso definitiva sobre a histria, mas como uma caixa de ferramentas, constituda de questes que podem ser respondidas para gerar efeito iluminador sobre o imenso e variado corpo da historiografia, com o qual nos confrontamos aps um sculo e trs quartos de produo histrica profissional.
Allan Megill3
1 (...) ist die Geschichtstheorie fr den Historiker relevant, da sie die Grundlagen und Voraussetzungen seiner Wissenschaft untersucht. Als Bewohner des Tempels der Wissenschaft darf man von ihm auch ein gewisses Wissen von der Struktur und den Fundamenten dieses Gebudes erwarten. Ohne diese Kenntnisse bleibt er trotz seiner Reiseerfahrung in der Dimension der Zeit ein Provinzler, da er nicht in der Lage ist, seinen eigenen Platz in diesem Gebude zu bestimmen. (Theorie der Geschichte was ist das?, p. 12). 2 Entrevista ao Le Monde, republicada na Folha de So Paulo, 29 de fevereiro de 2004. 3 His [Rsens] theoretical project is best approached not as an attempt to offer a definitive view of historiography but rather as a tool-box, containing questions that can be asked with illuminating effect of the immense and varied body of historiography that, after a century and three-quarters of professional historical produtions, now confront us. (Jrn Rsens theory of historiography between modernism and rhetoric of inquiry, p. 60).
INTRODUO
O tema desta dissertao a cincia da histria. A cincia da histria a tradio
intelectual que congrega a acumulao das convenes metdicas (exemplares e regras de
pesquisa, padres de formao de conceitos, modelos de argumentao, cnones
narrativos) relacionadas prtica dos historiadores profissionais. Quando conformes aos
requisitos estipulados por essas convenes, produtos historiogrficos podem ser
considerados expresso da mais complexa modalidade de interpretao histrica do
passado. Ela se estabeleceu originalmente no espao cultural alemo entre o final do sculo
XVIII e o incio do XIX, com a afirmao do chamado historicismo, e, depois disso,
difundiu-se, com intensidade varivel, por outras culturas histricas, sobretudo as de matriz
ocidental. Uma determinada concepo do significado e dos fundamentos dessa forma de
interpretar historicamente o passado o que estar aqui em foco: a que foi elaborada e vem
sendo desenvolvida pelo historiador alemo Jrn Rsen.
Em geral, anlises do conhecimento histrico cientfico tais como a de Rsen,
podem ser convenientemente chamadas de teorias da histria. A teoria da histria um
campo de reflexo que procura problematizar as condies em meio s quais se pratica a
cincia da histria. Ela se diferencia da histria propriamente dita, porque esta, de sua
parte, concentra-se na investigao e na apresentao da experincia do passado. teoria
da histria importa estimular uma reflexo bastante diversa, cujo propsito a
11
compreenso do que est em jogo nessa investigao e apresentao historicamente
realizadas. O conjunto fundamental das peas desse jogo se forma dos condicionantes que
tornam as histrias possveis. A teoria da histria o estudo de tais condies de
possibilidade.1 O objeto da histria, o passado humano, portanto, no o mesmo do da
teoria da histria e se a pergunta por o que foi o caso no passado serve para precisar o
significado elementar do que faz o historiador com seu trabalho intelectual, o objeto da
teoria da histria, por sua vez, poderia ser definido como aquele que interpelado pela
pergunta quanto ao que fazem os historiadores, quando fazem histria.2
Jrn Rsen, o autor por cuja teoria da histria se interessa o presente trabalho,
nasceu em 1938 em Duisburg, no atual Estado da Rennia do Norte/Westflia. Estudou
histria, filosofia, germanstica e pedagogia na Universidade de Colnia. Lecionou nas
universidades de Braunschweig, Berlim, Bochum, Bielefeld e Witten-Herdecke e tem,
desde meados dos anos 1960, dedicado suas atenes intelectuais a temas relacionados
histria, a suas condies de produo e sua repercusso no panorama geral da cultura.
possvel identificar em sua reflexo acerca da histria trs linhas gerais interconectadas: a
primeira conduz as investigaes acerca da cincia da histria e de seus fundamentos na
direo de uma teoria sistemtica da histria; a segunda se concentra nos processos
histricos de formao da moderna cincia da histria e, portanto, diz respeito histria da
historiografia; e a terceira concerne assimilao e apropriao do conhecimento histrico
no contexto da vida social e contribui para fomentar e enriquecer uma didtica da histria.
Toda essa reflexo foi desenvolvida no contexto da primeira grande ruptura
experimentada pela tradio historiogrfico-cientfica alem com relao aos modelos a ela
legados pelo historicismo do sculo XIX. Da metade do sculo XX em diante, um forte
movimento intelectual concorreu para uma reviso da tradio historicista de pensamento
histrico, ampliando ou redirecionando o foco das atenes na cultura historiogrfica
alem. Os autores que o impulsionaram estavam introduzindo em seus trabalhos
historiogrficos o emprego explcito e consciente de teorias tomadas emprestadas s
cincias sociais (contrapondo-se, assim, ao uso inconsciente de teorias ou idias pela
tradio historicista), tinham por objeto de estudo preferencial fenmenos ou estruturas
sociais (ao invs de eventos polticos e diplomticos) e propunham um acerto de contas
1 Reinhart Koselleck. Historik und Hermeneutik. 2 A lngua portuguesa reserva tambm um outro significado para a palavra histria. Ela pode ser usada para qualificar as prprias ocorrncias, de que se ocupa a histria como investigao e interpretao do passado.
12
com o passado alemo, sobretudo com o do perodo nacional-socialista, que auxiliasse na
consolidao de uma identidade nacional capaz de incorporar os traumas que dele eram e
so parte (e que a tradio historicista ainda hegemnica no imediato ps-guerra tinha
optado por tentar esquecer). Um dos grupos intelectuais que mais fortemente concorreu
para impulsionar o desenvolvimento dessa relativa mudana de paradigma no cenrio
historiogrfico alemo foi o encabeado pelos historiadores Hans-Ulrich Wehler e Jrgen
Kocka, freqentemente designado pela expresso Escola de Bielefeld. Entre finais dos
anos 1960 e incio dos 70, uma reforma e ampliao do sistema universitrio na Alemanha
permitiu que historiadores vinculados a esse grupo, alm de outros, que, embora dele no
fizessem parte, tambm pugnavam por uma guinada historiogrfica, conseguissem se
estabelecer em postos acadmicos estveis. O impulso renovador e sua institucionalizao
no ambiente acadmico deram ocasio a que fossem empreendidos esforos paralelos de
reflexo terica sobre o conhecimento histrico, como os de que so exemplos no s as
obras de Rsen, mas tambm as de outros importantes autores como, entre outros, Reinhart
Koselleck, Hermann Lbbe e Thomas Nipperdey.3
O argumento que os captulos a seguir pretendem sustentar o de que a teoria da
histria de Jrn Rsen uma excelente referncia para a compreenso da natureza, do
significado e das funes da cincia da histria. Em sua preparao optou-se por recortar,
no conjunto das obras de Rsen, a parte mais direta e sistematicamente relacionada
problemtica da cincia da histria, isto , a que formada pelos textos constitutivos da
trilogia Grundzge einer Historik (Fundamentos de uma teoria da histria), publicada ao
longo dos anos 1980.4
, portanto, esse o conjunto de textos do autor em torno do qual se concentra aqui a
maior parte da reflexo.5 Com seus Fundamentos de uma Teoria da Histria, Rsen
concretiza um propsito de renovao da Historik, a matriz de reflexo sobre o pensamento
3 Allan Megill. Jrn Rsen`s theory of historiography between modernism and rhetoric of inquiry; Estevo de Rezende Martis. Historiografia alem do sculo 20: encontros e desencontros; Frank Ankersmit. Review of Jrn Rsens Rekonstruktion der Vergangenheit: Grundzge einer Historik II. 4 Grundzge einer Historik um trabalho formado por Historische Vernunft : Die Grundlagen der Geschichtswissenschaft , 1983 (Razo Histrica: os fundamentos da cincia da histria), Rekonstruktion der Vergangenheit: Die Prinzipien der historischen Forschung, 1986 (Reconstruo do Passado: os princpios da pesquisa histrica) e Lebendige Geschichte: Formen und Funktionen des historischen Wissens, 1989 (Histria Viva: formas e funes do conhecimento histrico). Razo Histrica o nico dos volumes de que j se dispe de edio brasileira e foi ela a empregada neste trabalho. No caso dos dois outros, foram consultadas as vers es originais. 5 No obstante isso, foram tambm consultados e estudados outros textos de Rsen, dos quais, vez por outra, mobilizam-se idias, quando julgadas teis ao esclarecimento ou desenvolvimento da argumentao.
