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[REVISTA CONTEMPORÂNEA – DOSSIÊ GUERRAS E REVOLUÇÕES NO SÉCULO XX]
Ano 5, n° 8 | 2015, vol.2 ISSN [2236-‐4846]
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O silêncio na relação entre arte e guerra Ester Cunha*
Ao longo da história da arte diversos fatores envolveram o que
convencionamos chamar por arte; sobre a contemporaneidade, alguns teóricos, como
Jean Pierre Cometti, Nicolas Bourriaud, entre outros, apontam a relação intrínseca
entre arte e cultura. Desde a representação de figuras humanas e de animais no
período Paleolítico, nas cavernas de Chauvet e Lascaux no sul da França -
consideradas como os primórdios de uma produção artística - a arte é abordada a
partir de relações socioculturais. Historiadores como Winckelmann chegaram a
afirmar a existência de um determinismo na produção artística, relativo tanto a fatores
geográficos quanto biológicos. Outros dissertaram sobre a correlação da arte com um
encadeamento progressivo, como o pensamento formalista do crítico Clemente
Greenberg.
Nesse contexto, observamos tanto o desenvolvimento de teorias da arte
conectadas a uma realidade histórico social, explicitando a relação entre arte e cultura,
quanto teorias desatreladas a esse contexto e cercadas estritamente de questões
relativas à própria arte, a arte pela arte. Sem delongas analíticas sobre essas vertentes
nosso intuito é nos debruçarmos sobre a produção artística relacionada ao período da
Segunda Guerra Mundial. Entendemos essa relação através de alguns fatores: o
discurso do artista, uma análise teórica sobre essa produção artística, e elementos
históricos referentes a essa produção.
Tomamos como norteador para o desenvolvimento desse estudo a afirmação
de Jean-Pierre Cometti de que:
* Historiadora da Arte pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e Mestranda em Estudos Contemporâneos das Artes na Universidade Federal Fluminense.
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situar a arte no campo de uma cultura, é compreender que o sentido e o valor que atribuímos às práticas artísticas e aos objetos de arte, assim como os atos que lhe dão nascença, se concebem e se determinam em função de múltiplos fatores e circunstâncias que dependem do meio-ambiente não artístico, no qual outras escolhas, outras crenças e outros desejos são investidos. (COMETTI, 2008, p.166)
Partimos dessa forma, da concepção de que a produção artística está
intrinsicamente vinculada a um contexto histórico social, mesmo aquela envolta em
um discurso de autonomia artística. Em movimentos como o expressionismo abstrato
que sofreu críticas por parte de alguns teóricos de uma alienação política em
comparação com outros movimentos figurativos, percebemos que também essa
alienação é parte de um contexto histórico-social, com especificidades artísticas que
se relacionam explicitamente com a realidade cultural. Nossa análise se vale ainda, do
fato de que o discurso da arte-pela-arte coexiste a um movimento pela busca de uma
subjetividade, dessa forma, essa produção autônima pode ser vista como um exercício
de emancipação frente a uma realidade massificada, que pregava um estilo de vida
através do marketing à serviço da indústria e do consumo, num período pós a
aniquilação de uma produção artesanal, ou seja, aquela não industrial.
Para o filósofo alemão Theodor W. Adorno (1903-1969) a arte teria um
compromisso social. “A priori, antes de suas obras, a arte é uma crítica da feroz
seriedade que a realidade impõe sobre os seres humanos” (ADORNO, 2001, p. 13).
Adorno aponta para uma diferença entre uma arte crítica, social; e outro tipo de arte,
uma arte mercadológica relativa ao entretenimento e carente de perspectivas de
cognição, é vista por Adorno como uma arte não autêntica.
Nesse sentido é fundamental discorrer sobre o momento cultural pelo qual
nossa análise permeia. O século XX é marcado por grandes transformações culturais,
essas transformações são percebidas em todos os setores artísticos; na criação,
exposição e recepção. Após a Segunda Guerra Mundial é notório um movimento de
renovação na museologia.
