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“O Teatro é um ensaio da revolução”: Exílio e o Teatro do
Oprimido
O teatro é uma arma. Uma arma muito eficiente.
(Augusto Boal, 1974.)
É o povo que deve manejá-la (...) à sua maneira e para seus fins.
(Augusto Boal, 1977.)
Em “reflexões sobre o exílio”, o intelectual palestino Edward Said1 fala da
dor mutiladora sofrida pelo exilado devido à separação do ambiente familiar. É
com essa dor que se inicia a nova vida nos lugares que este indivíduo tem de
passar a viver e, sendo assim, tudo que se constrói, segundo o autor, é minado
pela permanente sensação de que se está fora do lugar, entre mundos, com
dificuldades de adaptação, submetidos a uma perda desorientadora e à necessidade
de se reconstruir a partir de descontinuidades, já que “voltar para o lar está fora de
questão”. Exílio, para Said, é desestabilização, sentimento, solidão.
São, essas, marcas da ausência do ambiente comunal outrora vivido, que
podem caracterizar a vida de muitos exilados. Nossa proposta é entender exílio
como uma condição, que está vinculada tanto ao momento histórico como à
1SAID, Edward. Reflexões sobre o exílio e outros ensaios. São Paulo: Companhia das Letras,
2002.
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experiência individual de cada exilado. Estudar a trajetória de exílio de Augusto
Boal, através de suas escolhas e produções, nos permite perceber tanto a condição
de exilado vivida por ele como a influência do contexto social e político em suas
obras.
Após a saída do Brasil em 1971 e o encontro com o grupo do Arena que
estava no Festival de Nancy na França, Boal passou a viver um novo momento: já
não havia possibilidade de continuar como diretor do Teatro de Arena e ainda não
era seguro voltar a viver no Brasil.
A decisão foi partir para Buenos Aires, onde sua esposa Cecilia Thumin
tinha familiares. A vivência na Argentina mesclava-se com viagens a trabalho –
por vezes, longas – para outros países americanos, como México, Venezuela,
Estados Unidos, Peru e Colômbia. A estadia do dramaturgo em solo peruano, em
1973, ganha destaque no tocante às suas pesquisas e experimentações no teatro.
Isso, entre 1971 e 1976. Após esses anos vivendo na América, partiu para a
Europa, onde circulou por diversos países, sendo as atuações em Portugal e na
França nossos principais enfoques. Como já se mencionou, Boal voltou ao Brasil
somente em 1986.
Durante esses quinze anos, dentre todos os seus trabalhos, daremos
evidência nesse capítulo às criações que desenvolveram as técnicas do Teatro do
Oprimido. Boal não só as experimentava – e criava coletivamente – com os
diferentes grupos que passava a atuar nos distintos países, toda sua experiência
fazia parte de reflexões e foram teorizadas em livros publicados em vários
idiomas. Escritas por ele no exílio, as obras Teatro do Oprimido e outras poéticas
políticas (1977)2 e Técnicas latino-americanas de teatro popular (1979)
3 são duas
possibilidades de análises dessas criações.
Nessas obras, percebemos a preocupação de Boal em encontrar formas de
redigir as propostas teórico-metodológicas, analisadas e criadas para o teatro,
junto a uma narrativa em que dá enfoque à questão da prática. Teoria e prática não
2 1977 é o ano de publicação no Brasil. Na Argentina, a publicação foi em 1974. BOAL, Augusto.
Teatro do Oprimido e outras poéticas políticas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977. 3 Publicação no Brasil em 1979. BOAL, Augusto. Técnicas Latino-Americanas de Teatro Popular:
Uma revolução copernicana ao contrário. São Paulo: Hucitec, 1979.
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se dissociam nos seus textos. Por essa razão, entendemos como necessário
estabelecer uma narrativa que contemple esses conhecimentos produzidos e
aplicados por Boal, já que toda a escrita nessas obras do teatrólogo parte da
dialética entre produção/reflexão da teoria e prática da mesma.
Essa noção de “aplicação de uma teoria” é, geralmente, entendida e aceita
como referente a um dos usos da ideia de práxis, até os dias atuais, conforme
consta no Dicionário do Pensamento Marxista, editado pelo sociólogo inglês Tom
Bottomore4. No verbete sobre “práxis”, o conceito é compreendido como de
complexa definição. O texto demonstra como essa noção foi interpretada e
discutida por vários teóricos desde a filosofia grega até os estudiosos de Marx.
Desse modo, parte de um significado de práxis como contraposição à poiesis e
theoria, incluindo os rearranjos dessas categorias, até a proposição de práxis
pensada como atividade criativa, sendo definida como revolução.
A relação entre práxis e teoria aparece também no Dicionário de Política
de Norberto Bobbio5. De acordo com o autor, Marx aborda essa relação nas Teses
sobre Feuerbach (1845), quando considera práxis como “atividade perceptiva”,
ou seja, a ação que ao mesmo tempo é conhecimento, e não como contemplação.
A exposição de Marx na décima primeira tese, onde afirma que “os filósofos têm
apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é
transformá-lo” 6, é entendida, nessa perspectiva, como ponto para se pensar a
relação entre teoria e práxis. A transformação ligada à ação partindo do
pensamento teórico e do conhecimento a partir do agir.
Dentre os diálogos que podemos estabelecer entre os apontamentos de
Marx, dos teóricos que estudam o marxismo no século XX e as propostas de arte
política de Boal, pode-se enfocar a contribuição marxista para teorias
questionadoras na América Latina, sobretudo ligada à práxis no âmbito da
educação nos anos 1960 e 1970, que ganhou repercussão internacional
4 A ideia de uso de “prático” no sentido de “aplicado” foi sugerida pelo teólogo e filósofo
medieval francês Hugues de Saint-Victor. Cf. Verbete “Práxis”. In: BOTTOMORE, Tom.
Dicionário do Pensamento Marxista. Rio de Janeiro: Zahar, 2012, p. 430-436. 5 BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política.
Brasília: Editora Universidade de Brasília: São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2000, p.991. 6 MARX, Karl. Teses sobre Feuerbach, 1845. In: The Marxists Internet Archive.
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principalmente com as propostas de educação popular de Paulo Freire. A relação
entre Freire – e a educação popular – e Boal consiste nos diálogos entre o trabalho
do primeiro com os aprofundamentos dos métodos de Teatro do Oprimido
realizados pelo dramaturgo.
Para Freire, educação popular pode ser entendida como o “esforço de
mobilização, organização e capacitação das classes populares; capacitação
científica e técnica”7, sendo um esforço que precisa transformar a organização de
poder burguesa. Educação e política estão diretamente relacionadas nessa
concepção pedagógica. As teses de Freire condizem com a ideia de que a luta de
classes seria fomentada, dessa maneira, em favor das classes populares que, diante
da ordem social estabelecida, vinham sendo oprimidas, inclusive pelo sistema
educativo que corrobora e fortalece esse cenário.
Nesse sentido, era preciso uma pedagogia direcionada para libertação
como forma de contrapor a pedagogia dominante vinculada à opressão. Educação,
na concepção de Freire, teria de estar voltada para a vida dessas classes populares
objetivando, a partir da reflexão de suas realidades, a busca por transformações;
uma pedagogia ligada à conscientização. Os estudos de Freire na América Latina
dos anos 1960 eram, especialmente, vinculados à alfabetização de adultos. Para
ele, o educador popular deve estar em contraposição ao que chama de educação
“bancária”, isto é, um depósito de conteúdos, os quais o educador possui. Na
educação libertadora, o que se pressupõe é um diálogo entre educador e educando,
que se educam entre si, sendo mediados pelo mundo8. A partir daí, cria-se os
termos educador-educando e educando-educador no tocante ao processo de
ensino-aprendizagem, extinguindo a dicotomia entre eles realizada pela educação
“bancária”.
Numa comparação entre os trabalhos de Freire e os apontamentos de
Antonio Gramsci, Raymond Morrow e Carlos Alberto Torres falam da
importância, vista pelos dois teóricos, da educação como prática contra-
hegemônica na busca por transformações sociais. O conceito de hegemonia,
7 FREIRE, Paulo; NOGUEIRA, Adriano. Que fazer. Teoria e Prática em educação popular.
Petrópolis: Ed. Vozes, 1999, 5.ed, p. 19. 8 FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 50 ed., Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2011, p. 95.
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trabalhado por Gramsci, é analisado pelos autores para compreensão dessa
premissa.
De acordo com Gramsci,
(...) os indivíduos nascem num mundo já moldado por uma luta
de classes. Fora dessa luta alguma classe ou aliança de classes
emergiu numa posição dominante e muitas vezes
“hegemônica”; tal classe tentará sempre assegurar uma posição
hegemônica, isto é, ganhar legitimidade política através da
introdução da sua visão cultural no tecido social. Com este
propósito irá colocar os seus intelectuais orgânicos em locais
estratégicos dentro do aparato cultural e ideológico e irá fazer
alianças com os intelectuais tradicionais mais influentes. Após
algum tempo, esta visão do mundo articulada pelos seus
filósofos no domínio da alta cultura irá ser influenciada e
solidificada em senso comum.9
Influenciar e solidificar certas visões de mundo, nesse sentido, não é o
mesmo que manipulação. E é contra essas visões culturais concretizadas no senso
comum que a educação popular – e a intelectualidade ligada à classe dominada –
se coloca. Nas aproximações entre os dois teóricos, Morrow e Torres percebem
que tanto para Paulo Freire como para Gramsci a noção de hegemonia é uma
maneira de explicar a razão pela qual as classes populares tinham dificuldades de
se rebelarem contra suas próprias condições miseráveis, sendo assim, Freire e
Gramsci entendiam como necessário o fortalecimento da organização de
movimentos populares, sobretudo no processo educativo.
Os elementos teórico-metodológicos estruturados por Augusto Boal para
desenvolver o Teatro do Oprimido tinham aproximações com essa perspectiva de
educação popular na América Latina. A ideia de fortalecer as classes dominadas,
sendo entendido o uso do teatro como prática dessa contra-hegemonia, é um dos
norteadores dos métodos teatrais de Boal. Considera-se, assim, o teatro como ação
cultural libertadora.
9 O trecho é uma análise de Walter Amdanson sobre Gramsci discutida pelos autores.
V.AMDANSON, Walter. Apud. MORROW, Raymond; TORRES, Carlos Alberto. “Gramsci e a
educação popular na América Latina: Percepções do debate brasileiro”. In: Currículo sem
Fronteiras, v. 4, n. 2, Jul/Dez 2004, p.38.
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Pensar o teatro como questionador, como parte da luta de resistência a
ideias impostas por classes dominantes faz parte da trajetória do dramaturgo desde
sua atuação no Teatro de Arena. Pode-se afirmar, então, que a formulação do
Teatro do Oprimido advém sobretudo destes questionamentos de Boal nos anos
1960. No livro Teatro do Oprimido e outras poéticas políticas, o teatrólogo reúne
ensaios escritos desde 1962 até 1973, realizados originalmente em espanhol e em
português. Analisa a trajetória do teatro que, segundo ele, a princípio era livre
(povo era criador e destinatário do teatro), mas que com o tempo foi sendo
dominado pelas aristocracias, passando a estabelecer divisões: alguns atores
seriam protagonistas e o restante, coro. A Poética do Oprimido vai de encontro a
essa forma de funcionamento do teatro, uma vez que destrói as barreiras criadas
pela classe dominante, tanto no que diz respeito à relação entre palco e plateia
(atores e espectadores), como no tocante à barreira, no elenco, entre protagonistas
e o coro: todos devem ser, simultaneamente, coro e protagonistas (Sistema
Coringa, desenvolvido no Teatro de Arena) 10
.