13
histrico que, acompanhando e estimulando a constituio da cincia da histria, foi
sistematizada na segunda metade do sculo XIX pelo historiador Johann Gustav Droysen.6
A Historik uma reunio dos componentes reflexivos que atuaram e atuam em todas as
formas complexas do pensamento histrico.7 Em sua sistematizao por Droysen ela
ganhou o sentido de uma teoria da cincia da histria, cujo objetivo era o de investigar os
fundamentos, as implicaes e o significado do trabalho intelectual dos historiadores.8
Tratava-se, portanto, de uma reflexo meta-histrica, concebida e realizada de dentro do
prprio ambiente intelectual de que as histrias se originam. Por isso ela podia e pode ser
considerada como a instncia da auto-reflexo da cincia da histria. Em sua trilogia,
Rsen aborda os fundamentos da cincia da histria desde a perspectiva geral construda
pela tradio da Historik. O prprio ttulo da coleo j explicita o carter essencial dessa
vinculao intelectual. Isso, no entanto, no expresso de uma adeso Historik que
desconsidera ou mascara suas insuficincias e inadequaes para a abordagem de culturas
historiogrficas que muito mudaram desde os tempos de Droysen. Na verdade, o projeto
concretizado por Rsen nos Grundzge pode ser entendido como uma atualizao dessa
tradio intelectual s circunstncias empricas do fazer historiogrfico contemporneo.
Tal atualizao responde a pelo menos duas novidades do cenrio historiogrfico atual,
uma de natureza metodolgica, a outra de carter terico.
A primeira delas se relaciona ampliao dos objetos do conhecimento histrico
cientfico e conseqente multiplicao das estratgias metdicas, que resultaram ambas
em uma significativa complexificao da problemtica da cincia da histria. No h
dvida de que, nos dias de hoje, em muito se ampliaram a dimenso e a variedade dos
campos de objetos abordveis pelos historiadores profissionais e dos mtodos empregveis
nessa abordagem. Essa circunstncia torna insuficiente qualquer concepo de
historiografia que se alicerce ou sobre a pressuposio de uma unidade substantiva dos
contedos estudados pela cincia da histria e dos seus mtodos de pesquisa,9 ou sobre o
6 interessante destacar que a tese de doutoramento apresentada por Rsen em 1966 tinha por tema a gnese e a fundamentao da teoria da histria de Johann Gustav Droysen e que a forte influncia deste sobre seu pensamento est longe de ser negada. Ver, quanto a isso, p. e., a entrevista de Rsen Ewa Domanska, p. 141. 7 Jrn Rsen. Historik: berlegungen zur metatheoritischen Selbstauslegung und Interpretation des historischen Denkens im Historismus (und auerhalb), p. 80-84. 8 Quanto Historik de Droysen, ver Luiz Srgio Duarte da Silva. Droysen: a fundamentao da cincia da histria pela via da produo de uma antropologia histrica. 9 Allan Megill. Jrn Rsen`s theory of historiography between modernism and rhetoric of inquiry, p. 57.
14
propsito enciclopdico de listar a totalidade desses contedos e mtodos.10 Com sua teoria
da histria, Rsen consegue contornar essas dificuldades na elaborao de imagens
panormicas da historiografia atual. Ele considera a teoria da histria, enquanto anlise dos
fundamentos da cincia da histria, um recurso que oferece aos historiadores a
oportunidade de somar viso das rvores, de que se ocupam por fora dos imperativos
metdicos da especializao, uma viso geral da imensa floresta em que se constituiu a
disciplina histrica.11 Sua prpria teoria da histria compe-se de um conjunto de lentes
conceituais atravs das quais se pode mirar essa floresta. Uma viso de conjunto assim
articulada vivel e plausvel, porque se assenta sobre a definio de princpios gerais que
atuam na constituio de todo e qualquer conhecimento histrico cientfico. A teoria da
histria de Rsen se apresenta como resultado de um procedimento decantatrio, com o
que da multiplicidade das prticas historiogrficas se buscaram extrair princpios
subjacentes a todas elas. Dessa forma, ela se qualifica para servir interpretao de
diferentes correntes historiogrficas, podendo ser usada como referncia meta-terica de
orientao em meio ao contexto da multiplicao dos mtodos e tcnicas de pesquisa e da
dissoluo e fragmentao da identidade disciplinar da cincia da histria. 12
Em segundo lugar, a atualizao da tradio da Historik, realizada por Jrn Rsen
responde a um desafio terico-epistemolgico, que se lanou cincia da histria depois
da chamada guinada lingstica. As inovaes metodolgicas no panorama historiogrfico
atual correspondem a modificaes internas no objeto da teoria da histria. A nfase do
debate meta-terico contemporneo nos aspectos lingsticos envolvidos na historiografia
est relacionada, por outro lado, a uma reflexo externa ao ambiente da cincia da histria,
realizada, a princpio, por autores filiados tradio da filosofia analtica, como Carl
Hempel e Arthur Danto e, depois, por autores que, como o caso de Hayden White,
fundamentam sua abordagem do conhecimento histrico em conceitos derivados da teoria 10 Razo Histrica, p. 28. 11 Ibid., p. 27. 12 importante ter presente que essa abertura e adequao a diferentes tradies metodolgicas da cincia da histria tem, no contexto especfico da historiografia alem, tambm o significado de uma legitimao do modelo de histria social, nele emergente na segunda metade do sculo XX. Basta consultar a Metdica, apresentada em Reconstruo do Passado, para perceber que, embora a concepo de pesquisa histrica de Rsen seja essencialmente hermenutica, ou seja, ligada ao pressuposto de que cabe aos historiadores a tarefa de compreender o significado do agir humano do passado e de apresent-lo como experincia significativa para o presente, est ela suficientemente aberta para considerar a importncia que para tal tarefa pode ter a reconstruo analtica das condies e circunstncias que delimitaram as possibilidades de ao, estratgia tipicamente empregada no campo histria social (Rekonstruktion der Vergangenheit , p. 127-135). Isso, no entanto, no implica que a validade das consideraes tericas de Rsen seja restrita ao espao historiogrfico alemo mesmo que surjam de questes e desafios concretos a ele ligados.
15
da literatura. O desdobramento dessas reflexes, originadas fora do espao intelectual da
cincia da histria, o ponto de vista segundo o qual h, na organizao, articulao e
apresentao de uma explicao do passado pelas histrias, um carter construtivo, que, ao
sabor das inclinaes de cada autor, ora mais ora menos acentuado.
Contemporaneamente, esse carter construtivo interpretado como resultado de uma
mediao indispensvel para o conhecimento histrico, a que efetuada pelas estruturas
formais narrativas. Rsen acolhe esse ponto de vista, assimilando-o perspectiva da
Historik e reservando a ele um espao privilegiado na montagem do conjunto dos
princpios do conhecimento histrico cientfico.13 Sua teoria da histria pode ser chamada
de narrativista, uma vez que ela reconhece na idia de narrativa o fundamento mais
elementar da atividade dos historiadores. Tal reconhecimento, no entanto, ao contrrio do
que usual entre as variantes ps-modernas do narrativismo, acompanhado da
constatao de que as narrativas histricas estabelecem com a realidade uma relao de
referncia diversa da que comum em outras formas de narrativa, porque pretendem dar
conta do que efetivamente se passou. Isso conduz as consideraes de Rsen acerca da
natureza da historiografia a formarem algo diverso de e mais elementar que uma tipologia
formal de gneros narrativos. Para Rsen, a evocao da lembrana por meio de uma
representao do passar do tempo formadora de identidade confere narrativa histrica
uma marca distintiva importante e, por isso, toda a problemtica da historiografia deve ser
perseguida a partir dessa distino e no com base em um conceito geral de narrativa.
por isso que a tipologia da narrativa histrica que ele adiciona sua Historik consiste em
uma espcie de gramtica das funes da historiografia e se estrutura em torno do
pressuposto de que a histria est ligada essencialmente tarefa da orientao cultural da
vida humana atravs da constituio de sentido (Sinnbildung).14
Ao formular sua resposta a esse segundo desafio, Rsen refunda as bases da
Historik, articulando a teoria da cincia da histria a uma teoria geral da constituio
cultural de sentido. A imagem da cincia da histria por ele apresentada faz ver as razes
dessa prtica profissional na experincia cotidiana do viver no tempo. O conceito que
realiza a conexo terica entre a cincia da histria e os processos de constituio de
sentido, inerentes experincia temporal, o de pensamento histrico. Para Rsen, pensar
historicamente, percorrer o processo intelectual que conduz a um resultado lingstico 13 Henk De Jong. Historical orientation: Jrn Rsens answer to Nietzsche and his followers, p. 281. 14 Jrn Rsen. Lebendige Geschichte, p. 39; Die vier Typen des historischen Erzhlens, p. 517-518.