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Museu e Memória
Michel Foucault nos assinala que a história foi a obsessão do século XIX, e
percebe a existência de posicionamentos: “ atualmente o posicionamento é definido
pelas relações de vizinhança entre pontos ou elementos” (FOUCAULT, 2001, p.412).
O problema do lugar ou do posicionamento é relativo à demografia, em que são
presentes questionamentos como “haverá lugar para o homem no mundo? ”, ou como
escreveu Foucault, “que relações de vizinhança, que tipo de estocagem, de circulação,
de localização, de classificação dos elementos humanos devem ser mantidos de
preferência em tal ou tal situação para chegar a tal ou tal fim. ” (Idem, p. 413). Em
sua conferência realizada em 1967 no Cercle d’Études Architecturales, Foucault
reflete que o espaço se apresenta a nós sob a forma de relações desses
posicionamentos.
Foucault percebe a existências do que chama de heterotopia. A heterotopia é a
constituição do espaço em que vivemos. Não vivemos em um espaço vazio e neutro à
espera de preenchimentos e formulações acerca do próprio tempo e espaço. Estamos
inseridos em uma grande amálgama, uma rede de dados “um conjunto de relações que
definem posicionamentos irredutíveis uns aos outros e absolutamente impossíveis de
ser sobrepostos” (FOUCAULT, 2001, p.414). Sobre esses espaços heterotópicos,
Foucault percebe distintos tipos de espaços, um deles relativo ao tempo. De modo geral, em uma sociedade como a nossa, pode-se dizer que há heterotopias que são heterotopias do tempo quando ele se acumula ao infinito: os museus e as bibliotecas, por exemplo. No século XVII e XVIII, os museus e as bibliotecas eram instituições singulares; eram a expressão do gosto de cada um. Em contrapartida, a ideia de tudo acumular, a ideia de, em certo sentido, parar o tempo, ou antes, deixa-lo depositar-se ao infinito em certo espaço privilegiado, a ideia de constituir o arquivo geral de uma cultura, a vontade de encerrar todos os tempos em um lugar, todas as épocas, todas as formas e todos os gostos, a ideia de constituir um espaço de todos os tempos, como se este próprio espaço pudesse estar definitivamente fora do tempo, essa é uma ideia totalmente
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moderna: o museu e a biblioteca são heterotopias próprias à nossa cultura. (FOUCAULT, 2013, p.25)
O museu é classificado como uma heterotopia ligada ao tempo, uma
heterocronia. O desejo de guardar, de acumular, na tentativa de construir um arquivo
geral de forma a deter todos os tempos e lugares em um só local, numa acumulação da
informação, é uma característica da modernidade ocidental. Entretanto, é próprio de
espaços heterotópicos uma abertura e fechamento simultâneos, como um mecanismo
de isolamento, um espaço que se isola e se torna penetrável.
Durante a Segunda Guerra Mundial, Hitler fez uso da instituição do museu no
intuito de mostrar a soberania germânica. O museu deveria ser a maior e mais rica
galeria de arte do mundo, visando educar artisticamente e proporcionar lições de
história. Como bem notam os estudiosos italianos Lanfranco Binni e Giovanni Pinna, o museu do nazismo conciliava as necessidades de propaganda do Estado com as possibilidades de educação individual e sintetizava todas as conquistas dos museus europeus criados pelas burguesias nacionais do século XIX com a mais moderna crítica de arte europeia do período. (SUANO, 1985, p.51)
Se tivesse sido concretizado, o museu – que integrava o projeto de
reurbanização da cidade de Linz, capital da província natal de Hitler na Áustria – teria
sido a expressão da sociedade capitalista. Já o museu soviético, após a Revolução
Russa de 1917 toma como objetivo mostrar as diferenças de classes, “as constantes
lutas entre as classes pela sobrevivência e pelo poder de controle da sociedade. ”
(Idem, p.52).
Cada cultura, portanto, se utiliza de um formato de apresentação de sua
história. História nada mais é do que a organização de narrativas selecionadas.
