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O UTILITARISMO
DE JEREMY BENTHAM
Dr. LUIS ALBERTO PELUSO (UFABC)
1. O UTILITARISMO DE BENTHAM E O PROJETO DE CONSTRUIR UMA
ÉTICA RACIONAL
O utilitarismo corresponde a uma tradição filosófica que consiste em pensar os problemas de organizar as relações entre as pessoas a partir da idéia que podemos conhecer o bem e o mal em função de critérios identificáveis pela nossa capacidade racional de conhecer. O utilitarismo tem, assim, dois pressupostos fundamentais: a) somos seres ilustrados, isto é conhecemos através da investigação racional; b) a natureza nos colocou sob o domínio de dois senhores: o prazer e a dor, isto é, somente agimos movidos pela busca do prazer (bem) e pela fuga da dor (mal). Esses são os ingredientes para a construção de um projeto ético que faça face aos problemas de saber, racionalmente, qual o comportamento que, de fato, é praticado (psicologia) como aquele que deve ser escolhido (ética) pelos agentes nas mais diversas situações. Ao longo dos anos, desde o final do século XVIII, vem sendo construído um enorme acervo de soluções para os problemas que decorrem da tentativa utilitarista de aplicar o princípio de utilidade na avaliação ética de nossas ações. Isto é, aplicar o princípio pelo qual uma ação é considerada como devida (bem), ou indevida (mal), conforme sejam os seus resultados identificados em termos de prazer ou de dor. Estaremos aqui investigando como foi que isso tudo começou e a relevância disso para os debates que ainda hoje travamos em filosofia política. A palavra utilitarismo indica uma tradição moderna de reflexão filosófica que teria se tornado expressiva no desenvolvimento do pensamento europeu insular a partir de um conjunto de autores que se conheciam, referiam-se mutuamente, comungavam um certo conjunto de teses fundamentais, discutiam problemas comuns, atuavam politicamente em favor da implementação, pelo poder público, de um acervo de soluções e faziam
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proselitismo em favor de determinadas reformas no contexto social. Isso significa que os utilitaristas constituíam a primeira escola filosófica, em sentido moderno, que teria surgido no mundo anglo-americano. Estudiosos que trabalham sobre a história do utilitarismo têm feito referências aos utilitaristas como pensadores que propõem soluções revolucionárias para os problemas de seu tempo. Assim, Elie Halévy1 considera que alguns deles foram autênticos defensores de soluções radicais, no sentido que suas propostas estariam fundamentas numa posição que poderia ser chamada de radicalismo filosófico. Isto é, eles se utilizavam dos princípios utilitaristas para abordar criticamente a ordem estabelecida e defender sugestões de amplas reformas sociais. O fato é que os Benthamitas, como eram referidos, inicialmente, os ativistas que compunham o núcleo dos seguidores das idéias sistematizadas por Jeremy Bentham, envolveram-se nas discussões dos assuntos correntes desde o final do século XVIII, dando uma especial ênfase às decorrências especulativas da aplicação de um conjunto de teses que se construíam a partir da confiança na razão humana e na tentativa de construir um sistema justificativo das ações humanas elaborado a partir da aplicação do princípio de utilidade. Quando nos referimos a tradição utilitarista podemos pensar em autores que participaram, com diferenças na sua forma de atuação, de um movimento filosófico que teve seu apogeu no período de século e meio, entre os anos finais do século XVIII e final do século XIX. Estamos falando de gente como Claude Adrien Helvetius, David Hume, Cesare Beccaria, Joseph Priestley, Jeremy Bentham, James Mill, Henry Sidgwick, William Paley, John Stuart Mill, William Godwin, Thomas Robert Malthus, Adam Smith, David Ricardo. Através das obras escritas por esses autores, o utilitarismo contribuiu para o debate dos temas mais importantes que ocuparam a agenda dos intelectuais envolvidos em discutir as soluções para o problema de identificar critérios para distinguir ações boas de ações más, isto é, a questão de encontrar respostas para perguntas sobre os referenciais que poderiam ser usados na escolha dos cursos de ação que se punham aos seres humanos nas diferentes situações. Nos últimos cinquenta anos, teria ocorrido uma retomada das teses utilitaristas. Autores como Herbert L.A. Hart, Peter Singer, David Lyons, Richard Hare, Esperansa Guisán, José Manuel Bermudo, Fred Rosen, Philip Schofield, Amartya Sen são alguns dos responsáveis pelo expressivo volume de produção intelectual que tem caracterizado os estudos sobre o utilitarismo. Ademais, alguns projetos audaciosos de pesquisa de temas atuais e editoração das obras clássicas de pensadores utilitaristas vem sendo desenvolvidos em Agências e Institutos Acadêmicos, tais como o Bentham Project no University College, a International Society for Utilitarian Studies, a Sociedad Iberoamericana de Estudios Utilitaristas e as prestigiosas revistas Utilitas e Telos.
1 HALÉVY, ELIE. “The Growth of philosophic radicalism”, Augustus M. Kelley Publishers, Clifton,
N.J., 1972, p.264.
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De uma forma geral, é muito difícil apontar as teses fundamentais que constituem o ponto de vista utilitarista. Autores, como os elencados acima, são conhecidos pela originalidade de sua reflexão, o que torna ainda mais difícil a tarefa de indicar os aspectos onde seus pensamentos coincidem. Para efeitos didáticos, podemos afirmar que todos os autores conhecidos como utilitaristas concordam em dois pontos básicos. Primeiramente os utilitaristas concordam com a tese que o ser humano é um ser cognitivo. Isto é, o conhecimento é o instrumento de que dispõe o ser humano para construir, através de representações mentais, o significado do mundo e para descobrir os critérios que tornam as nossas ações compatíveis com o sentido que damos a ele. E a forma mais confiável de conhecimento é a racional. É racional o conhecimento que satisfaz certos critérios formais ou metodológicos, tais como clareza, precisão, coerência, sistematização consistente e controle empírico. Nesse sentido, os utilitaristas se colocam como expressivos de uma certa mentalidade ilustrada, que confia na capacidade esclarecedora da razão humana. O ser humano conhece e age pela razão, essa seria uma primeira afirmativa que revela o caráter da tradição utilitarista. Entretanto, os utilitaristas não se tornaram conhecidos pela sua contribuição sobre a natureza da racionalidade humana ou sobre a fundamentação de uma epistemologia racionalista. Eles se tornaram importantes interlocutores por sua contribuição sobre a teoria da ação. Isto é, tiveram uma especial atenção para os problemas que concernem à identificação dos critérios para a escolha dos cursos de ação que se põe aos seres humanos nas diferentes situações e o papel desempenhado pela racionalidade humana na teoria da ação. Nesse sentido, a tradição utilitarista tem contribuído para o debate sobre os critérios de identificação do bem e do mal. A teoria moral ou ética e a teoria sobre o direito são áreas que têm recebido o maior impacto das sugestões do utilitarismo. Em segundo lugar, os utilitaristas concordam que os conceitos de bondade ou maldade das ações concernem às conseqüências que delas decorrem. Assim, são moralmente justificáveis as ações que maximizam o bem estar de todos aqueles seres sencientes que, de alguma forma, são afetados por elas. O princípio cuja explicitação aponta os critérios de aprovação ou reprovação das condutas dos agentes foi formulado pela primeira vez por J. Bentham, que o chamou de princípio de utilidade. Posteriormente, o próprio Bentham o identificou como o princípio da maior felicidade2; e, ainda, mais tarde o chamou de princípio da felicidade do maior número3. Por princípio de utilidade, ou princípio da felicidade do maior número, é indicado aquele princípio que aprova ou desaprova qualquer ação conforme a tendência que ela possua de aumentar ou diminuir a felicidade daquele cujo interesse esteja em questão, isto é, conforme a tendência da ação em promover ou se opor à sua felicidade. Os utilitaristas sustentam que quando se parte do princípio da maior felicidade como fundamento da teoria moral é possível sustentar que as ações são corretas na medida em que tendem a promover a felicidade, o prazer, a vantagem e erradas conforme tendam a produzir a infelicidade, a dor, o
2 BENTHAM, JEREMY. “Article on utilitarianism: long version”, Oxford University Press, Oxford,
1992, p.290. 3 BENTHAM, JEREMY. “An Introduction to the principles of morals and legislation”, John Bowring
Ed., edinburg, 1838, pp.07-09, ft.01.
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sofrimento. Os utilitaristas trabalham com a presunção básica que as ações humanas, pelo menos as que são o resultado da vontade humana, são motivadas pelo desejo de obter algum prazer ou evitar alguma dor. Prazer e dor são termos aqui considerados em sentido amplo. Assim, entende-se por prazer qualquer sensação que um ser humano prefere sentir em um dado momento, ao invés de sentir nenhuma; considera-se dor aquela sensação que um ser humano prefere sentir nenhuma, ao invés de senti-la em um dado instante. J.S. Mill tentou introduzir a idéia que isto não significa que os utilitaristas admitem que todos os prazeres são iguais e que somente são passíveis de diferenciação no que concerne à quantidade. Para ele: ”É perfeitamente compatível com o princípio de utilidade reconhecer o fato de que algumas espécies de prazer são mais desejáveis e mais valiosas do que outras. Enquanto na avaliação de todas as outras coisas a qualidade é tão levada em conta quanto a utilidade, seria absurdo supor que a avaliação dos prazeres dependesse unicamente da quantidade”4. Ao que tudo indica, todos os utilitaristas concordariam que o princípio da maior felicidade é o ponto de partida de toda argumentação moral. Assim, as regras e preceitos de conduta que expressam a moralidade humana tem como fim último a realização de uma existência isenta, tanto quanto possível de dor, e o mais rica quanto possível de prazer, seja do ponto de vista da quantidade como da qualidade, para todos os seres humanos e para todos os seres sencientes que existem no mundo. Numa tentativa de realizar um balanço das contribuições com que a tradição utilitarista tem participado dos debates sobre teoria moral e filosofia social, John Plamenatz5 destaca três aspectos. Primeiro, os utilitaristas têm especial cuidado em construir explicações elaboradas e coerentes das origens sociais e funções da moralidade. Segundo, eles têm se interessado pela linguagem da moral e tentam explicar o que ela tem de peculiar. E terceiro, eles fazem uso de métodos que, desde o tempo dos utilitaristas clássicos, têm se tornado cada vez mais usados para explicar como o ser humano se comporta e subsidiá-lo com orientação sobre como agir. Nos debates de teoria moral e filosofia social os utilitaristas têm contribuído de diversas formas. No contexto dos debates atuais, tem recebido especial atenção os argumentos utilitaristas contra a teoria do contrato social. Isto é, a teoria que considera que devemos nos comportar conforme aquilo que está estabelecido no contrato constitutivo da sociedade porque os contratos devem ser respeitados. Ou ainda, que devemos obedecer às leis porque nos comprometemos a agir em acordo às leis, uma vez que elas sejam elaboradas conforme regras que expressam as condições de elaboração de regras que nos comprometemos a respeitar. Certamente se pode dizer que as teorias contratualistas estão na ordem do dia. O revigoramento do debate sobre os temas de filosofia política tem ocorrido, entretanto, a partir da pressuposição contratualista que é possível estabelecer as condições para a realização de acordos ou pactos sociais os quais seriam
4 MILL, JOHN STUART. “Utiltarismo”, Martins Fontes, São Paulo, 2000, p.189.
5 PLAMENATZ, JOHN. In “Halevy, Elie, “The Growth of philosophic radicalism”, Augustus M. Kelley
Publishers, Clifton, N.J., 1972, Preface, p.XIV.
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instrumentos para a realização da justiça nas relações entre os seres humanos. O contratualismo moderno tem insistido na afirmação que o conteúdo do contrato e as condições de elaboração de contratos é o fundamento da obrigação de obedecer aos contratos. Muitas vezes, o debate contemporâneo em filosofia política tem ocorrido a partir da pressuposição que a existência de um contrato original garante a obrigação dos concernidos nas relações contratuais. Isso posto, a discussão se desenrola sobre o estabelecimento das condições dos pactos e das suas cláusulas constitutivas. Certos aspectos desse tema foram extensamente discutidos pelos utilitaristas clássicos na passagem do século XVIII e XIX. Dentre os críticos do contratualismo, Jeremy Bentham parece ter sido aquele que produziu de forma sistemática uma série de argumentos contra a existência de um contrato original que ele considerava uma "usurpação e impostura". (Bentham, 1994, pp. 52-53) O texto frequentemente citado nos debates e aqui revisitado, envolvendo as críticas do utilitarismo clássico á teoria contratualista é "A Fragment on Government"6 de J. Bentham. Nesse texto, Bentham apresenta uma reconstituição das teses contratualistas contidas nas sete páginas iniciais da Introdução da obra "Commentaries on British Laws" de William Blackstone. Bentham ataca o contratualismo de Blackstone e argumenta em favor de uma teoria consequencialista dos contratos. Nesse sentido, aquilo que torna os contratos obrigatórios não é a promessa de cumprimento que eles necessariamente contêm, mas as conseqüências que deles decorrem. Nesse texto se pretende revisitar os argumentos de Bentham e sugerir em que sentido eles são críticos das posições contratualistas atuais. Nas modernas versões da teoria contratualista toma força a tese que as questões relevantes sobre os fundamentos da sociedade política haverão de ser descartadas ou respondidas conforme sua relação com o fato que a ordem política emerge de um acordo entre os indivíduos. O argumento contratualista sustenta que, por razões pragmáticas não há ganho em se especular além das matérias de fato. E o contrato social é o fato constitutivo da sociedade política. O debate ocorre, então, sobre como se dá o contrato, ou poderia se dar, e como se identificam as estratégias de implementação do contratado. Contudo, a tradição utilitarista tem argumentado que as sociedades não podem ser fundamentadas pela identificação das condições fictícias de realização de um pacto, pois as condições fictícias para o estabelecimento de contratos não criam a obrigação real de obedecer ao prometido. A obrigação de obedecer aos contratos não pode ser de natureza legal. Posto que o fundamento da obediência à ordem legal vem da autoridade do Estado. E o Estado tem seu fundamento em nossa obrigação de honrar os contratos. Assim, o Estado não pode ser a justificação última de nossa obediência aos contratos. Para os utilitaristas a obrigação de obedecer aos contratos é de natureza moral, pois, a promessa de cumprir ao contratado não torna, por si só, exigível o prometido. Ademais, a quase totalidade das normas exigíveis pelos sistemas normativos jamais teve seu cumprimento prometido pelos agentes concernidos. A
6BENTHAM, JEREMY. "A Fragment on government", Cambridge University Press, Cambridge, 1994.
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obrigação de respeitar os contratos decorre da obrigação de respeitar as promessas porque as promessas promovem a felicidade do prometente. O Estado deve ser obedecido porque ele promove o bem que resulta na felicidade dos cidadãos. Com o estabelecimento desse fundamento empírico para a justificação do dever de obedecer ao Estado não há mais necessidade de ficções, tais como o contrato original e o dever de cumprir promessas não realizadas. Um sistema normativo de condutas somente será garantido pela consecução de um conjunto de resultados que expresse a satisfação dos interesses dos concernidos. Para os utilitaristas, o fundamento da sociedade política está na alegação que os súditos "... devem obedecer desde que o provável prejuízo da obediência seja menor do que o provável prejuízo da resistência e, ao se considerar a comunidade inteira, seu dever de obedecer não vai além do ponto em que chega o seu interesse". (Bentham, 1994, p.56) Assim, o arranjo das relações sociais em termos de ordenamento e submissão é aquele em que conseguimos visualizar as maiores vantagens para os interesses de todos. Esta seria, então, a única razão pela qual alguns governam e outros são governados. Os arranjos sociais existem para maximizar a satisfação dos interesses dos indivíduos. Esse é o critério que permite identificar as circunstâncias em que se deve obedecer e aquelas em que se deve resistir. Não é o fato de prometer algo, nem o conteúdo daquilo que é pactuado, nem a satisfação de critérios que estabelecem condições para a realização de contratos que os tornam necessários. É a obtenção de certos resultados desejáveis ou indesejáveis que se afirma como critério para decidir sobre a obrigatoriedade dos acordos firmados. Muito do entusiasmo, que hoje se verifica, pelas novas versões da teoria contratualista, decorre de suas pressuposições aparentemente intuitivas e que poderiam ser firmadas através de consensos pactuados. Isto é, elas partem de intuições que os indivíduos estariam dispostos a concordar que sejam pressupostas. A teoria contratualista implica que podemos pressupor que todos preservarão aquilo que for pactuado, uma vez que tenham sido satisfeitas determinadas condições previamente combinadas. Ora, ainda que a obrigação de respeitar as promessas seja intuitiva e se possa pactuar sobre as condições de como elaborá-las, a promessa de cumprir as promessas não fornece garantias de respeito a um sistema de normas de conduta. As críticas de Bentham à teoria contratualista se expressa nas posições: 1. que as noções de sociedade natural, ou estado de natureza, e sociedade política, ou estado de governo, referem-se a dois estados em que podem existir os indivíduos em função de formas diferentes de existência do hábito de obediência aos dispositivos expressos em contratos; 2. que a teoria do contrato original fundamenta-se em um princípio independente e razoável que estabelece a obrigatoriedade daquilo que é estatuído em conformidade com as regras que regem a construção de contratos; 3. que o ato de contratar, ou fazer uma promessa, por sua própria força, torna obrigatório o prometido. Em contraposição à posição contratualista, Bentham defende uma posição que se apóia na necessidade de avaliação dos resultados, ou das conseqüências
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do contratado. Para Bentham, a teoria da obrigação moral tem de oferecer os critérios que permitam identificar as situações em que se deve obedecer às leis e as situações em que se deve desrespeitá-las. Isso somente é possível através da formulação do princípio da vantagem da obediência e da desvantagem da rebelião. Aqui se pretende sugerir que Bentham não defende a inutilidade do ato de contratar. Ele critica a teoria contratualista, com especial referência ao contratualismo de Blackstone, que alega existirem razões associadas às condições de elaboração dos pactos que de alguma forma atuam determinando o comportamento dos concernidos em relação ao pactuado. Assim, uma das condições da obrigatoriedade dos contratos está relacionada ao caráter do agente, isto é seu hábito de obedecer ao pactuado. Segundo, no contrato original, que obriga todos os membros da sociedade civil, há uma regra geral que determina que os pactos devem ser respeitados se elaborados em obediência aos ditames contratuais sobre como se estabelecem as regras. E terceiro, o contrato contém uma promessa, e essa última torna moralmente obrigatório o cumprimento do prometido. Nesse sentido, os agentes devem obedecer aos contratos porque eles satisfazem as condições de realização de atos que criam obrigações de cumprir o prometido. Portanto, as críticas de Bentham à teoria contratualista de W. Blackstone convergem para três pontos centrais. Todos esses pontos, entretanto, dirigem-se contra o caráter das pressuposições que parecem estar implicadas nas teorias contratualistas de uma forma geral. Assim, as teorias contratualistas pressupõem que existe uma característica que permite separar de forma clara as sociedades naturais das sociedades politicamente organizadas, e pressupõem que as sociedades politicamente organizadas são aquelas nas quais existe o hábito de obedecer ao conteúdo dos acordos firmados dentro de regras previamente estabelecidas e que esse hábito de obedecer seria o fundamento da obrigação de respeitar os contratos. Bentham procura demonstrar que o conceito de hábito de obedecer não é suficientemente claro para exercer o papel de categoria distintiva entre o natural e o político. Sociedades politicamente organizadas, para os utilitaristas, são aquelas em que existe um sistema de expressão das decisões tomadas, o qual realiza, conforme demonstração da própria razão humana que fundamenta essas decisões, a maior felicidade possível para o maior número possível de indivíduos. Ademais as teorias contratualistas pressupõem que os contratos sociais são razoavelmente justificáveis, posto que, a obediência ao pactuado decorre de cláusulas contratuais que assim dispõem. W. Blackstone acredita que o fundamento da obrigação de obedecer a um sistema normativo decorre de uma regra que obriga a obedecer ao contratado, bem como de regras sobre o processo de elaboração de regras obrigatórias. Para Bentham, a obrigação de obedecer não pode ser fundamentada em uma regra, cujo fundamentação esteja na obrigação de obedecer às regras. Bentham argumenta alegando que seria também razoável que os contratos apresentassem cláusulas estabelecendo regras de identificação das ocasiões de quebra, ou desrespeito, das regras e de determinação das situações em que os acordos não mais haveriam de ser respeitados. Na visão de Bentham isso não pode ser feito sem
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um apelo às conseqüências dos atos e das regras. O que, necessariamente, imporia aos contratualistas a consideração do critério de utilidade como um princípio anterior aos próprios princípios contratuais pressupostos por qualquer contratualista. Finalmente, as teorias contratualistas têm defendido a idéia que o ato de fazer acordos torna o conteúdo obrigatório, ou cria, por sua própria força, a obrigação de respeitar o prometido. Bentham argumenta que nunca foi demonstrado que exista uma força obrigatória que esteja presente no ato de prometer que justifique a obrigação do prometido. Ademais, ainda que houvesse uma força especial capaz de obrigar alguém em relação ao prometido ela somente alcançaria aquele que prometeu. Enquanto promessa individual seria obrigatória apenas para aquele que prometeu. Não existiria, portanto, fundamento racional para obrigar os demais. Para os utilitaristas, devemos obedecer às leis porque elas indicam o melhor curso de ação a ser praticado em qualquer situação de ação. Somos dotados do instrumento para identificar os critérios de seleção das ações. Esse instrumento é a razão humana. Confiança na razão e entusiasmo com a felicidade humana, esses são dois dos ingredientes fundamentais da visão ética do utilitarismo. Certamente que o projeto ético dos utilitaristas, enquanto uma tentativa de construir uma ética racional tem seus limites. Os debates sobre as teorias morais têm se desenvolvido em diferentes direções. Dentre outros, há aqueles que não vislumbram a possibilidade da construção de projetos éticos, posto que os critérios dos juízos éticos estão além dos limites do que pode ser dito pela nossa linguagem. Há os que acreditam que os utilitaristas constroem uma interpretação formalista da razão humana como instrumento confiável de investigação. Para esse tipo de críticos, a razão formal dos utilitaristas produz uma visão superficial dos problemas éticos e não atinge os fundamentos do agir humano que estão implícitos nos juízos morais. Há, ainda, os que não têm entusiasmo pela felicidade humana, uma vez que não entendem que sua busca possa ser suficiente para dar sentido ao agir humano. O que isso parece demonstrar é que o utilitarismo não conseguirá satisfazer todas as expectativas das pessoas. Entretanto, os utilitaristas têm sido interlocutores profícuos de diferentes tradições de investigação sobre os problemas morais e tem tentado apresentar uma resposta às críticas que lhe são postas. No estágio em que nos encontramos nos debates sobre teoria moral ninguém pode se arvorar em ter a última palavra. O que importa é não renunciar à idéia que a discussão deve continuar.
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2. UTILITARISMO DE BENTHAM: UMA ÉTICA DE PRINCÍPIOS
O utilitarismo clássico, na versão de Jeremy Bentham, pode ser interpretado como uma ética de princípios a partir dos quais é possível se inferir uma estratégia racional de organização de certo tipo de relações que estão presentes quando se põe o problema da conduta coletiva baseada no princípio de comiseração. Partindo do princípio de utilidade, associado com um certo conjunto de princípios subsidiários, o utilitarismo clássico construiu um projeto ético capaz de dar um sentido moral para as ações de combate ao sofrimento e à miséria. Nesse sentido, existe um princípio ético estabelecendo que o sofrimento alheio provoca sofrimento no indivíduo que responde pela ação. Todos são responsáveis pelo sofrimento que resulta para cada um dos concernidos. O utilitarismo clássico surgiu como um tipo de resposta para os problemas sociais característicos da Inglaterra depois da Revolução Industrial. Principalmente, aqueles que emergiam da necessidade de combater a miséria social. Assim, os utilitaristas clássicos estiveram envolvidos na discussão dos problemas de sua época e pretendiam construir um discurso filosófico sobre a pobreza. Os utilitaristas clássicos, ou liberais clássicos, estiveram fortemente envolvidos na discussão da Lei dos Pobres (Poor Laws). Bentham chegou a propor todo um programa previdenciário para a Inglaterra, cujo objetivo seria a eliminação da pobreza, num prazo de 05 cinco anos. O plano consistia em se criar a National Charity Company, cuja estratégia principal estava baseada numa política de recolhimento dos pobres em instituições especialmente planejadas para exercer essa função. Bentham, então dedicou-se ao trabalho de planejar os princípios que deveriam reger as relações surgidas entre os indivíduos postos como agentes coletivos nas Casas de Inspeção. Nesse sentido, o Panopticon, ou o plano da casa de inspeção, idealizado por Bentham, seria o resultado de todo um sistema de princípios, que se fundamentam no princípio de utilidade. Bentham idealizou, ainda, todo um complexo plano previdenciário que haveria de expressar a maximização racional do cuidado com os pobres. Neste texto, se pretende reconstruir os princípios fundamentais da ética utilitarista e demonstrar como eles se desenvolvem nos princípios que embasam a National Charity Company e o Panopticon. Esta reconstrução objetiva demonstrar em que sentido a proposta do plano previdenciário de Bentham pode ser entendida como uma tentativa de aplicar princípios éticos na solução de um problema social.