16
designvel como histria, realizar de uma maneira particular uma tarefa sobre a qual se
assenta a possibilidade de conceber um mundo (cultural) humano como uma espcie de
outra dimenso do mundo natural. O procedimento com que se edifica, mantm e afirma
esse outro mundo precisamente o da constituio de sentido sobre a experincia do
tempo. O chamado pensamento histrico uma forma especial de realiz- lo. Com o
pensamento histrico, a temporalidade inerente aos processos cotidianos de atribuio
subjetiva de sentido e cultura, como ambiente geral do agir e sofrer humanos, trazida
conscincia e elaborada cognitivamente, permitindo que seja ganha uma nova dimenso de
orientao a esse agir e sofrer. A cincia da histria , em seu significado mais profundo e
elementar, uma modalidade do pensamento histrico e isso implica, que ela seja tambm
uma forma cultural de constituio de sentido.
A mais significativa contribuio da teoria da histria de Rsen, tal como exposta
nos Grundzge, consiste em um esquema conceitual que descreve e explica abstratamente
o modo especfico da constituio de sentido pelo pensamento histrico, quando realizado
nos moldes metdicos da cincia. Com ela, Rsen pretende esclarecer o que significa o
ganho racional a que est sujeito o pensamento histrico em sua verso cientfica. Trata-se
da matriz disciplinar da cincia da histria, apresentada em Razo Histrica e desdobrada
em seus elementos fundamentais ao longo da trilogia.15 A matriz disciplinar pretende
abranger todos os elementos essenciais em jogo na produo de histrias pelos
historiadores profissionais e representa uma soluo conciliatria para os impasses a que
chegou o debate contemporneo sobre o conhecimento histrico. Ao optar por esse
caminho, Rsen tenta integrar sinteticamente pontos de vista discordantes, de maneira a
contornar os problemas de um objetivismo estreito, desinteressado no tema da
representao histrica e confiante nos mtodos de pesquisa enquanto meios infalveis para
15 O conceito de matriz disciplinar foi empregado por Thomas Kuhn no posfcio escrito em 1969 para a edio japonesa de A Estrutura das Revolues Cientficas. Nesse texto so avaliadas e respondidas crticas s teses de Kuhn acerca da estrutura de funcionamento da cincia e dos seus padres de desenvolvimento. Matriz disciplinar empregada para tornar mais claro o conceito de paradigma, apresentado na obra original. Ela congrega o conjunto dos elementos determinantes da filiao de um cientista a uma tradio cientfica e a uma comunidade acadmica. Kuhn afirma que tais elementos consistem em generalizaes simblicas, crenas em modelos, valores e exemplares de pesquisa (p. 226-232). O conceito de paradigma passa, ento, a ser aplicado a esse ltimo elemento, os exemplares de pesquisa, abrangendo a experincia da resoluo de problemas cientficos, determinada pela formao intelectual do cientista nos quadros de uma tradio de pesquisa e suscetvel de ser mobilizada no confronto com novos problemas. O emprego do conceito de matriz disciplinar na teoria da histria de Jrn Rsen preserva o propsito de especificar o conjunto dos elementos determinantes para um setor do conhecimento humano, mas a adapta a caractersticas que a cincia da histria no compartilha com as cincias de que tratou mais diretamente Thomas Kuhn, bem como herana reflexiva e vocabular de outras tradies de pensamento meta-terico, diversas da filosofia da cincia.
17
a perseguio das verdades escondidas nas fontes, e os de um construtivismo radical, que
ao se fiar na idia de narrativa como construo autnoma em relao s fontes, no
apresenta um esclarecimento satisfatrio da problemtica envolvida na relao entre
historiografia e pesquisa. Tal propsito levado a se concretizar na especificao dos cinco
princpios fundamentais, cuja interao sustenta a tradio da cincia da his tria: carncias
de orientao, perspectivas orientadoras da experincia do passado (idias), mtodos de
pesquisa emprica, formas de apresentao e funes de orientao. Conforme o que j se
indicou, tais princpios so extrados por Rsen a partir de uma operao que busca isolar
do complexo conjunto das prticas historiogrficas os elementos gerais que fornecem
fundamento a todas elas. Ao espao de tenso entre eles corresponde o conceito de matriz
disciplinar da cincia histrica, fio-condutor da reflexo sobre a cincia da histria nos
Fundamentos de uma teoria da histria.
Os cinco fatores da matriz disciplinar da cincia da histria, embora
simultaneamente presentes nas manifestaes concretas da historiografia cientfica, podem
ser artificialmente isolados. til descrev- los como uma cadeia interdependente de
elementos, que emergem do fato de que a vida humana se realiza no horizonte do tempo.
Porque a experincia do tempo comporta acontecimentos ou conjuntos de acontecimentos
como ascenso e queda, nascimento e morte, juventude e velhice, pode-se dizer que ela se
d contingentemente, isto , de um modo cujo controle tende a escapar s mos e mentes
humanas. Isso torna necessrio, ao desempenho do agir e do sofrer, a elaborao cognitiva
de tais experincias.16 Para viver, os homens tm de agir e requisito da ao que nela
estejam presentes intenes, que devem ser orientadas, para que o agir se conduza
racionalmente. Tal circunstncia expresso de que a vida humana se processa sempre em
meio a carncias de orientao. O pensamento histrico surge em resposta a essas
carncias. Seu propsito fundamental disponibilizar orientaes com as quais intenes
de agir possam ser depuradas no filtro fornecido pela interpretao histrica da
experincia do passado. Nem todas as carncias de orientao, todavia, so contempladas
com constituies de sentido e nem todos esses processos se do no mbito especfico da
conscincia histrica. Para que a conscincia histrica entre em ao preciso que essas
carncias sejam articuladas a perspectivas orientadoras da experincia do passado ou
idias, pontos de vista supra-ordenados acerca do passado, no mbito dos quais ele se 16 Jrn Rsen. Making sense of time : towards a universal typology of conceptual foundations of historical consciousness, p. 194.
18
constitui e reconhecido como histria.17 As idias transformam as carncias de
orientao em interesses no conhecimento histrico. Elas se apresentam como critrios de
coordenao da interpretao do passado, determinando seu direcionamento concreto. Para
que seja produzido conhecimento histrico cientfico, preciso, contudo, que essas
perspectivas articuladas a interesses prticos emergentes da vida atual sejam postas em
relao com os registros que do testemunho da facticidade do passado. Quanto a isso,
exercem papel fundamental os mtodos de pesquisa emprica, conjunto de exemplares e
regras acumuladas ao longo da histria disciplinar, definidor dos procedimentos, que, na
heurstica, crtica e interpretao das fontes, asseguram o padro de qualidade das
realizaes da cincia da histria. Se a historiografia cientfica pretende-se um discurso
acerca do que foi o caso no passado, ela no pode extrapolar os limites da experincia.18
Tais limites so estabelecidos para os historiadores na etapa da pesquisa, quando se extrai
dos vestgios do passado contedos empricos intersubjetivamente vlidos. A comunicao
da experincia pesquisada faz-se, por sua vez, pelas formas de apresentao. somente
atravs delas que os contedos empricos obtidos mediante pesquisa so fundidos para
formar uma representao narrativa da continuidade temporal de passado, presente e futuro
reconhecvel como histrica. Atravs de sua elaborao em totalidade narrativa, a
experincia do passado se converte em sentido para o presente, exercendo, assim, funes
orientativas, com as quais se responde s carncias em relao a que o pensamento
histrico chamado tona.
No que se segue, busca-se considerar a estrutura e o significado da cincia da
histria a partir desses cinco princpios. Em sua interao sistem tica, geradora da matriz
disciplinar, eles consistem na sntese da resposta de Rsen questo pelo que fazem os
historiadores, quando fazem histria. Essa nunca uma questo to simples como sua
enunciao pode fazer parecer. Formul- la implica dirigir o olhar para uma infinidade de
prticas intelectuais muito diferentes entre si, cuja identidade, muitas vezes, parece derivar
somente da circunstncia de serem realizadas por pessoas que se apresentam como
membros de uma mesma comunidade acadmica, a dos historiadores profissionais, sem
que se deixe claro qual o significado dessa identificao. Responder a ela ordenar a
percepo dos objetos que interpela, de maneira que possam ser revelados os fundamentos
que os tornam identificveis. Uma ordenao como essa resultar sempre de escolhas 17 Razo Histrica, p. 31-32. 18 Jrn Rsen. Narratividade e objetividade nas cincias histricas, p. 94.
19
tericas, influenciveis por fatores os mais diversos e, muitas vezes, at mesmo, subjetivos
e arbitrrios. , alis, por isso que a teoria da cincia da histria de Rsen se apresenta
como uma teoria da histria. Ela no a nica resposta possvel e plausvel referida
questo e em sua elaborao se manteve conscincia desse fato. Mas , sem dvida, uma
boa resposta e ao longo deste trabalho, medida que ela for sendo apresentada, espera-se
poder reforar suficientemente as bases que justificam essa afirmao.