O Museu da Revolução, em Havana, ensina a história da opressão sob a qual viveram os pais e os avós do visitante, indicando o socialismo como a única via de ruptura com o passado. Na China, os museus são periodicamente fechados e reformulados segundo as linhas de pensamento vigentes dentro do Partido Comunista Chinês. (Idem, p.54)
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Na Segunda Guerra a Europa viveu um esvaziamento de muitos museus,
saqueados em prol da criação do museu nazista. No pós-guerra os museus saqueados
não eram a prioridade primeira de um continente devastado, sendo assim, o cenário
museal norte-americano nesse período se apresentava bem distinto da realidade
europeia, o museu é parte da realidade da produção capitalista, utiliza-se inclusive a
expressão ‘museu dinâmico’ que explicita a interação com o contexto mercadológico
de produção e produto.
A grande proliferação de museus no final do século XIX, acarretou numa crise
no século seguinte, os museus se encontravam estagnados, num momento em que o
proletariado se conscientizava de seus direitos e a burguesia não conseguia mais gerir
a sociedade como antes. “O museu, dispensável nesse quadro de tensões, assume ares
de ilha protegida e calma, volta-se para si mesmo, deixa de ter apelo junto ao público,
sobrevive pela inércia. ” (SUANO, 1985, p.50). No século XX com a renovação da
museologia o museu já não é mais apenas um local de conservação de acervos, mas
um centro de informação.
Informação x Experiência
Com o grande acumulo de memória e o desejo de reter a história, vivemos em
uma sociedade da informação. Jorge Larrosa em seus Escritos sobre a experiência
aponta uma diferenciação entre os termos: informação, conhecimento e
aprendizagem. Larrosa afirma que estar informado não significa aprender, a
experiência é erroneamente confundida com um acumulo de informação “como se o
conhecimento se desse sob a forma de informação, e como se aprender não fosse
outra coisa que não adquirir e processar informação” (LARROSA, 2014, p.19).
Um ponto que nos é crucial é a reflexão de Larrosa de que experiência não é
informação, e o excesso de informação impossibilita a experiência. “Experiência é o
que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. A cada dia se passam muitas
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coisas, porém, ao mesmo tempo, quase nada nos acontece. Dir-se-ia que tudo o que se
passa está organizado para que nada nos aconteça” (LARROSA, 2014, p.18). Com
esse acúmulo de informações, a sociedade se torna carente de experiências. Como
nos mostra Benjamin sobre a pobreza de experiência: não se deve imaginar que os homens aspirem a novas experiências. Não, eles aspiram a libertar-se de toda experiência, aspiram a um mundo em que possam ostentar tão pura e tão claramente sua pobreza externa e interna, que algo de decente possa resultar disso. Nem sempre eles são ignorantes ou inexperientes. Muitas vezes, podemos afirmar o oposto: eles "devoraram" tudo, a "cultura" e os "homens", e ficaram saciados e exaustos. "Vocês estão todos tão cansados — e tudo porque não concentraram todos os seus pensamentos num plano totalmente simples, mas absolutamente grandioso." Ao cansaço segue-se o sonho, e não é raro que o sonho compense a tristeza e o desânimo do dia, realizando a existência inteiramente simples e absolutamente grandiosa que não pode ser realizada durante o dia, por falta de forças. (BENJAMIN, 1987, p.119)
A libertação da experiência de que nos fala Benjamin se relaciona à
elaboração. Essa reflexão se soma à importantes questões acerca da experiência de
sobreviventes de guerra. Frente ao relato do sentimento de vazio de um sobrevivente
de Auschwitz, Larrosa reflete: “Temos, para começar, uma vida que atravessa o
século, que padece a história do século, e que se pergunta se suas experiências servem
de algo ou se viveu sua vida em vão. Se suas experiências não servem de nada, então
terá vivido sua vida em vão. ” (LARROSA, 2014, p.47). Larrosa nos fala aqui sobre o
sentido da vida, em que uma vida sem sentido e sem valor seria uma vida em vão.