No primeiro parágrafo de seu 'Principles of Morals and Legislation', publicado em 1789, Bentham deixa claro o ponto de partida de toda a sua filosofia. Diferentemente de outros projetos éticos, o fundamento proposto por Bentham não é um princípio subjetivo estabelecido pela preferência do moralista. Ele pretende que todo modelo ético esteja relacionado a uma constatação objetiva.
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Isto é, o ser humano existe de forma tal que ele somente age em função da busca do prazer e da fuga da dor. O fundamento é, portanto, associado a uma constatação do fato que se impõe ao ser humano.
Bentham diz:"A natureza colocou a humanidade sob o governo de dois senhores soberanos, a dor e o prazer. Somente eles apontam o que devemos fazer, assim como determinam o que de fato faremos. Ao trono desses dois senhores estão ligados, de um lado o padrão daquilo que é certo ou errado, de outro a cadeia de causas e feitos..."(Bentham, J.; "Principles of Morals and Legislation", London, J.H. Burns & H.A. Hart, 1970, p.1)
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A constatação de que aquilo que o ser humano deve ser é inseparável daquilo que, de fato, ele realmente é, torna possível que seja formulado um princípio ético-descritivo, que fundamenta toda conduta humana, tanto ao nível ético daquilo que deve ser, como ao nível científico (empírico) daquilo que de fato ocorre. Assim, fica posto o princípio de utilidade como fundamento do sistema de pensamento com o qual se pretende distinguir entre o bem o mal, entre o certo e o errado. Numa versão bastante conhecida, Bentham define explicitamente o que ele significa por princípio de utilidade ao afirmar: "Por princípio de utilidade entende-se aquele princípio que aprova ou desaprova qualquer ação, segundo a tendência que tem a aumentar ou a diminuir a felicidade da pessoa cujo interesse está em jogo, ou, o que é a mesma coisa em outros termos, segundo a tendência a promover a referida felicidade. Digo qualquer ação, com o que tenciono dizer que isto vale não somente para qualquer ação de um indivíduo, mas também de qualquer ato ou medida de governo".(Bentham, J.; "Principles of Morals and Legislation", London, J.H. Burns & H.A. Hart, 1970, pp.11/12)
É a partir dessa caracterização que Bentham erige o princípio de utilidade como princípio primeiro que não é suscetível, portanto, de prova direta. Enquanto princípio primeiro ele não pode ser provado em si mesmo, pois que ele entra na prova de tudo o mais. Desta forma, na visão de Bentham, o princípio da utilidade somente seria suscetível de prova indireta. Isto significa que pode ser provado que quando um ser humano tenta argumentar contra o princípio de utilidade, ele o faz porque encontra alguma utilidade nisso. Portanto, sem o saber ele estaria provando o próprio princípio. (Bentham, J.; "Principles of Morals and Legislation", London, J.H. Burns & H.A. Hart, 1970, pp.2/3)
A formulação do princípio de utilidade, ou princípio de maior felicidade, como mais tarde ele foi identificado por Bentham (3), não é suficiente para dar conta dos pressupostos fundamentais de todo o sistema utilitarista. Para
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complementá-lo existem diversos outros princípios que, embora não explicitamente formulados por Bentham, eles podem ser encontrados em sua obra. Assim, na sua versão clássica, a ética utilitarista se baseia em cinco princípios fundamentais. Cada um desses princípios pode ser associado a uma regra moral. Os princípios expressam uma psicologia descritiva do ser humano. (Bentham, J.; "Principles of Morals and Legislation",, London, J.H. Burns & H.A. Hart, 1970, pp.2/3)
Os princípios (P) e as regras morais (R) são os seguintes:
I - Princípio de Utilidade:
P1. Todo ser humano busca sempre o maior prazer possível.
R1. Busque sempre o prazer e fuja da dor.
II - Princípio da Identidade de Interesses:
P2. O fim da ação humana é a maior felicidade de todos aqueles cujos interesses estão em jogo. Obrigação e interesse estão ligados por princípio.
R2. Aja de forma que sua ação possa ser modelo para os outros.
III - Princípio da Economia dos Prazeres:
P3. A utilidade das coisas é mensurável e a descoberta da ação apropriada para cada situação é uma questão de aritmética moral.
R3. Faça o cálculo dos prazeres e das dores e defina o bem em termos numéricos.
IV - Princípio das Variáveis Concorrentes:
P4. O cálculo moral depende da identificação do valor aritmético de sete variáveis: Intensidade/ Duração/ Certeza/ Proximidade/ Fecundidade/ Pureza/ Extensão.
R4. Procure maximizar a objetividade e a exatidão de suas avaliações morais.
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V - Princípio da Comiseração:
P5. O sofrimento é sempre um mal. Ele só é admissível para evitar uma sofrimento maior.
R5. Alivie o sofrimento alheio.
A ação que está associada ao sofrimento é uma ação má; ou dizendo melhor, toda ação é má na medida do sofrimento que a ela se associa. Desta forma, todo agente moral é responsável pelo sofrimento associado à sua ação. Quer esse sofrimento seja para o próprio agente, quer seja para um terceiro qualquer. Nesse sentido, a sociedade é responsável pelo sofrimento que está associado à sua forma de organização. A sociedade é bem organizada, ou é organizada para o bem, quando sua estruturação permite aos indivíduos maximizarem a sua felicidade. Portanto, a sociedade como um todo, e cada agente moral em particular, respondem pelo sofrimento que nela venha a existir. O sofrimento na sociedade boa se reduz ao mínimo. Contudo, a eliminação da maldade social, que consiste no sofrimento dos indivíduos, é tarefa a ser realizada com a implantação dos cursos de ação moralmente preferíveis na vida social. A luta contra o sofrimento é objetivo das ações de todos os homens que tem a intenção de praticar o bem; ela expressa a vitória do bem sobre o mal.
Contudo, Bentham parece não ter obtido sucesso em sua tarefa de convencer os especialistas de que suas propostas políticas resultariam na melhoria gradual das condições de existência dos miseráveis deste mundo. Charles Bahmuller, um estudioso e crítico feroz das políticas sugeridas por Bentham para traduzir a resposta utilitarista ao problema da pobreza no século XIX, afirma: "A reforma da Lei dos Pobres (Poor Laws) sugerida por Bentham era repleta de uma repressão tão generalizada e destruidora e de um tamanho desprezo pelas liberdades civis ou pela sensibilidade emocional daqueles cuja saúde (moral e física) e felicidade ela deveria promover e proteger que o caráter inovador de sua proposta administrativa perde completamente sua força. No que se refere a aspectos essenciais, para aqueles que se recusam a avançar 'além da liberdade e da dignidade', os pobres, se deixados nas mãos de Bentham, estariam, de longe, em situação pior do que aquela em que eles, de fato, já estavam".(Bahmueller, Charles F.; "The National Charity Company: Jeremy Bentham's Silent Revolution", London, University of California Press, 1981, p.2)
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Certamente críticas como as de Charles Bahmueller no texto acima tem um ponto a seu favor quando sugerem a impropriedade das soluções indicadas por Bentham para combater o sofrimento daqueles que vivem em condições miseráveis nas modernas sociedades do século XX. Por certo se pode considerar a proposta de Bentham como repressiva, como prejudicial às liberdades civis e ao estado emocional daqueles que elas pretendiam proteger. Contudo, há vantagens na proposta de Bentham que podem ser consideradas como contribuição relevante para a melhoria das condições de sobrevivência dos pobres. As políticas indicadas por Bentham nos seus escritos nos dois anos subseqüentes a 1975, principalmente no "Panopticon", "Panopticon-Postscript" e "Pauper Management Improved" devem ser consideradas como soluções para uma situação de extrema gravidade. Nesse sentido, elas corresponderiam a um tratamento de choque. Por certo que ninguém ousaria afirmar que as políticas sugeridas por Bentham são apropriadas para os dias do final do século XX. Não é nesse sentido que elas são reconstituídas aqui. O que se pretende é descobrir a forma como Bentham relaciona as suas propostas de políticas públicas com o seu compromisso moral de combater o sofrimento e a miséria sociais.
Os manuscritos de Bentham sobre o assunto somam um total de 2.400 páginas e foram escritos, em sua maior parte com finalidade precípua de influir na reforma da Lei dos Pobres (Poor Laws) na Inglaterra. Para os efeitos de críticas generalizadas suas idéias não podem ser dissociadas dos debates que se travaram na Inglaterra nesse período. E, nesse sentido, Bentham pode ser tido como um defensor de soluções moderadas. Elas não podem ser ainda criticadas fora do contexto da obra total de Bentham, que nos 84 anos entre o seu nascimento em 1748 e sua morte em 1832, escreveu 70.000 páginas de manuscritos, em sua maior parte inéditos até os dias de hoje. O que isto tudo significa é que o material que constitui o discurso de Bentham sobre a pobreza não pode ser considerado, em si mesmo, como suficiente para formar a opinião do leitor especializado sobre os significado de toda a sua obra.
Bentham tem sido um autor que as pessoas não conhecem e não gostam. Por certo que seus textos são muitas vezes confusos e mais rascunhados do que cuidadosamente escritos para o grande público. Por esta razão suas idéias são conhecidas em versões de terceiros. Talvez o responsável por tudo isso seja o próprio estilo com que Bentham teria cuidado de sua própria obra.
Sidney Smith, numa resenha do "Book of Falacies" de Bentham, em 1825, escreveu o seguinte:"Entendidos no assunto e livreiros não terão dúvidas da necessidade de um intermediário entre o Sr. Bentham e o público. O Sr. Bentham é prolixo; o Sr. Bentham é ocasionalmente complicado e obscuro; o Sr. Bentham inventa expressões novas e assustadora; o Sr. Bentham gosta de divisões e subdivisões, e gosta mais do método em si mesmo do que de suas conseqüências. Somente aqueles que conhecem sua originalidade, seu
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conhecimento, seu rigor e sua clareza, haverão de recorrer aos trabalhos de sua autoria. A grande maioria dos leitores não haverá de buscar aperfeiçoamento a preço tão elevado, mas haverá de preferir o contacto com o Sr. Bentham através de revisões - depois que esse filósofo eminente tenha sido barbeado, banhado e vestido com roupas limpas". (Smith Sidney; "Review of Bentham's Book of Falacies", in Edinburgh Review, XLII (84), 1825, p.367)
Na parte que segue será apresentada a mais conhecida, apesar de não suficientemente compreendida, estratégia política elaborada por Bentham com o intúito de demonstrar quais seriam as implicações de uma ética utilitarista para a solução do problema da pobreza na Inglaterra do início do século XIX. Bentham vai oferecer um conjunto de princípios éticos, portanto de pressupostos especulativos e práticos, a partir dos quais seria possível dar uma resposta ao problema de como encontrar os cursos de ação a serem adotados frente ao sofrimento dos pobres, ou dos desamparados deste mundo. Trata-se, portanto de uma reconstrução do texto sobre o Panopticon. O que aqui se fará segue as pegadas da sugestão de S. Smith; nesse sentido se tentará barbear, banhar e vestir um Bentham já previamente banhado, barbeado e vestido por John Bowring o editor da primeira edição dos manuscritos de Bentham publicados em 1843.
2.2. SOBRE O 'PANOPTICON' OU 'CASA DE INSPEÇÃO': a Ética e o Princípio da Inspeção
O Panopticon ou Casa de Inspeção idealizado por Bentham seria uma instituição capaz de expressar duas descobertas de seu autor. Primeiramente, seria uma construção baseada no princípio de que as estruturas arquitetônicas devem seguir a determinados fins administrativos. Em segundo lugar, mas de igual relevância, o Panopticon seria um modelo administrativo fundamentado no princípio de que a forma como as instituições são geridas está associada com determinadas exigências arquitetônicas. Nesse sentido, o Panopticon é um projeto que conflui necessidades arquitetônicas e administrativas. Ele teria sido imaginado para ser uma edificação construída de tal forma que seria possível realizar o princípio administrativo que determina que todas pessoas no edifício necessitam estar sob inspeção contínua. Ele haveria de ser uma construção que expressasse o princípio arquitetônico da economia de recursos. Portanto, uma instituição eficiente e barata. Bentham havia sugerido que, independentemente de outros propósitos, o Panopticon seria um projeto aplicável em particular a prisões, fábricas, locais de trabalho, casas de indigentes, hospícios, lazaretos, hospitais e escolas.
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Ele diz:"Para dizer tudo em uma única palavra eu penso que ele [o Panopticon] haverá de ser considerado aplicável, sem exceção, a todos os estabelecimentos, nos quais, dentro de um espaço não maior do que aquele que pode ser coberto ou controlado por meio de construções, as pessoas haverão de ser mantidas sob inspeção. Não importa o quanto os propósitos sejam diferentes ou até mesmos opostos: quer sejam de punir os incorrigíveis, de recolher os insanos, de reformar os viciados, de confinar os suspeitos, de empregar os preguiçosos, de ajudar os desprotegidos, de curar os doentes, de instruir os capazes em qualquer setor da indústria, ou treinar os principiantes em qualquer grau de educação: em uma palavra, quer ele seja aplicado aos propósitos de uma prisão perpétua no corredor da morte, ou em uma prisão de confinamento antes do julgamento, ou em casas penitenciárias, ou casas de correção, ou casas de trabalho, ou fábricas, ou hospícios, ou hospitais, ou escolas". (Bentham, J.; "Panopticon", p.40)
O Panopticon seria uma instituição apropriada para atender a exigência de que as pessoas fossem colocadas sob estrita fiscalização, de tal forma que, os propósitos do estabelecimento seriam tanto mais atingidos quanto mais as pessoas a serem fiscalizadas ficassem sob os olhos daqueles que deveriam fiscalizá-las. (Bentham, J.; "Panopticon", p.40)
A concepção do Panopticon como uma construção arquitetônica e administrativa para fins tão diversificados, tais como escolas e prisões, certamente implica em uma série de adaptações para que fossem atingidos os objetivos de instituições tão distintas. Nesse sentido, Bentham destaca aqueles que seriam os dois pontos essenciais do seu plano. Primeiramente, há que se respeitar a centralidade da situação do inspetor, pois ela está fundamentada na teoria da força do poder de inspeção. Isto é, as pessoas se comportam da forma como, supostamente, deveriam se comportar, quando elas estão sob suspeita de inspeção. Assim, o inspetor deve ter o poder de inspecionar sem ser visto. A suspeita de inspeção somente pode ser construída e reforçada na medida em que de fato os indivíduos estão submetidos a uma inspeção real.
Em segundo lugar, há que se preferir a forma circular de construção, pois que ela parece realizar mais facilmente, e de forma mais econômica, a primeira característica essencial do Panopticon. Embora não seja esta uma circunstância absolutamente essencial, a experiência parece demonstrar que ela é a mais sustentável de todas as formas arquitetônicas.
Bentham argumenta dizendo que:"De todas as configurações, contudo, pode-se observar que esta é a única que permite uma visão perfeita de um número indefinido de apartamentos das mesmas dimensões, que permite existir um
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ponto do qual, sem qualquer mudança de sua situação, um homem pode observar, com a mesma perfeição, a totalidade de apartamentos, e com uma simples mudança de postura, pode observar a metade do total dos apartamentos ao mesmo tempo: - que, dentro dos limites de uma certa extensão, contém a maior quantidade de quartos: - que coloca o centro à menor distância da luz: - que torna a cela mais larga na parte em que mais luz é necessária para o propósito do trabalho - e que reduz o caminho a ser percorrido pelo inspetor, ao passar de um campo de inspeção para outro, à menor distância possível".(Bentham, J.; "Panopticon", p.44)
Bentham aponta algumas vantagens do plano que associa princípios administrativos e exigências arquitetônicas. Primeiramente, o Panopticon combina com extrema facilidade a aparente e real onipresença do inspetor. Segundo, esse plano reduz ao mínimo o número de inspetores necessários e diminui consideravelmente o volume de requisitos para se exercer a função de inspetor. Terceiro, ele permite manter os demais serviçais e subordinados de todos os tipos, que exerçam qualquer função no Panopticon sob o mesmo controle e fiscalização que é exercido sobre aqueles que estão internados. Uma quarta vantagem consiste na economia de problemas e desgostos para os juízes, magistrados e outras autoridades que costumeiramente exercem a função de fiscais superiores. Pois que, o plano permite que os internos sejam fiscalizados rapidamente, prescindindo-se de contacto físico, através da torre de inspeção. Finalmente, uma outra vantagem do sistema está em que ele permite fornecer uma resposta satisfatória para uma das mais difíceis questões em política. Qual seja a pergunta: 'Quis custodiet ipsos custodes?', isto é, quem fiscaliza os próprios fiscais? Pois que, no sistema do Panopticon, as portas da instituição devem estar sempre abertas para o homem comum das ruas que, movido por qualquer que seja o motivo, poderá inspecionar o seu funcionamento.
Bentham diz:"Veja, eu tomo por certo que com o devido cuidado para evitar interrupção e causar distúrbios, as portas desses estabelecimentos estarão, salvo razões especiais que recomendem o contrário, como as portas de todo estabelecimento público deveriam estar, inteiramente abertas aos curiosos de uma forma geral - o grande comitê aberto do tribunal do mundo. E quem mais poderia objetar a tal publicidade, onde ela for praticável, se não aqueles cujos motivos para objetar fornecem a razão mais forte para que ela de fato exista?". (Bentham, J.; "Panopticon", p.46)
Portanto, para Bentham, o princípio da inspeção e a forma circular de construção, constituem, em graus diversificados, as características originais de seu plano. Aqueles que supostamente argumentam que seria temerário afirmar ter Bentham descoberto um princípio tão antigo e uma forma de edificação já experimentada no passado, ele argumenta que, como o ovo da velha estória de Colombo, certamente todas essas idéias já existiam, e que sua originalidade estava em tê-las colocado juntas.
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Bentham diz":Agora coloquei esse nosso ovo em pé: - contudo, se ele vai permanecer como tal e aguentar as arremetidas da discussão é algo que permanece para ser decidido pela experiência. Penso que não será considerado impalatável; mas seu aspecto sadio é uma circunstância que haverá de dar-lhe um gosto diferente para cada paladar".(Bentham, J.; "Panopticon", p.66)
2.2.1. A ESTRUTURA ARQUITETÔNICA DO PANOPTICON
A descrição do Panopticon conforme aparece no texto de 1791 ("Panopticon" e "Postscript") é realizada com o fim precípuo de demonstrar sua aplicação em casas penitenciárias, nas quais os assuntos pertinentes à segurança, confinamento, solidão, trabalho forçado e instrução devem ser necessariamente levados em consideração.
O Panopticon, de uma forma geral, pode ser descrito da seguinte forma. A construção é circular. As celas dos internos estão distribuídas em forma circular. As celas são separadas umas das outras de maneira a evitar a comunicação entre os seus ocupantes. A guarita do inspetor ocupa o centro. As celas são separadas da guarita do inspetor por um corredor anular. Cada cela possui uma janela voltada para o lado de fora da circunferência. Ela deve ser ampla o suficiente para permitir a entrada da luz. A parte interna da circunferência, formada pelo lado oposto ao das janelas, é constituída de uma grade de ferro, de tal forma que a luz das celas ilumine também o corredor anular e permita a inspeção de todas as partes da cela. Essa grade deve conter uma porta.
Toda a estrutura física do Panopticon é descrita por Bentham com detalhes que chegam a prever as medidas dos degraus das escadas, bem como as diversas diferenças de níveis entre as celas e o corredor central. De uma forma geral a estrutura do Panopticon seria composta de três blocos de construção. O frontispício que deveria fazer a construção se parecer com uma residência comum; a galeria de celas; e a torre de inspeção.
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Bentham diz:"O arranjo das celas, juntamente com a torre de inspeção colocada entre as celas compõem a parte característica do edifício, a parte frontal (frontispício) forma uma parte acidental e não essencial". (Bentham, J.; "Panopticon", p.68)
Contudo, não apenas a estrutura física do Panopticon é examinada por Bentham com rigor. Sua preocupação se aplica igualmente sobre os detalhes até mesmo da agenda que deveria ser obedecida. Ele sugere a seguinte distribuição das horas e das atividades diárias no Panopticon: 1. Dias de trabalho: duas refeições por dia (1,5 horas); sono (7,5 horas); exercícios físicos (1 hora); trabalho sedentário (14 horas). Domingos e Feriados Religiosos: duas refeições por dia (2 horas); sono (11 horas); serviço religioso pela manhã (1 hora); serviço religioso à tarde (1 hora); estudos - inclusive catecismo e cântico de salmos (9 horas).
1.2.2. A ESTRUTURA ADMINISTRATIVA DO PANOPTICON
As regras de conduta que descrevem a melhor forma de relacionamento entre os indivíduos que estão no Panopticon são concebidas por Bentham sob a forma de alguns princípios que expressassem uma conciliação de três características de uma administração justa. Por administração justa, Bentham entende aquela que consegue realizar um meio termo entre a tolerância e a severidade extremas. Os princípios administrativos do Panopticon seriam: 1. A Regra da Tolerância: a condição ordinária de um interno não pode ser caracterizada por sofrimento corporal, prejuízo ou risco para a sua saúde e vida. 2. A Regra da Severidade: salvo o devido cuidado à vida, à saúde e ao conforto corporal, a condição ordinária de um interno não pode ser preferível àquela que possui a classe de indivíduos desprovidos das características que se busca atingir com a instituição do Panopticon. 3. A Regra da Economia: salvo o devido cuidado à vida, à saúde, ao conforto corporal, à instrução apropriada e à provisão do futuro, a economia deve ser, em todos os pontos da administração, o motivo prevalecente.(Bentham, J.; "Panopticon; Postscript", pp.122-123)
No planejamento do sistema Panopticon há uma série de meios intermediários que criariam as condições para que os três princípios ou regras administrativas fossem cumpridos. Assim, as punições teriam o efeito de exemplos, prevenindo a todos, por meio do medo, sobre os efeitos da prática de certos atos
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delituosos. O sistema previne a prática de ofensas contra a própria ordem administrativa, na medida em que estimula o bom comportamento dos internos. Não se daria sofrimento desnecessário, quer resultante de excessivo zelo, quer de negligência. Seriam preservadas a saúde e o grau de limpeza necessários para isto. O Panopticon oferece segurança contra o fogo e um sistema eficiente contra fuga. Nesse sistema se procura prover a futura subsistência do interno, pois que durante o período de internação, parte dos recursos produzidos pelo interno são devolvidos a ele. O sistema permite a reforma do interno. Nesse sentido, o convence da eficiência do sistema de punições, provê formação religiosa e favorece sua formação intelectual. O Panopticon fornece ao interno um certo conforto. Certamente, contudo, naquele grau que não é incompatível com os fins da instituição. O sistema atinge ainda o objetivo de obter a máxima economia possível para a consecução dos fins a que se destina a instituição. E, finalmente, o Panopticon cria um sistema de subordinação entre os diversos serviçais e inspetores, o que fornece as condições para a realização de todos os outros meios. Todos esses meios secundários, subordinados ao meio principal que é o sistema de construção arqutetônica e que objetivam a realização do plano administrativo expresso nos três princípios, correspondem à idéia do Panopticon como um sistema arquitetônico e administrativo.