A dissertao est dividida em quatro captulos. Os trs primeiros consistem em um
comentrio s idias expostas por Rsen nos Grundzge. Eles as seguem bem de perto com
o fito de compreend- las e, em alguns poucos momentos, elabor-las. No primeiro, trata-se
das carncias de orientao e das funes orientativas na cincia da histria, componentes
com os quais Rsen abre a problemtica da orientao histrica. Nele se aborda o
desempenho orientativo da cincia da histria como o resultado de uma dupla
racionalizao das formas culturais de interpretao do passado, avaliam-se os limites de
do potencial de orientao implicado nessa racionalizao e discute-se o processo de
formao histrica como resultado possvel da identificao subjetiva orientada pela
cincia da histria. No segundo, so consideradas as perspectivas orientadoras da
experincia do passado e os mtodos de pesquisa, conformadores do campo em que se
afirma a problemtica da validao na cincia da histria. Perspectivas e mtodos so os
fatores diretamente atuantes na etapa da pesquisa e, por isso, relacionam-se
fundamentao do conhecimento histrico, quilo em razo do que ele pode se apresentar
enquanto um saber vlido acerca da experincia do passado. Nesse captulo se apresentam
as perspectivas como elementos determinadores do carter histrico da cognio do
passado cientificamente realizada e as estratgias metdicas comumente empregadas na
efetivao do contato cognitivo entre o historiador e a experincia do passado. O terceiro
captulo, por sua vez, tematiza a problemtica da representao na cincia da histria,
enfocando as formas de apresentao. Ele discute o problema das relaes entre pesquisa e
historiografia e apresenta a tipologia da narrativa histrica, composta por Rsen para
esclarecer a natureza da construtividade envolvida na elaborao do discurso histrico.
O subttulo da dissertao anuncia, porm, que o recurso teoria da histria de
Rsen para uma resposta questo geral quanto natureza da cincia da histria (colocada
no ttulo) d-se em paralelo ao destaque e exame de um exemplo da prtica historiogrfico-
cientfica. Esse exame tem lugar no captulo 4, em que se aplica uma parte das idias de
20
Rsen, apresentadas nos trs primeiros captulos, a uma tentativa de compreenso de Do
Imprio Repblica, texto escrito pelo historiador brasileiro Sergio Buarque de Holanda.
Com essa aplicao da teoria da histria de Rsen se pretende tanto demonstrar mais
concretamente a sua pertinncia geral, quanto ilustrar a viabilidade de sua utilizao no
estudo da historiografia cientfica. Feito isso, o trabalho se encerra com uma breve reflexo
acerca de um tema recorrente na parte da obra de Rsen de que se trata aqui, o das
garantias de validade na cincia da histria. A abordagem desse tema deixa entrever a
concepo de razo pressuposta pela teoria da histria de Rsen, reforando e ampliando a
compreenso de suas formulaes acerca do que fazem os historiadores em sua prtica
profissional.
21
CAPTULO 1
A problemtica da orientao na cincia da histria
A especificidade do agir e do sofrer humanos repousa no imperativo de que aes e
paixes tenham ou faam sentido. Aes que possuem ou fazem sentido so aes que se
executam de forma orientada. Elaborao e assimilao de orientaes, portanto, fazem
parte dos desempenhos de conscincia que se situam na base de tudo aquilo que os seres
humanos fazem ou sofrem em meio ao substrato cultural que constitui a face mais
importante de seu mundo vital. Uma das vertentes diferenciveis desse trabalho de auto-
orientao da subjetividade humana est relacionada construo e recepo de
representaes narrativas da continuidade entre a facticidade do passado, a atualidade do
presente e a esperabilidade do futuro. Ela designada por Rsen de orientao histrica. O
carter e o significado da orientao histrica disponibilizada pelo modo cientfico de
pensamento histrico constituem o tema deste captulo.
No esquema da matriz disciplinar da cincia da histria, a orientao histrica
apresentada como realizao relacionada tanto incio, quanto ao fim de um pensamento
histrico. Ela se d, ao mesmo tempo, antes e depois das operaes da pesquisa e da
historiografia.1 Rsen diferencia a orientao cultural da cincia da histria tomando por
1 Razo Histrica, p. 35.
22
base exatamente essa duplicidade que marca sua execuo. Ele apresenta dois nveis
distintos e interconectados de orientao. O primeiro deles est vinculado ao fato de que o
pensamento histrico incorpora, nas diretrizes que regem sua abordagem do passado,
carncias de orientao no tempo, provenientes de contextos atuais da vida. O outro
aparece como uma espcie de conseqncia do primeiro: que as carncias incorporadas
ao trabalho de reconstruo histrica do passado tornam os resultados narrativos do
pensamento histrico vivos para aqueles aos quais eles se destinam, ou seja, atuam
abrindo possibilidades para que o agir e o sofrer sejam orientados por tais resultados.
Nesses desdobramentos narrativos do modo histrico de lidar com o passado se entrev o
exerccio de funes orientativas. Essa diferenciao entre carncias de orientao e
funes orientativas no trabalho da orientao histrica, fundamental na teoria da histria
de Jrn Rsen, tomada como ponto de apoio pela argumentao que se segue. Porque a
incorporao de carncias de orientao e o exerccio de funes orientativas so
caractersticas comuns a todas as formas de pensamento histrico, a abordagem da
problemtica da orientao na cincia da histria recorre, em alguns pontos, a um exame
da orientao histrica em geral. Tal recurso parece necessrio para que se compreenda
que e como o desempenho orientativo da cincia da histria tem suas razes estabelecidas
na vida prtica cotidiana.
1.1. Carncias de orientao
Para Rsen, a participao de carncias de orientao temporal na tbua dos
elementos constitutivos de todo pensamento histrico o evento determinador da
atualidade das histrias. Essa atualidade diz respeito ao fato de que o pensamento histrico
sempre se refere ao horizonte de presente do qual se conduz sua execuo. No deve
causar nenhum espanto essa afirmao de que histrias no se relacionam exclusivamente
com a dimenso temporal do passado. Elas, em verdade, falam do passado, mas falam dele,
para que esse falar tenha sentido para o presente e libere, ao mesmo tempo, possibilidades
de futuro. Histrias somente tm sentido, quando implcita ou explicitamente tematizam,
em um presente, os nexos que vinculam o passado ao futuro em uma representao da
continuidade do fluxo temporal, que rememora o passado, constituindo e consolidando
23
identidades.2 nessa constituio e consolidao que se realiza efetivamente a orientao
histrica.
Para tal efetivao, no entanto, necessrio que o trabalho da representao e todas
as operaes que a ele antecedem e para ele preparam fundamentos sejam postos em
movimento por diretrizes de pensamento ligadas ao contexto das demandas por sentido
emanadas da vida atual. Sentido relaciona-se circunstncia de que o agir racional humano
se realiza amparado no contedo de representaes do mundo capazes de dotar de
orientao os sujeitos que nele vivem. Provm de Max Weber a maneira de conceber a
ao humana subjacente problemtica da orientao histrica, tal como desenvolvida por
Rsen. Sntese dessa concepo a passagem da introduo tica econmica das
religies mundiais, em que o agir apresentado como fruto da conduo de interesses, os
quais se configuram em relao com idias ou representaes do mundo.3 Max Weber
ilustrou a fertilidade da aplicao dessa viso do agir racional em suas anlises das
interaes entre os impulsos prticos para a ao provenientes de matrizes religiosas
especificamente aqueles provindos das chamadas religies mundiais (Weltreligionen)4
e a conformao de ticas econmicas correspondentes a esses impulsos. Sua tese
fundamental a de que a determinao da direo do agir humano, que busca a salvao
nos quadros simblicos tpicos dessas religies, varia em funo das diferentes idias de
salvao presentes em cada concepo religiosa de mundo.5
2 Ibid., p. 62-66. 3 No as idias, mas os interesses materiais e ideais, governam diretamente a conduta do homem. Todavia, muito freqentemente, as imagens do mundo criadas pelas idias determinaram, qual manobreiros, os trilhos pelos quais a ao foi levada pela dinmica dos interesses. Max Weber. A psicologia social das religies mundiais, p. 323 (traduo ligeiramente modificada pelo autor); interessante notar que essa passagem indcio da influncia do pensamento de Karl Marx sobre Max Weber. Uma boa discusso em torno das relaes intelectuais entre os dois autores consta em Anthony Giddens. Marx, Weber e o desenvolvimento do capitalismo. (In: Poltica, Sociologia e Teoria Social : encontros com o pensamento social clssico e contemporneo). Anthony Giddens localiza essa influncia na manuteno dos interesses enquanto elemento de importncia para o processamento do agir. Giddens tambm aponta que essa considerao dos interesses por Weber no se d na forma da inverso do argumento de Karl Marx, pois no seria encontrvel na obra marxiana a formulao abstrata e geral de que idias e valores so meramente reflexos das realidades do mundo material, ao contrrio do que se pode inferir de certos textos de Friedrich Engels e de outros autores que se situaram intelectualmente na tradio do marxismo. 4 Por religies mundiais, Weber entendia as cinco religies ou sistemas, determinados religiosamente, de regulamentao da vida que conseguiram reunir sua volta multides de crentes, a saber, o confucionismo, o budismo, o hindusmo, o cristianismo e o islamismo. A psicologia social das religies mundiais, p. 309. 5 Assim se pode compreender, por exemplo, a famosa tese weberiana acerca da influncia da tica religiosa protestante sobre a formao do quadro de valores do moderno capitalismo ocidental. Trata-se de uma demonstrao dos resultados da atuao de idias religiosas acerca de modalidades de salvao individual sobre o modo tpico com que seres humanos desempenharam as aes mediante as quais revestiram de sentido suas existncias. Ver: A tica Protestante e o Esprito do Capitalismo .