Nas relações entre as propostas revolucionárias (na arte e na educação) de
Boal e Freire, pode-se destacar a ação dialógica no processo de aprendizagem que
busca melhores transformações sociais. Segundo Paulo Freire, na teoria dialógica
de ação, não há o objeto dominado e o sujeito que conquista. O que ocorre é a
existência de sujeitos que se encontram no intuito de decifrar, pronunciar o
mundo no sentido de efetivar mudanças. Caso essas camadas populares, num
certo momento histórico, ainda não se considerem capazes de “atender à sua
vocação de ser sujeito” 11
, será problematizando sua própria opressão que
conseguirão realizar isso. No entanto, Freire alerta que promover ações dialógicas
não implica extinguir a figura do líder, a saber, o líder revolucionário. Diferente
da liderança inserida numa ação anti-dialógica, o líder revolucionário, para Freire,
mesmo às vezes tendo um papel de extrema importância, não pode ser
proprietário das massas populares. Esse líder deve estar comprometido com a
liberdade. É exatamente por ter um compromisso com os oprimidos – para que
10
BOAL, Augusto. Op. Cit., p.2. 11
FREIRE, Paulo. Op. Cit., 2011, p. 227.
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estes se libertem – que o líder revolucionário não pode ter pretensão de conquistar
essas massas. Ele deve buscar a adesão do oprimido à libertação12
.
Apontando a trajetória do pedagogo, Boal demonstra essa perspectiva do
ensino-aprendizagem voltado para o diálogo, para o aprendizado mútuo. Além de
ensinar a ler e a escrever, a pedagogia de Freire, de acordo com o teatrólogo,
possibilita aprender a conhecer e a respeitar o outro, a alteridade, o diferente. Boal
ilustra a contribuição desses métodos para o ensino, como ação libertadora, no
sentido de que Freire
(...) descobriu que o “vovô absolutamente não viu o ovo” nem a
“vovó viu a ave coisa nenhuma”, mas, ao contrário - com
certeza certa! –, o pedreiro viu a pedra; a cozinheira, o feijão, o
lavrador, a enxada, a soja e o trigo. E o operário e o camponês
não viam o salário, as férias, o direito à escolaridade dos filhos,
à saúde. O trabalhador não via a hora de descansar. O faminto, a
hora de comer. O povo, a hora da redenção. 13
E continua:
Paulo Freire ajuda o cidadão a descobrir, por si, o que traz
dentro de si. E, neste processo, aprendem o professor e o aluno:
“A um camponês ensinei como se escreve a palavra arado e ele
me ensinou como usá-lo!”, disse o professor rural. (...) O ensino
é um processo transitivo, (...) um diálogo (...). [Para Freire, o
conceito de opressão é] o diálogo que se transforma em
monólogo. 14
Essa proposta de diálogo pode ser visualizada no teatro de Boal
principalmente a partir dos trabalhos do dramaturgo durante sua estadia no Peru,
no início dos anos 1970. A vivência naquele país é bastante explorada no seu livro
Teatro do Oprimido e outras poéticas políticas. Em 1973, o Peru, governado pelo
General Juan Velasco Alvarado, implantou o Plano Nacional de Alfabetização
Integral (ALFIN), que utilizava como inspiração teórica os estudos de Paulo
Freire para alfabetizar adultos, e Boal foi convidado a orientar as atividades de
teatro popular do programa.
12
Idem, p 226-229. 13
BOAL, Augusto. “Paulo Freire, meu último pai”. In: Pátio – Revista Pedagógica. Porto Alegre,
ano I, n.2, ago/out, 1997. 14
Idem.
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O Gobierno Revolucionario de las Fuerzas Armadas (GRFA) – como se
auto-intitulava o governo militar presidido por Velasco – tinha uma especificidade
quando comparado aos demais presidentes militares latino-americanos da época.
No Peru, a ideia de revolução implantada pelas Forças Armadas estava ligada a
grupos nacionalistas e anti-imperialistas na busca pelo desenvolvimento social e
econômico do país. Nesse sentido, diferente de outros militares que tiveram forte
apoio estadunidense para implantar governos de extrema-direita, Juan Velasco
tomou medidas como romper o bloqueio imposto pelos Estados Unidos a Cuba e
fazer alianças com Europa Oriental e China.
Para o sociólogo peruano Julio Cotler, as medidas de Velasco, por vezes,
contraditórias, o caracterizariam como um governo militar populista, pautado na
ideia de integração nacional e política do Peru, com alianças com vários
intelectuais, sindicalistas, militantes de várias tendências, setores médios e
populares, que apoiavam uma luta antioligárquica e de independência peruana
frente à forte dominação do capital estrangeiro naquele país. Em
pronunciamentos, Velasco dizia que seu governo não era comunista, tampouco
capitalista. Segundo o sociólogo, a solução que o presidente dava para estabelecer
esse equilíbrio era fortalecer um complexo sistema institucional capaz de abarcar
os diferentes segmentos da sociedade, de forma harmônica, sob a tutela do Estado
15.
Cotler considera o período que Velasco (1968-1975) esteve no poder como
o momento em que mais se radicalizaram as medidas anti-imperialistas e contra as
oligarquias peruanas. Dentre as propostas do governo, uma reforma educativa
implementada em março de 1972 dava as diretrizes do sistema educacional que
privilegiava o rompimento com o conservadorismo oligárquico, promovendo uma
conscientização sobre a realidade peruana e na busca por transformações sociais
no sentido de integrar classes e etnias, visto suas pluralidades, desigualdades
sociais e divergências.
15
Para um estudo mais detalhado dos problemas da dependência econômica peruana e da
dominação oligárquica no país, v. COTLER, Julio. “Democracia e integración nacional”. In:
_____. Política y Sociedad em el Peru: cambios y continuidades. Lima: Instituto de Estudios
Peruanos, 1994.
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De acordo com a Ley General de Educación de 1972, essa conscientização
estava ligada a um processo educativo “mediante el cual las personas y los grupos
sociales toman conciencia crítica del mundo histórico-cultural en que viven y
asumen las responsabilidades y emprenden las acciones necesarias para
transformarlo”16
. O programa de Alfabetização Integral (ALFIN), no ano seguinte
à promulgação da lei, estava inserido nessa proposta. Apesar de não ter logrado
todas as suas metas, o ALFIN tinha como pressuposto erradicar o analfabetismo
no país em até sete anos após o início desse plano.
Para implementar todas as reformas direcionadas pelo Gobierno
Revolucionario de las Fuerzas Armadas, tinha-se como primordial a promoção de
um sistema educativo que divergisse de toda a história peruana e promovesse um
desenvolvimento social dentro dos novos moldes do governo. De acordo com
Alfonso Lizarzaburu, foram pensadas três fases para que o ALFIN contemplasse
essas metas: pesquisas nos vários lugares com concentração de analfabetos para
descobrir que métodos de trabalho seriam mais adequados; o desenvolvimento de
temas e problemas sociais a discutir e a escolha/utilização da melhor maneira de
alfabetizar. Essas fases poderiam ocorrer simultaneamente de acordo com a
realidade e o interesse de cada local. 17
Lizarzaburu foi membro da Comissão de
Reforma Educacional, da Comissão de Educação para Adultos no Peru e dirigiu o
ALFIN quando Boal trabalhava no programa.
Augusto Boal atuou com grupos de educadores e alunos nas cidades de
Lima e Chaclacayo. O programa de Alfabetização Integral, segundo ele, era
voltado para atividades de ensino em regiões com população de baixa renda nas
zonas rurais, mineiras, barriadas (que se assemelham a favelas) e locais onde não
se falava castelhano. No texto “Uma experiência de teatro popular no Peru”18
,
16
[Processo educativo] mediante o qual as pessoas e os grupos sociais tomem consciência crítica
do mundo histórico-cultural em que vivem e assumam as responsabilidades e empreendam ações
necessárias para transformá-lo. Trecho da Ley General de Educación de marzo de 1972, apud.
CHIAPPO, Leopoldo. “Reforma educativa peruana: Necesidad y Esperanza”. In: Nueva Sociedad.
1977, n.33, p. 62. 17
LIZARZABURU, Alfonso. “ALFIN, an experiment in adult literacy training in a society in
transition”. In: Prospects- Quarterly Review of Education. UNESCO, 1976, n.1, v. 06. 18
BOAL, AUGUSTO. “Uma experiência de teatro popular no Peru”. In:___. Op.Cit., 1977.
58
Boal comentou as dificuldades de trabalhar com alfabetização num país com
grande quantidade de idiomas e dialetos diferentes entre seus habitantes.
A solução era, em primeiro lugar, alfabetizar na língua materna e em
castelhano. A medida seguinte era alfabetizar em todas as linguagens possíveis,
principalmente as artísticas, como o cinema, a fotografia e o teatro, contemplando
formas novas de conhecer a realidade. Todos os idiomas são linguagens, enfatiza
Boal, “mas nem todas as linguagens são idiomáticas! Existem muitas linguagens
além de todas as línguas faladas e escritas”19
. Novas linguagens possibilitariam
novos questionamentos, novos resultados. Por isso, a importância de se utilizar
variados artifícios para entender, expressar, dialogar e criticar o real.
Nos livros de Boal que analisamos, há várias narrações sobre diversas
experiências que teve com esses grupos de alfabetizadores e analfabetos durante
os anos de exílio. Uma delas foi o uso da fotografia naqueles cursos. Em vez de os
instrutores levarem fotos e discuti-las com os alunos, eram estes mesmo que as
fotografavam e davam “fotos-respostas” aos capacitores. Perguntava-se na língua
castelhana (uma linguagem) e respondia-se em outra linguagem, a fotografia. Os
meios de produção da fotografia eram transferidos ao aluno para que pudesse
analisar sua realidade e buscasse algum tipo de reflexão mais profunda, individual
e coletivamente.
E como alfabetizar através do teatro? Como transferir os meios de
produção dessa arte para os alunos?
Os meios de produção da fotografia estão constituídos pela
máquina fotográfica, que é relativamente fácil de manejar, mas
os meios de produção de teatro estão constituídos pelo próprio
homem, que já não é tão fácil de manejar 20
.
Com esse pensamento, Boal dizia ser necessário converter o espectador em
ator, deixando de ser objeto e tornando-se sujeito da encenação. Para que isso
aconteça, o dramaturgo enumera uma série de exercícios realizados em turma.
19
Idem, p.125. 20
Idem, p. 131.
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Alguns já eram de seu conhecimento; outros, aprendia na experimentação com os
peruanos.
A ideia dessas atividades era não somente dar ferramentas para que
pudessem atuar, mas também para que refletissem e desconstruíssem, em cena, as
desigualdades sociais a que se submetiam e estavam presos por conta de classes
ou etnias, usando, para isso, o teatro como linguagem e como discurso. Era a
partir dessas desconstruções que seria possível criticar uma realidade.