Bentham diz:"Todos esses objetos foram levados em consideração na concepção do plano da construção, nenhum daqueles objetos que deveriam ser desconsiderados na concepção do plano de administração deixou de sê-lo? A administração é, sem dúvida, o fim; apesar de ser um meio dentre vários, a construção do edifício é o meio principal". (Bentham, J.; "Panopticon - Postscript", p.122)
A combinação dos três princípios expressa a idéia central do Panopticon como um sistema que concretiza a medida de punição prescrita pela regra da severidade, e que não seja proibida pela regra da tolerância, sendo respeitada a regra da economia. Nesse sentido, o Panopticon permite que se administre a dose certa de coerção capaz de produzir frutos, bem como a subtração daquela quantidade de conforto que seria dispendiosa. (Bentham, J.; "Panopticon; Postscript"; p.125). Assim, o Panopticon seria o modelo de instituição fundamentado no princípio geral utilitarista de que se deve procurar obter o máximo de utilidade com o mínimo de custo. Ou, o que seria dizer a mesma coisa, o máximo de prazer com o mínimo de sofrimento possível.
2.2.3. SOBRE A 'NATIONAL CHARITY COMPANY': A Ética e o Princípio da Comiseração
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A 'National Charity Company' é o nome que Bentham sugeriu para o seu plano previdenciário, que deveria se constituir na sua contribuição para a complementação da Lei dos Pobres (Poor Laws), cuja discussão estava na ordem do dia na Grã-Bretanha no final do século XVIII.
O plano consistia em centralizar todo o tratamento e cuidado com os pobres em uma única autoridade e determinar que todas as despesas deveriam ser cobertas por um único fundo. Para tanto, os pobres seriam recolhidos das ruas, assistidos e empregados em larga escala em um sistema de casas de trabalho. Essas casas seriam espalhadas por toda a Grã-Bretanha, situadas em áreas de terra com o tamanho suficiente para prover a população de internos. O sistema estava planejado para, inicialmente, dar acolhida para cerca de 500.000 pobres, distribuídos em 250 casas com 2.000 internos cada uma. (Bentham, J.; "Pauper Management Improved", p.364)
Após um período de 21 anos, seriam 500 casas acolhendo uma população de 1 milhão de pessoas. Essas casas seriam espalhadas pela Grã-Bretanha a uma distância de 10 milhas entre cada uma e as demais mais próximas dela. Uma grande vantagem desse sistema é que ele disporia as casas de tal forma que seria possível a qualquer trabalhador deslocar-se de uma casa para outra sem necessidade de usar os serviços de estalagens. Ou ainda, deslocar-se de qualquer ponto para a casa de trabalho mais próxima, sem necessidade de precisar pernoitar no caminho.(Bentham, J.; "Pauper Management Improved", p. 374)
A clientela, a ser assistida pela 'National Charity Company' seria constituída primeiramente por todas as pessoas, capazes ou deficientes físicos, que não possuíssem propriedades, ou meios honestos e suficientes de sobrevivência. Eles seriam recolhidos e empregados até que alguma pessoa responsável se comprometesse a dar-lhes emprego, a devolvê-los posteriormente, bem como, fornecer informações a seu respeito, de tempos em tempos. Seriam também clientes da 'National Charity Company' todos os indivíduos não-adultos que não apresentassem prospectos de uma educação honesta. Eles seriam recolhidos e tratados como aprendizes na companhia. Finalmente, seriam recolhidos os pais sem recursos de filhos bastardos. Eles seriam detidos até que dispusessem de uma certa quantia de dinheiro suficiente para sustento de ambos.(Bentham, J.; "Pauper Management Improved", p.170)
As casas de trabalho e recolhimento ficavam obrigadas a receber e a manter todo indivíduo pobre em idade de aprendizado que pedisse asilo. Eles seriam recolhidos com a obrigação de produzir os recursos necessários para o seu sustento. Eles teriam o direito de permanecer nas casas, dentro dessas condições, até quando desejassem. As casas ficavam ainda obrigadas a
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acolher qualquer doente que pedisse asilo. Elas deveriam mantê-los até que estivessem curados, com a condição de que produzissem os recursos despendidos em seu tratamento e cura. Elas deveriam, ainda, acolher como aprendiz qualquer pobre não adulto cujo cuidado lhe fosse confiado pelo pai ou outro guardião natural. As casas deveriam distribuir entre os internos a metade de seu lucro líquido anual (resultado da receita menos as despesas incluídos os dividendos dos acionistas). Os lucros das casas orçariam em cerca de 40% do lucro total anual, uma vez que 60% seriam a parte destinada à Paróquia. Todas as informações necessárias para que as partes interessadas tivessem pleno conhecimento da situação orçamentária e administrativa das casas deveriam ser publicadas freqüentemente.(Bentham, J.; "Pauper Management Improved", pp. 370-371)
2.2.4. OS PRINCÍPIOS ADMINISTRATIVOS DA 'NATIONAL CHARITY COMPANY'
Bentham procura identificar os princípios gerais que haveriam de conter as regras da administração de seu plano assistencial aos pobres. Ele divide esses princípios em duas modalidades: princípios que se referem aos administradores e definem seus meios e motivos e princípios que definem os meios e os fins dos internos que constituem a força de trabalho. (Bentham, J.; "Pauper Management Improved", pp.380-386)
Dentre os princípios administrativos da primeira modalidade, Bentham aponta os seguintes:
1. Princípio de Separação e Agregamento: A separação e o agregamento dos internos e das casas de trabalho devem servir a outros propósitos, não sendo fins em si mesmos.(Bentham, J.; "Pauper Management Improved"; pp. 372-373)
2. Princípio da Inspeção Central ou Inspeção Arquitetônica: Todas as partes do plano arquitetônico das casas, no sentido de uma absoluta perfeição, devem atender à necessidade de uma contínua inspeção central, bem como expressar economia de recursos.(Bentham, J.; "Pauper Management Improved"; pp.374-375)
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3. Princípio da Escala: Há que se aproveitar ao máximo as vantagens da grande escala.
4. Princípio da Seleção Administrativa: Aquilo que tiver sucesso na administração de uma casa, apresentando melhores resultados do que o obtido em outras casas, deve ser introduzido em suas administrações.
5. Princípio da Fácil Inspeção: O Sistema de informações sobre cada casa deve ser apresentado sob a forma de um mapa, que possa ser inspecionado de uma só vista. De tal forma que, em cada período, os 250 mapas possam ser examinados de uma só vez.
6. Princípio da Uniformização Administrativa: O mesmo plano de administração deve ser mantido em todas as casas de trabalho, a não ser que existam sérias razões para a variação.
7. Princípio da Observância da Exceção, ou Observação de Circunstância Local: desde que a administração continue baseada nos demais princípios, as circunstâncias locais que exigem diferenças devem ser consideradas.
8. Princípio da Conjunção entre o Dever e o Interesse: A administração não deve omitir qualquer meio que possa contribuir para a junção entre interesse e o dever dos internos. Isto é, a administração deve procurar fazer com que seja do interesse de cada um fazer aquilo que é seu dever.
9. Princípio de Segurança ou Garantia de Vida: A preservação da vida de cada um, e de cada criança, é do interesse pecuniário de todos. Isto é, cada vida, especialmente aquela das crianças desde o nascimento até a maioridade, é a fonte de lucro da casa.
10. Princípio da Publicidade ou Transparência Administrativa: O quanto mais público seja o conhecimento das soluções administrativas encontradas, tanto mais ele poderá ser empregado em outras casas.
11. Princípio da Atração e Colaboração: Em todo o sistema administrativo e de construção devem ser procuradas as circunstâncias que contribuem para
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chamar a atenção sobre o sistema administrativo e atrair a colaboração de visitantes. As opiniões dos visitantes podem provocar melhoras e a presença deles pode funcionar como um instrumento contra abusos.
Dentre os princípios concernentes à administração dos trabalhadores, Bentham aponta os seguintes:
12. Princípio do Emprego Total: todos os indivíduos devem ser empregados em tarefas econômicas. Bentham diz:"Nem mesmo uma em cada cem pessoas é totalmente incapaz de qualquer emprego. Nem mesmo o simples movimento de um dedo - nem um passo - nem mesmo uma piscada de olhos - nem um suspiro - pode deixar de ser considerado como possível de resultar em lucro num sistema de tamanha proporção". (Bentham, J.; "Pauper Management Improved", p.382)
13. Princípio do Emprego Apropriado: Os indivíduos plenamente capazes somente devem ser empregados depois que as diversas classes de indivíduos incapazes, isto é capazes somente de certas tarefas, tenham sido aproveitadas nas tarefas para as quais estão aptas.
14. Princípio da Divisão do Trabalho: Quanto mais o processo de produção for dividido em etapas, tanto mais simples serão as tarefas, o que resulta na possibilidade dessas tarefas serem executadas por mãos menos qualificadas.
15. Princípio da Intercambialidade de Empregos ou Diversos Empregos: O mesmo indivíduo deve ser submetido a diferentes classes de trabalho em momentos apropriados.
16. Princípio da Auto-Suficiência: Cada casa deve procurar reduzir ao mínimo possível o número de artigos, inclusive matéria prima, que não sejam produzidos pela força de trabalho disponível no próprio estabelecimento.
17. Princípio da Auto-Assistência: Nenhuma assistência deve ser prestada, se não nos termos de que o assistido deve se obrigar a produzir os recursos consumidos em seu socorro.
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18. Princípio do Merecimento: Quando o interno é habilitado para o exercício de certa tarefa, mas apresenta sinais de preguiça, ele não deve receber alimentos até que desempenhe sua obrigação.
19. Princípio da Tarefa ou Pagamento Proporcional: deve-se preferir a determinação de tarefas para aqueles internos que são dotados de habilidade extraordinária. Aqueles que, mesmo no regime de tarefa, não conseguem produzir o necessário para o seu sustento, devem receber uma remuneração de encorajamento, de forma que o pagamento seja proporcional às suas necessidades mínimas.
20. Princípio da Cessão de Prêmios ou Incitação Competitiva: deve-se premiar alguns indivíduos pelo desempenho de certas tarefas. O prêmio deve resultar numa incitação à maior produtividade por parte de todos os competidores.
21. Princípio da Recompensa Honorária: Deve haver um sistema de premiação honorária capaz de estimular o bom procedimento dos internos.
22. Princípio da Separação das Tarefas ou Identificação do Desempenho: Deve-se preferir a realização individual das tarefas à atuação de grupos ou gangs. Toda vez que o trabalho de grupo for inevitável, deve-se preferir o menor grupo possível. Cada indivíduo deve ser considerado responsável pela sua recompensa ou pela sua punição, conforme a qualidade de seu trabalho.
23. Princípio do Salário Razoável: O salário pago aos internos deve ser o menor possível; porém, deve-se considerar que a manutenção através da caridade dos outros não deve ser mais estimulante que a auto-manutenção.
24. Princípio da Fidelidade aos Hábitos: Os hábitos em vigor na antiga ordem devem ser respeitados até os limites do tolerável. Assim, os salários contratados antes da vigência do Princípio do Salário Razoável devem ser respeitados até certa medida.
25. Princípio da Sobriedade ou Proibição de Bebidas Alcoólicas: Ficam proibidas as bebidas alcoólicas fermentadas. Pois que, é impossível se traçar uma linha entre o uso e o abuso.
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26. Princípio de Vendas por Atacado: Deve-se preferir o sistema de venda por atacado.
27. Princípio de Aproveitamento de Refugos ou Pleno Aproveitamento: Num sistema de produção em escala, todos os refugos têm o seu valor.
28. Princípio da Multiplicação ou Diversificação de Usos: Deve-se observar se os artigos considerados necessários para um fim não podem ser aproveitados para outros usos.
29. Princípio do Aprendizado: Nenhum interno deve deixar a casa de trabalho enquanto perdurar a idade de aprendizado (21 anos para os homens e 23 para as mulheres).
30. Princípio do Cultivo de Talentos: Os talentos naturais de qualquer tipo, manifestos em grau extraordinário, devem receber um tratamento especial.
31. Princípio de Étero-Instrução: Os internos mais treinados devem ser usados no preparo dos novos e menos treinados.
32. Princípio da Promoção Autóctone: tendo a casa de trabalho se consolidado, todas as funções administrativas, exceto a de capelão, devem ser exercidas por indivíduos escolhidos dentre os internos.
A apresentação desses princípios administrativos parece suficiente para fundamentar a sugestão de que Bentham pretendia que as casas de trabalho fossem geridas conforme regras rigorosamente obtidas de suas idéias fundamentais sobre as motivações e finalidades das ações humanas.
Bentham sugere que as casas deveriam ser todas administradas conforme os mesmos princípios e dentro da mesma estrutura administrativa. Ele identifica as seguintes funções: Governador da casa de trabalho, Capelão, Médico, Professor, Organista, Governadora (para a população feminina), Professora (para as jovens), Enfermeira (parteira), Administrador (dos animais e plantas), Encarregado dos Homens, Encarregada das Mulheres. Embora se possa descrever as funções que devem existir em cada casa, isto não é suficiente para se identificar o número de auxiliares administrativos necessários, pois que, duas, ou até mais, funções poderiam ser exercidas pelo mesmo indivíduo.
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Na estrutura administrativa das casas, a autoridade do Governador deve ser absoluta. Contudo, todos os atos devem ser de conhecimento dos demais administradores, que se tornam co-responsáveis se não fizerem explícita a sua discordância. Em certos casos específicos, quando há riscos irreparáveis para a instituição (fogo ou água), ou para a saúde dos internos, o veto do Capelão ou do Médico é suficiente para deter qualquer decisão do Governador, até que se reúna o Conselho Diretor.
A idéia geral de criar um sistema de auxílio aos pobres que realizasse esta tarefa da forma mais econômica possível fundamenta, sempre que possível, os argumento de Bentham. Até mesmo quando discute a dieta a ser oferecida aos internos, ele sugere que se deve procurar aquela que seria a mais barata das saudáveis. Ele chega a criticar o regime de pão e água por considerá-lo demasiado dispendioso. Em uma interessante passagem Bentham diz:"Pão é anti-econômico - não somente por ser resultado de um processo de manufatura excessivamente caro, mas por ser considerado como um acompanhamento para a carne, e portanto sugerindo a idéia de uma necessidade de carne. Pão e água, que é a dieta dos prisioneiros na Inglaterra, é mais cara do que a dieta usual na Escócia". (Bentham, J.; "Pauper Management Improved", p.387)
Um dos temas tratados por Bentham, e que exemplifica a teoria de que ele pretendia dar um tratamento rigoroso a todos os assuntos concernentes à assistência aos pobres é a dieta a ser servida nas casas de trabalho. Bentham argumenta que as casas de trabalho ofereceriam as circunstâncias propícias para a realização de experimentos com o objetivo de descobrir a melhor dieta que poderia ser servida em termos de qualidade e quantidade.
Ele chega a sugerir um experimento para se descobrir qual a dieta a ser adotada para crianças e adultos. Sua preocupação com o tema chega a ter o requinte de sugerir técnicas a serem usadas no sentido de se corrigir os hábitos alimentares dos internos. (Bentham, J.; "Pauper Management Improved",pp.387/388)
Os internos recolhidos nas casas de trabalho deveriam vestir-se em vista ao atendimento de dois objetivos: a frugalidade na indumentária e a identificação do indivíduo para o propósito de separação e segregação. No que concerne à frugalidade, os internos deveriam se vestir usando material barato e de forma a que fossem atendidas as necessidades e o uso. Portanto, seriam dispensadas as partes desnecessárias que somente tivessem efeito decorativo ou que fossem expressivas de 'moda'. As cores das vestimentas deveriam servir à
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identificação de seu portador. Os sapatos deveriam ter sola de madeira, e o uso de meias deveria ser dispensado durante os meses de verão. Contra os supostos críticos de sua proposta de uniformizar os pobres, Bentham interroga de forma irônica:"Soldados usam uniformes, por que não podem fazê-lo os pobres? - aqueles que salvam a pátria o fazem, por que não podem fazê-lo aqueles que são salvos por ela?". (Bentham, J.; "Pauper Management Improved", p.389).
Outro aspecto da administração que recebe atenção especial de Bentham refere-se ao sistema de guarda dos livros. No sistema de cuidado dos pobres sugerido por Bentham, muitos interesses estariam em jogo na administração das casas de trabalho. Assim, os livros, ou os fatos transformados em algum tipo de literatura, seriam material capaz de gerar uma administração transparente, onde as informações estivessem sempre disponíveis para que fossem corretamente formados os juízos sobre tudo o que se passava na instituição. Os livros seriam instrumentos necessários e suficientes para produzir um sistema onde todos os fatos pudessem ser inspecionados. Esta parece ser uma idéia fundamental na interpretação do papel do princípio de transparência no sistema Panopticon.
Bentham diz:"Apesar de ser, em cada caso, uma base indispensável à boa administração, o livro significa no caso presente uma segurança indispensável para o devido cumprimento das diversas obrigações, as quais a Direção da Companhia, e os diversos agentes nos vários estabelecimentos locais, haverão de assumir, em relação às diversas partes interessadas - por exemplo os pobres - os seus amigos pessoais, os paroquianos com direito a quotas, os acionistas, o governo e o público em geral". (Bentham, J.; "Pauper management Improved", p.391)
Bentham sugere que a administração das casas de trabalho seja registrada nas seguintes modalidades de livros: Livro dos Internos, Livro do Patrimônio, Livro de Saúde, Livro de Comportamento (Livro de Reclamações, Livro de Mal-Comportamento, Livro Negro ou de Punições, Livro Vermelho ou de Mérito) e livro de Correspondência.(Bentham, J.; "Pauper Management Improved", p.394)
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2.2.5. A 'NATIONAL CHARITY COMPANY E A EDUCAÇÃO PARA O TRABALHO
Bentham apresenta um conjunto de idéias sobre a educação dos pobres que dificilmente poderia ser considerado um plano completo que desse conta dos mais graves problemas envolvidos no preparo dos internos das casas de trabalho, ou dos assistidos pela 'National Charity Company'. Nesta parte serão apresentadas as posições de Bentham sobre o problema da utilização do sistema Panopticon nas escolas, e as suas idéias gerais sobre os princípios que deveriam reger a educação dos pobres.
Os textos onde Bentham defende a utilização do sistema Panopticon na educação em geral são encontrados nos escritos "Panopticon" e "Panopticon - Postscript", publicados em 1791. Nesses textos Bentham pensava no sistema como aplicável, de forma especial, à penitenciárias e prisões. Portanto, num primeiro momento ele pressupõe a necessidade da educação, ainda que mínima, como necessária para todos os internos.
Bentham diz:"Toda penitenciária - eu deveria dizer, particularmente toda penitenciária 'Panopticon', pode ser, e deve ser, uma escola - para as crianças em geral, pois ela é organizada de tal forma que mesmo aquele que está em tenra idade não fica isento da punição, nem da responsabilidade que a ela conduz; que razão haveria para ser diferente com aqueles que são os analfabetos? Poucos certamente serão aqueles que, mesmo entre os membros adultos dessa comunidade, cuja educação tenha sido tão completa de tal forma que nada tenha sido deixado para ser ainda aprendido e que possa ser de utilidade para os seus patrões ou para si próprios. Ler, escrever e fazer contas - tais ramos ordinários da instrução devem ser comuns a todos eles". (Bentham, J.; "Panopticon - Postscript", p.161)
Nas penitenciárias e prisões, a Escola Dominical deveria ser a academia onde se daria a instrução formal dos internos. Nesse sentido, a Religião deveria ser o instrumento da educação, e o dia do domingo seria transformado em um dia útil para todos. Através dos exercícios espirituais e da instrução religiosa em todos os sentidos é que se processaria a educação dos internos.
Bentham diz:"Desenhar, esculpir e colorir gravuras sobre as cenas da escritura para edições da Bíblia, do Livro de Orações e outras publicações religiosas
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fornecem atividade constante para um número incomparavelmente maior de mãos do que aquele que pode ser encontrado nas penitenciárias. Ler e escrever haverão, nesses dias de ter assuntos religiosos como seus temas, esses tipos comuns de instrução haverão de ser ocupação eficiente para muito mais do que a maior parte dos prisioneiros. Quando esses recursos inferiores tiverem sido esgotados, por que ter escrúpulos de apelar para os recursos superiores? O grande objetivo do dia sagrado é manter vivo o sentimento religioso na mente das pessoas; que exercício, portanto, pode ser justamente considerado injustificável se contribui para esse fim?". (Bentham, J.; "Panopticon - Postscript", p.161).
Bentham argumenta que, embora o sistema Panopticon tivesse sido considerado de maneira mais específica em sua aplicação a penitenciárias e prisões, contudo, ele seria igualmente aplicável às escolas. Nesse sentido, a escola seria considerada como uma instituição onde todos os indivíduos estão sujeitos a inspeção. Ele argumenta que, o princípio da inspeção, que se constitui no elemento capaz de controlar o excesso de rigor na punição dos culpados, certamente produziria efeitos anti-tirânicos se utilizado no tratamento dos jovens.
Ele sugere que o sistema Panopticon poderia ser aplicado em duas modalidades no que concerne ao grau de extensão. Assim, poderia ser limitado às horas de estudo, ou poderia ser aplicado à rotina diária dos internos, incluindo as horas de repouso e diversão. As vantagens da primeira modalidade estariam em seu poder de fazer com que as horas dedicadas ao estudo, de fato, fossem gastas nesse tipo de atividade. Estando sob contínua inspeção, os estudantes seriam obrigados a concentrar seus esforços no cumprimento de sua tarefa de estudar. Esse sistema seria particularmente eficiente no combate a um vício considerado como congênito às escolas, qual seja o de 'colar'. Os estudantes haveriam de estudar em celas contendo uma cama, uma mesa e uma cadeira. Estariam sob contínuo escrutínio por parte do mestre que caminha pelo corredor e tem acesso a tudo o que ocorre dentro das celas.
Quanto ao emprego do sistema Panopticon na condução de toda a rotina diária dos internos, Bentham argumenta que, embora se possa multiplicar as dúvidas e formular diferentes interrogações sobre a possibilidade e as vantagens dessa utilização do sistema, todas elas podem ser satisfatoriamente respondidas ao se colocar a questão sobre o fim da educação. A resposta a todas essas questões se fundamenta na teoria de que, ao que tudo indica, a felicidade dos internos haverá de aumentar sob o sistema Panopticon.
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Bentham diz:"Sejam eles soldados ou monges, ou máquinas, desde que eles sejam felizes, eu não me preocuparia. Guerras e tempestades devem ser evitadas, mas a paz e a calmaria são coisas agradáveis. Não fique preocupado, meu caro, e não pense que haverei de ocupá-lo com aulas de filosofia moral, ou com um sistema de educação. A felicidade é uma coisa muito agradável de se sentir, mas difícil de se falar sobre ela, assim, pode relaxar, pois não acrescentarei algo mais sobre o assunto. Somente direi mais uma coisa, quem quer que estabeleça uma escola-de-inspeção inspirada no princípio deve preocupar-se com o mestre; pois os meninos não são mais ligados a seus pais, do que a sua mente será ligada à mente de seu mestre; a diferença entre eles corresponde a diferenças entre comando de um lado e sujeição de outro". (Bentham, J. "Panopticon", p.64)
Bentham esboça uma teoria da educação que principia pelo conceito e evolui na direção de certos princípios básicos que deveriam fundamentar a educação dos pobres. Assim, educação é, propriamente, para Bentham, a conduta do indivíduo na parte inicial de sua vida. O fim da educação é o próprio fim da vida, isto é, o bem-estar. O bem-estar é em parte aquele que se refere ao indivíduo, e em parte ele é o bem-estar daqueles que pagam as despesas e fornecem os cuidados necessários para sua educação. Desde o início até o fim do período de educação do indivíduo aos vinte e um anos, o processo de educação deve abranger toda a vida do educando.(Bentham, J.; "Pauper Management Improved",p.395)
Na visão de Bentham, o tempo do educando deve ser dividido em ocupações ativas e repouso. As ocupações devem ser voltadas para fins específicos que se referem a vantagens da Companhia, bem como dele mesmo (lucros resultantes de atividade produtiva); à sua situação presente em relação ao processo de aprendizado (lazer, alimentação, saúde, força, limpeza, segurança pessoal); à sua própria vantagem, no que concerne à sua situação após a emancipação, e à vantagem do público em geral (capacidade de auto-suficiência econômica, capacidade de auto-diversão, força intelectual, força moral, faculdade de agradar, formação religiosa, instrução razoável em todos os pontos de arte e conhecimento). Esses fins todos estão interrelacionados, de forma que uns conduzem a outros. Assim, a limpeza está associada com saúde, conforto e capacidade de agradar aos outros. Certas atividades envolvem diversos fins. Nesse sentido, a natação, por exemplo, implica diversão, segurança pessoal, saúde, força, limpeza, etc.