24
No pensamento histrico, assim como nas religies e em qualquer outra esfera da
cultura, trata-se em ltima instncia, da elaborao e manuteno de representaes do
mundo em que atribudo sentido vida. O mundo, como dimenso mediadora do
encontro entre a subjetividade humana e os entes que no a constituem, sempre o
horizonte imediato da interpretao orientadora do agir.6 Ele no se constri com a mera
soma de todos os dados espaciais exteriores subjetividade, mas ao inverso, j est sempre
estabelecido em meio ao cotidiano da vida na forma de sentidos que os sujeitos humanos
instituem, constituem, percebem, experimentam, atualizam, traduzem. Para Rsen, o
pensamento histrico est forte e essencialmente conectado problemtica do sentido no
mundo humano. A operao pela qual se realiza essa conexo a da constituio histrica
de sentido. Que essa operao seja concebida como constituio e no como instituio de
sentido uma importante conseqncia do papel desempenhado pela lembrana no
pensamento histrico.7 Na verdade, sentido histrico, enquanto gnero de pontos de vista
aptos orientao da existncia humana no tempo no encontra condies de formao a
no ser que se recorra para tanto rememorao do passado, ou seja, lembrana da
experincia associada ao agir e sofrer dos homens do passado.
A lembrana do passado, de acordo com Rsen, elaborada pelo pensamento
histrico na forma de uma histria para o presente.8 O significado dessa frmula para a
cena geral da orientao cultural da vida humana est relacionado ao que se poderia
caracterizar como uma certa forma de despresentificao do passado. Na histria, o
passado despresentificado, no sentido em que nela ele apresentado como sendo
propriamente passado. Na verdade, o passado tematizado nas histrias habitualmente
aquele que portador de significado e sua significabilidade concerne, por sua vez,
medida de sua presena na vida atual, sob a forma de valores, instituies, modelos de
comportamento, costumes, em suma, sob a forma de tradio. Rsen, aproveitando-se de
uma interessante distino de Johann Gustav Droysen, qualifica o passado que no faz
parte da tradio e que, portanto, est morto no e para o presente como mero resduo,9
deixando claro que a qualidade da historicidade nada tem a ver com esse modo de ser do
passado. No entanto, o passado historicizvel, aquele vivo e sedimentado nas condies e
6 Ver sobre isso a anlise de Martin Heidegger da mundanidade do mundo, apresentada da 14 a 24 de Ser e Tempo. 7 Lebendige Geschichte , p. 70-71. 8 Razo Histrica, p. 67-70; 155. 9 Rekonstruktion der Vergangenheit, p. 105-106.
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circunstncias materiais e intelectuais do agir, via de regra, no reconhecido enquanto tal.
Sua diferenciao como passado propriamente dito obra da conscincia histrica. A
apropriao cognitiva do passado pela histria faz com que ele deixe de atuar como uma
espcie de assombrao do presente. Isso torna o presente consciente de seu vnculo
indissocivel com o passado, pois a conscincia histrica explicita que o passado ou
possui uma instncia temporal prpria. A diferenc iao do passado morto-vivo na tradio
atravs do recurso ao pensamento histrico torna possvel, ento, uma nova relao com
ele, que se deixa sintetizar pela alegoria de Rsen dos fantasmas que se convertem em
antepassados.10 Nessa nova relao no anulada a fora viva do passado no presente.
Ao invs disso o que ocorre o desvelamento do vnculo gen tico entre presente e
passado e a conseqente abertura de novas possibilidades de futuro para o agir informado
da historicidade de suas condies.
Na transformao a que se refere essa alegoria do pensamento histrico como
recurso de combate assombrao do presente pelo passado dele desconhecido se anuncia
uma ampliao do potencial de orientao da vida prtica. Na verdade, o agir sempre
orientado pelos contedos culturais a que se fez referncia com o termo tradio. O
advento da conscincia histrica e, sobretudo, das formas por ela assumidas como efeito da
modernizao nas culturas ocidentais significam, no entanto, a possibilidade de que o agir
seja orientado para alm da tradio e, em certo sentido, at mesmo, contra ela. Rsen, em
sua abordagem do fenmeno da conscincia histrica, parte do pressuposto de que
condio para o agir humano a transcendncia das circunstncias empiricamente dadas ao
agente em uma espcie de antecipao intelectual de seus resultados. Tais antecipaes so
definidas por ele como intenes. Existe, enquanto fora motriz do agir e do sofrer dos
homens, um supervit de intencionalidade que precisa ser devidamente tratado, de
maneira a poder conduzir a uma execuo racional desse agir e desse sofrer.11 O trabalho
do pensamento histrico, no que se refere a sua dimenso orientativa, colocar essas
intenes, que se situam na base das expectativas de futuro projetadas no agir, em contraste
com as experincias do passado nele rememoradas. A conscincia histrica realiza, com
isso, uma afinao das intenes, que as torna ajustadas experincia. Intenes de
futuro precisam ser reguladas pela experincia do passado, porque sem isso poderiam
10 Kann Gestern besser werden?: ber die Verwandlung der Vergangenheit in Geschichte, p. 317. 11 Razo Histrica, p. 57-60.
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apontar para um horizonte de expectativas e projetos absurdos.12 Nessa regulao se
apreendem cognitivamente tradies e, com isso, desmonta-se total ou parcialmente a
aparncia de eternidade delas, pelo desvelamento de seu carter essencialmente histrico.
Para Rsen, o grande resultado dessa atividade crtico- interpretativa da conscincia
histrica a possibilidade de controlar ou administrar a contingncia (uma das
experincias temporais mais corriqueiras e, sem dvida, a mais inquietante), por meio de
um recurso diverso daqueles habitualmente disponibilizados pela tradio.13 A conscincia
histrica se configura como fator da orientao temporal da subjetividade humana e de seu
agir e sofrer com base na multiplicao dos recursos de gesto da contingncia. O que
ocorre quando o pensamento histrico chamado a transformar espiritualmente tempo em
sentido , portanto, uma ampliao do campo de orientao. Uma das teses fundamentais
da teoria da histria de Rsen a de que a orientao histrica, em razo de sua maior
abertura para a incorporao de novas experincias temporais e, conseqentemente, de sua
melhor capacidade de elaborao produtiva da contingncia, pode impulsionar o agir
humano para um mbito de racionalidade mais abrangente que aquele em que o situa a
tradio.
Um processo anlogo a essa ampliao do potencial de incorporao e de resposta a
carncias orientativas pela conscincia (que se percebe quando o potencial de orientao
do pensamento histrico posto em relao com o da tradio) tambm se d na
circunscrio interna do prprio pensamento histrico. Essa segunda ampliao do campo
de orientao pode ser apresentada como uma outra tese importante de Rsen, a de que
quando o pensamento histrico se especializa em cincia da histria, a racionalidade
histrica que a ele subjaz aprimorada. J se mencionou que a cincia da histria um
modo especial do pensamento histrico.14 Ela compartilha seu pressuposto fundamental
com todas as demais formas de pensamento histrico, a saber, o de seu enraizamento no
mundo, na vida prtica. O enraizamento da conscincia histrica no mundo o que
permite que histrias atuem como elementos de orientao da vida. A cincia da histria,
enquanto pensamento histrico, tambm est ligada fundamentalmente tarefa da
orientao. Contudo, em decorrncia de sua constituio metdica, ela se conecta a essa
tarefa de uma maneira um tanto quanto diferente da das outras formas de pensamento 12 Ibid., p. 59. 13 Ibid., p. 58-59; Perda de sentido e construo de sentido no pensamento histrico na virada do milnio, p. 10. 14 Razo Histrica, p. 54.
27
histrico. Na cincia da histria, o potencial de racionalidade histrica, de que por
princpio est investida toda e qualquer forma de pensamento histrico, encontra condies
timas de aproveitamento.15 A metodizao, que diferencia a histria como cincia no
quadro geral do pensamento histrico, realiza-se como um reforo das garantias de
validade das histrias. Esse reforo significa a perda da crena ingnua na validade
absoluta das histrias e a assuno e explicitao dos pontos de vista condutores de sua
elaborao. O procedimento metdico fundamental que assegura a qualidade das garantias
de validade na cincia da histria , para Rsen, o da incorporao sistemtica da dvida
sobre a validade de sentenas e narrativas histricas.16 Essa definio chama a ateno para
o fato de que o elemento especificador do grau de validade reivindicado pela cincia da
histria para suas narrativas o rigor na relao com a experincia do passado, com os
significados e normas do presente e com as idias pr-narrativas que promovem a sntese
narrativa de experincias e significados e os convertem em sentido histrico. Tal rigor no
deve ser entendido como um apelo quantificao do mundo emprico, em que e diante do
que se posiciona o sujeito humano. No se trata aqui de uma disposio com a qual se
projeta no objeto do conhecimento e se procura defin- lo essencialmente em torno de suas
propriedades extensionais, mas de uma outra, ainda mais originria, atravs da qual a
experincia do conhecimento se deixa conduzir de modo fundamental pelo compromisso
com a verdade em sua realizao. essa disposio a que se encontra na base de qualquer
conhecimento bem fundado, seja ele de que gnero for. De acordo com Rsen, esse rigor,
que a incorporao da dvida de validade representa, modifica o potencial de orientao do
pensamento histrico, elevando-o a um grau mais avanado de racionalidade.