Essa noção de desconstruir “fatos dados” através dos meios teatrais
também foi ferramenta do teatro brechtiano. Nas leituras do crítico teatral Anatol
Rosenfeld sobre o dramaturgo alemão, isso aparece no “efeito de distanciamento”,
do “estranhamento”, em algumas peças de Brecht. É estranhando aquilo que se
tornou familiar e aparentemente imutável pelo hábito, que se pode questioná-lo e
se convencer da necessidade de intervir transformando-o, de acordo com a poética
de Brecht. As peças precisavam, assim, serem montadas relativizando
determinadas situações para que fosse possível perceber suas condições
passageiras e mutáveis, inclusive historicamente ou no espaço geográfico.
Dessa maneira,
(...) o público reconhecerá que as próprias condições sociais são
apenas relativas e, como tais, fugazes e não “enviadas por
Deus”. Isso é o início da crítica. Para empreender é preciso
compreender. Estando identificados com elas pela rotina, não as
vemos com o olhar épico da distância, vivemos mergulhados
nesta situação petrificada e ficamos petrificados com ela. (...) É
preciso um novo movimento alienador – através do
distanciamento – para que nós mesmos e a nossa situação se
tornem objetos do nosso juízo crítico e, para que, desta forma,
possamos reencontrar e reentrar na posse das nossas
virtualidades criativas e transformadoras. 21
Uma das técnicas de Boal utilizadas com o grupo peruano, intitulada
“rituais e máscaras”, exemplifica essa ideia de desconstrução da realidade (em
Boal, leia-se realidade opressora) como verdade absoluta. A proposta era pensar
como as relações de produção definem a cultura de uma sociedade, percebendo as
máscaras de comportamento social que são impostas às pessoas de acordo com os
21
Grifos nossos. ROSENFELD, Anatol. O Teatro Épico. São Paulo: Perspectiva, 2011, p.151.
60
papéis sociais que desempenham. 22
Questiona-se a noção de inferioridade ou
superioridade de indivíduos por estarem em determinadas classes sociais.
A análise é feita a partir de uma situação do cotidiano dos alunos em que
as relações humanas são determinadas ou, usando o termo do dramaturgo,
coisificadas por certos rituais na sociedade e das máscaras que estes impõem a
cada pessoa. O exemplo que o autor demonstra é o diálogo numa confissão de
pecados na igreja: um homem ajoelha, confessa, escuta a penitência, faz o sinal da
cruz e vai embora. Boal acrescenta que essa conversa pode ser realizada de
diferentes maneiras à medida que se mudem as máscaras sociais. Quem é o
homem que se confessa e quem é o padre? Foram encenados o mesmo ritual
quatro vezes, mas, em cada encenação, os atores usaram máscaras diferentes:
primeiro, o padre e o fiel são latifundiários; segundo, padre latifundiário e o fiel
camponês; em seguida, padre camponês e o fiel latifundiário; por último, padre e
fiel camponeses. Não se modifica o ritual – a confissão e o perdão – mas o
diálogo entre os dois homens e as formas de se comportarem socialmente
produziram divergentes cenas montadas pelos atores.
Todo trabalho de Boal naquelas turmas buscava analisar temas que para
os alunos significava um problema social, uma opressão. As questões levantadas
pelos integrantes do grupo e, durante certo momento, conduzida pelo teatrólogo,
eram provenientes de situações reais. O que Boal fazia era estimulá-los a refletir e
estranhar a repressão que viviam. Isso ocorria, sobretudo pela ideia de que
símbolos de repressões são entendidos por cada grupo ou pelos próprios
indivíduos de maneira diferente.
Em Lima, Boal percebeu essa noção quando, utilizando “fotos-respostas”,
questionou o que era exploração. Acreditava que, como era comum, viriam várias
fotos que simbolizassem o imperialismo estadunidense. A imagem do “Tio Sam”
era recorrente nesses casos. Mas, para sua surpresa, fotos respondiam que
exploração era o balcão de um venda, uma repartição pública, o cobrador de
aluguel e, por fim, um dos alunos respondeu com a fotografia de um prego na
parede.
22
Idem, p.167.
61
Segundo Boal, muitos não entenderam o porquê da imagem do prego, mas
com o debate na turma ficou esclarecido. Nas favelas (barriadas) limenhas, os
meninos a partir de 5 anos de idade começam a trabalhar como engraxates, muitos
ficam nessa profissão até a idade adulta. Como não há grande quantidade de
sapatos para engraxar nas regiões em que moram, percorrem uma longa distância,
carregando suas caixas de engraxate, até o centro da cidade para conseguirem
realizar seu trabalho. No entanto, por ser distante de onde vivem, lojas e bares
oferecem-lhes o aluguel do prego, para que possam guardar suas caixas, e cobram
o preço de três soles por noite e por prego. A foto do prego, para esse homem,
representa o símbolo da opressão, caso se fale sobre algum outro símbolo (o
próprio “Tio Sam”, por exemplo) talvez não causasse o mesmo impacto e não
fizesse tanto sentido.
Nessas atividades teatrais do ALFIN, Boal notou que um verdadeiro teatro
popular revolucionário teria que se adequar e promover uma discussão a partir de
realidades de cada povo oprimido. Era necessário criar técnicas para que cada
grupo submetido a opressões pudesse questionar ou ao menos estranhar esse
mundo opressor. Essa é uma das críticas – e até mesmo autocrítica – que ele faz
com relação aos teatros que falavam do povo e – de maneira ideal – para o povo
nos anos 1960 no Brasil. O Centro Popular de Cultura da UNE (e suas filiais) até
o golpe civil-militar de 1964 e, de certa maneira, o próprio Teatro de Arena de
São Paulo até meados dos anos 1960 são exemplos dessa proposta. Era um
didatismo de fórmulas acabadas no intuito de conscientizar, já que acreditavam
que saberiam os caminhos da revolução e necessitava apenas refletir e fazer com
que o povo entendesse essas ideias.
“Teatro é ação!”, exclamou Boal no livro Teatro do Oprimido. Não há
fórmulas acabadas, há opiniões e direções que podem ser dadas em cena para que
oprimidos possam refletir o vivido e pensar ações futuras. Segundo ele, faz-se
necessário transferir os meios de produção do teatro para o povo, para que ele
passe a ser o protagonista da ação dramática e de sua vida e não um ser passivo e
submisso a classes e ideias.
62
A noção de povo é recorrente nos textos de Boal. Nos livros que discute o
TO, fica claro que quando remete à ideia de povo, esse é identificado pelo
dramaturgo como o que sofre opressões. É aquele que, por séculos – e inclusive
na história do teatro – sofreu também por tentarem permanentemente calá-lo e
submetê-lo às lógicas da dominação. Como aparece em Técnicas latino-
americanas de Teatro Popular, num texto escrito ainda em São Paulo em 1970,
quando era diretor do Teatro de Arena, entendia como povo,
(...) a designação genérica dos operários, camponeses e de todos
aqueles que ainda que temporária ou episodicamente a ele
estejam associados – como pode ocorrer, por exemplo, com os
estudantes, em certos países. Os que fazem parte da população,
mas não pertencem ao povo, são os proprietários, a burguesia,
os latifundiários e todos aqueles que possam a eles estar
associados (...). 23
Essa é uma consideração historicamente datada. A ideia de pensar povo
unido a grupos de estudantes que “a ele estejam associados”, mesmo que de forma
episódica ou temporária, estava inserida num discurso de luta contra os males do
capitalismo e ao governo autoritário que na época estava instalado no Brasil.
Eram essas lutas que alguns intelectuais e militantes de esquerda, onde se incluía a
grande base estudantil, travavam em vários setores e também nos meios teatrais.
Quando citarmos e analisarmos os apontamentos de Boal nos anos de
exílio e principalmente depois da experiência peruana, a ideia de povo é, com
frequência, ligada a noção de oprimido. É o diálogo com o oprimido que move o
teatro considerado revolucionário por Boal. Com e para essa categoria, Boal
desenvolveu pesquisas e atuou naqueles anos de exílio: “Teatro é uma arma, e é o
povo que deve manejá-la!”, “à sua maneira e para seus fins”. 24
A transformação de espectadores em atores – e, por fim, questionadores
das realidades opressoras – iniciava-se com uma série de jogos teatrais. Vários
deles foram experimentados no ALFIN. Propunha-se, em primeiro lugar, duas
etapas de preparação, o “conhecimento do corpo” e “tornar o corpo expressivo”.
23
BOAL, Augusto. Op.Cit., 1979, p. 25. 24
BOAL, Augusto. Op.Cit., 1977, p.127.
63
Depois disso, poderia ser utilizado o teatro como linguagem e, finalmente, como
discurso. 25
A primeira etapa preparatória, “conhecimento do corpo”, tinha por
objetivo “desfazer” as estruturas musculares dos participantes para que pudessem
perceber até que ponto seu corpo é determinado pelo seu trabalho. Conscientizá-
los de como as máscaras sociais de comportamento interferem até mesmo na sua
postura. “Desmontada” uma forma de comportamento, era possível “montar”, nas
atividades, estruturas musculares de outras profissões e outras classes sociais,
estando capacitados para interpretarem pessoas diferentes de si. Já a ideia de
“tornar o corpo expressivo” tinha como foco fazer com que o participante
começasse a atuar, mesmo que ele não percebesse isso, desenvolvendo a
capacidade de expressão corporal, através de jogos que não usassem as palavras
para a comunicação26
.
Vemos que toda essa preparação era para que os alunos não ficassem
presos a realidades que dificultassem reflexões e questionamentos na busca por
transformações em suas vidas e na sociedade. Partia-se da experiência individual
para chegar a realidades opressoras em grupos e na sociedade. A própria ideia de
um teatro voltado para o oprimido está inserida nessa perspectiva. São vivências
de repressões pontuais, vividas por cada oprimido, que encontram no diálogo em
grupo e na tentativa individual da mudança, a possibilidade de questionar e lutar
contra determinada opressão.
Os temas a serem discutidos aparecem nas propostas de teatro como
linguagem e no teatro como discurso. Perceber a ideia de Boal para o teatro como
linguagem mostra-nos como se dava a inserção do oprimido na encenação teatral
e como poderia ser utilizada como ferramenta para a transformação social. Isso é
visto nos três graus de participação do público na cena: a dramaturgia simultânea,
25
Não serão aqui enumeradas todas as atividades teorizadas por Boal, mas aquelas que
percebemos como cruciais e exemplares para entendermos essa proposta teatral voltada para a
libertação dos oprimidos. Os jogos teatrais e as etapas, junto às formas de TO encontram-se
explicadas sucintamente em BOAL, Augusto. Op.Cit., 1977, pp. 131-168. Todas as modalidades
apresentadas no presente texto foram analisadas nessa parte do livro. 26
Idem.
64
o teatro-imagem e o teatro-debate. Os graus de inserção são assim dispostos em
ordem crescente de interferência da plateia no palco.
No primeiro, há uma espécie de dramaturgia coletiva do público popular.
Uma cena, proposta por algum integrante do grupo, é representada pelos atores. A
cena deve constar um problema social e deve prosseguir até o momento em que
apareça a questão central, que precise de uma solução. Interrompe-se e a
discussão é aberta para o público. Que medidas poderiam ser tomadas para
solucionar aquele problema? Que maneiras de se comportar poderiam ser
adotadas para que o personagem que sofre a opressão não termine em uma
situação de fracasso? A partir de perguntas como essas, o público intervém na
cena e os atores vão improvisando todas aquelas opiniões levantadas e discutidas
pelo grupo, ou seja, “enquanto a plateia ‘escreve’ a peça, o elenco
simultaneamente a interpreta”. 27
Esses debates produzem reflexões concretas de
situações reais vividas por aquelas pessoas, que assistem ao ator representando
suas vidas, seus problemas e encenando suas opiniões.