Bentham identifica os princípios que, de uma forma geral, deveriam reger a Educação dos pobres. Assim, ele aponta as seguintes regras:
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1. Em todo sistema de ocupação dos internos, e em cada ocupação, em particular, deve-se procurar atender o maior número possível de diferentes fins apontados anteriormente para as ocupações, no maior grau possível, conservada a sua devida submissão ao fim geral da educação.
2. A quantidade permitida de repouso absoluto, considerada em termos de negação ou ausência total de ocupação ativa, deve ser a mínima necessária para a saúde e a preservação da força.
3. Estando ausentes as causas positivas de desconforto, o conforto é aquilo que acompanha as diferentes ocupações que têm por efeito o exercício da faculdade de agradar e a consciência de possuí-la.
O que esses princípios apontados por Bentham parecem sugerir é que a educação dos pobres, independentemente da faixa etária, deveria estar intimamente ligada à atividade produtiva, isto é, ao trabalho. Esses princípios parecem especialmente construídos com o intuito de combater a preguiça e o relaxamento físico. Portanto, o modelo de educação que Bentham sugere é baseado na atividade e a idéia de conforto é entendida em contraposição ao conceito de desconforto. Não havendo causa evidente para o desconforto, a situação daquele que se ocupa com o exercício de algo que deveria agradar é o que ele chama de conforto. O ponto mais forte da posição de Bentham pode ser identificado em sua teoria sobre o sono. Bentham diz:"O sono não é vida, mas cessação da vida: deitar-se na cama sem sono é um hábito que produz relaxamento e, portanto, é prejudicial à saúde do corpo: e da mesma forma em que é preguiça, esse ato é pernicioso à vida moral". (Bentham J.; "Pauper Management Improved", ft., p.396)
2.2.6. BENEFÍCIOS COLATERAIS DA 'NATIONAL CHARITY COMPANY'
Bentham entende que o objetivo fundamental de um sistema de assistência aos pobres deveria ser organizado de forma tal a permitir a mera subsistência
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de todas as pessoas em estado de indigência, desde que elas estivessem dispostas a aceitar a ajuda nos termos em que esta lhe fosse oferecida.
Assim, benefícios colaterais seriam todos os demais resultados que pudessem ser obtidos pelos mais pobres, pelos pobres capazes de se sustentar e pelo público em geral, no sentido de melhorar sua condição de emprego, sua assistência monetária, sua segurança contra a depredação, segurança contra a morte, seu conforto, sua acomodação, sua instrução etc. (Bentham, J.; "Pauper Management Improved", p. 397)
Bentham acreditava que do sistema proposto na 'National Charity Company' resultaria uma série importante de benefícios colaterais. Esse sistema, instituído a partir de princípios mercantis, com sua estrutura de autoridade única em todos os campos de ação, equipada com uma apropriada quantidade de terra e capital, e atuando segundo certas regras de administração e com os resultados tornados públicos através do sistema de livros de registro, seria suficiente para suportar uma estrutura onde se produzissem certos benefícios colaterais ou resultados extraordinários. O sistema da 'National Charity Company' estaria construído sob a teoria de que uma enorme quantidade de benefícios colaterais poderia ser conseguida para os pobres através do direcionamento da atividade produtiva, não havendo qualquer aumento na quantidade de trabalho. A idéia fundamental seria maximizar as vantagens produzidas por uma certa quantidade de trabalho. Ainda que algumas vezes certos meios pudessem parecer dispendiosos e desnecessários, os princípios sobre os quais repousa o sistema sugerem que se examine os resultados do todo. O importante seria a utilização de meios que permitissem a obtenção de maiores vantagens colaterais. Bentham conclui sua análise dizendo:"Sabedoria - a verdadeira sabedoria consiste - não na estreiteza das medidas - mas na amplitude dos meios". (Bentham, J.; Pauper Management Improved", p. 397)
O primeiro dos benefícios colaterais do sistema seria o oferecimento de segurança de emprego para todos os necessitados. Bentham entende que o emprego na Companhia é um último recurso, pois o livre emprego resulta em liberdade e melhores salários. Nesse sentido, Bentham pensa que a 'National Charity Company' não haveria de concorrer na disputa de mão de obra disponível no mercado. Pois que seria natural as pessoas preferirem a liberdade do que o confinamento, a independência do que a dependência. Além disso seria 'desejável' que um bom trabalhador fosse empregado por um empregador particular ao invés de sê-lo pela 'Companhia', assim como seria bom para um mau trabalhador que ele fosse empregado da 'Companhia', pois que ela possui os meios de torná-lo melhor. Nesse sentido, uma assistência positiva que deveria ser acrescida à lista das obrigações da 'Companhia' seria a necessidade de criar um 'canal de inteligência' que informasse a procura de
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trabalho, de um lado e, de outro, a oferta de mão de obra. Bentham sugere que esse 'canal de inteligência' (canal de comunicação) poderia ser criado através de uma 'Gazeta de Empregos' (Jornal de Empregos) que publicasse de forma pouco dispendiosa a lista de empregos e empregados disponíveis no mercado. Outro recurso seria a criação de um sistema de 'Registros de Empregos', ou 'Escritórios de Empregos' que espalhados por todo o país, convenientemente distantes uns dos outros, informassem sobre a demanda e oferta de empregos e mão de obra em cada região.(Bentham, J.; "Pauper Management Improved", p.398) Esse sistema seria parte da 'National Charity Company' e se constituiria em um serviço prestado pela 'Companhia' à comunidade e aos pobres. Seria, igualmente, uma fonte de renda da 'Companhia', pois que todo empregador que necessitasse de um empregado poderia recorrer à 'Companhia' e obter o que deseja pagando uma pequena taxa.
O segundo dos benefícios colaterais do sistema seria a extinção da mendicância. Bentham argumenta que as leis assistenciais, então vigentes na Inglaterra, determinavam que todo ser humano pobre tinha o direito de ser sustentado às expensas dos cofres públicos e que isto resultava em que as pessoas fossem mantidas na preguiça. Contudo, diz Bentham, a condição de mendigo é, falsamente, considerada ainda melhor, pelo menos no próprio ponto de vista do mendigo, do que a do pobre mantido na preguiça. Nesse sentido, o sistema da 'National Charity Company' deveria tratar com rigor a questão da mendicância, fazendo com que as pessoas fossem compelidas ao sistema de vida oferecido nas casas de trabalho. A justificativa para essa compulsão encontrava amparo na idéia de que pelas leis Britânicas os mendigos desfrutavam de uma vantagem que certamente não era intenção do legislador lhes proporcionar. Pois, sob a proteção das Leis assistenciais (Poor Laws) não corriam o risco de morrer de fome. Na pior das hipóteses, quando se tornassem inaceitáveis as ofertas feitas pela caridade particular das pessoas, eles poderiam socorrer-se dos cofres públicos e ser mantidos na preguiça sem necessidade de trabalhar.(Bentham, J.; "Pauper Management Improved",p.401)
Bentham apresenta a condenação da mendicância através de um argumento onde condena suas conseqüências. Ele argumenta que a mendicância gera sofrimento nas pessoas que estão expostas às súplicas dos pedintes. Primeiramente há aqueles que sofrem porque sentem comiseração pelo mendigo; depois há aqueles que se desgostam com a presença de um mendigo. Os primeiros podem encontrar algum alívio ao doarem alguma coisa ao pedinte, porém os segundos não têm coisa alguma que alivie a sua dor. O total de sofrimento produzido nos que sofrem com a atuação dos mendigos é maior do que o sofrimento que certamente seria provocado nos mendigos ao serem obrigados a abandonar a mendicância e serem coagidos a trabalhar.(Bentham, J. "Pauper Management Improved", p.401) Além do mais, a mendicância é uma atividade desencorajadora da iniciativa produtiva. Cada moeda que é gasta nos sistema da National Charity Company torna-se numa
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recompensa da atividade produtiva, mas toda moeda dada a um mendigo é um incentivo à preguiça. Ela é ainda uma atividade que estimula à vida criminosa, pois que ao remover a vergonha das pessoas, ela subtrai a principal salvaguarda da honestidade. Ela constitui ainda um repositório de sofrimento na sociedade. Pois que, para cada pedinte bem sucedido existe toda uma horda de fracassados e miseráveis. A 'National Charity Company' compreendia um plano para apreensão dos mendigos. Assim, qualquer cidadão teria poder para prender um pedinte que estive mendigando em lugar público. Ele deveria ser conduzido à autoridade policial, ou à casa de trabalho mais próxima. Haveria um recompensa para o apreensor. Essa recompensa seria anotada na ficha de débitos do mendigo, juntamente com as despesas de transporte, alimentação, roupas e hospedagem, remédios e despesas pessoais, parcela individual das despesas gerais da casa, remuneração do capital da casa usado para financiar as despesas anteriores, seguro de vida suficiente para cobrir os débitos com a casa de trabalho. O mendigo assim recolhido somente seria dispensado da casa após encontrar um patrão que se responsabilizasse por ele. Nesse meio tempo o mendigo deveria trabalhar para pagar as despesas de sua ficha de internamento nas Casas de Trabalho.(Bentham, J.; "Pauper Management Improved", p.402) Nesse sentido, se um mendigo procura por si mesmo a internação numa casa de trabalho ele estaria economizando em proveito de seu próprio bolso. Ademais ele seria dispensado do período de provação durante o qual não poderia ser considerado completamente recuperado e dispensado da Casa de Trabalho.
O terceiro benefício colateral do sistema seria, segundo Bentham, a eliminação da depredação ou dilapidação. O hábito da dilapidação pode ser inferido com certeza quase que absoluta da inexistência de meios honestos de subsistência, associada com o não exercício da mendicância. Assim, é um hábito que pode ser identificado por meio de prova indireta. Se um indivíduo não pode provar que possui meios próprios de subsistência, não está mendigando, não trabalha, então de alguma forma ele está vivendo à custa da depredação do patrimônio alheio. Através da 'National Charity Company' seria possível combater os dilapidadores do patrimônio alheio, e ainda obter algum lucro com isso.
O quarto benefício colateral seria o oferecimento de ajuda para a indigência temporária. Bentham argumenta que a melhor forma de ajudar a indigência temporária não consiste em doações, mas em empréstimos. Os empréstimos preservam o espírito de trabalho e austeridade nos gastos. Além do mais, as doações contrariam o princípio da auto-liberação que deve reger as casas de trabalho. Esse princípio determina que todos devem pagar, em trabalho, as despesas que geram para a instituição.
O quinto benefício do sistema seria o atendimento de uma série de exigências que estariam associadas a um nível mínimo e frugal de vida de que poderiam desfrutar os pobres assistidos pelas casas de trabalho. Assim, no caso de
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desemprego temporário, ou doença passageira, o sistema previa uma renda provisória enquanto durasse esse infortúnio. No caso de aposentadoria por invalidez ou velhice, o sistema previa uma renda pelo resto da vida. No caso de morte, o sistema oferecia capital para realização do féretro. O sistema previa ainda uma renda para provisão das crianças e das viúvas. Toda a população dos pobres capazes de se manter através das casas de trabalho disporia dos serviços de um sistema de 'Bancos da Frugalidade' que, fazendo parte da 'National Charity Company', haveriam de administrar os recursos do plano de assistência à frugalidade.(Bentham, J.; "Pauper Management Improved", p. 416)
O sexto benefício do sistema seria a facilidade no envio de quantias de dinheiro para parentes e dependentes destituídos de renda própria. As casas de trabalho estariam ligadas por um sistema de comunicação que tornaria viável o envio de pequenas quantias de dinheiro de uma parte para a outra.
O sétimo benefício colateral do sistema consistiria em facilitar aos pobres a possibilidade de locomover-se para os lugares distantes, através da utilização das casas de trabalho dentro de um sistema de 'hospedagens frugais'. Bentham argumenta que esse sistema permitiria aos pobres uma modalidade de locomoção pouco dispendiosa que, além de possibilitar-lhes o conforto de poder relacionar-se com parentes e amigos, visitando-os, poderiam ainda usar sua liberdade de locomoção na procura de trabalho.(Bentham, J.; "Pauper Management Improved", p. 418)
O oitavo benefício colateral do sistema consiste em que ele transformaria o regime de aprisionamento (internato) mais barato e capaz de reformar os internos. Segundo Bentham, as causas eficientes da corrupção do regime de internato seriam: a preguiça, isto é a falta de ocupação honesta; a agregação corruptora; a falta de inspeção tutelar; o acesso a meios de intoxicação (álcool, drogas etc.). As causas eficientes da reforma dos internos seriam: o trabalho, isto é, atividade honesta e ocupação geradora de recursos; agregação segundo critérios de proteção; constante inspeção; abstenção total de meios de intoxicação. Bentham afirma:"A ausência perfeita de todas as causas eficientes da corrupção, a presença perfeita de todas as causas da reforma - é a essência das casas de trabalho". (Bentham, J.; "Pauper Management Improved",p.418)
O nono benefício colateral do sistema é o reforço à moralidade doméstica. Bentham argumenta que a 'National Charity Company' poderia oferecer um remédio para as desordens domésticas, que não pudessem ser combatidas através do dispendioso sistema de aprisionamento em casas penitenciárias.
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Assim, maus aprendizes, crianças más e más esposas poderiam ser internadas nas casas de trabalho com o objetivo de se melhorar seu comportamento. A autoridade dos pais, mestres e magistrados seria suficiente para determinar o internamento. De igual forma, as casas de trabalho poderiam ser usadas como um tipo de 'asilo' contra a tirania doméstica de mestres, pais e maridos. Nestes casos bastaria a manifestação da vontade da vítima para que lhe fosse oferecida a acolhida na casa de trabalho.(Bentham, J.; "Pauper Management Improved", p.419) O sistema haveria ainda de reforçar a moralidade doméstica transformando-se em uma escola perpétua de moralidade. A base do sistema consiste na criação de uma ordem em que os indivíduos melhores são recompensados pelos mecanismos que lhes dão os melhores empregos, premiando-os por seu bom comportamento.
O décimo benefício colateral do sistema consiste no fortalecimento, sem aumento de despesas, das Forças Armadas. Segundo Bentham, o sistema de defesa nacional seria suplementado pelo contingente humano disciplinado, organizado e treinado nas casas de trabalho espalhadas por todo o país. (Bentham, J.; "Pauper Management Improved",p.420)
O décimo primeiro benefício colateral do sistema seria a diminuição da taxa de mortalidade infantil. Bentham argumenta que a aplicação dos princípios de administração consagrados no sistema da 'National Charity Company' resultaria numa diminuição da taxa de mortalidade das crianças que ficassem ao cuidado das casas de trabalho. Nesse sistema as necessidades seriam reduzidas ao mínimo possível e os meios de sobrevivência aumentados ao máximo. O sucesso do plano estaria associado à demonstração de que, para as crianças pobres internas, a probabilidade de vida é maior numa casa de trabalho do que em qualquer outro lugar.
O décimo segundo benefício colateral do sistema seria o aumento e disseminação do conhecimento. Bentham argumenta que o sistema que aqui se propõe se constitui numa oportunidade única de aumento do conhecimento em diferentes áreas, tais como Medicina, Mecânica, Química, Economia Doméstica, Metereologia, Lógica, Contabilidade. Esse aumento seria resultado do volume de informações experimentais possibilitadas pela situação de inspeção e registro dos acontecimentos ocorridos nas casas de trabalho. Existiriam, ainda, condições extremamente propícias para a divulgação de informações entre os indivíduos que comporiam a população das casas de trabalho. O sistema de instrução generalizado e o serviço de atendimento religioso seriam preciosos instrumentos na divulgação do conhecimento entre os internos. Ainda, o sistema de comunicação entre as casas de trabalho permitiria a disseminação de conhecimentos úteis em todos os níveis.(Bentham, J.; "Pauper Management Improved", pp. 425-428)
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Finalmente, o décimo terceiro benefício colateral do sistema seria o direcionamento e a assistência à caridade voluntária dos cidadãos. Bentham critica as formas de caridade espontânea dos indivíduos que assistem aos pobres sem utilizar-se de critérios que permitam distinguir os diferentes méritos. Assim, os virtuosos são tratados com a mesma consideração dos viciados, o saudável não é distinguido do agonizante, o eventual pedinte recebe o mesmo tratamento do mendigo mais renitente. O sistema da 'National Charity Company' está baseado na idéia que todas as doações feitas às casas de trabalho sejam devidamente contabilizadas e seu uso seja de conhecimento público. Desta forma o doador poderá ter todo o conforto de saber que sua doação foi despendida na amenização do sofrimento que com ela se pretendia aliviar. Bentham diz:"A piedade, assim como outras emoções, nunca é tão forte como quando é provocada e excitada por impressões particulares. É a observação de uma necessidade particular - alguma instância particular de sofrimento - que dá origem à 'dor da simpatia', a qual não pode obter alívio se não pela idéia da extinção do sofrimento presenciado ou imaginado. Para que seja garantido que, não somente a condição do objeto será em seu todo melhorada pela doação, mas que ocorrerá uma melhora naquele sentido específico - que seja melhorada pela remoção daquele sofrimento particular, de cuja idéia nasceu a dor da comiseração e conseqüentemente o desejo de proporcionar alívio - tal garantia não é somente a mais apropriada, mas a única satisfação perfeita que aquele desejo pode receber". (Bentham, J.; "Pauper Management Improved", p.429)
Bentham denuncia a existência de uma falsa caridade que é inimiga tanto da assistência como do trabalho. Em sua opinião se a caridade é um fim para certas ações, contudo a economia deve ser o meio de se obter esse fim. Nesse sentido, o conforto dos pobres depende muito pouco do volume de dinheiro que é utilizado em seu socorro. Ele depende mais da atenção e do sucesso com que é oferecido. (Bentham, J.; "Pauper Management Improved", p. 430)
O texto de Bentham intitulado "Pauper Management Improved" aqui examinado não chegou a ser completado. Nos inexistentes Livros V e VI, Bentham pretendia tratar dos aspectos financeiros e apresentar seus argumentos em favor da organização constitucional da 'National Charity Company'.
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3. BENTHAM E AS GARANTIAS DOS SISTEMAS NORMATIVOS:
PUNIÇÃO E RECOMPENSA
“The business of government is to
promote the happiness of the society,
by punishing and rewarding”.
(Bentham, J. “The Principles of Morals
and Legislation”, London, 1789, Chap.
VII, p. 977)
As mais diferentes posições que se fazem presentes na moderna discussão sobre teoria do Direito têm partido da pressuposição que todo sistema jurídico se constitui de regras de comportamento que têm o sistema punitivo como garantia da subserviência dos concernidos. Assim, a garantia de todo conjunto de normas e institutos jurídicos é, em última instância, um sistema de controle baseado na imposição de punição, pena, restrição ou sofrimento sobre o autor do ato infracional.
Entretanto, as objeções mais graves produzidas pelos críticos dos sistemas jurídicos, enquanto conjuntos de normas e instrumentos de controle do comportamento das pessoas, têm sido elaboradas a partir da denúncia da insustentabilidade de uma teoria do Direito como instrumento de controle social através do estabelecimento de um sistema punitivo e da violência gerada pelo próprio sistema de administração da justiça na medida em que controla, através da punição, o comportamento social. Isso quer dizer que o discurso do Direito Penal é irracional, bem como, o aparelho da Justiça punitiva é hoje acusado de gerar mais violência do que aquela que consegue eliminar.
Este texto tem por objetivo oferecer uma interpretação do contexto dos argumentos críticos do atual sistema de controle jurídico através da punição dos atos que infringem as leis estabelecidas e procura examinar os fundamentos de uma teoria da recompensa que forneceria subsídios para uma teoria do Direito baseada em um sistema de garantia premial. Portanto, muito menos que examinar os argumentos das teorias críticas do Direito Penal, aqui se pretende apresentar uma interpretação do quadro geral dessas teorias. Uma segunda parte deste texto concerne à apresentação de alguns princípios e algumas teses sobre os fundamentos de uma teoria da recompensa como instrumento de garantia do sistema de controle do comportamento dos agentes.
Há evidências que os utilitaristas clássicos, com especial referência a Jeremy Bentham, propositadamente lembrado na epígrafe deste texto, pensaram na recompensa, compensação ou prêmio como um instrumento complementar ao sistema punitivo. Nesse sentido, punição e recompensa
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seriam faces de uma mesma moeda. Aqui se pretende examinar os fundamentos de uma teoria da recompensa construída a partir do pressuposto que um sistema premial pode ser instrumento de garantia da prática do bem.
3.1. O contexto das modernas teorias críticas da punição
Parece razoável afirmar que o moderno debate sobre o sentido da
garantia do sistema normativo das condutas coletivas tem sido marcado pela
produção de teorias que, de uma forma geral, apontam a existência de uma
crise nas tentativas de produzir um discurso racional para a justificação da
punição como instrumento de controle social. Grande parte da produção
literária sobre o tema está voltada para a crítica das teorias que têm
interpretado o Direito como um conjunto de formas de resolução de conflitos
entre os seres humanos através do controle do comportamento social por meio
de medidas punitivas. Esse parece ser o ingrediente novo nesse debate.
Entretanto, as teorias hegemônicas têm sido aquelas que insistem na
afirmação do caráter inescapável da punição como único recurso de que se
dispõe para fazer obedecer às leis. Assim, há fortes evidências que se vive, no
mundo das teorias penais, a crise do paradigma do Estado Social e
Democrático de Direito, o qual interpreta que a Justiça somente pode ser obtida
em um sistema de controle social apoiado no garantismo e no Direito Penal
mínimo. A expressão garantismo ficou consagrada na literatura jurídico-penal
como expressiva da interpretação que o controle social penal exercido pelo
Direito deveria ser racional, previsível e transparente. Fica, portanto,
assegurada a necessidade de formalização dos conflitos como um dos
recursos que o Direito deveria oferecer na realização de sua tarefa de garantir
os direitos individuais contra as possíveis arbitrariedades do Estado. A idéia de
Direito Penal mínimo implica na interpretação que a intervenção penal deve se
limitar à proteção de bens jurídicos vitais do indivíduo e à organização e à
proteção da sociedade.
Esse paradigma de interpretação do significado do Direito, com especial
referência ao Direito Penal, parece, contudo, encontrar-se hoje em crise. Novas
teorias parecem consolidar-se na tarefa de substituir as idéias de garantismo e
Direito Penal mínimo. Assim, toma corpo a teoria que destaca o caráter
simbólico da atividade punitiva do Estado. Isto é, a intervenção penal não é
mais tida como forma de tutela de bens jurídicos fundamentais, como pleiteado
pela teoria garantista, mas como instrumento de impacto e controle do
sentimento público de insegurança. Por outro lado, a teoria do Direito Penal
mínimo, com sua subsequente defesa da descriminalização de certos
procedimentos e com a busca de formas alternativas de expressão do rigor
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punitivo, vem sendo substituída pela teoria do equacionamento transacional ou
conciliatório de conflitos fora do processo formal de exercício da tutela
jurisdicional do Estado. Essa forma de resolver conflitos que privilegia a
atividade de transigir sobre direitos definidos e a conciliação forçada das partes
litigantes implica uma maneira de entender o Direito que resulta na imprecisão
tópica na descrição das condutas proibidas ou ordenadas, na tipologia criminal
imprecisa e vaga e na depreciação do processo formal de exercício da tutela
dos direitos numa situação de conflito. Assim, as teorias que apontam o caráter
simbólico da pena, as teorias que consideram os direitos como negociáveis e
as que destacam o caráter transigente do exercício da tutela jurisdicional
parecem se constituir na nova roupagem com que se traveste a teoria que
interpreta o Direito como expressivo dos movimentos de preservação da Lei e
da Ordem.