Porque pensamento histrico, a cincia da histria compartilha a mesma tarefa
orientativa e os mesmos critrios de verdade que fundamentam a constituio histrica de
sentido em toda manifestao da conscincia histrica. Porque cincia, ela eleva o
potencial de orientao do pensamento histrico a um patamar superior e responde a tais
critrios com a qualidade que nos quadros da tradio de reflexo sobre as cincias
humanas denominada usualmente de objetividade. Para Rsen, os critrios gerais de
validade das histrias so seus graus de pertinncia emprica, normativa e narrativa.
Pertinncia emprica diz respeito adequabilidade da relao do pensamento histrico com
a experinc ia do passado. Pertinncia normativa se refere adequabilidade da relao do 15 Ibid., p. 175-178. 16 Ibid., p. 98.
28
pensamento histrico com as normas atuais no presente, com as quais se define o
significado da experincia rememorada. Pertinncia narrativa, por sua vez, significa a
plausibilidade do sentido das histrias, do ndice da regulao, encontrvel na base de
todas as histrias como um desempenho orientativo fundamental, das intenes de futuro
nos filtros da experincia do tempo.17 Todo pensamento histrico atualiza esses critrios
gerais e universais da verdade histrica, mas a cincia da histria faz isso oferecendo
garantias de validade especiais. Na cincia da histria, as esferas emprica, normativa e
narrativa de pertinncia esto submetidas a requisitos especiais, que fazem a relao do
pensamento histrico com a experincia do passado assumir a forma da pesquisa histrica,
a relao com as normas, a da reflexo sobre o referencial e a relao com as idias, a da
teorizao construtiva.18 Essas novas formas de processamento da relao do pensamento
histrico com experincia s, normas e idias emergem como resultado do que Rsen definiu
como metodizao. A metodizao do pensamento histrico em cincia da histria
funciona, na verdade, como um fator desestabilizador do pensamento histrico. Com ela, a
crena ingenuamente segura na validade das narrativas histricas perde espao no ou deixa
de fazer parte do horizonte do pensamento histrico. A configurao cientfica do
pensamento histrico se estabelece no que Rsen argutamente apresentou como a
passagem de uma certeza insegura para uma certa insegurana. Insegurana certa o
estado que qualifica o conhecimento histrico produzido com a mediao da dvida quanto
a sua validade. Fica aberto, com isso, o campo para o reconhecimento da superabilidade de
todo conhecimento histrico em termos da relatividade de seu contedo emprico, sempre
sujeito descoberta de novas e reveladoras fontes e interpretaes mais eficazes de
velhas; da relatividade de seu contedo normativo, sujeito s variaes do mundo da
cultura e redefinio dos significados culturais; e da relatividade de seu contedo de
sentido, dependente de snteses de experincias e normas, que variam em funo da
variao de suas premissas.19
nessa relativizao (mas no no relativismo) da verdade das histrias que se
sustenta o ganho de potencial orientativo do pensamento histrico em seu matiz
especificamente cientfico. Razo histrica, na histria como cincia, tem a ver com uma
orientao do agir e do sofrer, capaz de otimizar as oportunidades de consenso racional em
17 Ibid., p. 84-93. 18 Ibid., p. 101; 109; 120-121. 19 Ibid., p. 104; 113-114; 123.
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meio ao contexto das diferenas culturais. Tal modo da orientao cultural da vida se torna
possvel a partir da elaborao de representaes histricas do passado, que, por se
saberem certamente inseguras e superveis, mantm aberto o espao para aquilo que outras
representaes podem lhes dizer. O conhecimento do passado humano pela cincia da
histria comporta, segundo Rsen, uma objetividade tripartite, pela qual se expressa essa
abertura. Essa objetividade pode ser definida conforme o que se segue:
a) A metodizao da relao do conhecimento histrico com a experincia do
passado faz com que as histrias, para que sejam empiricamente pertinentes,
tenham que ser fundamentadas em pesquisa histrica, o que permite falar de
uma objetividade de fundamentao.20
b) Por sua vez, a metodizao da relao do conhecimento histrico com as
normas subordina a pertinncia normativa das histrias ao procedimento da
reflexo sobre o referencial empregado para conferir significado s experincias
reconstrudas, tornando possvel falar de uma objetividade de consenso.21
c) A metodizao do sentido das histrias, por ltimo, torna a teorizao
construtiva requisito de sua pertinncia narrativa, fazendo com que elas possam
ser qualificadas com que se pode chamar de objetividade construtiva.22
A distino dessas trs esferas de objetividade na cincia da histria de
fundamental importncia para a resposta de Rsen ao problema posto pela participao de
carncias de orientao entre os princpios do conhecimento histrico na histria como
cincia, problema diante do qual se define o significado da orientao histrica
especificamente cientfica em relao ao panorama geral da cultura e, em particular, ao da
histria como modo cultural de apropriao do passado. Com essa idia de uma
objetividade tripla das manifestaes historiogrficas da cincia da histria, Rsen
demonstra que e como o fato de histrias partirem de interesses cognitivos conflitantes no
exclui a possibilidade de que elas auxiliem na busca e construo de consensos. A tarefa
honrosa da cincia da histria , para ele, exatamente a do fornecimento de orientaes
que promovam o consenso a partir do reconhecimento, e no da subtrao ou sublimao,
20 Ibid., p. 138-139. 21 Ibid., p. 140-142. 22 Ibid., p. 142-146.
30
das diferenas ent re as partes em conflito social.23 Na justificao de suas demandas
antagnicas, no raro que grupos sociais evoquem argumentos histricos. O que Rsen
defende que se tais argumentos forem construdos com base em interpretaes elaboradas
em conformidade com os padres metdicos usuais da cincia da histria, ento fica mais
fcil (ou menos difcil) a manuteno do dilogo das diferenas. Isso porque qualidades
como as da objetividade de fundamentao, objetividade de consenso e objetividade
construtiva esto razoavelmente adaptadas para permitir a complementao das identidades
em que repercutem pela assimilao de histrias provenientes de outros contextos de
orientao. Desse modo, a evidncia da incompletude emprica e da relatividade dos
significados das histrias permite um melhor desempenho da racionalidade histrica,
fortalecendo a densidade de sentido das realizaes historiogrficas em que ela frutifica.
Todavia, diante dessa afirmao de que cincia da histria cumpre realizar uma
orientao que promova o consenso racional em meio ao jogo das foras sociais em
conflito, pode-se apresentar a objeo de que um tal desempenho orientativo entra em
contradio com o ideal de conhecimento evocado pelo emprego do termo cincia. A
objeo se deixa formular pela seguinte questo: como podem resultados cognitivos que
pretendem ser objetivamente vlidos servir de orientao ao agir subjetivo sem que nessa
tranposico do conhecimento para as diretrizes da ao se perca a qualidade da
objetividade que os define enquanto cientficos? Responder a essa questo negando a
possibilidade que ela pressupe significa abraar um ideal de objetividade muito pouco
ajustado prtica dos historiadores profissionais e repercusso, no mbito geral da
cultura histrica, do conhecimento por eles disponibilizados compreenso de seu pblico.
A construo de uma resposta afirmativa, como a de Rsen, requer, por outro lado, a
resoluo paralela de um outro problema, qual seja, o da natureza e dos limites dessa
orientao oferecida pela cincia da histria s carncias em que esto fincados seus
pressupostos epistmicos.
A argumentao com que Rsen se dirige a esse segundo problema se ampara na j
mencionada distino entre constituio de sentido (Sinnbildung) e instituio de sentido
(Sinnstiftung).24 A cincia da histria (e o pensamento histrico, de maneira geral) realiza a
orientao da vida prtica mediante constituio de sentido sobre a experincia do tempo e
isso significa que seu recurso orientativo de primeira ordem o da rememorao do 23 Ibid., p. 177-178. 24 Lebendige Geschichte , p. 70-72.