No teatro-imagem, uma aproximação mais direta do público, com
participação física na montagem, aparece. A ideia dessa técnica, utilizada nas
aulas, possibilita entender os fatos e as situações através da formação de imagens
montadas com a expressão corporal dos atores. Ocorre da seguinte maneira: o
participante traduz em imagens concretas o que quer expressar, utilizando os
outros participantes para moldar um conjunto de “estátuas” que seja possível
narrar uma determinada opressão.
Em nenhum momento, pode-se falar. Com a imagem esculpida, abre-se
para alterações e todos têm direito a modificar em parte ou totalmente a posição
inicial, a imagem real da opressão. Sempre sem falar, cada um pode fazer
mudanças na imagem real, mostrando o caminho para a revolução através das
imagens de trânsito concretas, transformando, por conseguinte, a imagem real na
imagem ideal. 28
Essa experiência, como todas as demais, também enfatiza a ideia
de símbolos de determinados grupos sociais. A imagem da opressão é sugerida
27
Idem, p.140. 28
Idem, p.144.
65
pelos participantes, a ideia é que, preferencialmente, seja um problema que esteja
ocorrendo com aquele grupo que, coletivamente, montam a imagem ideal.
O terceiro e último grau do teatro-linguagem é o teatro-debate, técnica que
promove o teatro-fórum, o ponto central do Teatro do Oprimido. O teatro-fórum é
divido em dois momentos. No primeiro, apresenta-se uma peça
convencionalmente, mas apontando para um problema no qual o protagonista não
tem uma solução. O problema deve constar a opressão que se deseja combater.
Finalizada essa parte, começa um novo momento. A peça é novamente encenada,
mas ganha outro sentido: a qualquer momento, o público pode interferir, dizendo
para parar a encenação. Os atores congelam aquela cena e o espectador intervém,
veste parte do figurino do ator que escolhe para substituir, mantêm as ações físicas
do mesmo, dando continuidade e um novo rumo para aquela história, junto aos
demais atores. Através das ações desse novo integrante que se pode refletir e
questionar aquela realidade posta em questão.
O foco é na ação. Qualquer ideia pode ser proposta, mas não é permitido
que o público dê sugestões sem encenar, acomodados nos seus assentos:
Tenho visto espectadores sempre disconformes que revelam ser
extraordinários revolucionários... porém sentados nas suas
poltronas. Fala é muito fácil, é muito fácil sugerir atos heroicos
e maravilhosos. O mais difícil é realizá-los. Esses mesmos
espectadores se darão conta de que as coisas são um pouco mais
difíceis do que pensam se tiverem que fazer eles mesmos os
atos que preconizam. 29
A gênese dessa forma de TO era frequentemente associada por Boal à
lembrança de um episódio que ocorreu no grupo de teatro popular que ele tinha
montado com os alunos peruanos, ainda em 197330
. Na época, trabalhavam com
dramaturgia simultânea para as cenas montadas e depois improvisadas pelos
atores a partir das interferências do público-dramaturgo. Acontece que, num
29
“Disconforme” é uma palavra em castelhano que, no português brasileiro, traduz-se em
“desconforme”, “discordante”. BOAL, Augusto. Op. Cit., 1977. 30
A história da peça que deu origem ao teatro-fórum foi narrada por Boal no documentário
“Augusto Boal e o Teatro do Oprimido”, assim como mencionada no seu livro “Hamlet e o Filho
do Padeiro” (2000). Os grupos de Teatro do Oprimido, atualmente, também utilizam essa história
para mostrar a gênese dessa forma de teatro e o impacto da entrada em cena do espectador.
66
determinado dia de debate, o texto da peça contava a seguinte história: uma
mulher analfabeta trabalhava muito e praticamente sustentava seu marido – que
não era um bom trabalhador. O marido sempre lhe pedia dinheiro, alegando estar
construindo uma casa para eles. Assim, ela entregava a quantia solicitada e, por
sua vez, o marido sumia durante semanas. Quando voltava, entregava um papel à
esposa, dizendo que era o recibo das compras para a obra. Após repetidas vezes
ocorrer essa cena, há uma briga entre o casal e a esposa resolve pedir a uma
vizinha que lesse para ela os papéis dos recibos, conferindo os valores. Para seu
espanto, a vizinha disse que não só inexistiam recibos, como aqueles papéis eram
cartas de amor da amante de seu marido. A cena foi interrompida no momento
dessa descoberta e a atriz, que interpretava a esposa, voltou-se para a plateia em
busca de soluções, iniciando uma discussão de teatro-debate.
Foram muitas opiniões sobre o que fazer quando o marido voltasse para
casa. Na última solução proposta, apareceu uma mulher forte e alta, que estava
indignada com a situação, e disse para a esposa ter uma conversa muito clara com
seu marido. Boal, então, retomou a cena e pediu que os atores improvisassem o
que foi solicitado. Encenaram e a mesma integrante da plateia continuou
insatisfeita, dizendo que não era daquela maneira que ela tinha sugerido.
Montaram a cena novamente e a mulher, por várias vezes e enfurecida, discordava
da representação. Boal, por fim, a convidou para atuar e mostrar o que ela, de fato,
queria que fizessem naquela peça, qual era sua solução, ou seja, o que seria uma
conversa clara com o marido, segundo aquela espectadora.
Foi, então, que aquela mulher subiu ao palco, substituiu a atriz e iniciou
sua atuação. Primeiro, xingou bastante o ator que representava o marido adúltero
e, em seguida, pegando uma vassoura para dar uma surra nele, disse: “Eu preciso
ter uma conversa muito clara com você!”. Assim, “ela entrou em cena dividindo-
se em duas: ela e a personagem”31
, um “espect-ator”, como Boal passou a
classificar, aquele que observa e age.
Nesse sentido, o dramaturgo percebeu que para “ver” o pensamento das
pessoas era melhor que fosse através de seus atos e não de suas palavras. Só 31
BOAL, Augusto. Hamlet e o Filho do Padeiro: Memórias Imaginadas. Rio de Janeiro: Record,
2000, p. 298.
67
assim, o teatro passaria a ser um “teatro de perguntas”, de questionamentos. Não
cabia ao intelectual, ao estudante de teatro, ao ator que fazia parte da montagem
da peça conduzir, representar ou ensinar. Era o povo que deveria deter os meios
de produção do teatro e interferir diretamente nos destinos das encenações, até
porque – enunciando o conceito de práxis nas teses marxistas32
– Boal exclamava:
“‘Não basta interpretar a realidade: é necessário transformá-la! ’ – disse Marx,
com admirável simplicidade”. 33
O palco e a plateia agem, mutuamente, como espectador e ator, em uma
igualdade de posições. Naquele teatro popular, o povo é o protagonista, mas não
somente do conteúdo das obras, em que ele é o tema central e sua realidade é
discutida, como era feito em muitas montagens teatrais. Na concepção do
dramaturgo, a proposta era que o próprio povo conduzisse a encenação,
reassumindo “sua função protagônica no teatro e na sociedade”. 34
Sendo assim,
transformam a ação inicialmente enunciada e oferecem sugestões modificadoras a
partir de suas vivências e de seus desejos. Em outras palavras, a Poética do
Oprimido propunha o aspecto transformador da ação dramática, em que, segundo
Boal, o espect-ator “invadindo nosso espaço, concretizava sua verdade”. 35
Possivelmente comparando à sua trajetória ao longo dos anos 1960 e à
ideia do intelectual capaz de conscientizar, dar as palavras de ordem ao público
para que pudessem refletir sobre algumas situações pensadas pelo próprio
intelectual, Boal comenta essa nova proposta: “Longe o tempo em que
ensinávamos tudo, os sabichões. Quando violou as regras do jogo, senti alívio: eu
não era obrigado a saber, sempre, o bom caminho. Não devia mais me sentir
culpado!”. 36
Questionamento semelhante Boal fazia ao dramaturgo alemão Bertolt
Brecht, um dos grandes referenciais teóricos para suas produções. A discussão
sobre a relação entre público e palco é problematizada nos apontamentos de
32
MARX, Karl. Teses sobre Feuerbach, 1845. In: The Marxists Internet Archive. 33
BOAL, Augusto. Teatro do Oprimido e outras poéticas políticas. São Paulo: Cosac Naify, 2013,
p. 18. 34
BOAL, Augusto. Op. cit, 1977, p. 123. 35
BOAL, Augusto. Op. cit., 2000, p.298. 36
Idem.
68
Brecht sobre o teatro épico. Walter Benjamin considera essa questão em que
Brecht se insere como o “desaparecimento da orquestra”, onde palco e plateia
ganham funções diferentes e se aproximam, na medida em que para o público, o
palco passa a se apresentar “como uma sala de exposição, disposta num ângulo
favorável” e não sob a forma de “tábuas que significam o mundo”, num espaço
mágico e ilusório. Por sua vez, a função da plateia em relação ao palco também é
alterada, pois ela passa a ser uma espécie de “assembleia de pessoas interessadas,
cujas exigências ele [o palco] precisa satisfazer”. 37
Brecht deseja uma plateia de espectadores especializados, tal como
ocorrem em competições de esportes com o público interessado e conhecedor que
dá palpites e questiona a atuação dos personagens daquelas ações, em detrimento
de uma plateia de “cobaias hipnotizadas”, usando o termo de Benjamin para
expressar esse tipo de público. São pessoas especializadas, capazes de questionar
a peça, o conteúdo dos temas trabalhados em cena e o próprio teatro.
Para Boal, na poética do teatro de Brecht, ainda que houvesse essa
aproximação entre palco e plateia, o espectador delegava poderes ao personagem
para que ele atuasse em seu lugar, mesmo que divergisse do personagem. A
referência a Brecht era feita a partir das considerações do alemão sobre a
dimensão transformadora do teatro na sociedade. Segundo Boal, era uma poética
da conscientização, onde o mundo era tido como transformável, mas a experiência
no teatro era reveladora ao nível da consciência e não da ação. 38
Já não caberia
mais esse tipo de teatro para que fossem promovidas transformações sociais
profundas na América Latina.
De acordo com Boal, não era preciso somente conscientizar, mas sim agir,
buscar ações mesmo que na ficção (no teatro), mas ações concretas, de realidades
concretas e possíveis de serem usadas em momentos reais e próximos. Nas
palavras de Augusto Boal: “Brecht falava que o espectador tem de ficar alerta e eu
37
BENJAMIN, Walter. “O que é teatro épico? Um estudo sobre Brecht”. In: ____. Magia e
Técnica, Arte e Política: Ensaios Sobre Literatura e História da Cultura. São Paulo: Brasiliense,
1994, p. 79. 38
BOAL, Augusto. Op. Cit., 1977, p.169.
69
acho que alerta não basta. O espectador tem de dizer ‘pára’ e entrar em cena”. 39
Como aponta o teatrólogo:
É verdade que, em certa época, Brecht ensaiou formas mais
participativas de teatro; preconizou a dinamização da platéia.
Em alguns dos seus poemas, intuiu a possível utilização do
teatro pelos espectadores, tornados artistas. Mas, em seu grande
teatro, o muro entre palco e platéia não veio abaixo. 40
A proposta didática dos meios teatrais também distanciam os dois
dramaturgos naquele momento. Se para o teatrólogo alemão, a questão do
didatismo estava relacionada sobretudo a montar peças e mecanismos nos
espetáculos (como a interrupção da ação41
) para que se suscitassem ações
transformadoras através das reflexões das plateias, para Boal, o aspecto
pedagógico – o “dever” do diretor de teatro e dos demais artistas – estava ligado à
ideia de que há uma relação dialógica, onde se desenvolvem algumas trocas de
conhecimento entre o palco e a plateia.