Se este diagnóstico estiver minimamente correto, então os movimentos
especulativos hoje em dia prevalecentes na teoria do Direito Penal indicam o
recrudescimento da teoria que interpreta o Direito como resultado da
preservação da Lei e da Ordem, em detrimento das teorias que interpretam o
Direito como instrumento de construção daquilo que se convencionou chamar
de Estado Social e Democrático. Portanto, o panorama do moderno debate
sobre as teorias do Direito é aqui reconstruído a partir do confronto entre duas
perspectivas. De um lado teorias que enfatizam categorias, tais como, punição
como instrumento de controle, negociabilidade dos direitos e informalidade da
tutela jurisdicional. De outro lado teorias que interpretam o Direito a partir de
categorias tais como racionalidade do discurso jurídico, previsibilidade e
transparência nos instrumentos de controle social, descriminalização e
proteção da sociedade contra o Estado. No que concerne particularmente à
teoria da punição, as posições se dividem em defensores da função simbólica,
ou imaginária da punição e defensores da função instrumental ou racional da
pena. Para os primeiros, as punições são instrumentos de eficácia garantida no
controle social, uma vez que têm um significado simbólico que pode ser
traduzido na idéia que todos têm a impressão que se tem mais segurança
quanto mais rigoroso seja o sistema punitivo. Para os segundos, as punições
somente são racionalmente justificáveis se for possível demonstrar que os
resultados obtidos com sua utilização, de fato, maximizam a tutela eficaz dos
bens jurídicos fundamentais para a convivência social. Para uns o papel da
pena é dar aos cidadãos a sensação de proteção. Para outros, as penas
somente tem sentido como instrumentos da tutela do Estado de Direito.
Contudo, novos argumentos estão sendo gestados e espera-se uma
nova escalada das posições críticas da utilização do Direito Penal como
instrumento exclusivo de controle da criminalidade. É nesse contexto de
contestação de certo uso do Direito Penal que se situa o presente trabalho.
41
Entretanto, aqui se pretende argumentar que, na construção da posição
crítica do Direito Penal, tem sido negligenciada a análise do caráter
instrumental benéfico, como medida de estímulo para a ação, que a
recompensa, ou prêmio, pode ter. Em contraposição a uma interpretação
meramente penal do Direito, é possível fundamentar todo o sistema de
estatutos e institutos, que constituem o Direito, em uma interpretação simétrica
entre a função penal, ou punitiva, e a função premial, ou recompensatória, dos
seus instrumentos de garantia. O Direito, nessa perspectiva, não se utiliza
somente de instrumentos de controle negativo, inibindo certos cursos de ação,
na medida em que castiga, pune ou impinge sofrimento àquele que infringe a
Lei. Mas, é, ainda, garantido por instrumentos de controle positivo, que podem
incentivar ou estimular as pessoas a agirem, ou deixarem de agir, de uma certa
forma, posto que, ao assim fazerem, tornam-se merecedoras de um prêmio, ou
recompensa, que o Direito Premial faz acrescer aos resultados naturais e
sociais do ato praticado.
3.2. Fundamentos da teoria utilitarista da punição
As conclusões da moderna discussão sobre a teoria das penas legais
têm traduzido o esforço de demonstrar que o sistema punitivo do Direito Penal,
ademais da suposta perversidade do discurso jurídico-penal (ZAFFARONI
1991:29) reintroduz a violência nas relações sociais. Isto é, no esforço de
eliminar a violência civil existente nas relações conflituosas que ocorrem na
vida da sociedade, o controle social exercido através do Direito Penal mantém
um sistema de violência. Substitui-se a violência civil pela violência penal.
O desenvolvimento deste tema vem sendo sugerido em uma série de obras
que têm sido produzidas na literatura recente sobre o Direito Penal, a
Criminologia, a Sociologia Jurídica, a Filosofia do Direito e a Ética. Ainda que
modernamente, grande parte das obras sobre o tema do controle social
punitivo, da violência como instrumento de determinação do comportamento
legal, da teoria das penas, da teoria das punições, da vitimologia e da
criminologia tenha sido produzida por sociólogos e juristas, contudo, esse
parece ser um tema típico do panorama jusfilosófico do final do século XVIII e
início do século XIX.
Nos anos entre 1750 e 1850 foram produzidas diversas obras sobre as
questões que são hoje identificadas como parte da produção da crítica do
Direito Penal. Essas obras foram escritas a partir de pressupostos filosóficos
explicitamente assumidos por seus autores como tais. O que isto parece indicar
é que a crítica do Direito Penal não é um fenômeno recente; ela vem se
processando desde o final do século XVIII quando ocorre a virada iluminista no
42
mundo das teorias jurídicas e se inicia a revolução do Direito rumo à
implementação do princípio da racionalidade moderna no mundo dos institutos
jurídicos. Claude Adrien Helvetius, Cesare Beccaria, Jeremy Bentham, Adam
Smith, John Stuart Mill, dentre outros, denunciaram o sistema punitivo e o
emprego da violência como instrumento de controle social em sua época.
Também eles discutiram criticamente os diferentes sistema punitivos e
elaboraram teorias sobre o controle social do comportamento dos cidadãos
pensando em formas de evitar os pontos que hoje se tornaram o fulcro do
debate sobre a garantia de sistemas de condutas através de mecanismos
punitivos. Entretanto, o fizeram a partir de determinadas posições filosóficas
explicitamente declaradas. Tudo indica que fizeram a discussão a partir de
teorias cujas formulações se utilizavam de categorias e linguagem filosóficas.
Aqui se pretende resgatar alguns tópicos da contribuição desses
pensadores clássicos do pensamento moderno para o tema que investiga
sobre os instrumentos que podem ser usados no processo de garantir o
cumprimento das regras socialmente construídas. A filosofia contemporânea
tem realizado a sua inserção nesse debate através de uma outra vertente.
Filósofos e Jusfilósofos contemporâneos têm participado desse debate através
da discussão da teoria da justiça. Entretanto, todos parecem presumir que a
questão da justiça concerne aos fundamentos da eqüidade na repartição do
bem estar que as sociedades modernas são capazes de produzir. Pouco tem
sido dito sobre os critérios da repartição dos ônus produzidos pelos
instrumentos de garantia da ordem, dos critérios para distribuir punição e
sofrimento que necessariamente se agrega à vida em sociedade toda vez que
se estabelecem sistemas punitivos como forma de controlar o comportamento
das pessoas. Pouco se tem discutido sobre sistemas de controle social cujos
resultados sejam alternativos à agregação de violência ao „quantum‟ produzido
pela atividade infracional. Quase nada se fala daquilo que os clássicos da
modernidade já intitularam a racionalidade do sistema premial.
Dentre os autores que se destacaram por sua contribuição sobre as relações
entre punição e recompensa como instrumentos de garantia do controle do
comportamento coletivo destaca-se Jeremy Bentham (1748-1832). Ele parece
ter sido o primeiro a encaminhar a discussão da questão da justificação
utilitarista das punições legais. Isto é, partindo da interpretação que o
utilitarismo pretende ser um projeto ético que privilegia a busca do prazer e a
fuga da dor, investigou como é que esse mesmo projeto justifica que as leis
necessitem ser garantidas pela punição e, portanto, pelo sofrimento dos
infratores. Posto de outra forma, sendo o sofrimento um mal, em que sentido a
punição pode ser um bem?
Na formulação clássica, com especial referência às idéias de J. Bentham, a
teoria utilitarista das penas legais apresenta uma resposta para esta questão.
43
Partindo da interpretação que as punições têm o caráter de 'medidas de
desencorajamento', o utilitarismo fornece um conjunto de critérios plausíveis
para a identificação da menor punição possível.
Na visão utilitarista clássica, as punições são, juntamente com as
recompensas, os únicos instrumentos justificáveis racionalmente que podem
exercer alguma influência na determinação da forma de conduta das pessoas,
posto que alteram, de fato, as conseqüências naturais das regras de conduta,
agregando-lhes prazer ou sofrimento. Elas são, portanto, os instrumentos de
garantia da obediência às leis. As leis são sempre postas para um fim, ou uma
finalidade. A finalidade ultima ou geral de uma lei não pode ser outra senão o
bem estar da comunidade. O bem da comunidade é a soma dos bens
particulares, isto é, dos diversos indivíduos da qual ela se constitui. Desta
forma o aumento do bem de cada um dos indivíduos implica no aumento do
bem da comunidade como um todo. Isto decorreria da aplicação do principio de
utilidade associado com o principio da simpatia dos interesses. Portanto, uma
lei será tão mais propriamente uma lei na medida em que ela seja capaz de ser
uma expressão do principio de utilidade7.
O projeto utilitarista é, contudo, fortemente fundamentado no individualismo.
Nesse sentido nenhuma atitude humana pode ser censurada ou aprovada sem
se postular o principio de cada individuo buscar seu próprio prazer, ou utilidade.
A aplicação desse principio pode conduzir à conclusão que o mais sórdido
prazer que o mais temível dos malfeitores consegue obter de seu crime não
haveria de ser reprovado se esse individuo existisse sozinho, ou se sua ação
não afetasse a felicidade dos demais.
A teoria utilitarista da lei assegura que a finalidade da ordem jurídica é
contribuir para a felicidade da comunidade e impedir a pratica de atos que
impliquem na diminuição dessa felicidade. Agregando punição e recompensa
aos resultados das normas de condutas, o legislador pode influenciar as ações
e promover a felicidade dos seres humanos. A ação que a lei influencia pode
ser a do próprio legislador ou a de outros indivíduos. O legislador pode
promover a felicidade de outros indivíduos de duas maneiras. Primeiramente
pode influenciar as ações criando uma situação em que a abstenção da prática
de determinada ação haveria de produzir sério inconveniente ao indivíduo. Em
segundo lugar, pode influenciar as ações criando uma situação em que a
execução de determinada ação haveria de produzir conseqüências vantajosas
para o individuo.
7 Bentham, J., "The Limits of Jurisprudence Defined"; New York, Columbia University Press, 1945, pp.
111/115.
44
Dessa maneira, através dos métodos punitivos e premial, o legislador causa ou
pretende causar a pratica ou a abstenção de uma ação. Nesse sentido, o
legislador cria o dever. E os deveres, conforme o caso, podem ser
considerados como dever de abstenção, ou dever de execução. Isto é, os
deveres podem ser positivos ou negativos8.
Os objetos sobre os quais incidem as ações podem ser coisas ou pessoas.
Desta forma, os deveres estabelecidos pelo legislador como uma forma de
influenciar as ações resulta por conferir, a um individuo, poder sobre coisas e
pessoas. Na medida em que a lei resulta na abstenção de certas ações de
outras pessoas, as quais poderiam resultar na diminuição da vantagem que um
indivíduo colheria da utilização de certa coisa, ela confere poder a esse
individuo sobre essa coisa. Assim também, na medida em que a lei não proíbe
o individuo de praticar aquelas ações sobre a coisa, que haveriam de resultar
em sua felicidade, ela está conferindo poder ao individuo sobre a coisa. Assim,
o poder sobre as coisas é conferido pelo legislador na medida em que ele
impõe, sobre as pessoas, o dever de abstinência. A lei influenciando as ações
não pode, por razões óbvias, deixar de influenciar as pessoas. Portanto,
somente no sentido de término é que podemos dizer que as leis têm por
objetos as coisas. Nestes termos, o poder sobre uma coisa, haveria de
significar sempre o direito sobre as ações de pessoas9.
A lei pode conferir ao individuo o poder de tal forma que ele é deixado livre
para exercê-lo ou não, de acordo com a contribuição que a ação em pauta
venha significar para sua vantagem. Contudo, a lei pode conferir o poder
associando-o com o dever, isto é, o individuo é compelido a exercer o poder
em proveito de uma outra parte. Neste último caso, Bentham entende que se
tem o ingrediente da 'responsabilidade'10.(12)
Quando os atos que um individuo é livre para praticar podem envolver os
interesses de outras pessoas, esse indivíduo exerce um poder sobre essas
pessoas. Nesse caso, na medida em que o indivíduo possui o poder em
questão, ele desfruta da isenção do dever de abster-se de praticar os atos
envolvidos pelo poder em questão. Desta forma, a lei pode conferir diferentes
modalidades de poder sobre as pessoas.
A lei emite comandos e, ao assim fazê-lo, ela cria deveres, ou o que seria a
mesma coisa dita com palavras diferentes, ela cria obrigações. Não existe lei
8 Bentham, J., "The Limits of Jurisprudence Defined"; New York, Columbia University Press, 1945, pp.
311/312. 9 Bentham, J., "The Limits of Jurisprudence Defined"; New York, Columbia University Press, 1945, p.
312. 10
Bentham, J., "The Limits of Jurisprudence Defined"; New York, Columbia University Press, 1945, p.
341-342.
45
sem a criação de deveres. Esse seria um elemento característico de todo artigo
de lei.
Na visão do utilitarismo, o legislador deveria dispor de um quadro geral que
permitisse interpretar todos os campos da ação humana. Ele deveria utilizar um
método que permitisse construir as leis com regularidade e consistência. Isto
certamente resultaria em uma "Jurisprudência Definida" e tão transparente que
não haveria obscuridade na interpretação da lei. Num sistema legal produzido
por um legislador desse tipo, as pessoas precisariam apenas abrir o livro da lei
e ler o que estaria disposto sobre todas as esferas da ação humana. Ali se
encontrariam as leis prescrevendo as ações que deveriam ser executadas para
seu interesse próprio, de seus visinhos e do público em geral. As leis
descreveriam ainda os atos que um indivíduo tem o direito de praticar, e os
atos que ele tem o direito que os outros executem em seu favor. Uma
"Jurisprudência Definida" haveria de deixar claro aos indivíduos tudo o que eles
deveriam esperar e temer em relação às leis. A lei seria então o repositório de
todo o sistema de obrigações contidas, de fato, nas ordens que elas
expressam, ou contidas de forma potencial nos poderes que elas conferem.
A forma como o utilitarismo concebe a lei parece estar apoiada sobre uma
interpretação política das relações entre os indivíduos. A lei expressa poder
das pessoas, umas sobre as outras. Ela expressa a vontade de um soberano,
sendo, portanto, um instrumento de governo.
Essa teoria coloca, contudo, a questão da justificação da força da lei. Dentro de
um projeto de explicação das ações humanas a partir dos princípios de
utilidade, como justificar racionalmente o poder de umas pessoas sobre as
outras? Isto é, como justificar o fundamento, ou a força da lei? Quais as razões
que compelem os indivíduos a obedecerem às leis?
Bentham acreditava que a força da lei consistia nos motivos em que ela se
apóia para ser capaz de produzir os efeitos para os quais é forjada. Os motivos
das leis consistem na expectativa da quantidade de prazer e de sofrimento que
estão conectados, numa relação de causa e efeito, com certas ações das quais
eles são considerados os motivos. Portanto, a força que impulsiona os
indivíduos a obedecerem às leis é de dois tipos. Primeiramente existem os
motivos que estão associados ao prazer e atraem as pessoas para certas
práticas previstas na lei porque o resultado das ações do agente é de seu
interesse. Em segundo lugar, existem motivos que se associam ao sofrimento
daqueles que praticam determinadas ações descritas na lei. Quando uma lei
tem motivos do primeiro tipo se diz que ela oferece uma recompensa. No caso
46
de leis cujos motivos são do segundo tipo, se diz que elas produzem
punições11.
Bentham argumenta que suas conclusões encontram razões favoráveis na
análise da própria estrutura dos dispositivos legais. Embora nem sempre se
possa encontrar explicitamente declaradas nos textos das leis, contudo, as leis
se compõem sempre de uma parte que prescreve um curso de ação e outra
que descreve um motivo, isto é, uma recompensa ou uma punição. As leis
possuem uma parte que é expressiva da vontade do legislador, e outra cuja
finalidade é indicar o motivo que ele fornece para que se cumpra o seu desejo.
Bentham diz: "Nesse caso a lei pode ser dividida em duas partes:
uma cuja finalidade e fazer você conhecer qual e a inclinação do
legislador: a outra serve para dar ciência do motivo que o
legislador lhe deu para você se adequar àquela inclinação: uma
endereçada mais particularmente para o seu intelecto; a outra,
para a sua vontade. A primeira dessas duas partes pode ser
denominada diretiva: a outra, sancional ou incitativa"12.
Bentham parece aceitar que, embora a lei não seja por sua própria
natureza coerciva, os sistemas legais usam, tipicamente, de ameaças e da
força para garantir obediência a suas normas. O problema que se põe então
consiste em perguntar como tais práticas podem ser justificadas. Quais as
justificativas para a coerção, pois que ela nos priva da possibilidade de agirmos
por nossas próprias razões? Qual a justificativa para punições que podem
privar as pessoas de seus bens, incluindo a própria vida?
Segundo David Lyons dois pressupostos gerais fornecem a base para a
resposta a essas questões. Primeiramente é necessário partir da idéia que a lei
é moralmente falível. Em segundo lugar, que os julgamentos morais são
capazes de ser justificados. Se a lei é moralmente falível, podemos assumir
que os usos legais da coerção são justificáveis. Geralmente se concorda que o
uso da força e da coerção necessitam justificação. Se isto é verdade, cabe a
pergunta pela defesa legal da coerção. Note-se que a própria idéia de que a
coerção requer justificação assume que os julgamentos morais são capazes de
ser justificados. De outra forma, não haveria objeções morais a coerção.
Portanto, o que isto parece implicar é a preferência pela posição que favorece
11
Bentham, J.; "The Limits of Jurisprudence Determined", New York, Columbia University Press, 1945,
p.224. 12
) Bentham diz:"In this case the law may plainly enough be distinguished into two parts: the one serving
to make known to you what the inclination of the legislator is: the other serving to make known to you
what motive the legislator has furnished you with for complying with that inclination: the one addressed
more particularly to your understanding; the other, to your will. The former of these parts may be termed
the directive: the other, the sanctional or incitative". (Bentham, J.; "The Limits of Jurisprudence
Determined", New York, Columbia University Press, 1945, p.225)
47
a justificabilidade das leis e das práticas consideradas necessárias à sua
implementação, especialmente as providências de punição13.
Os limites dessa discussão são suficientemente amplos para abranger
uma série extensa de outras questões. Contudo, aqui não se pretende ir além
de apontar algumas características gerais da teoria utilitarista da punição.
Um utilitarista acredita que a lei deve servir o interesse do povo. Se a
punição pode ser justificada, o deve ser em tais termos.
Bentham afirma: "A arte da legislação tem em vista dois objetivos
ou propósitos gerais: um direto e positivo, qual seja, contribuir
para a felicidade da comunidade: o outro indireto ou negativo,
evitar que se faça qualquer coisa que possa resultar na
diminuição dessa felicidade. Ela tem dois grandes instrumentos
ou aparatos para capacitá-la a encaminhar o primeiro desses dois
objetivos: 1. a coerção e 2. a recompensa"14.
Portanto, o objetivo geral das leis é aumentar a felicidade global da
coletividade. Conseqüentemente, elas visam a exclusão de todas as ações que
resultem na diminuição da felicidade, isto é, de tudo o que é pernicioso. Nesse
sentido, toda punição, na medida em que impõe sofrimento sobre as pessoas,
é um ato pernicioso, sendo um mal em si mesma. Esta é a razão pela qual uma
punição só pode ser justificada na medida em que evitar um mal maior15.
A teoria das punições legais conforme apresentada por Bentham no
"Principles of Morals and Legislation" consiste numa receita minuciosa do
procedimento do legislador. Primeiramente indica os casos em que o legislador
não deve infligir punição, sob pena de não ser fiel ao principio de economia de
sofrimento. Isto é, quando não existir outro meio de se evitar o prejuízo, o
legislador não deve punir por não valer a pena. Assim, evidentemente, o
legislador não deve impingir punição quando não houver motivo para a
punição, isto é, quando não houver prejuízo a evitar, ou o ato em seu conjunto
não contribuir para a diminuição da felicidade da coletividade. Ainda, quando a
punição somente puder ser ineficaz, isto é, quando a punição não for
susceptível de evitar o prejuízo. Ainda, quando a punição for inútil ou
excessivamente dispendiosa, isto é, o prejuízo produzido por ela for maior que
o sofrimento coletivo que com ela se consegue evitar. Ainda, quando a punição
13
Lyons, David; "As Regras Morais e a Ética", Campinas, Papirus, 1990, p.143. 14
Bentham diz:"The art of legislation has two general objects or purposes in view: the one direct and
positive, to add to the happiness of the community: the other indirect and negative, to avoid doing
anything by which that happiness may be diminished. To enable it to compass the former of these
purposes it has two great instruments or engines: 1. coercion and 2. remuneration". (Bentham, J.; "The
Limits of Jurisprudence Determined", New York, Columbia University Press, 1945, p.311) 15
Bentham, J.; "Princípios da Moral e da Legislação", São Paulo, Abril Cultural, Col. Pensadores, 1979,
p.59.
48
for supérflua, isto é, quando o prejuízo for passível de ser evitado sem a
punição, por si mesmo ou por um preço menor16.
Mesmo no caso de se constatar que vale a pena, isto é, quando
nenhuma das quatro situações acima descritas acontecer, o legislador deve
manter em vista quatro objetivos, ao pretender estabelecer punições que
evitem o prejuízo. Estes objetivos seriam: 1. Evitar, na medida do possível e na
medida em que valer a pena, qualquer espécie de ofensa ou crime; isso
significa combater todas as formas de ofensa ou crime; 2. Quando for inevitável
que alguma pessoa cometa um crime, criar circunstância que a obriguem a
cometer o crime menos pernicioso, isto é, induzir o criminoso a escolher
sempre o crime menos prejudicial; 3. Induzir o criminoso à não produzir mais
prejuízo do que o mínimo necessário para que ele atinja a sua finalidade, isto é,
fazer com que o criminoso produza o mínimo de prejuízo possível para realizar
uma ação criminosa cujos fins ele almeja; 4. Evitar o prejuízo da forma menos
dispendiosa possível. Esses objetivos expressariam a aplicação pratica do
principio da economia de punições17.
Existem, ainda, seis normas que deveriam ser consideradas pelo
legislador para o estabelecimento de um correto equilíbrio entre crimes e
punições. Essas normas expressariam a combinação das quatro situações e
dos objetivos acima descritos. Elas seriam: 1. "O valor, ou a gravidade da
punição não deve ser em nenhum caso inferior ao que for suficiente para
superar o valor do beneficio da ofensa ou crime". 2. "Quanto maior for o
prejuízo derivado do crime, tanto maior será o preço que pode valer a pena
pagar no caminho da punição". 3. "Quando houver dois crimes concorrentes, a
punição estabelecida para o crime maior deve ser suficiente para induzir uma
pessoa a preferir o menor". 4. "A punição deve ser regulada de tal forma para
cada crime particular, que para cada nova parte ou etapa do prejuízo possa
haver um motivo que dissuada o criminoso de produzí-la". 5. "A punição não
deve, em caso algum, ser maior do que for necessário para que esta seja
conforme as normas aqui indicadas". 6 "Para que a quantidade de punição
realmente infligida a cada criminoso possa corresponder a quantidade que se
deseja para criminosos semelhantes em geral, é necessário sempre levar em
consideração as varias circunstâncias que influenciam a sensibilidade de cada
um"18.
Portanto, a teoria utilitarista das punições legais implica que a punição
tem um custo, não somente por causa da imposição de penas em casos
16
Bentham, J.; "Princípios da Moral e da Legislação", São Paulo, Abril Cultural, Col. Pensadores, 1979,
p.59. 17
Bentham, J.; "Princípios da Moral e da Legislação", São Paulo, Abril Cultural, Col. Pensadores, 1979,
p.60 18
Bentham, J.; "Princípios da Moral e da Legislação", São Paulo, Abril Cultural, Col. Pensadores, 1979,
p.61/62.
49
particulares e do aparato que é necessário para administrar um sistema de
punições legais, mas também porque a determinação de penas para certos
atos limita as decisões das pessoas e expõe cada individuo ao risco de
punição. Dessa forma, a punição não pode ser justificada em bases utilitaristas,
a menos que os benefícios que ela produz sejam maiores que os seus custos.
O enfoque utilitarista da punição, portanto, envolve um tipo de "análise
de custo-benefício". As punições não podem ser justificadas simplesmente
porque elas são merecidas, ou porque determinadas ações "clamam por
vingança". As punições podem ser justificadas somente se suas conseqüências
resultarem em custos previsíveis e identificáveis como capazes de produzir
maiores benefícios do que qualquer decisão alternativa que pudesse ser
tomada.