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sentido do passado. Essa rememorao, embora culmine em uma elaborao reconstrutiva
da experincia do passado na forma de uma histria para o presente, no uma atividade
na qual atue com total autonomia a capacidade criadora da subjetividade humana. Somente
se poderia falar de uma autonomia plena do potencial criador nos casos de sentido
religioso, esttico ou ideolgico, mas, mesmo assim, com ressalvas, pois tambm nesses
casos o que ocorre no propriamente uma instituio de sentido a partir do nada
absoluto.25
A natureza e os limites da orientao histrico-cientfica so fixados pela
circunstncia de que sua realizao se d atravs de constituio de sentido, desse arranjo
intelectual que conserva a tenso na relao entre o sentido j dado e a criao de sentido.26
Embora aborde essa problemtica de uma forma um tanto quanto ambgua, o pensamento
de Max Weber deixou marcado um ponto de referncia fundamental para a definio da
especificidade da orientao proporcionada pela cincia da histria. Ele pode ser trazido
tona, se se lembrar de suas exortaes contra as profecias que caem das ctedras
universitrias, as quais ganhavam espao no ambiente universitrio alemo das primeiras
dcadas do sculo XX. 27 Tais profecias ilustram um modo bastante perigoso de
orientao em que intelectuais assumem como sua tarefa primordial a indicao de ticas
ou modos de vida determinados aos demais membros do corpo social. Max Weber
destacou que a orientao que pode ser exercida legitimamente por aquelas formas de
conhecimento a que algumas vezes se referiu com o termo cincias da cultura jamais est
contida na estrutura de mandamentos morais, que definem quanto a quais valores devem
ser abraados, que decises devem ser tomadas e que aes devem ser desempenhadas. Ao
contrrio, o modo autntico de orientao realizvel por essas cincias , para ele, o que
liga o conhecimento ampliao da clareza quanto aos valores presentes nas circunstncias
da vida em que se tem de agir e, conseqentemente, de escolher certos valores e rejeitar
outros. Weber parte da percepo prtica de que nem sempre os homens que optam por
25 Jrn Rsen. Geschichte als Sinnproblem. In: Zerbrechende Zeit, p. 28. O conceito de sentido da interpretao de si e do mundo aparece como institudo, quando ele excede fundamental e radicalmente todos os dados do passado. Mas quase nunca ocorre historicamente uma tal transcendncia radical do sentido j dado. Por isso, recomenda-se mxima cautela ante o termo instituio de sentido. Mesmo as histrias de fundao das grandes religies mundiais, que ns atribumos instituio de sentido de pessoas particulares (Buda, Jesus, Maom), aparecem aos olhos desse instituidor como algo totalmente oposto a uma criao completamente nova (trad. do autor). 26 Ibid., p. 28. 27 A cincia como vocao. In: Metodologia das Cincias Sociais, p. 453; ver as menes de Rsen a essas exortaes de Max Weber em Razo Histrica, p. 124 e em Lebendige Geschichte, p. 70.
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uma determinada linha de ao tm boa conscincia dos valores em jogo nas decises que
a formaram. Para ele, o recurso ao conhecimento produzido pelas cincias da cultura
pode ajud- los a interpretar de maneira mais clara o significado de suas aes.28
A despeito de seu distanciamento crtico com respeito ao que qualifica de
subjetivismo na teoria das cincias humanas de Max Weber,29 Rsen incorpora a sua
abordagem do problema da orientao na cincia da histria o ponto de vista de que tal
orientao no se pode dar na forma de um imperativo de ao. Mas, Rsen ainda oferece
mais do que uma definio negativa do carter da orientao histrico-cientfica. Esse algo
mais aparece na apresentao da formao histrica (historische Bildung) como
modalidade de construo de identidade fortemente relacionada ou relacionvel cincia
da histria. A possibilidade de abrir a construo e consolidao histrica de identidades
quilo que se encontra na rbita do ideal de formao apontada por Rsen como a
implicao mais importante do exerccio pela cincia da histria de suas funes
orientativas. Com essa funo de servir de base formao histrica, a historiografia
acadmica responde s carncias de orientao que se encontram entre os elementos
motrizes de sua existncia e desenvolvimento.
1.2. Funes orientativas
28 Ver essa argumentao em: A objetividade do conhecimento na cincia social e na cincia poltica e O sentido da neutralidade axiolgica nas cincias sociais e econmicas. In: Metodologia das Cincias Sociais; tambm sobre a problemtica da orientao nas cincias da cultura, ver Wolfgang Schluchter. Politesmo dos valores: uma reflexo referida a Max Weber, p. 21. 29 Rsen denomina de subjetivista a postura, encontrada na obra terica de Max Weber, de acordo com a qual o sentido propriamente histrico da experincia seria o resultado de uma atribuio a posteriori realizada por um sujeito que a elabora em funo de suas necessidades de fazer face aos problemas atuais do mundo da cultura, como se dispusesse de uma espcie de matria bruta em que as experincias do presente se poderiam amoldar de qualquer forma. Contra isso, ele objeta que a experincia do passado no pode ser tomada como um mero caos sem sentido de acontecimentos, uma vez que o agir passado teve a mesma estrutura do agir atual e, portanto, sempre ocorre em meio ao sentido. (Ver as crticas de Rsen ao subjetivismo weberiano em Razo Histrica , p. 68-69; 72; 107; Rekonstruktion der Vergangenheit, p. 70; 83-86, Zerbrechende Zeit, p. 12). Isso se deixa ilustrar de modo claro quando se recordam de aes passadas que se conduziram orientadas por expectativas quanto a seu significado histrico futuro, como a do suicdio do ex-presidente da Repblica do Brasil, Getlio Vargas, que em sua famosa carta testamento afirmou ter deixado a vida para entrar na histria. Todavia, necessrio destacar que Rsen, ao criticar a postura subjetivista de Max Weber com relao ao problema da orientao cultural das cincias humanas, atribui ao pensamento de Weber uma coerncia de que ele parece estar destitudo. Embora seja inegvel esse seu vis subjetivista possvel encontrar nos textos de Weber uma postura oposta a essa, na qual se enfatizam temas como a objetividade e o carter emprico dos empreendimentos cognitivos das cincias humanas.
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Conforme o que se acabou de mostrar, o elevado potencial de racionalidade que
caracteriza o conhecimento da cincia da histria no implica direta e necessariamente
efeitos para o contexto da vida prtica ao qual ele endereado. O fato de que, na
construo desse conhecimento, carncias de orientao temporal tenham um papel
decisivo, embora pressuposto para que o agir e o sofrer humanos no presente se conectem
aos resultados cognitivos da cincia da histria, por si s, no garante a eficcia da
orientao. Para que tal eficcia seja atingida, preciso que em meio ao contexto da
relao entre conhecimento e agir se promova uma mediao suficiente entre os mbitos
mais estritamente produtivos do conhecimento histrico cientfico, os da pesquisa e da
historiografia, e a dimenso na qual os produtos historiogrficos so recebidos por seus
destinatrios. Na historiografia esto contidos, to somente, potenciais racionais. A
atualizao desses potenciais, todavia, no uma questo que diz respeito produo, mas
recepo da cincia da histria. O modo de recepo adequado ao bom aproveitamento
dos potenciais racionais agregados s histrias dos historiadores profissionais nas etapas da
pesquisa e da historiografia designado por Rsen com o termo formao histrica.30 A
formao histrica o conjunto das competncias de que a subjetividade humana deve
estar investida, para que os processos intelectuais de construo, atribuio e consolidao
de identidades, dos quais o agir extrai a direo de sua execuo, correspondam-se com o
patamar de racionalidade da cincia da histria.
Identidade consiste no conceito que sintetiza o resultado prtico mais importante da
atividade do pensamento histrico. Trata-se de um desdobramento subjetivo da recepo
de narrativas histricas, em que se conforma um ponto de referncia intelectual para o agir.
Identidades consistem no fundamento da definio do eu e do ns e, conseqentemente,
tambm do outro e dos outros. Elas informam os sujeitos humanos acerca de quem eles
so, por recurso ao passado que e em que eles foram e, com isso, fixam as possibilidades
de seu vir a ser. Por causa desse desempenho, identidades se colocam na base efetiva da
orientao do agir. As funes orientativas, que concretamente so exercidas pelo
pensamento histrico atravs da construo e consolidao de identidades histricas, so
consideradas por Rsen como um princpio essencial da cincia da histria. A submisso
do pensamento histrico na cincia da histria aos requisitos da metodizao, no entanto,
no desprovida de conseqncias para o modo de definio de contedos identitrios.