Em seu livro Em busca de Sentido: um psicólogo no Campo de Concentração,
o escritor e psiquiatra Viktor Frankl relata sua experiência como prisioneiro em um
campo de concentração, onde perdeu sua esposa, pais e um irmão. Frankl é autor da
teoria chamada Logoterapia, uma análise existencialista do indivíduo. A vida é sofrimento, e sobreviver é encontrar significado na dor, se há, de algum modo, um propósito na vida, deve haver também um significado na dor e na morte. Mas pessoa alguma é capaz de dizer o que é este propósito. Cada um deve descobri-lo por si mesmo, e aceitar a responsabilidade que sua resposta implica. Se tiver êxito, continuará a crescer apesar de todas as indignidades. Frankl gosta de citar esta frase de Nietzsche: "Quem tem por que viver pode suportar quase qualquer como". (ALLPORT in FRANKL, 1987, p.3)
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Frankl afirma que é comum os sobreviventes não gostarem de falar sobre sua
experiência, eles argumentam não ser necessário falar com aqueles que também
estiveram em um campo, e com aqueles que não estiveram seria inútil tentar
descrever qualquer emoção, pois jamais poderiam explicar o que sentiam como
prisioneiros, e o que continuam sentindo como sobreviventes. A narrativa de fatos
pessoais, envolvendo estados psicológicos, em especial fatos traumáticos, requer um
distanciamento emocional. “Será que a pessoa que experimentou a vida no campo de
concentração teria o distanciamento necessário, durante a experiência, ou seja, na
época em que precisou fazer as respectivas observações? ” (FRANKL, 1987, p.8).
Na escrita de Frankl a palavra “experiência” tem um significado distinto
daquele utilizado por Larrosa, em Frankl experiência quer dizer puramente vivências.
Larrosa analisa a experiência como vivências elaboradas pelo sujeito “e se as
experiências não são elaboradas, se não adquirem um sentido, seja ele qual for, com
relação à própria vida, não podem se chamar, estritamente, experiências”
(LARROSA, 2014, p.50). Frankl completa que aquele que está de fora da situação
tem um distanciamento, entretanto está distante demais, sem que possa se aproximar
da experiência, pairando apenas na obtenção da informação, podendo agregar a ela
sua opinião.
Dentre o que postula Larrosa sobre a experiência, ele nos afirma que o excesso
de opinião contribui para a escassez da experiência. “Depois da informação, vem a
opinião. No entanto, a obsessão pela opinião também anula nossas possibilidades de
experiência, também faz com que nada nos aconteça” (LARROSA, 2014, p.20). O
silêncio, entretanto, possibilita a experiência, já que a falta do silêncio e igualmente
da memória, impossibilitam a experiência. Um fragmento de Walter Benjamin de seu
texto O narrador nos permite partir para as próximas elucidações sobre a
representação na arte e a guerra.
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[...] com a Guerra Mundial começou a se tornar evidente um processo que ainda não se deteve. Acaso não se notou que as pessoas voltavam emudecidas do campo de batalha? Em vez de retornarem mais ricas em experiências comunicáveis, voltavam empobrecidas. Tudo aquilo que dez anos mais tarde se traduziu numa maré de livros de guerra, nada tinha a ver com experiências que se transmitem de boca em boca. E isso não era surpreendente, pois jamais as experiências resultantes de refutação de mentiras fundamentais significam um castigo tão severo como o infligido à experiência estratégica pela guerra de trincheiras, à experiência econômica pela inflação, à experiência corporal pela batalha material, à experiência ética pelos detentores do poder. Uma geração que ainda havia ido à escola em bondes puxados a cavalos, se encontrou subitamente à intempérie, em uma paisagem em que nada havia restado sem mudanças, exceto as nuvens. Entre elas, rodeado por um campo de força de correntes devastadoras e explosões, se encontra o minúsculo e quebradiço corpo humano. (BENJAMIN apud LARROSA 2014, p.51)
O silêncio daqueles que retornam da guerra fala da própria ausência de
palavras que simbolizem os acontecimentos. Se trata da impossibilidade de
representar, tão forte é um fato, que se torna irrepresentável.