A teoria utilitarista das punições legais parte da interpretação que a
punição é um recurso que produz o "desencorajamento" para a prática de
certas ações. A determinação da punição de certos atos funciona como um
instrumento para dissuadir as pessoas de agirem daquela forma. Isto é, ela tem
o poder de desencorajamento. Quando um indivíduo é punido pela pratica de
uma ação, ele pode ser persuadido a não repetí-la no futuro. A tarefa do
legislador consiste em definir a punição em tal nível que os benefícios sejam
maximizados, considerando-se os danos evitados como benefícios e
contabilizando os custos. Nessa visão, a justificação da punição depende dos
efeitos desencorajadores que podem ser razoávelmente previsíveis, somados a
quaisquer outros benefícios e custos que possam razoávelmente ser
esperados. Portanto, a justificação das punições é matéria que deve ser
resolvida através de cálculos, onde se contabilizam os custos e os benefícios
de certas ações. Nesses cálculos os custos são descritos em termos de
sofrimento e os benefícios em termos de prazer ou minimização do sofrimento.
Para a interpretação utilitarista o que importa na análise de uma punição
é saber se seus benefícios excedem os custos. O objetivo das punições não é
o desencorajamento como tal, mas somente o uso das penas como
instrumentos para a obtenção de maiores benefícios. As decisões referentes à
identificação dos atos que serão sujeitos a punição não podem ser divorciadas,
numa visão utilitarista, da justificação da própria punição. Não decidimos
primeiramente quais os atos a serem proibidos e então estabelecemos as
punições voltadas para sua erradicação. Desde que a punição tem custos, nem
todo ato prejudicial ou perigoso pode ser sujeito de sanções penais de forma
útil, porque os benefícios previsíveis algumas vezes excedem os seus custos.
De acordo com a teoria utilitarista das punições legais, o fato de uma punição
ser apropriada para o crime depende da possibilidade de justificação dessa
punição através da forma puramente instrumental do cálculo de custo e
beneficio.
50
Um dos pressupostos da teoria utilitarista da pena é a idéia que as
punições podem mudar as ações das pessoas. Contudo, a reincidência
demonstra que a punição pode fracassar em mudar a conduta daqueles já
condenados. Isto não demonstra, contudo, que a punição não desencoraja de
uma forma geral. Pois pode acontecer que muitos daqueles que nunca
infringiram a lei sejam desencorajados pela ameaça de punição e que
poderiam ter cometido crimes se não existisse o risco das penalidades legais.
Isso significa que as punições têm um efeito desencorajador sobre as pessoas.
A teoria das punições como desencorajamento permite ainda que se qualifique
a ação inibidora que a ameaça de sofrimento pode exercer sobre as pessoas.
Certamente esse efeito é menor nas pessoas movidas por violentas emoções.
Pode-se ainda afirmar que o aumento das penas não tem efeito
proporcional sobre a inibição das ações. Em muitos casos o simples aumento
da punição não é suficiente para aumentar, na mesma proporção, o grau de
inibição.
Um indivíduo utilitarista não esta comprometido com a obediência às
regras estabelecidas pelo legislador. Sua decisão sobre a obediência, ou não,
às leis deve ser tomada em função daquilo que ele consegue prever que sejam
os resultados da ação em análise. Isso significa que para o utilitarismo as
punições não possuem um poder dissuasivo propriamente dito. É a analise de
custo e beneficio da obediência, ou desobediência, à regra que é capaz de
levar um individuo a ação. Donde se conclui, portanto, que não é propriamente
a punição imposta pelo legislador soberano que se constitui na força da lei,
mas o cálculo dos custos e dos benefícios que a lei pode produzir. E as
operações desse cálculo são as mesmas, tanto para o legislador, ou juiz, e o
agente.
As penas são males que devem recair sobre indivíduos por terem
praticado ato prejudicial e, portanto, proibido pela lei. Sua finalidade é evitar
que tal ato seja praticado no futuro. Não existe punição legal sem lei que a
defina previamente. O direito de punir provem da lei. O direito de punir é criado
pelo legislador, o qual justifica o castigo em função de sua utilidade, isto é, de
sua necessidade. Dentro da perspectiva utilitarista, a lei é um instrumento pelo
qual é possível tornar necessário o ato útil para o agente. O crime e a punição
têm a mesma natureza, isto é, ambos são um mal. Porém possuem efeitos
diametralmente opostos. O crime e um mal que causa sofrimento no individuo
(ou indivíduos) contra o qual é cometido, e gera terror nos inocentes que se
sentem passíveis de virem a sofrer os efeitos da repetição de tal ato criminoso.
A pena e um mal, pois que causa sofrimento ao criminoso; mas é um bem nos
seus efeitos, pois amedronta os homens perigosos19.
19
Bentham, J.; "Teoria das Penas Legais", São Paulo, Edit. Logos, sd, p.17.
51
A teoria utilitarista da punição está construída a partir da pressuposição
que os princípios da moral são decorrentes de uma exigência da própria
racionalidade humana. Eles seriam princípios necessários e suficientes para
uma interpretação racional da ação humana. Assim, o que resulta da aplicação
desses princípios é que constitui o conteúdo da categoria da Justiça.
Não existem decorrências da idéia de justiça que possam se sobrepor
às exigências daquilo que se entende como uma teoria da ação resultante da
própria racionalidade humana. O justo é o que resulta da aplicação dos
princípios éticos. E os princípios éticos são resultantes da tentativa de se
aplicar a racionalidade na análise da ação humana. O que justifica a punição,
isto é, o que torna racional o direito do legislador punir, não é um ideal de
justiça, mas o ideal da racionalidade humana. Punimos porque somos seres
racionais e a razão nos permite avaliar os resultados de nossas ações em
termos de sofrimento e prazer. Podemos entender que, ao se agregar um
quantum de sofrimento às conseqüências de certos cursos de ação, podemos
evitar o sofrimento maior decorrente do desrespeito generalizado à regra que
proíbe tal ato. Entretanto, em todas as suas formas as punições são ações que
resultam sempre em sofrimento e, portanto, são ações más. Seu uso racional
demanda a identificação de um conjunto de regras econômicas.
3.3. Princípios da teoria da recompensa
Para os utilitaristas clássicos existe uma simetria entre recompensa e
prazer, da mesma forma como existe simetria entre punição e sofrimento. As
punições podem ser infligidas em diversas formas e para todos os tipos de
pessoas. Isto é, as ações de punição consistem em obrigar o infrator a produzir
as ações que haverão de trazer como resultado o seu sofrimento. Contudo, o
mesmo não ocorre com a recompensa. A recompensa consiste em dar ao
premiado os meios ou recursos para que o agente possa escolher e praticar as
ações que lhe trazem prazer. Portanto, recompensar consiste em criar para o
agente a possibilidade da prática de uma escolha de um dentre vários cursos
de ação possíveis numa determinada situação.
Bentham entendia que a recompensa, no sentido mais geral e extensivo
da palavra consiste em uma certa quantidade de bem, a qual é conferida a
alguém, com a intenção de beneficiá-lo(a) por isso, em função de um certo
serviço que se supõe, ou se acredita, ter sido feito por ele(a).20
20
Bentham diz:”Reward, in the most general and extensive sense ever given to the word, may be defined
to be: a portion of the matter of good, which, in consideration of some service supposed or expected to be
52
Assim, a recompensa funciona como um motivo para a prática de ações
úteis à sociedade, da mesma forma como a punição está associada à
prevenção de ações as quais são consideradas como expressivas de uma
tendência nociva aos interesses coletivos.
As recompensas dizem respeito a quase todas as transações entre os
seres humanos e também o Estado, em face dos cidadãos, tem demandas por
bens e serviços, da mesma forma como ocorre entre os indivíduos. É nesse
sentido que o emprego da recompensa se torna um assunto para políticos e
exige a atenção do legislador. (Bentham, J.; 1843, Book I, Chap. 1)
Há, ainda, simetria entre a punição e a recompensa enquanto
instrumentos de controle do comportamento dos sujeitos. Uma ação que pode
ser inibida ao se associar a ela uma punição, pode também ser evitada ao se
fazer decorrer da abstenção de sua prática uma recompensa. A diferença que
aqui se quer considerar relevante concerne ao caráter violento do controle
negativo que se faz com a imposição do sistema penal. O controle social penal
implica na subsunção da vontade do agente que, presumivelmente, não deseja
a conseqüência punitiva do ato infracional que pratica. Ninguém sadio deseja
sofrer punição.
O controle social positivo, exercido pelo sistema premial, deixaria ao
sujeito a possibilidade de livremente receber, ou não receber, a recompensa
pelo ato praticado. Nesse sentido, ele seria mais um instrumento para o
exercício da cidadania, ou da competência dos sujeitos acionarem o aparelho
social capaz de garantir a conseqüência premial do ato que praticam. A
construção de um sistema premial está associada à elaboração de uma teoria
do controle social que privilegie o caráter recompensatório que certas medidas
jurídicas podem traduzir.21
Tanto a punição como a recompensa adquirem sua maior força em um
sistema combinado no qual o agente recebe uma recompensa pela prática
da ação correta e sofre uma punição pela omissão da ação devida. Nesse
sentido, pune-se sempre a omissão daquele que deveria agir de forma
correta. Para que ocorra a penalização urge que exista um curso de ação
prescrito pelo legislador como sendo o procedimento correto e devido
naquela circunstância e haja uma pena atribuída àquele que omite a prática
da ação devida. Ainda que a prática devida seja a omissão de uma certa
prática. Nesse sentido, com a devida escusa do vernáculo, pune-se a
done, is bestowed on some one, in the intent that he may be benefited thereby”. (Bentham, “The Rationale
of Reward”, Book 1, Chap. 1 London, 1843) 21
Bentham distingue quatro tipos de recompensas: a) riqueza, que seria expressa em dinheiro; b) honra,
que se constitui de títulos e honrarias; c) poder, que seria o exercício do mando sobre os demais; d)
isenções, que poderia ser de alguma punição já atribuída, ou isenção de alguma tarefa civil obrigatória a
todos. (Bentham, J. 1843, Book I, Chap. 2)
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omissão da omissão. Raciocínio semelhante aplica-se à recompensa.
Recompensa-se sempre a ação daquele que pratica o curso de ação
considerado correto ou justificado de acordo com argumentos de natureza
moral.
Esse sistema, de punir e recompensar, combina o caráter atrativo e
voluntário da recompensa com a força inibidora e a constante certeza da
punição. O fato é que, devido à sua própria natureza, existe todo um
conjunto de circunstâncias que conspiram contra a certeza da punição.
Assim, os subterfúgios e escamoteamentos do autor, a falta de evidências
dos atos cometidos, a falibilidade e os erros constantes dos magistrados. No
que tange à recompensa, haverá certamente todo o empenho daquele que
pratica o ato em demonstrar o seu mérito e o seu título ao prêmio. (Bentham,
J.; 1843, Book I, Chap. 3)
A tarefa do legislador, ou político, consiste em unir, em cada indivíduo sujeito
de uma ação, o seu interesse e o seu dever. A legislação perfeita é aquela
que aponta que o dever de cada um consiste em seu próprio interesse. De
uma forma geral, se tem pensado que essa tarefa pode ser conseguida
quando se cria uma obrigação e se estabelece uma punição para sua
inobservância. Contudo, se isso fosse suficiente, nenhum legislador
fracassaria em sua missão. O fato é que a força da punição não é suficiente
para determinar a vontade do agente no sentido da prática do curso de ação
privilegiado pelo legislador como expressivo do interesse do próprio agente
concernido. Somente o caráter voluntário e o atrativo da recompensa (do
prazer e do lucro) provisionada pelo legislador à obediência da regra,
associada à força que é peculiar da punição, pode determinar a união de
interesse e dever.
Ao estabelecer um sistema combinado de recompensas para as ações e
punições para as omissões, o legislador agrega sofrimento àquele já
existente na sociedade em decorrência das conseqüências de todos os atos
maléficos efetivamente praticados. Punição é sempre sofrimento agregado
ao sofrimento já anteriormente produzido pelo próprio ato criminoso. A
recompensa, por sua vez, não produz um excedente de bem-estar,
felicidade, ou prazer, ao total daquele já existente na sociedade. Isto ocorre
porque toda recompensa implica em dispêndio, em gasto, da parcela do
quanto de bem-estar disponível no acervo dos resultados benéficos dos atos
corretos praticados por todos os indivíduos que compõem a sociedade. A
recompensa tem um custo social. Ela significa bem-estar que é atribuído a
alguém às custas do acervo total de bem-estar disponível na sociedade. A
recompensa de uma parte supõe o dispêndio de outra parte. Tudo o que é
recebido por alguém a título de recompensa é retirado de alguém a título de
punição.
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Assim, o sistema punitivo, na medida em que inibe os atos criminosos, há de
gerar um certo volume de bem-estar a ser distribuído sob a forma de
recompensa. A ausência de bem é comparativamente um mal e a ausência
de mal é comparativamente um bem. No sistema de punição e recompensa
se distribui, sob a forma de recompensa, o bem economizado no exercício
de atos punitivos.
A distribuição de punições deve ser frugal, posto que a punição é sofrimento
e agrega mal-estar ao total já existente na sociedade. Assim, também, não
se deve ser menos rigoroso na distribuição de recompensas. Tanto a
punição, quanto a recompensa têm um caráter maléfico. A punição é um mal
àquele ao qual é aplicada. A recompensa é um mal àquele a cujas custas
ela é aplicada. Toda recompensa tem sempre um custo em termos de taxas
ou impostos ou contribuição dos cidadãos. Ademais há que se considerar,
ainda, que a quantia recolhida pelo poder público sob a forma de taxas,
impostos, contribuições não tem um valor maléfico sobre aquele em quem
incide que seja diretamente proporcional ao valor benéfico que produz
àquele que posteriormente a recebe. Isto devido ao caráter assimétrico dos
resultados quando certas quantidades de benefícios poupados e que tiveram
um custo em termos de sofrimento são distribuídos sob a forma de
recompensas ou benefícios a serem desfrutados por alguém em função de
seu merecimento. Isto é, um quanto de bem estar retirado de alguém a título
de punição não produz o mesmo tanto de bem estar àquele que é atribuído
em termos de recompensa. O que isso tudo parece revelar é que há todo um
sistema de regras que controlam a economia da distribuição de penas e
recompensas.
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4. UTILITARISMO DE BENTHAM E A CRÍTICA DA TEORIA
CONTRATUALISTA
"Aquele que decidiu perseverar com constância alinhado à verdade e à utilidade, deve aprender a preferir o murmúrio da aprovação duradoura, ao burburinho efêmero do aplauso tumultuoso".(Bentham, J.; “A Fragment on Government”, Cambridge, Cambridge University Press, 1994, p.31)
Esta parte do trabalho concerne à reconstrução do argumento de Bentham contra William Blackstone, com especial referência à sua posição quanto à formulação de uma teoria da justiça.O texto que segue está dividido em três partes. Na primeira será reconstruído o argumento de Bentham em favor da teoria que afirma a superioridade moral da atitude crítica em relação à atitude expositiva. Na defesa dessa tese, Bentham separa a atitude crítica da atitude contestadora ou desobediente para com a ordem normativa constituída. Dessa forma, a atitude contestadora não se identifica com a atitude crítica. A força do argumento de Bentham está na afirmação que é possível criticar a ordem normativa ao mesmo tempo que se continua a obedecê-la.Na Segunda parte será resgatada a crítica de Bentham à teoria do contrato social original. Nessa discussão ele expõe as razões pelas quais recusa a tese que teria havido um contrato original e que os pressupostos desse contrato é que tornaram necessária a obrigação de obedecer às leis. Na terceira parte será apresentado o fundamento da teoria da Justiça de Bentham. Para Bentham, uma teoria da Justiça tem de oferecer os critérios que permitam identificar as situações em que se deve obedecer às leis e as situações em que se deve desrespeitá-las. Na conclusão, será resgatada a forma como, na construção de uma teoria da Justiça, Bentham aproxima as três categorias anteriormente tratadas, a saber, 1) o elogio da atitude crítica; 2) a recusa da posição que a obrigação de obedecer às leis decorre da natureza da promessa de assim o fazer; 3) a proposta do princípio da vantagem da obediência e da desvantagem da rebelião. Neste texto se pretende, ainda, sugerir que, ao rebater aquilo que se poderia chamar de interpretação jusnaturalista do Direito elaborada por Blackstone, todo o esforço de Bentham se dirige no sentido de recusar uma interpretação da Justiça associada com a idéia de excelência do humano. Bentham parece defender a visão que a missão da ética não consiste em identificar a excelência da justiça, como se houvesse uma essência do humano que o justo devesse realizar.
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Nos 84 anos entre o seu nascimento em 1748 e sua morte em 1832, Jeremy Bentham escreveu 70.000 folhas de manuscritos sobre a teoria do Direito e uma série enorme de assuntos de diferentes formas a ela associados. Seus escritos não foram produzidos em forma que pudessem ser prontamente publicados. Elie Halévy fala que a displicência com que Bentham tratava a questão da publicação de seus escritos e a excessiva lentidão com que revia as provas de suas obras em impressão chegavam a irritar os seus amigos mais próximos.(Halévy, E.; "The Growth of Philosophic Radicalism", Clifton, A. Kelley, 1972, p.23) O fato é que, em decorrência desses fatores, muitas das obras de Bentham foram publicadas em versões onde as mãos de editores mais ousados marcaram de forma pouco recomendável as teses benthamianas. De outro lado, as publicações que se mantiveram fiéis aos manuscritos, de uma forma geral, apresentam um texto muito mais rascunhado do que seria desejável.
Isso tudo dificulta o trabalho do estudioso que pretende identificar as teses fundamentais do projeto utilitarista de J. Bentham. Parece, contudo, razoável afirmar que, de um ponto de vista cronológico, desde a primeira fase do desenvolvimento de sua obra, Bentham tinha dois objetivos determinados. Primeiro, sustentar uma série de teses com as quais pretendia reformar a Ciência da Lei, isto é, o estudo do Direito. Segundo, modificar o sistema jurídico vigente na Inglaterra do século XVIII. Assim, em 1775, Bentham fazia planos de escrever um completo código de Leis para a Inglaterra. Em 1776 inicia a publicação de suas teses fundamentando a necessidade de reforma do sistema jurídico então vigente. Nesse sentido, dedicou todo o seu esforço na redação do 'Commentary on the Commentaries' e na refutação da teoria do Direito daquele que seria o maior defensor do sistema legal existente na Inglaterra, isto é, Sir Willian Blackstone. Em 1776, Bentham envia para publicação apenas umas poucas páginas desse trabalho, as quais discutiam os princípios da lei Constitucional e rebatiam as propostas de Blackstone. Esse texto saiu a público com o título de 'A Fragment on Government', e foi o primeiro texto de Bentham a ser publicado.
O texto 'A Fragment on Government' foi publicado em 1776, quando Bentham tinha apenas 28 anos de idade. Ele contem um violento ataque às teses fundamentais defendidas por William Blackstone na introdução de sua obra intitulada 'Commentaries on British Laws' . Esse ataque a Blackstone foi completado por um texto de Bentham que permaneceu inédito até 1928, quando foi publicado com o título de 'Commentary on the Commentaries'. Ao todo são algumas centenas de página com o intúito de minar o prestígio e a autoridade de William Blackstone. Essa obra de Bentham, contra um dos mais conceituados juristas de sua época, embora publicada anonimamente, teve um breve sucesso editorial.
No 'A Fragment on Government', Bentham volta-se contra a 'antipatia às reformas' que caracterizava os 'Commentaries on British Laws' de Blackstone. Bentham argumenta que o processo de mudanças, o progresso que ocorrem no mundo natural e o avanço do mundo do conhecimento humano são fatos inegáveis. Em conseqüência disso, ele sugere a necessidade de ocorrerem
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mudanças e reformas no mundo moral. Portanto, quem for contra as mudanças necessárias estará em desacordo com os interesses de bem-estar da humanidade. O argumento de Bentham é construído no sentido de contrapôr Direito e Justiça. Ele critica Blackstone, fundamentalmente, por este não cogitar da hipótese de que há casos em que a lei precisa ser mudada porque ela é injusta. E que o sistema jurídico que não é objeto de censura não progride. Nesse sentido, ele pode acolher e manter indefinidamente uma série de injustiças.
De uma forma geral, os Utilitaristas Clássicos tem sido acusados de concordarem com a tese Positivista afirmando que Direito e Justiça se confundem, não existindo outra categoria além do justo definido na Lei. Para responder a essa acusação há que se investigar a forma como J. Bentham propõe que seja feita a crítica do Direito. Há indícios de que Bentham recorre a uma teoria da Justiça para criticar as teses de Blackstone. Se esses indícios forem suficientes para confirmar a hipótese, então não terá sentido a acusação que se faz aos Utilitaristas Clássicos de que eles carecem de uma teoria da Justiça.
No texto Bentham submete as teorias de Blackstone a um exame rigoroso, onde procura criticar suas teses principais. São objeto de ataque mordaz as seguintes posições de Blackstone: 1. As teses sobre a origem da sociedade política e o Direito. Bentham ataca a tese lockeana do contrato originário. 2. A posição que o Direito é aquilo que existe, não havendo distinção entre dogmática jurídica e política legislativa, ou entre jurisprudência expositiva e jurisprudência crítica. Bentham defende a inseparabilidade das duas atitudes face à lei. 3. A tese afirmando que o ser humano possui direitos naturais e que esses direitos estariam expressos no contrato originário. Bentham contesta a relevância do recurso às ficções na argumentação jurídica. 4. A tese que o governo perfeito deveria ser um misto de monarquia, aristocracia e democracia. Isto é, perfeição de poder, perfeição de sabedoria, e perfeição de bondade. Bentham defende que não há como manter os três poderes divididos e independentes (legislativo, executivo, judiciário). 5. A tese que existem sociedades naturais e sociedades políticas. Em sua opinião, não existem sociedades totalmente naturais, nem totalmente políticas. Em todas as sociedades existem sempre formas em que o hábito da obediência está presente e se faz expressar.
A forma como Bentham reconstroi os argumentos de Blackstone e, principalmente, a maneira como os critica deixa transparecer um autor preocupado em demonstrar que as vezes a falta de rigor nas palavras revela confusão nas idéias. As posições de Bentham soam como um estímulo ao leitor, para que não se deixe impressionar pela fama ou prestígio daquele que expõe seu ponto de vista, mas esteja atento para o rigor da argumentação e esteja pronto para as inovações conceituais que se fizerem necessárias.
O texto de Bentham no qual ele fundamenta sua teoria da Justiça é uma longa discussão (126 páginas) de parte da Introdução que Blackstone escreveu para seu 'Commentaries on British Laws'. Bentham se refere a esse trecho de apenas sete páginas como sendo uma pequena obra inserida por Blackstone
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dentro de outra maior. Nele Blackstone define Direito (no sentido de gênero de leis que são estabelecidas em toda nação como expressão da vontade dos orgãos governantes) e discorre sobre outras questões. A saber, o modo como foram estabelecidos os governos, as diferentes formas que adotaram uma vez estabelecidos, a excelência da forma de governo na Inglaterra, o direito e o dever de legislar que incumbe aos governos. Bentham entende que a questão central desenvolvida por Blackstone nesse trecho de seu livro concerne ao fundamento do direito do governo de estabelecer as leis. A forma como Blackstone resolve essa questão será o objeto principal do ataque de Bentham.
Nas partes que seguem será reconstruído o argumento de Bentham contra Blackstone. Aqui não se pretende discutir o mérito desse ataque. Investigar se a reconstrução que Bentham faz das posições e dos argumentos de Blackstone é fidedigna não parece relevante para o ponto que se pretende argumentar. O que se investigará aquí é o fundamento do argumento de Bentham, principalmente no que concerne à sua posição quanto à formulação de uma teoria da justiça.