30 Lebendige Geschichte , p. 84-85.
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Pode-se dizer que esse modo vinculado ao trabalho cognitivo da cincia da histria de
constituir e lidar com identidades significa uma racionalizao da relao da subjetividade
humana com o tempo. Nele se refora o papel do pensamento histrico enquanto elemento
neutralizador da ameaa de perda de identidade, que espreita sempre as tomadas de deciso
em meio prxis cultural. Pode acontecer que na formulao de suas intenes de agir o
sujeito humano no consiga compatibilizar, nem mesmo em um grau mnimo, o que ele foi
(sua experincia do passado) com o que ele quer ser (suas intenes de futuro). Nessas
situaes o que ocorre, na relao subjetiva com as instncias temporais de passado,
presente e futuro, uma perda de identidade e Rsen precisou muito bem as conseqncias
dessa perda ao lembrar que, com ela, o sujeito se lana no futuro de tal maneira que j no
faz mais sentido falar em um futuro para ele, porque o futuro j seria contra ele.31 Se o
pensamento histrico em geral j representa uma espcie de antdoto a essa perda, a cincia
da histria, em particular, certamente um medicamento de ltima gerao. Ao promover
uma historicizao radical do presente, ao tornar explcitos os nexos que o articulam ao
passado, a histria como cincia abre espao para que a subjetividade, que atravs dela
apreende a historicidade objetiva de seu mundo, ganhe-se nessa ou dessa historicidade.32 A
nova relao potencial com o tempo que se institui como efeito do trabalho cognitivo da
cincia da histria acarreta, portanto, tambm, uma nova relao do sujeito consigo
mesmo. Nessa relao, ele redefine sua identidade, de tal modo que ela se torna flexvel,
passando ento a estar aberta ao reconhecimento da validade da identidade do outro e
fechada a diretrizes agressivas e excludentes de interpretao histrica.33
O modo de construo identitria estimulado pela racionalidade que caracteriza as
manifestaes da cincia da histria, conforme o que j se assinalou, no se estabelece
como conseqncia automtica do contato com a historiografia. De acordo com Rsen,
faz-se necessria, para um aproveitamento prtico razovel do que a cincia da histria tem
a oferecer, uma contrapartida do receptor do conhecimento histrico. Essa contrapartida,
imprescindvel para que o trabalho especializado da cincia histrica no seja desperdiado
31 Die Zukunft der Vergangenheit. In: Zerbrechende Zeit, p. 133. Quando no podemos levar conosco, para dentro do futuro em direo a que desejamos conduzir nossas vidas, aquilo o que ns fomos, ento ns nos perdemos no futuro e, em verdade, ele no mais nos pertence. No pior dos casos, ns que passamos a pertencer ao futuro, sem que possamos pertencer a ns prprios. Nesse caso, ento, no haveria nenhum futuro para ns, mas, antes, contra ns (trad. do autor); Fernando Pessoa tambm deu uma bela expresso potica a essa mesma idia em um trecho do poema Tabacaria, em que se pergunta: Que sei eu do que serei, eu que no sei o que sou ?. 32 Lebendige Geschichte , p. 97. 33 Ibid., p. 98.
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nos processos de identificao e de tomada de deciso, a formao histrica. somente
por intermdio de sua formao histrica que o sujeito humano se habilita para administrar
os problemas de orientao prtica, que constantemente se apresentam perante sua
conscincia, com a ajuda dos contedos cognitivos produzidos pensamento histrico
cientfico.34 Sendo assim, formao histrica pode ser tomada como o modo assumido pela
definio identitria, quando inspirada nas realizaes da cincia da histria.
Conforme o que o prprio contedo semntico do termo formao j revela, trata-se
de um conjunto de maneiras de lidar com identidades que no dado desde sempre
subjetividade e que, portanto, deve por ela ser adquirido atravs de um processo gradual de
aprendizado. O aprendizado histrico um processo dplice, em que se d tanto a
aquisio de conhecimento da experincia do passado interpretada historicamente, quanto
o desenvolvimento de competncia narrativa para a realizao dessas interpretaes
histricas.35 Nas sociedades ocidentais modernas, espaos privilegiados do aprendizado
histrico so, entre outros, as instituies escolares e os museus, mas isso no quer dizer
que somente ocorra aprendizado histrico nesses locais e nem muito menos que tais
espaos estejam sempre em condies de promover uma genuna formao histrica.36
Para que o aprendizado histrico conduza aquisio pelo sujeito da competncia narrativa
necessria ao aproveitamento das potencialidades da cincia da histria, esse processo deve
atingir um certo patamar de intensidade. No aprendizado histrico, ocorrem paralelamente
uma subjetivao dos dados objetivos da mudana temporal, como decorrncia de sua
apreenso intelectual, e uma objetivao da identidade subjetiva atravs de sua remisso
objetividade do olhar histrico-cientfico.37 O resultado da concomitncia desses dois
processos nas situaes de aprendizado histrico sempre algum tipo de balanceamento
argumentativo da tenso entre objetividade e subjetividade, caracterstica de todo
pensamento histrico. Somente quando esse balanceamento cria condies para que se
elaborem, a partir dos conhecimentos e capacidades aprendidas, interpretaes e
argumentaes subjetivas construdas em correspondncia com os cnones argumentativos
da cincia da histria, ento se desenvolveu aquele conjunto especial de capacidades, com
34 Ibid., p. 84-85. 35 Jrn Rsen. Erfahrung, Deutung, Orientierung: drei Dimensionen des historischen Lernens, p. 64. 36 Lebendige Geschichte , p. 81. 37 Ibid., p. 97.
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o qual os sujeitos dotados de formao histrica se relacionam com o universo da cultura
histrica.38
A formao histrica possibilita que os sujeitos humanos articulem suas prprias
carncias de orientao ao estoque de conhecimento disponibilizado pela cincia da
histria. Sua importncia decorre de que as manifestaes historiogrficas da cincia,
apesar de serem desenvolvidas exatamente de dentro de um contexto de orientao e
mediante a participao ativa de carncias atuais que nelas se instalam em sua estrutura
categorial , acabam, por fora dos imperativos metdicos a que se submetem, tendo seu
potencial orientativo, em certo sentido, prejudicado. A presso metdica por
especializao, que recai sobre o pensamento histrico na etapa da pesquisa, tende a
esfacelar a totalidade do mundo histrico, tal como dada, externamente, na cotidianidade
da vida prtica e, internamente, nos processos subjetivos de identificao e de formulao
de intenes de agir. Contra esse prejuzo imposto ao pensamento histrico pela sua
metodizao que atua a formao histrica dos destinatrios das histrias. Ela permite
que os contedos particulares das histrias especializadas sejam integrados plenamente em
uma interpretao subjetiva da totalidade histrica, que abrange globalmente as
circunstncias e condies do agir atual e, por issso, melhora o desempenho da
orientao.39
Formao histrica, para Rsen, o modo adequado de o pensamento histrico
realizar a reconexo do saber especializado da cincia vida prtica.40 Trata-se do
conjunto de competncias narrativas necessrias a uma elevao do sujeito destinatrio das
histrias para alm da particularidade de seu contedo. Essa elevao ao geral que se opera
mediante um sacrifcio do particular o que Hegel, tal como o interpreta Hans-Georg
Gadamer, teria entendido ser o sentido profundo da idia de Bildung (formao), que
possui um significado fundamental para a tradio cultural alem.41 Ao ressaltar a
importncia da formao histrica para o aproveitamento dos potenciais racionais a que a
constituio metdica do pensamento histrico em cincia faz germinar, Rsen atualiza a
tradio da Bildung ao contexto de orientao do mundo do final do sculo XX e do incio
do sculo XXI, deixando de lado o subjetivismo a que ela esteve vinculada em outras
38 Ibid., p. 107-108. 39 Ibid., p. 85. 40 Ibid., p. 108. 41 Hans-Georg Gadamer. Verdade e Mtodo, p. 51.
37
pocas.42 Antes de mais nada, essa atua lizao consiste em um deslocamento de sua
posio de esteio de uma identidade nacional particular para a de pedra de construo de
uma possibilidade de identificao mais abrangente, estruturada em torno da idia
emprico-normativa de humanidade como comunidade concreta e desejvel de
comunicao.43 O reforo da noo comunitria de humanidade pela formao histrica
possvel porque a formao, ao favorecer o aproveitamento do imenso progresso cognitivo
da cincia da histria por parte dos sujeitos sociais, gera um adensamento da cultura
histrica. Cultura histrica o campo em que a interpretao do mundo deve se situar, para
que sirva orientao histrica da vida prtica.44 Formao histrica um processo de
aprendizado essencial dinmica da cultura histrica. Na interao entre conhecimento
histrico e subjetividade, mediada pelo substrato intelectual da formao histrica, d-se a
complementao do trabalho especializado da cincia por sua articulao subjetiva a
contextos histricos gerais. Essa articulao permite uma racionalizao da orientao da
vida prtica, cujo efeito abre oportunidades para mitigar a injustia nas relaes de poder
sustentadas por argumentos histricos e para enriquecer a experincia esttica comunicada
mediante formas histricas.
Ao preparar o sujeito para uma insero conseqente na cultura histrica, a
formao cria condies para que tanto decises polticas, quanto opes estticas sejam
racionalizadas pela fora cognitiva da cincia da histria. Isso torna evidente que a
conexo entre a cincia da histria e a formao histrica dos sujeitos sociais no se d na
forma de uma compensao, mas na de uma complementao entre especialidade e
totalidade, subjetividade e objetividade, vida e cincia. Rsen emprega essa oposio entre
compensao e complementao como pilar de sua definio do significado da formao
histrica. Concebida meramente como uma compensao metodizao da cincia, a
formao histrica se relacionaria com o empreendimento cientfico de forma exte