O irrepresentável na arte
Desde o surgimento da chamada arte no ocidente, a representação tem
orientado uma produção artística. Nas cavernas de Chauvet e Lascaux, o homem
retratou a própria figura humana e os animais que o rodeavam. Ao longo da história a
arte se entreteve na busca da verossimilhança. Foi criada na renascença a técnica da
perspectiva, para que um objeto bidimensional (a tela do artista) ganhasse uma
profundidade característica da tridimensionalidade. O fascínio pela representação
“fidedigna” levou os artistas à estudos tão complexos do corpo homem que artistas
como Leonardo da Vinci chegavam a dissecar cadáveres para aperfeiçoar sua
compreensão do corpo humano. Em ocasiões de exposições de arte, era comum
alguns artistas colocarem cestos de frutas escondidas próximas a telas de naturezas-
mortas numa relação sinestésica que buscava potencializar a sensação do espectador
de que o quadro seria uma janela da vida.
Entretanto, nem tudo é passível de ser representado pela arte. Um dos
elementos que fazem um dado ser irrepresentável é o excesso de presença. O excesso
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de presença lida com um aspecto de irrealidade, que retira do elemento seu peso de
existência. “Nesse caso, fala-se que certas coisas não são da alçada da arte. Não se
podem acomodar ao excesso de presença e à subtração de existência que lhe são
próprios e definem, em termos platônicos, seu caráter de simulacro” (RANCIERE,
2012, p.120).
Um dado importante da representação diz respeito à sua própria essência: por
um lado, a representação é explicitamente fictícia, seja na forma de tela pintada,
objeto, teatro, etc.; e por outro lado, esse fictício possui semelhanças ao real, dessa
forma dialoga com as emoções sinceras do espectador.
Frente ao fato do irrepresentável, é interessante perceber distintos momentos
da história da arte. Um primeiro momento se deu antes do modernismo, quando a
representação do mundo tal qual ele se apresentava era o tema da arte, buscando
através de meios técnicos essa representação do real; num segundo momento a arte no
modernismo buscava ser autônoma, “de modo que a arte de certa forma se tornou o
seu próprio assunto”; já a produção contemporânea, não tem como tema nem a
representação, nem a própria arte, o seu interesse está no real, no cotidiano, a arte se
mostra indistinguível do mundo, indissociada (DANTO, 2006, p. 9).
Ernst Fischer, em seu livro A necessidade da arte, publicado em 1959, aponta
dois tipos distintos de arte, uma arte burguesa, e outra socialista. A arte burguesa
mesmo tendo seu valor cultural carece de uma perspectiva histórica própria de uma
função social. A arte socialista se caracteriza por “uma questão que envolve o
“sentido da vida”, um sentido que não seja metafísico e sim humanista” (FISCHER,
1987, p.243). Em seu capítulo A perda e a descoberta da realidade Fischer declara
que todo homem tem a responsabilidade de evitar a guerra, e atribui um sentido
heroico à arte socialista, com função de apontar um mundo mais racional, mais
humano. De um certo modo, é nesse sentido que se opera a produção dos artistas que
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buscam a relação da arte com a vida, uma arte que busca como afirmou o artista John
Cage, nos despertar para a realidade da vida que vivemos (TOMKINGS, 1968, p.73).
Memória e o Monumento
Retornando ao tema do museu, percebemos que a própria existência do museu
diz respeito a uma memória coletiva. Essa memória não é permanente ou fixa, ela é
ajustável, sempre sujeita a reconstrução, a interferências. “A memória de uma
sociedade é negociada no corpo social de crenças e valores, rituais e instituições. No
caso específico das sociedades modernas, ela se forma para espaços públicos de
memória tais como o museu, o memorial e o monumento” (HUYSSEN, 2000, p.68).
Os monumentos possuem também sua complexidade, em momentos de
rebelião são destruídos e derrubados, ao longo da história muitos adquirem uma aura
mitológica, outros ainda são relegados ao esquecimento. Percebemos nesse contexto
que a valorização da memória é um dado cultural, algumas culturas valorizando a
memória mais do que outras. É frequentemente postulado que nossa cultura sofre de
um momento de amnésia. O próprio discurso da modernidade defende um corte com
os elos de ligação com o passado. Como escreveu Primo Levi, o Terceiro Reich travou uma guerra obsessiva contra a memória, praticando “uma falsificação orwelliana da memória, uma falsificação da realidade, uma negação da realidade”. E é sabido que essas estratégias de negação e repressão não desapareceram com a queda do regime nazista. Cinquenta anos depois da famosa Conferência de Wannsee, na qual pela primeira vez se deu uma forma política e burocrática à Solução Final, o Holocausto e sua memória continuam a ser um desafio às pretensões humanistas e universalistas da civilização ocidental. (HUYSSEN, 2000, p. 70)
O tema do esquecimento e da rememoração não só atingem o cerne da
identidade ocidental, como influem em todo o contexto sócio cultural da sociedade.