O texto que segue está dividido em três partes. Na primeira será reconstruído o argumento de Bentham em favor da teoria que afirma a superioridade moral da atitude crítica em relação à atitude expositiva. Na defesa dessa tese, Bentham separa a atitude crítica da atitude contestadora ou desobediente para com a ordem normativa constituída. Dessa forma, a atitude contestadora não se identifica com a atitude crítica. A força do argumento de Bentham está na afirmação que é possível criticar a ordem normativa ao mesmo tempo que se continua a obedecê-la
Na Segunda parte será resgatada a crítica de Bentham à teoria do contrato social original. Nessa discussão ele expõe as razões pelas quais recusa a tese que teria havido um contrato original e que os pressupostos desse contrato é que tornaram necessária a obrigação de obedecer às leis.
Na terceira parte será apresentado o fundamento da teoria da Justiça de
Bentham. Para Bentham, uma teoria da Justiça tem de oferecer os critérios que
permitam identificar as situações em que se deve obedecer às leis e as
situações em que se deve desrespeitá-las.
Na conclusão, será resgatada a forma como, na construção de uma teoria da
Justiça, Bentham aproxima as três categorias anteriormente tratadas, a saber,
1) o elogio da atitude crítica; 2) a recusa da posição que a obrigação de
obedecer às leis decorre da natureza da promessa de assim o fazer; 3) a
proposta do princípio da vantagem da obediência e da desvantagem da
rebelião.
Neste texto se pretende, ainda, sugerir que, ao rebater aquilo que se poderia
chamar de interpretação jusnaturalista do Direito elaborada por Blackstone,
todo o esforço de Bentham se dirige no sentido de recusar uma interpretação
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da Justiça associada com a idéia de excelência do humano. Bentham parece
defender a visão que a missão da ética não consiste em identificar a excelência
da justiça, como se houvesse uma essência do humano que o justo devesse
realizar.
De uma forma geral, se pode dizer que Bentham parte da concepção que os
atos humanos são atos banais, são triviais, sem um sentido próprio. Somente
se tornam atos éticos a partir de um critério, um referencial que defina a sua
bondade ou maldade. A ética utilitarista clássica, em Bentham, aponta o
resultado dos atos, em termos de maximização do prazer e minimização da
dor, como esse critério. Assim, o justo não está no ato em si mesmo, mas no
resultado que do ato advém. Os atos humanos são banais, isto é não são
intrinsecamente bons ou maus em si mesmos, mas, podemos atribuir um
sentido ético a eles. Nesse sentido, a ética utilitarista parte da banalidade dos
atos e propõe que o seu caráter ético dependa da forma como eles de fato
realizam um fim inescapável. Contudo, a urgência do fim (maximização do
prazer e minimização da dor) tem caráter lógico e ontológico. A
inescapabilidade do fim é lógica, no sentido que o ser humano é impensável
sem esse fim e é ontológica, no sentido que não existe ato do ser humano e
sim do ser desumano, na prática do mal.
4.1. JURISPRUDÊNCIA EXPOSITIVA VERSUS JURISPRUDÊNCIA CRÍTICA: argumentos em defesa da atitude crítica
"...aquilo que hoje existe foi em seu dia uma inovação". (Bentham, J.; op.cit., p.10)
Bentham inicia sua crítica às teorias de Blackstone acusando-o de construir uma obra cujo defeito capital consiste em uma declarada antipatia pela reforma e pela mudança. Bentham argumenta que o conhecimento do mundo natural tem se caracterizado por descobrimentos e pelo progresso. Essa constatação põe a necessidade de reconhecer que à mudança e ao progresso no conhecimento do mundo natural correspondem reformas no mundo moral. Sendo útil para nós conhecermos os elementos que compõem o ar que respiramos, não será menos importante compreender os princípios nos quais se inspiram as leis graças às quais vivemos em segurança. Assim as razões da reforma estão associadas aos interesses de bem-estar da humanidade. (Bentham, J.; op.cit., pp.3-4)
Portanto, a estratégia argumentativa de Bentham consiste em desacreditar a obra de Blackstone atacando a Introdução de seu livro intitulado 'Commentaries on British Laws'. Sua técnica tem por objetivo mostrar os defeitos capitais da obra, principalmente sua antipatia pelas reformas. Esse defeito seria decorrente de um raciocínio obscuro e tortuoso. Nesse sentido,
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Bentham examina textualmente os argumentos de Blackstone procurando revelar a obscuridade e as imperfeições de sua argumentação.
Uma primeira crítica que Bentham faz aos 'Commentaries on British Laws' de Blackstone, consiste na alegação que Blackstone podia ter se excusado de realizar uma obra 'crítica', limitando-se à atividade expositiva. Não se poderia argumentar contra isso. O que não poderia fazer, contudo, era defender ou encobrir, por vias indiretas e com explicações falaciosas, aquilo que não saberia como justificar, ou que, mesmo sabendo como fazê-lo não se atrevera a tanto. (Bentham, J.; op. cit., p.8)
Bentham argumenta que existem duas atitudes que podem ser tomadas por quem pretende dizer alguma coisa em matéria de Direito: a de 'expositor', que consiste em expôr aquilo que a lei de fato é; e a de 'censor' ou 'crítico' que consiste em indicar aquilo que acredita que a lei deva ser. O primeiro se ocupa dos 'fatos', enquanto que o segundo procura discutir as 'razões'. A diferença fundamental entre o 'expositor' e o 'crítico' consiste no fato que, enquanto o primeiro é um narrador localizado no tempo e no espaço e procura descrever aquilo que o legislador tem feito, o segundo coloca-se numa posição independente de todo condicionamento circunstancial e procura indicar o que o legislador deve fazer no futuro. Nesse sentido, o 'crítico' procura construir um tipo de conhecimento que posto em prática se transforma na arte de legislar.
O argumento segue com a afirmação que aquele que se põe na posição de um 'expositor' e procura descrever uma instituição da forma como acredita que ela seja, não evoca para si as reprimendas ou elogios que a instituição possa eventualmente receber. Contudo, o 'crítico' responde por todas as razões, próprias ou alheias que venha a apresentar. Nesse sentido, cabe a ele a responsabilidade de deixar claro quando recusa alguma posição que não gostaria que fosse tomada como a sua. (Bentham, J.; op. cit., pp.7-8) O que Bentham parece argumentar é que a atitude 'crítica' é mais responsável, e corresponde a um gesto construtivo face às instituições. Ele pretende, num primeiro momento combater a atitude preconceituosa daqueles que identificam a 'crítica' como presunção, ingratidão, rebeldia, crueldade. Para Bentham a atitude de crítica tem sido preconceituosamente considerada como inferior, ou mais problemática, do que a atitude de um expositor.
Ele diz:"...ignoro por que razão o mérito de cantar as excelências de uma lei justa é maior do que o de censurá-la quando injusta. Sob o governo de leis, qual deve ser o dever de um bom cidadão? Obedecer pontualmente, censurar livremente".(Bentham, J.; op. cit., p.10)
A atitude justificacionista impede que se descubram os aspectos defeituosos das instituições, sendo, nesse sentido, um obstáculo para o aumento da felicidade que se possa aspirar. A atitude crítica é valiosa até mesmo quando infundada, posto que se ela não tem fundamento ou não causará nenhum resultado sobre a instituição criticada, ou provocará a reação daqueles que se posicionarão contra suas alegações que logo demonstrarão ser sem razões, tornando-a inócua. Assim, a atitude critica é sempre um instrumento para demonstrar de forma eficaz o valor intrínseco das instituições.
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Bentham diz:"As censuras precipitadas dirigidas contra uma instituição política recaem sobre aquele que as formulou. Se a instituição se acha devidamente fundada, não sofrerá com o ataque. O que um estudioso diga contra ela poderá ou não causar alguma impressão. Se não causa, é como se nada tivesse sido dito; se 'causa', alguém saltará em sua defesa. Se a instituição é verdadeiramente benéfica para a comunidade em geral, haverá um certo número de indivíduos interessados em sua preservação. Nesse caso, graças à sua diligência, as razões sobre as quais se fundamenta serão postas em manifesto; sua consideração permitirá que aqueles que antes se contentavam em confirmar, agora a abracem com convicção. Por isto, a crítica, ainda que infundada, não tem outro efeito sobre uma instituição que servir de pedra de toque para que se desacredite o valor daquelas nas quais somente o prejuízo tenha caracterizado o seu curso legal e, ao contrário, se firme o crédito daquelas que tem valor intrínseco".(Bentham, J.; op. cit., p.10)
Ademais, Bentham recusa a qualificação de 'extrema arrogância' ensaida por Blackstone quando este pretende condenar a atitude de crítica, desautorizando, assim, aqueles que tencionam 'censurar aquilo que tem, ao menos, maiores possibilidades de ser justo do que as idéias particulares de qualquer indivíduo'. Da forma como Bentham reconstroi a posição de Blackstone, este seria contrário às críticas de uma forma geral, pois que estas implicariam na atitude indecente de fundar-se em razões particulares para enfrentar a autoridade pública.(Bentham, J.; op. cit., p.11, n.4) Bentham argumenta que não há arrogância na atitude crítica, pois que ela não implica 'desprezo e rudeza', como sugere Blackstone, mas se dirige contra as leis que são letra morta. Ademais, a atitude crítica, ainda que consista no confronto entre razões particulares e públicas, ela produz resultados preferíveis ao conservadorismo de Blackstone. A atitude conservadora resulta na condenação da livre censura das instituições e seu consequente aperfeiçoamento; origina uma sociedade que cultua a lei de forma a transformá-la em instrumento de despotismo; propicia o surgimento de uma classe de indivíduos dispostos a aceitar qualquer coisa como lei e a se submeter de forma servil ao poder. De outro lado, a atitude crítica promove o progresso, aperfeiçoa as leis, expressa uma racionalidade fundamentada na utilidade pública.
Na interpretação de Bentham, a obra de Blackstone fracassa na tarefa
de criticar o sistema de instituições da Inglaterra. Isto ocorre, justamente
porque ela não consegue produzir o rigor intelectual suficiente para discernir ou
denunciar. Nesse sentido, a obra de Blackstone fracassa completamente, pois
não consegue ser nem expositiva, nem crítica. A debilidade da crítica
sintomatiza a debilidade na exposição.
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Ao recusar a atitude dogmática face ao Direito defendida por Blackstone,
Bentham cria espaço para a justificação da atitude crítica. Assim, fica posto o
primeiro ingrediente de sua teoria da Justiça. Há uma certa superioridade
argumentativa em favor da crítica. Em resumo, ela é mais útil do que o
conservadorismo daqueles que se recusam a correr o risco de ir além da
manutenção da ordem posta e do estudo através da exposição. O conceito de
crítica defendido por Bentham, entretanto, não sugere a rebeldia ou
desobediência civil. Obedecer prontamente (“To obey ponctually...”) ao sistema
legal da sociedade na qual se vive, é o que ele define como o dever do bom
cidadão. A atitude crítica, em Bentham, corresponde à busca especulativa por
aquilo que deve ser e, nesse sentido, ela é condição de um ser perfeito ou
adequado. Expor e criticar são atitudes complementares e uma não pode ser
perfeita sem a outra; da mesma forma como o ser e o dever ser são categorias
complementares. A debilidade na atividade crítica caracteriza, analogamente, a
debilidade na atitude expositiva. (Bentham, J.; op. cit., p.14)
4.2. SOBRE AS ORIGENS DO CONTRATO SOCIAL: Argumentos contra a teoria do 'Contrato Originário'
"Talvez tenha existido um tempo em que esta (o contrato original) e outras ficções tenham sido úteis. Não nego que alguma obra política tenha podido ser realizada com instrumentos desse tipo e que essa obra , tendo em vista as circunstâncias do momento, dificilmente, pudesse ser levada a cabo por outros meios. Contudo, os tempos de 'ficção' passaram, de modo que o que antes se podia tolerar e admitir sob esse nome, agora, na hipótese de se tentar restaurá-lo, haveria de ser censurado e estigmatizado com expressões duras tais como 'usurpação' e 'impostura'". (Bentham, J.; op. cit., pp.52-53)
A questão sobre as origens do contrato social pergunta também sobre o modo como se formaram os governos. Bentham separa um texto de dois parágrafos de Blackstone, onde ele acredita estarem as teses centrais do 'Commentaries on British Laws' sobre o assunto. A reconstrução dos argumentos de Blackstone é feita para conduzir à conclusão de que seus escritos são um enigma do qual nenhuma conclusão se segue, e que aquilo que se pudesse inferir deles seria sem utilidade.(Bentham, J.; op. cit., p.49)
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Em seu texto Blackstone recusa a noção de 'contrato originário' como sendo aquele em que os indivíduos movidos por um impulso da razão e através da consciência de suas necessidades e fraquezas outorgam um contrato e elegem um chefe. Segundo ele, essa interpretação implica na noção demasiado fantástica de um 'estado de natureza' anterior ao 'contrato originário', e que não pode ser seriamente admitida. Blackstone defende a posição que o 'contrato originário' , embora não tenha sido formalmente expresso ao se constituir uma sociedade, contudo, ele está sempre subentendido ou implícito no próprio ato de associação. O fundamento desse 'contrato' é o sentido das debilidades e imperfeições dos indivíduos que faz com que eles se mantenham unidos. E seu significado é que o grupo deve proteger a todos os indivíduos que o compõem e que cada um dos indivíduos deve prestar obediência à vontade do grupo. Assim, a comunidade deve proteger os direitos de cada membro e cada indivíduo deve submeter-se às leis da comunidade. A ordem na sociedade é mantida pelo 'governo', cujas decisões são obrigatórias. (Bentham, J.; op. cit., pp.36-37)
Bentham argumenta que no texto de Blackstone os termos mudam de sentido, significando coisas diferentes. Assim, 'sociedade' significaria ao mesmo tempo 'estado de natureza' e 'governo'. Ainda, o texto em certa passagem dá a entender que nunca existiu um 'estado de natureza' e um 'contrato originário', para em seguida dizer que eles existiram.
Bentham usa o pretexto de esclarecer o significado dos termos obscurecidos por Blackstone para apresentar os fundamentos de sua teoria sobre a origem do contrato social. Segundo ele, Blackstone separa dois sentidos para a palavra sociedade. Num primeiro, ela significa estado social, estado de natureza ou sociedade natural . Nesse sentido a sociedade existe quando certo número de pessoas relacionam-se habitualmente umas com as outras, mas não têm o hábito de obedecer a uma outra pessoa ou uma assembléia de pessoas. Num segundo sentido, sociedade significa um certo número de pessoas que possuem o hábito de obedecer a uma outra pessoa ou uma assembléia de pessoas que possuam certas características. Nesse sentido ela é sinônimo de governo ou sociedade política.(Bentham, J.; op. cit., p.38)
Bentham argumenta que não existe uma distinção nítida entre esses dois sentidos da palavra 'sociedade'. Isto é, não existem limites precisos entre os conceitos de sociedade natural e sociedade política. O 'habito de obediência' que é instituído por Blackstone como o critério de separação entre os dois sentidos da palavra sociedade é evasivo. Primeiramente porque ele implica no pressuposto de que os hábitos podem estar completamente presentes ou completamente ausentes do comportamento das pessoas. Contudo, não é fácil dizer quando um hábito está totalmente presente ou ausente. Isto implica em que um hábito não pode ser o critério para se separar dois sentidos da palavra sociedade.
Bentham diz:"De fato, poucos, se é que existe algum, são os exemplos de um hábito perfeitamente 'ausente', ou de um hábito perfeitamente 'presente'. Conseqüentemente, o governo seria mais perfeito quanto maior fosse o hábito de obediência,
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afastando-se dessa perfeição quanto menor seja o referido hábito, até aproximar-se do estado de natureza; podem apresentar-se casos nos quais seria difícil dizer se um hábito de obediência é suficientemente perfeito para constituir um governo, e até que ponto se deve considerar perfeito para que subsista ou não um governo".(Bentham, J.; op. cit., p.40)
Tudo isto parece significar que não tem sentido se falar em estado perfeito de natureza ou sociedade natural perfeita, bem como é insensata a idéia de um estado perfeito de sociedade ou de uma sociedade perfeita políticamente. Os indivíduos encontram-se em diferentes estados conforme constroem as suas relações sociais. Assim, podem estar em perfeito estado de natureza em relação a certos indivíduos e em perfeito estado de submissão em relação a outros. Podem ainda, alternar estados diferentes em momentos diversos de suas relações com certos indivíduos.
Bentham pretende criticar o carácter insuficiente da tese de Blackstone estabelecendo o grau de submissão dos indivíduos aos governantes como o critério suficiente para separar as sociedades naturais das sociedades politicamente organizadas. Na opinião de Bentham há que se identificar uma nota distintiva que permita reconhecer uma sociedade em que existe o hábito de obediência e submissão para se distinguir as sociedades que se encontram politicamente organizadas e aquelas que se encontram em estado natural. (Bentham, J.; op. cit., p.46)
Na interpretação de Bentham o texto de Blackstone defende e ridiculariza ao mesmo tempo a tese da existência de um contrato original. Bentham entende que as críticas estabelecidas por Hume em seu 'Tratado sobre a Natureza Humana', especialmente o livro III, transformaram essa teoria em uma ficção insustentável. Em sua opinião a teoria do contrato original se constrói a partir da presunção de que existem certos pressupostos que seriam aceitáveis por todos os seres humanos. Esses pressupostos seriam os seguintes: 1. os pactos devem ser observados por quem os outorga; 2. os seres humanos estão obrigados a preservar os pactos feitos; 3. se uma das partes não cumpre o contratado, a outra se encontra liberada de respeitar o prometido. Esses princípios têm sido sustentados por razões de Direito, de Justiça, como decorrentes do Direito Natural, ou como exigências da própria razão. Isto significa que eles têm sido tomados por seguros independentemente dos argumentos que são oferecidos em seu favor.(Bentham, J.; op. cit., p.57)
Para Bentham a teoria do contrato social é construída sobre a ficção de que em algum momento se firmou um contrato entre o governante e o povo. Através deste se acordou que o povo prometia obediência geral ao governante, este, por sua parte, prometia governar o povo de maneira que promovesse a felicidade dos governados. Esta ficção interpretada à luz dos supostos princípios de Justiça resultou concretamente em um tipo de arranjo onde os indivíduos tendem a se considerar aptos para apreciar em que circunstâncias as partes estavam cumprindo o prometido. Este raciocínio implicava ainda a questão relevante de discutir abertamente que, em determinadas circunstâncias, se um governante contraria em suas ações a felicidade do
65
povo, é melhor deixar de obedecê-lo definitivamente. Essa teoria, contudo, não oferece os critérios para decidir se um governante deixara de respeitar o contrato original, ou, ainda, quando havia chegado o momento de deixar de obedecê-lo.(Bentham, J.; op. cit., pp.65-66)
A teoria do contrato original sugeriu, ainda, que a promessa feita pelo governante o obrigava a governar de acordo com o Direito. Ele prometera governar promovendo a felicidade do povo, isto significava que haveria de governar seus súditos conforme a letra da lei. Bentham argumenta que essa interpretação é insuficiente, pois, ao se afirmar que o contratado é que o governante haverá de prover a felicidade de seus súditos, isto pode significar que não haverá de governar conforme a letra da lei. Isto porque nem sempre a lei realiza a felicidade do povo. Há casos em que a lei é feita em contraposição à felicidade do povo; porque há casos em que o governante pode provocar a infelicidade de seu povo, sem contudo desrespeitar as leis; porque podem existir casos em que a maior felicidade do povo resulte do desrespeito da lei e não de sua obediência; porque toda violação da lei cometida pelo governante será sempre insuficiente para caracterizar o ponto em que o povo se encontra definitivamente desobrigado de cumprir o contratado. Bentham conclui seu argumento dizendo que a teoria do contrato originário é imatura e indigesta, pois que não consegue responder à questão que pergunta pelas razões pelas quais devemos cumprir nossas promessas.(Bentham, J.; op. cit., p.55)
Ao recusar a teoria do contrato social, Bentham afasta a idéia que a ordem jurídica estaria associada a um pacto realizado em comum acordo por todos os membros da sociedade. E que, portanto, uma teoria da Justiça seria uma decorrência dos pressupostos assumidos para a formulação dessa ordem jurídica. Uma teoria da Justiça, para Bentham, deve satisfazer à necessidade de oferecer a regra para a determinação de quando devemos obedecer a uma ordem de normas. Não existem condições pressupostas que sejam capazes, por si sós, de garantir a Justiça de um sistema normativo de condutas. Um sistema normativo de condutas será justo se satisfizer um certo critério de resultados. Portanto, o princípio da Justiça (Princípio da vantagem da obediência e desvantagem da rebelião) é que fornece as razões pelas quais devemos obedecer às leis.
4.3. A NATUREZA MORAL DAS PROMESSAS
“O que significam essas promessa, todas ou qualquer uma, para mim? Para responder a essa questão algum outro princípio, é claro, precisa ser buscado, ao invés daquele que estabelece a intrínseca obrigação das promessas sobre aqueles que a fizeram.”(Bentham, J.; op. cit., p.58)
O argumento de Bentham parece sugerir que a teoria do contrato social deve ser substituída pela aplicação do princípio da vantagem da obediência e
66
desvantagem da rebelião. Esse princípio implica a idéia que as pessoas devem obedecer as promessas não porque fizeram promessas, pois, não há algo de especial em se fazer promessas, nem porque há algo nas promessas que as tornem necessárias. Nem o ato de prometer, nem a promessa em si mesmos tornam necessário o cumprimento do prometido. As promessas devem ser obedecidas por uma única razão:"...o benefício obtido e o prejuízo evitado por sua observância compensam sobejamente o prejuízo que pode ser causado ao se obrigar os seres humanos a cumpri-las".(Bentham, J.; op. cit., p.55)
Portanto, não há fundamento para a suposição da existência de um contrato original baseado na promessa de governar e de obedecer. As relações de submissão com as quais se estrutura a organização social são decorrentes do fato que os indivíduos procuram seus próprios prazeres e fogem das situações desvantajosas. Nesse sentido, é o cálculo das vantagens auferidas e das perdas esperadas que impõe aos seres humanos a necessidade de se organizarem de tal forma que haja todo um aparato normativo determinando o que deve ser obedecido e a necessidade de obedecerem àquilo que nele é prescrito. O arranjo das relações sociais em termos de mando e submissão é aquele em que conseguimos visualizar as maiores vantagens para os interesses dos concernidos. Esta seria, então a única razão pela qual alguns governam e outros são governados. Assim, somos obrigados a obedecer as promessas porque elas são úteis e resultam na nossa felicidade.
Bentham diz:"Sendo, pois, essa, e não outra, a razão pela qual os seres humanos devem manter suas promessas, isto é, pelo benefício que representam para a sociedade, essa é de imediato outra razão que pode ser dada para a alegação que os reis devem, ao governar, manter-se dentro do estabelecido pelas leis e (falando em geral) abster-se de todas aquelas medidas que tendam a produzir a infelicidade de seus súditos, e de outro lado, os súditos devem obedecer aos reis desde que estes se conduzam conforme a forma referida, ou, em outras palavras, porque os súditos devem obedecer desde que o provável prejuízo da obediência seja menor do que o provavel prejuizo da resistência, e ao se considerar a comunidade inteira, seu dever de obedecer não vai além do ponto onde chega o seu interesse".(Bentham, J.; op. cit., p.56)
O que o argumento de Bentham parece significar é que há uma
justificativa para o pacto de submissão que caracteriza o arranjo social, e mais,
que há um critério que permite identificar a circunstância em que a obediência
é devida, assim como permite saber quando a resistência é necessária. Há,
portanto, uma dimensão própria da justiça, que não depende da natureza dos
pactos, nem de seus conteúdos. A justiça concerne exclusivamente aos
resultados das ações humanas. Nesse sentido, a teoria da Justiça seria a
teoria dos resultados desejáveis (prazer) e indesejáveis (sofrimento) das ações.
67
É à luz dessa teoria da Justiça que se decide sobre a obrigatoriedade dos
acordos firmados.