Pouco tempo antes de partir para o exílio e ainda atuando no Teatro de
Arena, em 1970, Boal já começava a colocar em prática a ideia de transferência
dos meios de produção teatrais ao espectador – ao povo. Em setembro daquele
ano, o Arena apresentou sua primeira montagem de teatro-jornal, que ia ao
encontro dessa proposta. Com problemas com a censura na ditadura militar e as
dificuldades de montar as peças nos prédios dos teatros, por conta da alta
vigilância, o Arena tinha atividades também fora dos muros do teatro institucional
e ia, principalmente, para sindicatos e universidades – que também acabavam
sendo reprimidos.
39
AUGUSTO Boal exilado. In: Caros Amigos, março de 2001, p. 31. 40
BOAL, Augusto. O teatro como arte marcial. Rio de Janeiro: Garamond, 2003, p.37. 41
A interrupção da ação em cena tinha um caráter explicativo e questionador e era feita através de
músicas ou, por vezes, dos próprios diálogos dos autores que interrompiam algumas falas para se
comunicarem com o público. Anatol Rosenfeld mostra um exemplo desse mecanismo usado por
Brecht em O Homem é Homem durante o poema declamado por uma das personagens no meio da
peça. Segue um trecho do comentário em poema: “O Sr. Bertolt Brecht afirma: homem é homem./
Isso é algo que qualquer um é capaz de afirmar./ Mas o senhor B.B. chega a provar em seguida/
Que de um homem tudo se pode fazer./ Aqui, hoje à noite, um homem é transmontado como um
automóvel/ Sem que perca qualquer peça nesta operação.” Cf. ROSENFELD, Anatol. Op. cit.,
p.146.
70
Num texto dessa época e que foi incorporado à obra de sua autoria
Técnicas Latino-Americanas de Teatro Popular, o dramaturgo comenta esse
momento do Arena, comparando-o às montagens teatrais com o rótulo “teatro
popular” naquele momento. Para ele, as técnicas de teatro popular, que já
existiam, tinham
(...) uma característica comum: o teatro é feito pelos artistas, o
espetáculo é uma obra de arte acabada, e este produto final é
oferecido ao povo. Nós, artistas, fazemos arte – e o povo a
consome. Estamos agora criando uma nova categoria de teatro
popular. (...) Nela, o próprio povo faz o espetáculo. Não
produzimos, como artistas, um espetáculo: como técnicos,
produzimos as ferramentas a serem utilizadas pelo povo na
fabricação de seu próprio teatro. 42
Essa proposta teatral está inserida no conjunto de métodos do Teatro do
Oprimido e é classificada entre as modalidades de teatro-discurso. Teatro-jornal
foi utilizado, mais tarde, na Argentina43
, no Peru e nos demais países que Boal
viveu. Em suma, consistia em transformar notícias publicadas nos variados jornais
em peças de teatro. No entanto, a especificidade era a de desconstruir a pretensa
“objetividade” dos jornais, verificar que as informações noticiadas são
intencionais e refletem ideologias e interesses implícitos naquelas páginas.
Naquela conjuntura brasileira de início dos anos 1970, onde jornais da
grande imprensa eram fortemente censurados e algumas notícias mais críticas
corriam nos periódicos alternativos, essas discussões com jornais ganhavam,
ainda, outro significado: a militância contra a ditadura militar; a busca por
questionamentos, de forma coletiva, até mesmo dessa realidade política do
governo brasileiro.
Comparando teatro-jornal a outra forma de teatro-discurso produzida por
Boal, mas nos anos de exílio, percebemos as mudanças e reintegrações de técnicas
produzidas ainda no Brasil, coletivamente com o Arena de São Paulo. Falemos da
proposta teatral da “quebra da repressão”. Essa modalidade, criada e praticada no
42
BOAL, Augusto. Op. cit., 1979, 42. 43
Na Argentina, o teatro-invisível foi criado como teatro-discurso. A técnica consistia em criar
peças problematizadoras de algumas realidades de determinados locais e encenadas em lugares
públicos sem que os espectadores percebam que aquilo é uma encenação. Criam-se debates através
de espetáculos na vida cotidiana.
71
Peru, tinha como base o uso da linguagem teatral do teatro-debate. Nesse caso, o
debate coletivo, junto aos direcionamentos dados pelo oprimido (o protagonista, o
que narra sua história), também tinham o objetivo de questionar as repressões de
dominantes, já que, nas palavras de Boal,
As classes dominantes dominam as dominadas através da
repressão; os velhos dominam os jovens através da repressão,
certas raças a certas outras, os homens às mulheres, sempre
através da repressão. Evidentemente nunca através de um
entendimento cordial, da honesta troca de idéias, da crítica e da
autocrítica. Não. As classes dominantes, os velhos, as raças
“superiores”, o sexo masculino, possuem os seus quadros de
valores e pela força, os impõem às classes dominadas, aos
jovens, às raças que eles consideram inferiores, e às mulheres. 44
Partindo desse pressuposto, Boal propunha aos alunos a atividade. Em
primeiro lugar, uma história de opressão é escolhida e encenada, assim como
ocorre na dramaturgia simultânea e no teatro-debate. A cena contempla
determinado episódio recordado por um integrante, no qual ele tenha se sentido
reprimido e, por aceitar a repressão, agiu de encontro a seus interesses e desejos.
Segundo o dramaturgo, essa situação tem que ter um profundo significado
pessoal, mas partindo de um caso particular (aconteceu com uma pessoa) para o
geral (acontece com os demais na mesma circunstância): “eu, proletário, sou
oprimido! Nós, proletários, somos oprimidos! Portanto, o proletariado é
oprimido!”45
.
Após a cena narrada ser reconstruída, tentando manter a máxima
aproximação do que ocorreu com aquela pessoa, com emoções e diálogos
originais, pede-se que o protagonista repita a cena, mas sem aceitar a repressão,
lutando para impor seus desejos. Boal falava para os demais participantes
continuarem mantendo a opressão, promovendo o choque de ideias. O que ele
pretendia com essa modalidade de TO era, sobretudo, fazer com que aquele
oprimido tivesse uma nova oportunidade. Para o teatrólogo, isso era um ensaio de
44
BOAL, Augusto. Op. cit., 1977, pp. 161-162. 45
Idem, p. 162.
72
resistência à opressão que, por sua vez, pode preparar o indivíduo para uma ação
futura, caso a repressão se repita novamente 46
.
O oprimido age. Não há, em espécie alguma, um aspecto de vitimização.
Pelo contrário, é ele quem tem a capacidade de lutar contra. Ao pensar essa
comparação entre vítima e oprimido nas obras de Boal e, por conseguinte, a
capacidade de transformações sociais desses indivíduos, o sociólogo José Soeiro
afirma:
Confrontando com a questão de saber por que é que com tanta
fome ainda não tinha havido uma revolta, alguém respondia que
“as pessoas não se revoltam quando têm fome, mas quando
acham injusto terem fome”. Esse elemento subjetivo, que é o
que transforma a vítima em oprimido que quer lutar, é essencial
quando se pretende transformar.47
Concordando com os argumentos de Paulo Freire, o dramaturgo percebe
que é o oprimido que melhor se encontra preparado e pode entender o terrível
significado de uma sociedade opressora e seus efeitos.48
Assim, para Boal, a
proposta teatral também não cede à lógica passiva da vítima, o oprimido tem uma
ação clara.
Verificando os métodos de TO agora apresentados (jornal e quebra da
repressão) e os demais aqui analisados, podemos afirmar que, no exílio, os
projetos teatrais de Boal foram metamorfoseados, sobretudo por atenderem outras
demandas e incorporar novas lutas políticas do dramaturgo, que se encontrava
diante de novas redes de sociabilidade49
e outras culturas durante aqueles anos.
O antropólogo Gilberto Velho, na análise das sociedades complexas –
caracterizadas, principalmente, pela dinâmica da coexistência de diferentes estilos
46
Idem. 47
SOEIRO, José. Um ensaio da Revolução: Teatro do Oprimido, teoria crítica e transformação
social. Disponível em http://institutoaugustoboal.wordpress.com . Acesso em: 21 mar. 2013. 48
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2011. Para um estudo
aprofundado das aproximações entre Freire e Boal, cf. TEIXEIRA, Tânia. Dimensões sócio-
educativas do Teatro do Oprimido: Paulo Freire e Augusto Boal. Tese de Doutorado. Barcelona:
Universidade Autônoma de Barcelona, 2007. 49
Um artifício para estudar as redes de sociabilidade do exílio de Boal é o conjunto de
correspondências pessoais que se encontram na Faculdade de Letras da UFRJ, no acervo “Augusto
Boal”. Essa documentação ainda está sendo organizada pela equipe do acervo. Nas cartas,
aparecem variados convites para que Boal lecionasse sobre TO em outros países, bem como
convites para palestras e comentários sobre suas criações teatrais da época.
73
de vida e visões de mundo – define a noção de metamorfose vinculada à questão
da mudança individual em permanência com vivências anteriores, embora
reinterpretadas com outros significados50
. A inspiração para pensar essa questão
vem dos poemas de Ovídio (42 a.C. – 18 d.C.), na Antiguidade Clássica. A obra
As Metamorfoses51
do poeta latino demonstra, segundo o antropólogo, histórias
onde pessoas, deuses e demais criaturas mudam de sexo, forma, natureza, mas
sem nunca extinguirem sinais de estados anteriores, como se nessas
transformações de cada experiência particular mantivessem resquícios imutáveis,
fixos.
Compreendendo a relação dialética entre indivíduo e sociedade, Gilberto
Velho mostra-nos alguns pontos para se estudar as trajetórias individuais e o
contexto em que vivem. Categorias como projeto e campo de possibilidades52
são,
para o autor, pontos-chave para o desenvolvimento de uma antropologia das
sociedades complexas.
Projeto é identificado, nesse sentido, como expressão no nível da
consciência individual, sendo assim, lida com performances, opções e
explorações, vinculadas a definições e avaliações da realidade. A ideia de projeto
não implica em uma decisão rigorosamente organizada, planejada, que aponte
somente para a concretização de um plano, uma vez que não se trata de um
indivíduo-sujeito cognitivo racional, que monta as estratégias e faz cálculos,
“organizando seus dados e atuando cerebralmente” 53
. No texto de Gilberto Velho
sobre “Memória, Identidade e Projeto”, o que se compreende como projeto é a
elaboração consciente a partir de circunstâncias.
50
VELHO, Gilberto. Projeto e metamorfose: Antropologia das sociedades complexas. Rio de
Janeiro: Zahar, 1999. Denise Rollemberg também utiliza os apontamentos de Gilberto Velho na
análise dos relatos orais de ex-exilados políticos da ditadura militar brasileira. A historiadora
iniciou, no Brasil, essa proposta de pensar exílio, já que, para ela, a vida no exílio produz
metamorfoses, uma vez que cria uma identidade vinculada à original, mesmo que diferente dela, v.