Elementos vivenciados por uma cultura, mesmo esquecidos, não deixam de ser
presentes. Eles são como um fato traumático que o próprio organismo humano guarda
no inconsciente, poupando o indivíduo de algo que ele não poderia elaborar naquele
momento, mas que permanece como ausência presente, influindo em outras relações
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estabelecidas pelo indivíduo, como um dado silencioso que a qualquer momento pode
ser liberado para o consciente pelo próprio corpo.
Nesse sentido, os monumentos dão luz aos fatos, expõem o real, trazem o
elemento histórico para uma presença material. Huyssen observa que os museus,
memoriais e monumentos se revigoraram depois de longos anos relegados ao
esquecimento. “Sua recém-adquirida importância junto à consciência do público, seu
sucesso na cultura contemporânea, ainda não encontraram uma explicação. ” (2000,
p.76). O interesse recente no que envolve a Segunda Guerra e o Holocausto é parte de
um movimento de rememoração. Ainda que o Holocausto levante problemas intratáveis para qualquer projeto de representação memorial, o aumento da frequência com que se erguem novos museus e monumentos sobre o Holocausto em Israel, na Alemanha, na Europa, assim como nos Estados Unidos, evidentemente faz parte de um fenômeno cultural mais amplo. (HUYSSEN, 2000, p. 77)
Com esse movimento de rememoração, entretanto, ocorre o distanciamento do
verídico, consequente à representação do dado irrepresentável, como tratado
anteriormente. “Representações popularizadoras e comparações históricas são parte
indissociável de uma memória do Holocausto que se tornou fraturada e sedimentada
de múltiplas maneiras” (Idem, p.79).
Na relação estabelecida entre cultura e arte, frente aos acontecimentos de
Guerra, lidamos com um dado real: Algo aconteceu ali [em Auschwitz] que até então ninguém considerava sequer possível. Ali, alguém encostou em algo que representa a camada mais profunda da solidariedade entre todos os que vestem um rosto humano; não obstante todos os atos costumeiros de bestialidade na história humana, a integridade dessa camada comum era tida por segura. (...) Auschwitz mudou as bases da continuidade das condições de vida na história. (HABERMAS apud HUYSSEN, 2000, p.95-96)
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A afirmação de Habermas denuncia um carácter intrigante da narrativa de
fatos traumáticos históricos, que tem a ver com uma dramaticidade. Nesse sentido,
retornamos a questão do irrepresentável; a arte, e também outros tipos de narrativa,
como a poesia, a prosa, e mesmo texto teóricos, reflexões críticas, na sua descrição
(representação) furtam do dado representado o seu caráter de real, operando uma
transfiguração do elemento retratado para o caráter de criação. A criação não é uma
atitude consciente de mistificação, ao contrário, ela é um elemento parte da própria
percepção. Aquele que narra algo e representa, primeiro percebe e absorve àquilo a
ser transmitido.
Sobre a percepção observamos que a expressão é uma parte contida da própria
percepção:
A impressão é apenas metade da percepção. A outra metade é a expressão. A uni-las, está a inteligência – o conhecimento acurado das observações perceptuais. Pela impressão, conciliamos a informação que recebemos do ambiente. A impressão atrai e ordena; a expressão afasta e projeta. (SCHAFER, 1991, p. 216)
A relação da percepção com o corpo humano foi amplamente estudada por
diversos teóricos, dentre eles o filósofo francês Henri Bergson. Em sua publicação
Matéria e Memória, Bergson afirma que a percepção de elementos do presente
normalmente é mesclada com a imaginação, com memórias, lembranças,
pensamentos, planejamentos e associações. A mente, portanto, oscila entre a
percepção de dentro e de fora do corpo, sendo esse [o corpo] o elemento de partida de
todas as percepções. Os psicólogos que estudaram a infância sabem bem que nossa representação começa sendo impessoal. Só pouco a pouco, e à força de induções, ela adota nosso corpo por centro e torna-se nossa percepção. O mecanismo dessa operação, aliás, é fácil de compreender. À medida que meu corpo se desloca no espaço, todas as outras imagens variam; a de meu corpo, ao contrário, permanece invariável. Devo portanto fazer dela um centro, ao qual relacionarei todas as outras imagens. (BERGSON, 1999, p.46)
Dessa forma, pode-se concluir que não só nossas percepções partem de nosso
próprio corpo, como são resultados dessa fusão de elementos externos apreendidos,
com associações e memórias pessoais.
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Acerca da fusão de elementos externos com elementos pessoais, Bergson
completa que na percepção o corpo ocupa o centro das imagens e regula todas as
outras. Essa regulagem diz respeito às nossas memórias, elas acrescentam dados,
numa fusão que atribui significados pessoais às imagens, e dessa forma as
ressignifica. Para Bergson as lembranças “deslocam nossas percepções reais, das
quais não retemos então mais que algumas indicações, simples "signos" destinados a
nos trazerem à memória antigas imagens” (1999, p.20). Esse pensamento pode ser
complementado pela afirmação do filósofo francês Merleau-Ponty de que “as coisas
não são, portanto, simples objetos neutros, que contemplaríamos diante de nós; cada
uma delas simboliza e evoca para nós uma certa conduta, provoca de nossa parte
reações favoráveis ou desfavoráveis” (MERLEAU-PONTY, 2004, p.23). Dessa
forma, compreendemos que um mesmo elemento apresentado para um grupo não será
percebido de modo unificado.
Arte e Vida
No momento em que a arte se distancia de uma representação e se aproxima
da própria realidade de vida através da conexão com o cotidiano, é notório um aspecto
político que coloca o espectador em diálogo direto com um dado social.
Observamos, que para muitos artistas, “o ato de criação tornou-se um processo
coletivo de criação, um contínuo dialético, reduzindo-se, assim, a importância da
invenção original isolada (BRECHT, 2005, p.170). Essa criação se torna coletiva pelo
convite que ela faz ao espectador para uma participação mais ativa, não apenas com
um olhar crítico, mas com todos os seus sentidos, com seu corpo. Brecht pensa numa
aproximação da arte com a realidade social, buscando despertar o espectador para
essa realidade e investindo o teatro de uma função política. Uma aproximação da arte
com a vida, surge em detrimento de uma ação dramática histórica descolada do
espectador e de seu contexto histórico-social.
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A ciência e a arte assumem, na estruturação social da nossa República, uma posição de tal modo eminente, por ser essa a posição adequada à importância de uma ciência progressista e de uma arte realista. Esta política-através-da-cultura exige à nossa inteligência uma fecunda colaboração, à altura dos seus objetivos. A política é coadjuvada por um movimento literário, teatral e cinematográfico, que tem por objetivo auxiliar milhares de homens na compreensão do passado e do presente e no conhecimento do futuro; pelos pintores, escultores e músicos, em cuja arte transparece algo da maneira de ser da nossa época, e cujo otimismo ajuda milhares de homens. (BRECHT, 2005, p. 178)
Compreendemos pelas declarações de Brecht que seu intento é proporcionar
conhecimento, em uma relação direta da arte com seu tempo. O caráter político de sua
arte se distancia de um enredo dramático, que buscava entreter o espectador. “O teatro
é uma assembleia na qual as pessoas do povo tomam consciência de sua situação e
discutem seus interesses, dizia Brecht após Piscator” (RANCIÈRE, 2012, pg. 11).