ROLLEMBERG, Denise. Exílio: entre raízes e radares. Rio de Janeiro: Record, 1999, p.35. No
nosso estudo, essa referência é utilizada, mas somada às categorias “projeto” e “campo de
possibilidades” analisadas por Gilberto Velho nessa obra. 51
Ovídio. As Metamorfoses. Apud: VELHO, Gilberto. Op.Cit., p.8. 52
As duas categorias têm como referenciais teóricos para o antropólogo as obras de Georg Simmel
e Alfred Schutz (citadas por Gilberto Velho). 53
VELHO, Gilberto. Op. Cit., p.101.
74
De todo modo, a concepção de projeto está relacionada à consciência
individual, ao passo que a ideia de campo de possibilidades é relativa ao que é
dado com as propostas e alternativas do que se configurou no processo sócio-
histórico e com o mundo simbólico da cultura54
. Aí, podem-se incluir o contexto
social, o universo cultural e as conjunturas de determinados momentos históricos.
É nesse repertório sociocultural (podemos dizer: campo de
possibilidades), que os projetos de cada indivíduo são implementados e interagem
com outros projetos, de acordo com Gilberto Velho. Desse modo, dentro de um
campo de possibilidades variáveis, “os indivíduos tomam suas decisões, fazem
suas escolhas, estabelecem suas alianças e, é claro, entram em conflito em torno
de interesses e valores” 55
, podendo, até mesmo, redefinir seus projetos ou manter
projetos contraditórios, que são decididos contextualmente.
É a partir dessas categorias – projeto e campo de possibilidades – que se
pensa a noção de metamorfose. O estudo de caso que o antropólogo analisa para
articular essas ideias é o convívio de jovens que viviam em Açores e, no início
dos anos 1970, passaram a viver nos Estados Unidos, em especial uma menina de
quinze anos que o autor entrevistou e acompanhou por um tempo de sua vida.
Apresentando e refletindo sobre a trajetória dessa adolescente, ele nota que, ao
sair de seu país natal, ela compartilhava o mesmo projeto que seus pais, “fazer a
vida na América”. No entanto, a partir do novo campo de possibilidades da
sociedade americana, no convívio com outros “tipos” de adolescentes, cria um
projeto pessoal que divergia da ideia de somente uma busca por sucesso material e
incorpora a ideia de liberdade, conhecendo pessoas novas e tendo a possibilidade
de experiências inéditas, inclusive o uso de drogas alucinógenas naqueles anos
197056
. Porém, adverte Gilberto Velho, esse projeto com uma determinada
singularidade não extinguia alguns traços com sua tradição. Algumas crenças e
54
VELHO, Gilberto. Op. Cit., p.27. 55
Entrevista de Gilberto Velho concedida a Gisele Santana e Leonardo Silva, pesquisadores do
Departamento de Psicologia Social da UERJ. In: Estudos e Pesquisas em Psicologia, UERJ, RJ,
Ano 6, n. 2, 2006. 56
Gilberto Velho comenta, nesse texto, que a estudante já tinha ouvido falar de pessoas que
fumavam maconha em Açores. Nos Estados Unidos, experimentou maconha e LSD.
75
hábitos açorianos ainda eram compartilhados, principalmente, ao conviver com
seus pais e no contato com pessoas de seu país.
De acordo com o antropólogo, a estudante mudou de papel diante de um
determinado contexto – ainda que em concomitância com vivências anteriores –
mas não de maneira estritamente calculada e sim como uma transformação, uma
espécie de metamorfose que possibilitava, “através do acionamento de códigos,
associados a contextos e domínios específicos (...) que os indivíduos estejam
sendo permanentemente construídos”. 57
Pensando essa discussão no tocante ao contexto específico do exílio, a
vivência em outros países, as diferenças culturais, as novas visões de mundo, a
angústia por estar longe de seu lar, a falta de reconhecimento no local que passa a
viver, as novas oportunidades e possibilidades, tudo isso interferiu não somente
nas trajetórias pessoais de vários exilados, como também nos seus projetos
políticos e nas próprias criações artísticas daqueles ligados a esse meio.
No caso de Boal, a vida no exílio influenciou suas decisões, seu
engajamento, a continuação de algumas lutas, o início de novas, influenciou seus
projetos. No que concerne ao “fazer teatro”, propostas que desenvolvia no Arena,
principalmente as técnicas de teatro-jornal, onde a encenação era praticada pelo
povo, unia-se às experiências nos campos de possibilidades do exílio, com novos
grupos, outras culturas e realidades nem sempre semelhantes ao convívio e aos
debates no Brasil. A partir de uma coexistência de métodos, teoriza o Teatro do
Oprimido, sendo ele mesmo desprovido de fórmulas acabadas, adaptando-se
também a outros grupos e várias culturas, como ocorreu no período em que o
dramaturgo viveu na Europa. Veremos isso mais adiante.
Apesar de se adaptarem a diversas realidades, as formas de Teatro do
Oprimido, em geral, tinham alguns eixos que eram seguidos, como os momentos
de abertura para debates com o público – tendo ele menor ou maior participação
direta e fisicamente na encenação – além da concepção de que todas essas
modalidades reafirmavam a noção de que qualquer pessoa pode “fazer teatro”.
57
VELHO, Gilberto. Op. Cit.,1999, p. 29.
76
Com as intervenções maiores, a ideia era ensaiar ações futuras, procurando
fugir do efeito catártico da apresentação de temas pelo teatro. No entanto, é
preciso destacar que são “ensaios para a revolução”, utilizando os termos de Boal,
ensaios que buscavam mudanças individuais e coletivas. Em outras palavras, era
um teatro de perguntas, opiniões possíveis e soluções desejadas. Não há respostas
corretas, mas aquelas que condizem com as realidades daqueles grupos e sejam
possíveis caminhos para transformações sociais, uma vez que “são experiências
que se sabe como começam, mas não como terminam”, isso porque “o espectador
está livre de suas correntes, e finalmente atua e se converte em protagonista”,
conforme afirmou Augusto Boal58
. Para Julián Boal, essa pluralidade de escolhas,
ou seja, as possíveis soluções dadas através dessas técnicas permitem afirmar que
o Teatro do Oprimido realiza o desejo de Bertolt Brecht, “que queria que o teatro
político não tranquilizasse os espectadores em relação à suas dúvidas”, mas sim
que aguçasse “essas mesmas dúvidas e que as aprofundasse”. 59
A partir dessas experiências de Boal no desenvolvimento do TO, foi
possível ir além do uso de métodos já conhecidos por ele para trabalhar com os
peruanos. O exílio possibilitou ao dramaturgo descobertas e, não deixando recair à
posição mais cômoda para o exilado, ou seja, manter-se à margem e num estado
melancólico por conta da fratura obtida pelo afastamento do ambiente comunal,
propôs mecanismos de libertação e diálogo entre os que vivem opressões.
Refletindo sobre sua experiência pessoal, permanentemente “entre
mundos” 60
, e analisando o exílio num sentido mais amplo, Edward Said, ainda
que identifique o exilado como um estado de ser descontínuo, uma vez separado
da terra natal, de suas raízes e de seu passado, fala-nos também dos “prazeres do
exílio”. Esses só são possíveis de acontecer, na medida em que o indivíduo
perceba que não se deve ficar à margem de tudo nos lugares que passa a viver.
Impedido da volta, cabe ao exilado buscar novas possibilidades e, quando
possível, tentar também uma nova vida que, mesmo minada pela perda, ganha um
58
BOAL, Augusto. Op. cit., 1977, p.153. 59
BOAL, Julián. As imagens de um teatro popular. Prefácio e Trad. revista por Augusto Boal. São
Paulo: HUCITEC, 2000, p. 125. 60
SAID, Edward. “Entre Mundos”. In: ___. Reflexões do exílio e outros ensaios. São Paulo:
Companhia das Letras, 2002.
77
novo sentido em meio ao aprendizado e às descobertas nos países que o
acolheram, como ocorreu no caso de Boal, que teve sua vida de exílio marcada
por descobertas, mas também dores, como aponta no trecho a seguir, que fala de
suas primeiras impressões sobre a vida na capital da Argentina :
Sensação estranha: a cidade não precisava de mim! Se não
existisse, eu não faria falta. Na minha terra eu fazia diferença,
mesmo mínima. [Em Buenos Aires] Me sentia invisível. Me
olhava no espelho vazio e todo mundo tinha ido embora – até
eu! Difícil fazer a barba quando não se vê a imagem...61
Em meio às descontinuidades e angústias, Said demonstra a alternativa que
o exilado deve seguir, já que
(...) no final das contas, o exílio não é uma questão de escolha:
nascemos nele, ou ele nos acontece. Mas, desde que o exilado
se recuse a ficar à margem, afagando uma ferida, há coisas a
aprender. 62
Tzvetan Todorov também percebe esse duplo aspecto do exílio de perda e
descoberta. Classificando-se como um exilado circunstancial, nem econômico,
nem político, discorre sobre a situação do homem desenraizado, que, “arrancado
de seu meio, de seu país, sofre em um primeiro momento: é muito mais agradável
viver entre os seus. No entanto, ele pode tirar proveito de sua experiência.”63
É o
que a historiadora Denise Rollemberg fala sobre a “perda de raízes”, porém,
concomitante à “descoberta de radares” pelos distintos exilados.64
Durante o período em que Boal esteve no Peru, sua esposa e filhos
continuavam a viver em Buenos Aires. Cecilia trabalhava em teatro e era co-
autora de um programa infantil para televisão, o que dificultava acompanhar Boal
61
Nessa parte do texto, Boal coloca em nota a seguinte passagem: “A personalidade do exilado
corre sério risco de desintegração – é preciso que eu faça falta para saber quem sou: sou a falta que
faço. Se não faço falto, não sou! É o pior que pode acontecer a alguém: tornar-se anônimo para si
mesmo!”. V. BOAL, Augusto. Hamlet e o Filho do Padeiro: Memórias Imaginadas. Rio de
Janeiro: Record, 2000, p. 289. 62
SAID, Edward. Reflexões do exílio e outros ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p.
57. 63
TODOROV, Tzvetan. O homem desenraizado. Rio de Janeiro: Record, 1999, p. 27. 64
Os termos “raízes” e “radares” que intitulam a obra de Denise sobre exílio são feitos em
referência a um de seus entrevistados que, assim, traduziu exílio, “entre raízes e radares”.
ROLLEMBERG, Denise. Op. cit., 1999.
78
nas viagens. A onda de golpes de direita nos países latino-americanos ameaçava
também a Argentina. Depois da morte do presidente argentino Juán Perón, em
1974, sua esposa e vice-presidente Maria Estela Martinez de Perón (Isabelita
Perón) assumiu o poder. Os anos em que Isabelita esteve na presidência foram
marcados pela fragilidade política do governo, onde eram crescentes as ações
tanto de grupos paramilitares de direita, como da extrema esquerda, demarcando
uma fase de intensa radicalização política, que culminou na tomada do poder
pelos militares em 1976.
Nessa época, Boal recebia convites para realizar palestras e oficinas em
países europeus e nos Estados Unidos. Porém, seu passaporte estava com data
vencida o que impedia de viajar para esses lugares. O dramaturgo reclamava a
revalidação do documento no Consulado brasileiro na Argentina, mas não
conseguia solucionar o problema. Assim como Boal, muitos brasileiros fora do
país nessa época encontravam dificuldades para renovar seus documentos. No
caderno especial sobre Anistia do jornal Movimento, essa denúncia aparece em
matéria intitulada “A penosa luta pelo passaporte”. Analisando a trajetória de
exilados brasileiros, esse noticiário ressaltou que além de não revalidar os
documentos dos solicitantes, o governo brasileiro dificultava a emissão de
documentos para filhos de exilados65
. Diferente de outras ditaduras latino-
americanas, o Brasil negou a emissão de passaportes até quando brasileiros
corriam risco de morte durante as perseguições advindas do golpe chileno em
197366
.