Rancière aponta que segundo o paradigma brechtiano, o teatro possibilita que o
espectador se torne consciente de sua própria situação social, e a partir dessa
consciência adquira desejos de transformação (p.13). Uma forma encontrada pelos
artistas de aproximação entre arte e vida, foi através da percepção do espectador. Para nosso espírito europeu, não pode haver nenhum sentido sem o intermédio de uma marca material e duradoura: só o monumento detém o poder de significar. Essa exclusão do frágil e fugidio explica o incessante recurso dos artistas modernos ao pensamento oriental: a contaminação paulatina da arte ocidental por modos de pensamento exóticos, desde as estampas japonesas em que se inspiravam os impressionistas até o zen budismo de John Cage e do movimento Fluxus, permite aos artistas modernos valorizar em sua prática noções relativas à impermanência e à estética de si, radicalmente alheias ao desejo ocidental de monumentalidade. (BOURRIAUD, 2011, p.120-121)
Uma forma interessante encontrada pelo artista John Cage de trabalhar com o
real foi através do silêncio. John Cage foi um músico norte americano da vanguarda
nova-iorquina. Em seus oitenta anos de vida, produziu uma obra que influenciou
muitos artistas e, mesmo depois da sua morte, essa influência até hoje é presente em
distintos campos da produção artística. Uma obra icônica é a peça 4’33” (quatro
minutos e trinta e três segundos); em outros trabalhos, Cage já havia utilizado a
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colagem de sons, o aleatório, o acaso e a indeterminação, mas seu trabalho com o
silêncio/ruído pode ser pensado como o elemento primordial de sua produção, por
reunir todos esses aspectos. A peça 4’33” concebida em 1952 depende de uma relação
com o espaço. Em sua primeira execução, o pianista David Tudor sobe ao palco, em
uma sala de concerto, senta-se ao piano e sua única ação é levantar e fechar o tampo
do piano em três momentos, após 33”, 2’40” e 1’20”. Após esse tempo Tudor abre o
tampo do piano pela última vez e sai do palco. O tempo total dessa performance é de
quatro minutos e trinta e três segundos, tempo em que o público experimenta o que
acredita ser o silêncio como ausência da sonoridade. 4’33” não é uma negação da
música e sim uma afirmação da onipresença sonora (NYMAN, 1999, p. 26).
A crítica de arte Susan Sontag afirma que “o silêncio nunca deixa de implicar
seu oposto e depender de sua presença” (SONTAG, 1987, p.18), o que deixa claro
que o silêncio, seja qual for o contexto, está sempre lidando com um outro elemento.
Sontag afirma ainda que assim como o silêncio não existe, também não existe o
espaço vazio, já que “na medida em que o olho humano está observando, sempre há
algo a ser visto. Olhar para alguma coisa que está vazia ainda é olhar, ainda é ver
algo” (Idem). Nesse sentido, o silêncio surge como uma metáfora, como a busca de
algo a mais, e aparece então como pré-condição para uma “visão asseada” (Idem, p.
235). Essa utilização metafórica é característica da obra 4’33”.
O silêncio é um elemento empregado em contextos diversos, visando
diferentes intenções. Sua presenta é percebida em contextos políticos, em situações
espirituais com intuito transcendental, além de ser utilizado em contextos onde
adquire significados estéticos e conceituais, entre muitos outros. Assim como o vazio,
na arte o silêncio apareceu em momentos em que se almejou algo a mais; em diversos
momentos, o novo esteve relacionado a um esvaziamento do antigo, para que então
pudesse se tornar presente. Esse esvaziamento pode ser entendido como parte
fundamental da adição de novos elementos.
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Acerca dos acontecimentos de guerra não há linguagem disponível, nos faltam
palavras, as palavras que temos não dão contam da dimensão do real, um caminho
possível da própria crise da modernidade é o silêncio. Silêncio como ação, como
atitude, como protesto e como conscientização. Como nos coloca Larrosa, vivemos
uma realidade de estímulos, tudo nos atravessa, sendo capturado ou não por nossa
percepção. A velocidade é inimiga da experiência, o silêncio proporciona esse
despertar que nos fala John Cage. O ganho que se tem com a experiência é o mesmo
ganho que se adquire após a rememoração e elaboração de um trauma anteriormente
relegado ao inconsciente: a aceitação e sua consequente libertação.
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