Idibal Pivetta67
, amigo e advogado de Boal, entrou com um Mandado de
Segurança na justiça brasileira para cobrar o direito do dramaturgo em obter seu
passaporte revalidado. Esse caso teve repercussão nacional e internacionalmente.
Jornais brasileiros acompanhavam assiduamente o processo do dramaturgo. Em
65
A PENOSA luta pelo passaporte. In: Movimento. Rio de Janeiro, 1978, p.39. 66
DAVID, Maurício Dias. Entrevista concedida à Denise Rollemberg. Apud. ROLLEMBERG,
Denise. Op. Cit., p. 160. 67
Advogado de perseguidos políticos que reivindicou, junto ao Ministério das Relações Exteriores,
a validação de passaporte de alguns exilados brasileiros, uma vez que a emissão desses
documentos ficava cada vez mais difícil. Idibal Almeida Pivetta (que adotou o pseudônimo de
César Vieira) também era teatrólogo, sendo um dos fundadores do teatro popular União e Olho
Vivo, no final dos anos 1960 no Brasil.
79
25 de fevereiro de 1976, com a matéria “Boal impetra mandado para deixar B.
Aires”, a sucursal de Brasília da Folha de São Paulo informava:
O autor e diretor teatral Augusto Boal requereu ontem ao
Tribunal Federal de Recursos mandado de segurança contra o
ministro das Relações Exteriores, Sr. Azeredo da Silveira, por
não ter determinado ao cônsul-geral do Brasil na Argentina a
prorrogação da validade de seu passaporte (...). Por causa dessa
atitude do cônsul, Augusto Boal encontra-se retido na
Argentina.68
O golpe de Estado argentino em março de 1976 foi determinante para que
Boal decidisse partir daquele país e estendesse seus anos de exílio: a volta ao
Brasil era inviável e permanecer em solo latino-americano, inseguro. Os militares
golpistas na Argentina anunciavam ao país que uma Junta de comandantes das
Forças Armadas tinha decidido colocar “fim ao agonizante exercício das
autoridades civis” 69
, assumindo o poder em nome do autodenominado Processo
de Reorganização Nacional, que tinha por objetivos centrais a reorganização das
instituições, restabelecimento da ordem e viabilização das condições para o que
eles alegavam ser uma autêntica democracia, acabando com o desgoverno, a
subversão e a corrupção70
.
As notícias de perseguições na Argentina eram aterrorizantes nessa época.
Exilados que lá se encontravam passaram a aderir movimentos de resistência
locais ou começavam a procurar formas de fuga. Boal optou pela saída. A
necessidade do passaporte renovado tinha, portanto, maior urgência. Após passar
por inúmeras dificuldades com os trâmites desse processo encaminhado pelo
advogado Idibal Pivetta no Brasil, Boal conseguiu a renovação do passaporte.
Segundo o jornal Folha de São Paulo, os ministros que se posicionavam contra a
revalidação do documento alegavam que havia indícios de que o dramaturgo
cometia crimes contra a Lei de Segurança Nacional fora do país, o que poderia ser
68
BOAL impetra mandado para deixar B. Aires. In: Folha de São Paulo. São Paulo, 25 de
fevereiro de 1976. 69
NOVARO, Marcos; PALERMO, Vicente. A Ditadura Militar Argentina (1976– 1983): Do
Golpe de Estado à Restauração Democrática. Trad. Alexandra de Melo e Silva. São Paulo: Editora
da Universidade de São Paulo, 2007, p.27. 70
Idem.
80
atestado, segundo eles, em recortes de jornais mexicanos e de Buenos Aires71
,
ressaltavam, ainda, a possibilidade de volta do teatrólogo para o Brasil utilizando
documento que comprovasse sua identidade72
.
Em 12 de maio de 1976, na Folha, apareceu a notícia de que o TFR
(Tribunal Federal de Recursos73
), por dez votos a dois, concedia mandado de
segurança a Augusto Boal, determinando ao Ministério das Relações Exteriores
que prorrogasse, “através do Consulado-Geral do Brasil em Buenos Aires,
validade do passaporte fornecido por aquele consulado a Boal em julho de 1973”
74. De acordo com essa reportagem, o ministro do TFR Paulo Távora, que votou a
favor da concessão do mandado de segurança, argumentava sobre as acusações do
Itamaraty e de alguns ministros do TFR que votaram contra:
“Se a chancelaria brasileira entende que há delito contra a
segurança nacional nos episódios extraterritoriais de março de
1974 e agosto de 1975” – publicações de críticas literárias e
teatrais, bem como um anúncio de concentração em Buenos
Aires para protestar contra a situação brasileira – “cumpre fazer
presente à autoridade militar competente para instaurar o
inquérito policial ou ao Ministério Público, para requerer o
arquivamento ou oferecer denúncia”.75
A revalidação do passaporte de Boal criou jurisprudência no caso e
advogados de perseguidos políticos utilizavam dos mesmos artifícios para
resolver problemas semelhantes de brasileiros que se encontravam com
dificuldades para conseguir vistos em seus documentos. No jornal Movimento de
1978, afirmava-se que o número de mandados de segurança com relação a
problemas com passaporte no exterior tinha crescido, sobretudo depois do caso do
teatrólogo76
.
71
TRF começa a julgar pedido de Augusto Boal. In: Folha de São Paulo. São Paulo, 28 de abril de
1976, p.7. 72
CASO Boal vai a julgamento. In: Folha de São Paulo. São Paulo, 24 de abril de 1976, p.5. 73
O Tribunal Federal de Recursos (TFR) foi extinto com a Constituição de 1988 e seus ministros
passaram a integrar o Supremo Tribunal de Justiça (STJ). 74
TFR concede segurança a Augusto Boal. In: Folha de São Paulo. São Paulo, 12 de maio de
1976, p.5. 75
Idem. 76
A PENOSA luta pelo passaporte. In: Movimento. Caderno especial sobre Anistia. São Paulo,
abril/1978, p.39.
81
Com passaporte concedido, Augusto Boal partiu para a Europa. O novo
pouso era Portugal, onde tinha recebido uma promessa de trabalho. Em seguida,
juntou-se a ele sua família: Cecilia e seus filhos, Fabián, o mais velho, e Julián,
que nasceu durante o período do exílio argentino. Em carta a Chico Buarque,
redigida em 12 de maio de 1976, no mesmo dia em que a Folha de São Paulo
publicou a notícia de que o Tribunal Federal de Recursos (com 10 votos
favoráveis e 2, contra) solicitava ao Ministério das Relações Exteriores que
prorrogasse a validade do seu passaporte, Boal comenta essa concessão, a saída de
Buenos Aires e as expectativas quanto à ida para as terras lusas:
Chico, meu irmão, (...) bilhete rápido, eufórico, feliz, (...)
contente como faz tempo, se meteram comigo levaram ferro,
goleada, 10 a 2, páu nêles, vão ter que revalidar na marra,
fazendo cara feia, mas botando o carimbo lá no passaporte,
direitinho! Assim êles vão aprendendo! (...) Antes do fim do
mês vou colher um ramo de alecrim (se é que ainda não
capinaram tudo).77
Portugal tinha vivido a “Revolução dos Cravos” em 1974, que derrubara a
ditadura salazarista, mas Boal chegou somente em 1976, quando a própria
revolução tinha passado momentos de crise. Voltaremos ao contexto político
português da chegada do dramaturgo a Lisboa no próximo capítulo da presente
dissertação. De Portugal, Boal passou a viver na França.
A vida nesses dois países mesclava-se a viagens a trabalho por outras
regiões europeias, como Suécia e Itália. O Teatro do Oprimido começava a ser
mais difundido na Europa a partir desse momento, principalmente porque Boal foi
convidado a lecionar sobre essa nova linguagem teatral na Universidade
Sorbonne. Em Paris, Boal participou também da fundação do Centre d’Étude et
Diffusion des Techniques Actives d’Expression, o CEDIDATE, que ensinava a
Poética do Oprimido para centenas de pessoas. As técnicas foram ganhando
repercussão internacional no final dos anos 1970.
Algumas experiências na Europa foram contadas e analisadas por Boal no
livro Técnicas Latino-americanas de Teatro Popular, em texto anexo à obra, que
77
Carta de Augusto Boal endereçada a Chico Buarque, 12/06/1976. (Instituto Augusto Boal).
Disponível em http://institutoaugustoboal.org/2014/07/29/carta-a-chico-buarque/ . Visualizado em
30 de julho de 2014. Reproduzimos a correspondência, incluindo a grafia utilizada pelo remetente.
82
narra suas primeiras impressões sobre as modalidades de TO praticadas junto aos
europeus. Nele, fala dos mesmos procedimentos utilizados para iniciar os
trabalhos com aqueles grupos: jogos e exercícios com o elenco, em seguida,
passava por alguns métodos de TO até chegar ao teatro-fórum (ou teatro-foro,
como também o denominava). Teatro-invisível – onde se prepara uma peça que é
praticada em locais públicos sem que os espectadores saibam que estão
participando de uma encenação – foi uma das modalidades bastante utilizada nas
regiões europeias e comentada por Boal nesse texto. Um exemplo disso foi a
atuação do elenco no metrô parisiense, na linha Chateau de Vincennes 78
, onde
representaram o tema do abuso sexual, improvisando e discutindo a ideia de que
tanto homens como mulheres sofrem esse tipo de agressão e que se faz necessário
denunciá-la e extingui-la. A montagem de uma peça de teatro-invisível contava
com texto escrito previamente, que indicava, sobretudo, os personagens que iriam
compor a encenação. No entanto, é marcante nessa categoria de Teatro do
Oprimido a improvisação dos atores diante da real apresentação.
As experiências de Teatro-invisível começaram quando Boal vivia na
Argentina. Uma das montagens em público foi narrada pelo dramaturgo no
documentário sobre o Teatro do Oprimido79
e na autobiografia, intitulada Hamlet
e o filho do padeiro. Trata-se de quando, em um dos cursos que ele lecionava em
Buenos Aires, soube da existência de uma lei argentina em que qualquer faminto
poderia comer e beber nos restaurantes sem pagar. Nenhum argentino poderia
passar fome, bastava apresentar a carteira de identidade num restaurante. A
restrição seria somente para o não consumo de sobremesa e vinho.
O grupo de atores queria divulgar essa lei e mostrar que não estava sendo
cumprida. Boal era alertado por amigos de que seria um perigo montar uma peça
como essa e, caso fosse preso, poderia ser deportado para o Brasil. Eram amigos
brasileiros exilados que temiam pela repressão ao dramaturgo. Conforme recorda
78
Exemplo retirado de BOAL, Augusto. Op. cit., 1979, p.141. 79
AUGUSTO Boal e o Teatro do Oprimido de Zelito Vianna. V. bibliografia.
83
Boal, na época estavam lá Thiago de Mello, Ferreira Gullar, Flavio Tavares, entre
outros80
.
Surgiu, então, no grupo de atores que trabalhava, a ideia de a peça ser
realizada em espaço público, sem que os “espectadores” soubessem que era uma
encenação teatral. Escolheram um restaurante em horário de almoço para
desenvolver as cenas. Um ator pedia uma refeição e no momento de pagar a conta
mostrava sua carteira de identidade, dizendo que não tinha condições de pagar,
mas que passava fome. Os demais atores ficavam espalhados pelo restaurante
fomentando as discussões sobre aquele episódio.
O gerente e o garçom – personagens daquela peça sem saber que eram –
discutiam com o personagem faminto. Ameaçaram chamar a polícia e um dos
atores apareceu para pagar conta. O personagem que representava o advogado
explicava, no final da encenação, a lei humanitária. Tudo era articulado para
levantar o seguinte questionamento: se há comida na Argentina, por que têm
muitas pessoas que morrem de fome? Boal, em sua mesa, podia ver uma “coisa
extraordinária: a interpretação da ficção na realidade. Superposição de dois níveis
do real: a realidade cotidiana e a realidade da ficção ensaiada”81
.
Várias dessas experiências foram realizadas com o coletivo teatral
argentino Machete no início dos anos 1970. De acordo com a pesquisadora
argentina Lorena Verzero82
, o grupo realizou encenações de teatro invisível entre
1971 e 1972 e de dezembro de 1972 a 1973 montaram o espetáculo Ay, Ay, Ay, no
hay Cristo que aguante, no hay! durante o período pré-eleição presidencial.
Dentre as representações de teatro-invisível, era recorrente a performance da atriz
Bárbara Ramírez que aparecia em público lendo cartas de presos políticos
denunciando as condições dos cárceres e suscitando discussões sobre esse
assunto. A atriz era retirada desses lugares quando lia as denúncias83
.
80
Depoimento de Augusto Boal em GARCIA, Silvana (Org.). Odisséia do Teatro Brasileiro. São
Paulo: SENAC, 2002, p.252. 81
BOAL, Augusto. Op. Cit., 2000, p.294. 82
Lorena Verzero é pesquisadora em História e teorias da arte. A autora comenta que com o
Machete, Boal também encenou as peças El Gran Acuerdo Internacional Del Tio Patilludo, em
1971, e Torquemada, em 1972. VERZERO, Lorena. Teatro Militante: Radicalización artística y
política en los años 1970. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Biblos, 2013. 83
Idem.
84
Mauricio Kartun – ator e diretor de teatro, ex-integrante do Machete, que
considera Boal uma das grandes referências na sua formação teatral, “seu primeiro
professor”84
– afirmou que nessa encenação de denúncia, o público reagia de
diversas maneiras, conforme a filiação política que adotavam. Alguns se
mostravam indiferentes, mas outros aplaudiam a atriz85
, mesmo que não
soubessem se era uma encenação teatro.
Na Europa, os temas também eram sugeridos dentro dos próprios coletivos
que Boal atuava. Os grupos mostravam diversos tipos de opressão, em geral,
diferentes daquelas trabalhadas pelos argentinos no Machete e pelos peruanos no
ALFIN. Com frequência, os trabalhos eram feitos com grupos de teatro que
convidavam Boal para ensinar as técnicas de teatro popular criadas na América
Latina. Na Europa, começava a fazer dos ensaios e das montagens de TO, com
grupos específicos, espetáculos que buscavam esses mesmos questionamentos.
Comparando as experiências americanas de teatro-foro às europeias, o dramaturgo
afirma:
Fiz muito teatro-foro em muitos países da América Latina, mas
sempre como um “ensaio” e não como um espetáculo. Aqui na
Europa já fiz alguns espetáculos de teatro-foro como
espetáculos. Se lá [na América Latina] as plateias eram
pequenas e constituídas de pessoas homogêneas, em que quase
todos os espectadores se conheciam (operários de uma mesma
fábrica, moradores de um mesmo bairro, fieis de uma mesma
igreja, estudantes de uma mesma escola etc), aqui, além desse
tipo de “ensaio” fiz espetáculos para centenas de espectadores
que nem se conheciam. Foi uma nova modalidade de teatro-foro
que comecei a praticar aqui (...).86
A ideia de espetáculos comentada nessa passagem por Boal não remete à
noção de demonstração de fórmulas acabadas pelo teatro, mas outra proposta de
apresentação e discussão de teatro-foro para além de atuar com grupos fechados
através de oficinas. No que concerne às atividades ligadas a determinados grupos
na Europa, muda-se o objetivo, quando comparado à experiência peruana, por
exemplo, mas amplia-se a ideia de que o TO poderia ser utilizado em qualquer
84
KARTUN, Mauricio. Escritos: 1975-2005. Buenos Aires: Colihue, 2006, p.94. 85
VERZERO, Lorena. Op. Cit., p. 163 86
BOAL, Augusto. Op. Cit., 1979, p.149.
85
lugar desde que tenha uma opressão a ser superada ou pessoas que acreditem e
queiram difundir essas técnicas. Até porque, para obter um efeito político, Boal
dizia que precisava haver muitos grupos e muitos oprimidos praticando esses
métodos em busca de reais transformações em suas vidas, particularmente, e na
sociedade, de maneira mais ampla.
Pensando a noção da contemporaneidade, o filósofo Giorgio Agamben, no
texto “O que é o contemporâneo?”, analisa a perspectiva da fratura, fruto de um
distanciamento de seu tempo para melhor entendê-lo. Ao trazermos para a
condição do exilado, os apontamentos do filósofo permitem uma compreensão
sobre o significado do afastamento que, ao contrário do que pode parecer, não é
lugar de fuga de seu tempo ou de sua realidade, mas sim a possibilidade de maior
engajamento do indivíduo causado pelo desconforto e pelo distanciamento 87
. Para
Said, essa vida levada fora do ambiente habitual, esse distanciamento possibilita
ao intelectual uma visão mais abrangente, mais original. Ao exilado é possível ver
o mundo inteiro como uma terra estrangeira e, ainda, ter um sentimento particular
de realização por agir como se em qualquer lugar estivesse em casa88
.
Augusto Boal esteve entre lugares, mas, ao mesmo tempo, buscando seu
lugar e, mais, as possibilidades no exílio de criar ferramentas políticas para
libertação dos que estão submetidos a diferentes opressões. Era essa vivência do
oprimido o ponto de interseção das pluralidades de situações – de grupos ou
países – que possibilitava a ideia de um teatro com fronteiras móveis, em
deslocamento, adaptável a diversas configurações. Além de manter a luta contra a
ditadura militar brasileira – tema bastante recorrente em suas obras89
, suas
produções contemplavam outras temáticas e lutas. A militância ganha, portanto,
múltiplos sentidos.
87
AGAMBEN, Giorgio. O que é ser contemporâneo? E outros ensaios. Chapecó, SC: Argos,
2009. 88
SAID, E. 2003, p.59-60. 89
O texto da peça Torquemada foi concluído na Argentina, em 1971, e encenado em vários países
no exílio. Um dos pontos dessa obra é a denúncia de tortura a que foram submetidos os
considerados “subversivos” dentro da ótica da ditadura militar no Brasil. Para uma análise dessa
peça v. FIUZA, Sandra. Práticas de tortura narradas em Torquemada (1971), de Augusto Boal.
Dissertação de Mestrado. Minas Gerais: Universidade Federal de Uberlândia, 2005.
86
Militar era através da linguagem no intuito de provocar. A militância
estava ligada a pensar uma linguagem teatral que fizesse com que as pessoas que
fossem oprimidas percebessem e sentissem um desconforto de estarem naquela
condição. Boal criava grupos e oficinas que fomentavam essas ideias pelos países
onde passava durante o exílio.
Na duplicidade de perdas e descobertas proporcionadas pelas experiências
exilares, o historiador Mauricio Parada, ao analisar a trajetória do exilado
austríaco Otto Maria Carpeaux – que conseguiu asilo no Brasil ao fugir do
nazismo europeu – conclui que “a escrita de exílio de Carpeaux foi encaminhada
para a renovação e não conduzida pela perda”90
. Parafraseando o autor, podemos
dizer que as criações teatrais de exílio de Augusto Boal tinham como pressuposto
essa busca por renovação, recriando o teatro para que pudesse ter uma função
prática e transformadora na vida social.
Foi a partir das experimentações naqueles lugares que se aperfeiçoaram as
técnicas, que ainda hoje são utilizadas por dezenas de países, sistematizadas no
livro Teatro do Oprimido e outras poéticas políticas. E, por que esse título? Boal
nos explica, através de seu livro de memórias:
O Teatro do Oprimido, antes de editado, não se chamava assim.
(...) Livreiros argumentavam que ninguém compraria um livro
de Poéticas Políticas: poesia ou política? Mudei para Poéticas
do Oprimido em homenagem a Paulo Freire. Outra recusa: em
que estante colocar? (...) Quando, pela primeira vez, pronunciei
Teatro do Oprimido, soou estranho. Ainda hoje, para alguns,
soa Deprimido, embora se trate de Revoltado, do que quer
lutar, ser feliz. Imaginem se eu o chamasse de Teatro da
Felicidade, Teatro da Revolução, Teatro do Futuro Inventado! –
pretensioso. Ficou como é, agora gosto: Teatro do Oprimido!!! 91
O teor libertário capaz de romper uma situação de opressão ou, ao menos,
causar estranhamento a ela, traçando um “futuro inventado”, são os vetores
principais de todas as formas de Teatro do Oprimido. Uma experiência que Boal
90
PARADA, Mauricio. “O dever do exilado”. In: Revista de História da Biblioteca Nacional. Ano
8, n. 91, Abril 2013, p. 57. 91
Grifos nossos. BOAL, Augusto. Op. cit. ,2000, p. 299.
87
presenciou e que narrou no documentário de Zelito Viana92
demonstra esse
estranhamento com a situação de ser oprimido e a possibilidade de os métodos
utilizados e o teatro em si serem armas para reflexão desse indivíduo que vive
uma forma de opressão. A história contada é sobre um grupo de empregadas
domésticas que atuava sob a direção de Boal em sindicatos e praças e, certa vez,
pediram ao dramaturgo para encenar em um teatro convencional. Realizado o
desejo, foi feito o espetáculo: sucesso. A peça acabou sob aplausos.
Todas as atrizes estavam sorridentes, exceto uma que se encontrava
chorando no camarim. Boal foi encontrá-la, questionou o motivo do choro e ela
respondeu que eram ensinadas a serem mudas e que havia um homem pedindo
para falarem bem alto para que todos da plateia pudessem ouvir. Ele perguntou,
então, se foi por isso que ela chorou, ela negou e continuou, dizendo que tinha
sido criada para não ser vista e puseram luzes, holofotes a iluminando. Boal
perguntou novamente: “Então, foi por isso que você chorou?” e depois de muito
negar, ela disse que se emocionou, quando entrou no camarim, olhou no espelho e
viu uma mulher. Antes o que via era uma empregada doméstica e explicou: “mas
agora que eu estava iluminada, falei o que pensava, disse as minhas emoções,
agora, eu olho no espelho e vejo uma mulher”. Boal conclui: “Não é só ela quem
descobre isso, é todo mundo que entra em cena, diz o que pensa, conta suas
emoções” descobre quem realmente é93
. Essa é uma representação e uma das
possibilidades de libertação, segundo o dramaturgo, fruto da arma eficiente que é
o teatro e, em particular, o Teatro do Oprimido.
92
AUGUSTO Boal e o Teatro do Oprimido de Zelito Vianna. V. bibliografia. 93
Trecho do documentário de Zelito Viana sobre Augusto Boal e o TO.