Bentham conclui seu argumento afirmando que, ainda que fosse falsa
toda sua argumentação contra a teoria que a obrigação é intrínseca às
promessas, mesmo assim, seria necessário apelar para um princípio que
desse conta do caráter universal que se pretende que essa teoria da obrigação
tenha. Certamente essa teoria é insuficiente para universalizar a obrigação de
obedecer aos pactos àqueles que não o fizeram. Isto é, por que razões o pacto
originário obrigaria aqueles que não fizeram promessa de submissão? O
princípio de utilidade haveria de ser a resposta satisfatória. Isto significaria que,
nos seus limites práticos, a teoria do contrato originário teria de socorrer-se
daquele que é o único fundamento de qualquer questão moral. Isto é, o
princípio de utilidade. (Bentham, J.; op. cit., p.58-59)
A obrigação de obededer às promessas decorre da utilidade da
obediência em termos dos resultados que dela podem provir para os indivíduos
e a sociedade concernidos. A obrigação está subordinada à utilidade do
prometido. Bentham constrói um experimento que ele julga decisivo para
convencer qualquer pessoa da prioridade de considerações de utilidade, e não
de obrigação, no julgamento da relevância das promessas feitas e da
obrigação nelas implicadas. O experimento trata, numa primeira versão, da
relevância de uma promessa considerada de forma particular. Numa segunda
aproximação, ele descreve uma situação que evidencia o caráter secundário do
ato de prometer em consideração às promessas em geral.
Suponha-se que um governante prometa governar seus súditos em
desacordo com o Direito, isto é, em desacordo com a felicidade dos
governados. Estaria o governante obrigado a cumprir o prometido? Suponha-se
que os súditos prometam obedecer o governante em todas as situações,
podendo ele governar de acordo com sua vontade, podendo até mesmo
governar de forma que o resultado fosse a destruição de seus governados.
Estariam os indivíduos obrigados a obedecer a promessa de submissão feita?
Neste caso o efeito do ato de obedecer ao prometido seria a desgraça daquele
que prometeu. Deveriam, então, os súditos obedecer de forma incondicional as
promessas feitas? Podemos considerar que seria dever das pessoas
destruírem-se por vontade do soberano? Seria correto estabelecer punições
que seriam impostas àqueles que se recusassem a cumprir a ordem de auto
destruição exarada pelo soberano?
68
Alguém poderia, ainda, argumentar alegando que existem promessas
que são inválidas por sua própria natureza. Assim sendo, uma promessa
inválida em si mesma não poderia criar uma obrigação do cumprimento do
prometido. Bentham argumenta que essa posição é falaciosa. Essa
argumentação desconsidera algo que ela mesma implica. Assim, desconhece
que se existem promessas inválidas é porque há algo que constitui um critério
independente da obrigação e que a torna tal qual é. Isto é, algo se torna
obrigatório porque satisfaz esse critério externo ao simples ato de prometer.
Existe, portanto, uma circunstância da qual depende a validade de uma
promessa. Então, não é a promessa que causa a obrigação, ela depende de
algo que não pertence às promessas em geral. Isto está implicado no
argumento daqueles que defendem a idéia que existem promessas inválidas
em si mesmas.
Para Bentham, nada existe nas promessas em geral, nem no conteúdo
específico de uma promessa em particular que as torne obrigatórias. Não há
algo de intrínseco às promessas que as torna obrigatórias. As promessas são
obrigatórias, ou não, em função do resultado que se possa esperar que
produzam. Assim, quando aquilo que é prometido pode resultar na maior
felicidade do conjunto dos concernidos na ação, então a ação é obrigatória na
medida dos resultados que dela se pode esperar. Nesse sentido, pode-se falar
em promessas mais obrigatórias ou menos obrigatórias. Nem todas as regras
de conduta possuem o mesmo 'status' na hierarquia da obrigatoriedade.
Bentham argumenta que essa relação entre benefício e prejuízo é
suficiente para fornecer a razão pela qual os seres humanos estão obrigados a
obedecer às promessas feitas. E essa relação é matéria de fato a ser decidida
através de observação e experiência.
Ele diz:"Contudo, por que razão os seres humanos devem
respeitar suas promessas? No momento em que alguma razão
inteligível fosse dada ela seria a seguinte: as promessas devem
ser respeitadas devido à vantagem da sociedade; se elas não
forem respeitadas, elas devem ser feitas obedecidas pelos seres
humanos associando-se punição a elas. É para a vantagem de
todos que as promessas feitas por cada um devem ser
respeitadas: e na eminência delas serem desrespeitadas, então
69
que cada indivíduo que não as respeite seja necessariamente
punido. Se for perguntado o sentido de tudo isto, então a resposta
seria a seguinte: Tal é o benefício a obter e o prejuízo a evitar, ao
se respeitar as promessas, de tal forma que seja compensado o
prejuízo significado pela quantidade de punição que é necessária
para fazer os seres humanos respeitá-las".(Bentham, J.; op. cit.,
pp.55-56)
Nesse sentido, os governantes devem, e de fato exercem, seus
governos dentro das leis estabelecidas, da mesma forma que os governados
devem obedecer, e de fato o fazem, aos governantes, desde que o provável
prejuízo da obediência seja menor do que o provável prejuízo da resistência.
Assim, a razão pela qual os seres humanos possuem o dever de obedecer é
precisamente porque é de seu interesse fazê-lo e nada mais. Sendo isto válido,
então, não há nenhum ganho em se dizer que teria havido, da parte do
governante, uma promessa de governar de forma justa e teria ocorrido, da
parte dos governados, uma promessa de obedecer ao governante.(Bentham,
J.; op. cit., p.56)
Portanto, a teoria da Justiça construída por Bentham parece conter o
reconhecimento da banalidade dos atos humanos fora dos sistemas éticos. A
idéia de Justiça possui fundamentação racional, cuja formulação permite ao
agente atribuir o sentido ético aos atos humanos. Portanto, a teoria da Justiça
consiste na explicitação do princípio que revela o critério da razão para a
obrigatoriedade dos sistemas normativos. Esse critério, contudo, não é uma
exigência do ideal de excelência do humano, mas é uma decorrência do fato da
razão.
Aqui se pretende argumentar que para o utilitarismo clássico, expresso no
pensamento de J. Bentham, os atos humanos são banais. Eles não são
aprendidos necessáriamente e permanentemente com o mesmo significado
ético. A identificação da bondade e maldade das ações depende da
determinação de um critério de significação ética e do desenvolvimento da
capacidade investigativa do avaliador no sentido de aferir a relação entre os
critérios de eticidade e a situações concretas de ação. As ações humanas
podem receber significados éticos divergentes somente quando tivermos
diferentes estágios no exercício da capacidade investigativa dos avaliadores. O
que determina a eticidade de um ato é a forma como ele realiza os critérios de
eticidade. Os critérios de eticidade para o utilitarismo clássico na versão
70
Benthamiana, são fornecidos pelo princípio de utilidade, a saber, a
maximização do prazer e a minização da dor. Na visão de Bentham, prazer e
dor não são fins escolhidos pelo agente. Eles são dados decorrentes da visão
racional e da dimensão empírica do humano.
A definição da maximização do prazer e a minimização da dor como finalidade
da ação ética não decorre de um ato volitivo ou de uma preferência pelo prazer
como um valor. O princípio de utilidade, que contem o critério de eticidade das
ações é uma exigência da própria racionalidade humana, assim como é a
instância da existência humana. Bentham parece querer ensinar que somente
o fato da razão não é banal, mas necessário. Ele é o fundamento da eticidade
humana, isto é, somente a razão pode nos dar um sentido ético. Somente
somos seres éticos porque somos seres racionais.
Talvez com a proposta que aqui se esboça não se tenha ido muito longe.
Talvez nem todos os agentes estejam convencidos da necessidade do gesto
racional inicial, do fato da razão, para a instauração de um projeto ético
racional. Esse parece ser o limite de um projeto ético racional.
Entretanto, ainda que seja necessário convencer as pessoas, por incrível que
isto possa parecer, da inescapabilidade do fato da razão, não parece possível
vislumbrar uma outra alternativa para a construção de um projeto ético fora do
reconhecimento da dimensão racional do ser humano. Para além do racional
não parece possível superar a banalidade dos atos humanos sem sentido em si
mesmos. O fato é que pensar o humano de forma ética é pensá-lo de forma
racional. Pensar o humano de forma racional significa reagir contra a barbárie.
Não sabemos claramente o que isto quer dizer. Contudo, parece certo que a
proposta de um projeto ético na tradição do utilitarismo clássico, tem sido um
instrumento pelo qual se pretende dar um significado racional ao humano. É
nesse sentido que vale a pena revisitar as teorias de Jeremy Bentham.
71
5. OS SUPOSTOS LIMITES DO UTILITARISMO DE JEREMY BENTHAM
"Tanto os conceitos como as palavras são
meros instrumentos para a formulação de
asserções, de suposições ou de teorias. Os
conceitos ou as palavras enquanto tais não
podem ser nem verdadeiros nem falsos.
Servem apenas à linguagem humana,
descritiva e justificativa. O nosso objetivo não
deve ser analisar os significados, mas
procurar verdades significativas e
interessantes, ou seja, teorias
verdadeiras".(Popper, Karl R.; "Em Busca de
Um Mundo Melhor", Lisboa, Editorial
Fragmentos, 1989, p.162)
Jeremy Bentham é, certamente, um autor cujas obras são desconhecidas no Brasil até mesmo pelo público especializado nos assuntos sobre os quais ele teria escrito com reconhecida maestria.
Há indícios, contudo de que essa situação está prestes a mudar graças aos esforços que hoje são feitos por aqueles que se dedicam ao estudo da Filosofia Moral ou Ética nos diferentes centros onde essa área tem recebido atenção dos filósofos profissionais. O que isto parece sugerir é que, diferentemente dos países europeus, no Brasil, o envolvimento com as idéias utilitaristas, com especial referência ao pensamento de J. Bentham, seria uma matéria mais de filósofos profissionais do que de juristas e teóricos do Direito.
O fato é que J. Bentham é um filósofo e jurista que tem sido tratado com injustificada ignorância e extrema animosidade por seus críticos mais famosos. Suas idéias são quase sempre conhecidas através de terceiros e as críticas que delas se fazem, de uma forma geral, são inspiradas por alguns 'desaforos'
72
proferidos por célebres desconhedores das obras de J. Bentham. Somente com o intúito de recordar uns poucos exemplos, pode-se citar que Goethe o chamou de "aquele medonho asno radical", J. M. Keynes acreditava que as idéias de Bentham eram "a parasíta que devora por dentro a civilização moderna e que é responsável por sua decadência moral atual". Emerson chamou-as de "filosofia fedorenta"; Joseph Schumpeter considerou-as "a mais estreita de todas as concebíveis filosofias de vida". Karl Marx, em sua obra "O Capital' chamou-o de "o arqui-filistino... este insípido, pedantesco e charlatanesco oráculo da inteligência vulgar da burguesia".(p.514) O desprezo que Nietzsche tinha por J. Bentham pode ser sentido no pequeno verso que lhe dedicou:"Soul of washrag; face of poker,/Overwhelming mediocre,/Sans genie et sans esprit".
Apesar do caráter desabonador que essas críticas contêm, contudo, as obras de J. Bentham vem sendo reeditadas pelo grupo de pesquisadores que hoje constituem o 'Bentham Project' no University College da Universidade de Londres. Ademais, durante os anos 80 e parte dos anos 90, cerca de duas dezenas de livros foram publicados discutindo as idéias de Bentham. Muitas dessas obras apontam para os limites das teorias de Bentham e fazem críticas às suas posições.
Neste texto se pretende inventariar as críticas feitas por estudiosos do utilitarismo em geral e do pensamento bentamiano em particular. O que se pretende é organizar um balanço das críticas mais relevantes apresentadas e tentar avaliar em que sentido elas seriam apropriadas para se estudar os limites do projeto ético de J. Bentham.
De uma forma geral se pode considerar que o Utilitarismo foi a primeira escola
filosófica, em sentido estrito, que teria se constituído no mundo de fala inglesa.
A Filosofia na Inglaterra, Escócia, EUA, e outros países vem se desenvolvendo
desde os primórdios dessas mesmas sociedades. Contudo, ela se
particularizou pelo caráter individualista e personalista de seus primeiros
pensadores. O Empirismo inglês, por exemplo foi construído por pensadores
isolados que adotaram algumas pressuposições comuns. Embora pensassem
dentro de um mesmo paradigma, muitos nem mesmo se consideravam como
interlocutores. Isto parece revelar que foi preciso o surgimento de uma série de
outras circunstâncias para que se formasse a primeira escola filosófica no
mundo de fala inglesa.
Essa primeira escola teria sido o Utilitarismo. Essa escola se constituiu de um
grupo de teses mais ou menos uniformes adotadas por um grupo mais ou
73
menos coerente de pensadores que entretanto se conheciam, debatiam as
posições recíprocas e divulgavam entusiasticamente as conclusões a que
chegavam em suas especulações conjuntas.
Os temas que ocuparam de forma acentuada os membros da escola utilitarista
clássica eram concernentes ao problema de encontrar critérios para o
estabelecimento da forma correta de agir nas diferentes situações. Nesse
sentido, os utilitaristas acabaram por se envolver com interlocutores de
diferentes interesses, tais como Filosofia Moral, Filosofia do Direito e Ciências
Sociais.
Jeremy Bentham (1748-1832) teria sido a figura ao redor da qual se constituiu
o grupo de utilitaristas clássicos. Com uma obra volumosa e percorrendo os
mais variados temas, foi responsável pela sistematização dos principais
princípios que constituem o ponto de vista utilitarista. Contudo, Bentham é o
pensador utilitarista que recebeu o maior volume de críticas. O estudo de
algumas dessas críticas permite resgatar alguns dos limites do projeto
construído pelo utilitarismo clássico.
O objetivo deste texto é apontar algumas mudanças na interpretação do
pensamento de J. Bentham que teriam ocorrido nos últimos 15 anos, entre
1980 e 1995. Tem havido um crescente interesse no estudo das obras de
Bentham. Assim, os trabalhos desenvolvidos por pesquisadores junto ao
'Bentham Project' associado ao University College, London, a publicação de
'The Collected Works of Jeremy Bentham', prevista para 45 volumes, dos
quais, entre 1968 e 1984, foram publicados: "An Introduction to the Principles of
Morals and Legislation" (1970), "Of Laws in General" (1970), "A Comment on
the Commentaries and a Fragment on Government" (1977), "Constitutional
Code", vol. I, (1983), "Deontology" (1984), "Chrestomathia" (1984),
"Correspondence", 5 vols. (1968-1981) e a publicação do 'The Bentham
Newsletter' desde 1978, tem estimulado o interesse de pesquisadores em
analisar as idéias que se encontravam entulhadas nos manuscritos e na
confusa e incompleta edição das obras de Bentham publicadas por John
Bowring, entre 1838 e 1843.
Os livros publicados sobre o pensamento de J. Bentham, que somam hoje um
total de cerca de 27 obras, foram escritos, em sua maioria (23 obras) após a
74
segunda metade dos anos 70. Os anos 80 foram particularmente férteis,
somando um total de cerca de 15 obras.
Aqui se pretende argumentar que juntamente com o aumento do interesse
pelas obras de Bentham, teria ocorrido uma mudança significativa no teor das
críticas às teses utilitaristas de Bentham que essas obras contêm. Assim, numa
primeira fase, posterior à sua morte (1832) e anterior aos anos 60, o
pensamento de Bentham era desconhecido ou somente referido através de
algumas de suas idéias, que tomadas isoladamente por leitores pouco
rigorosos, geravam um tipo de crítica que se consolidava mais em expressões
desaforadas do que em formulações argumentativas. Em seguida, desenvolve-
se uma fase de confronto das obras e manuscritos de Bentham para
fundamentar críticas argumentadas. Contudo, essas críticas eram marcadas
por anacronismos e posições que poderiam ser chamadas de preconceituosas
e incapazes de reconher os avanços implicados nas posições criticadas. A
produção dos anos 80 parece conter um enfoque mais expressivo da reflexão
de um grupo seriamente comprometido com a idéia de identificar os limites da
obra de Bentham; contudo, disposto a dar uma chance para que as pesquisas
revelem qual deve ser a última palavra no que concerne ao mérito da produção
do autor investigado.
No desenvolvimento do que segue serão considerados alguns exemplos
modelares de cada uma das três fases identificadas na evolução das críticas
que têm sido postas ao pensamento de J. Bentham e a seguir será discutida
uma das principais tentativas de resenhar as críticas feitas a Bentham. Aqui se
argumentará que o texto de Hanna Fenichel Pitkin, intitulado "Slippery
Bentham: Some Neglected Cracks in the Foundation of Utilitarianism" (Political
Theory, Vol. 18, No. 1, Feb. 1990, pp.104-131) não consegue escapar à
tentação de concluir rotulando o pensamento de Bentham de 'Teoria de Teflon'
(ou 'teoria veda-rosca'; no original: "Teflon Theory", idem ibidem, p.127). Ao
fazer isto Pitkin estaria cometendo o mesmo pecado que, de forma tão
exemplar, foi capaz de caracterizar em termos de reação furiosa ao
inescapável triunfo das idéias de Bentham dentro de cada um de nós.
5.1. PRIMEIRAS CRÍTICAS: MALEDICÊNCIAS & DESAFOROS
75
Ao que parece, Bentham não foi carente de críticos célebres. Há todo um
elenco de figuras ilustres que também se notabilizaram pela abundância de
expressões indelicadas e reveladoras de sentimentos pouco dignificantes no
trato com aquilo que imaginavam ser J. Bentham e sua filosofia. Os
especialistas têm se dado ao cuidadoso trabalho de colecionar as 'expressões
fortes' usadas por gente famosa que nunca leu um texto inteiro de Bentham,
somente tendo tido contato com suas idéias através de terceiras mãos.
Assim, Goethe o chamou de "...aquele medonho asno radical". John Maynard
Keynes acreditava que as idéias de Bentham eram "...a parasita que devora
por dentro a civilização moderna e que é reponsável pela sua decadência
moral atual". Emerson chamou-as de "filosofia fedorenta"; e Joseph
Schumpeter considerou-as "...a mais estreita de todas as concebíveis filosofias
de vida". O desprezo que Nietzsche tinha por Bentham é expresso no pequeno
verso que lhe dedicou, onde se lê: "Alma de trapos; cara de blefe, completo
medíocre, sem talento e sem caráter.
Todas as expressões que aquí são identificadas como 'maledicências e
desaforos' são citadas por Hanna Fenichel Pitkin em seu artigo
intitulado:"Slippery Bentham: Some Neglected Cracks in the Foundation of
Utilitarianism"; Political Theory, Vol. 18, No. 1, Feb. 1990, nota No.2, p.128.
Nesse texto a localização das citações são referidas a "A Bentham Reader",
ed. by Mary Peter Mack, New York, Pegasus, 1969, p.viii, a qual remete o leitor
a Mary Peter Mack, "Jeremy Bentham: An Odissey of Ideas", New York,
Columbia University Press, 1963, que teria localizado as passagens que
seguem, menos a de Goethe. John Maynard Keynes, "Two Memoirs", New
York, Augustus M. Kelley, 1949, p.96; Ralph Waldo Emerson citado em Louis
Hartz, "The Liberal Tradition in America", New York, Harcourt University Press,
1954, p.66; Joseph A. Schumpeter, "History of Economic Analysis", New York,
Oxford University Press, 1954, p.66; Karl Marx, "Das Kapital", Everyman edn. II,
p.671; Friedrich Nietzsche, "Beyond Good and Evil", Trans. by Marianne
Cowen, Chicago, Gateway Books, 1955, pp.155-156.
76
O que há de comum a todas essas 'críticas' é que, em primeiro lugar, são todas
produzidas por figuras mais ou menos notáveis que não conseguiram esconder
sua violenta rejeição àquilo que concebiam como a filosofia de Bentham. Outro
aspecto comum aos autores citados está no fato de que, quase todos,
desconhecem de forma exemplar a obra e o pensamento de Bentham.
Um exemplo típico dessa forma de 'crítica' pode ser encontrado na referência
que Karl Marx registrou em sua obra "O Capital". (Marx, Karl; "El Capital:
Crítica de la Economia Política", México, Fondo de Cultura Económica, Trad.
Wenceslao Roces, 1946, Vol I, pp.488-516).
No capítulo XXII que discute a conversão da mais valia em capital, Marx acusa
Jeremy Bentham de haver transformado a posição da economia clássica em
dogma. Ele diz:"Contudo, este preconceito não se converte em dogma até que
aparece o arqui-filistino Jeremias Bentham, este insípido, pedantesco e
charlatanesco oráculo da inteligência vulgar da burguesia".(idem, ibidem,
p.514) Em nota de rodapé, Marx faz crer que teria tido contato com o volume II
da obra "Théorie des Peines e des Récompenses", trad. Ed. Dumont, Paris,
1826, de autoria de J. Bentham. Ainda nessa citada nota, Marx estende suas
opiniões sobre Bentham considerando-o um fenômeno tipicamente inglês, que
teria, sem qualquer peça de ingenhosidade, repetido o que Hevetius e outros
franceses do século XVIII teriam dito. Ao concluir a nota, Marx dispara sua
invectiva final afirmando:"Se eu tivesse a valentia de meu amigo Enrique Heine,
chamaria o Sr. Jeremias de gênio da estupidez burguesa" (idem, ibidem, p.514,
nota 46)
O que caracteriza, de forma mais típica, esta modalidade de 'críticas' é o
caráter de aforisma em que ela se expressa. Via de regra essas críticas são
apresentadas em um discurso direto onde prevalecem os adjetivos e carecem
os argumentos.
5.2. SEGUNDAS CRÍTICAS: ANACRONISMOS & PRECONCEITOS
Nesta parte será examinada uma segunda modalidade de críticas que teria
tipificado as reações de alguns acadêmicos que se deram ao trabalho de
estudar cuidadosamente as obras de Bentham. Contudo, aqui se sugere que
77
essas críticas se fundamentam em alegações anacrônicas e em uma leitura
marcadamente preconceituosa das propostas de Bentham. Talvez a mais
expressiva das críticas com esse caráter seja a oferecida por Charles F.
Bahmueller, em seu livro "The National Charity Company: Jeremy Bentham's
Silent Revolution" (London, University of California Press, 1981). Aqui se
pretende argumentar que o trabalho desenvolvido por C. F. Bahmueller é uma
crítica anacrônica na medida em que acusa o plano previdenciário de Bentham
de ser repressivo e desrespeitoso para com as liberdades civis e a
sensibilidade emocional dos pobres.(idem, ibidem, p.02) É ainda uma crítica
preconceituosa na medida em que C. F. Bahmueller pretende alegar que as
reformas previdenciárias propostas por Bentham tinham como objetivo apagar
o fogo revolucionário das camadas mais pobres da sociedade inglesa que
acabava de emergir da Revolução Industrial.(idem, ibidem, p.02) Essas
críticas, contudo, não procedem. Argumentar que Bentham pretendia extinguir
o fogo revolucionário das camadas pobres é ir além daquilo que ele
expressamente declarou em seus escritos sobre a necessidade de mudanças.
Alegar que a solução proposta por Bentham haveria de piorar a situação
daqueles que supostamente deveria salvar, se justificaria não fosse
anacronismo querer exigir das reformas previdenciárias sugeridas no século
XVIII e início do século XIX que elas fossem capazes de atender ao sentido
moderno das liberdades públicas conforme elas se constroem no século XX.
Charles F. Bahmueller tenta elaborar uma leitura sociológica da proposta
previdenciária de Bentham. Em sua interpretação, os planos de Bentham
correspondem a um esforço no sentido de conciliar o confronto de duas forças
antagônicas: de um lado o sofrimento dos pobres e seus anseios de mudanças
e de outro o descontentamento dos contribuintes com as altas nos percentuais
de impostos e seu receio de que novas mudanças viessem a aumentá-los
ainda mais. (Bahmueller, CHarles F.; "The National Charity Company: Jeremy
Bentham's Silent Revolution"; London, University of California Press, 1981,
p.02). A solução preconizada por Bentham seria o seu plano previdenciário,
que ele mesmo intitulou Companhia de Caridade Nacional ('National Charity
Company'). Esse plano envolvia o recolhimento de todos os que fossem
identificados na categoria dos 'indigentes'(4) em casas de trabalho, onde
seriam mantidos até que pudessem ser novamente liberados para o mercado
de trabalho. Na opinião de C. Bahmueller:"...a reforma da Lei dos Pobres
sugerida por Bentham era repleta de repressão tão generalizada, tão
destrutiva, e com tão pouca consideração para com as liberdades civis e a
sensibilidade emocional daqueles cuja saude (tanto moral quanto física) e
felicidade era suposto que promovesse e protegesse, que o seu suposto
sentido de progresso administrativo empalidece na comparação. Deixados nas
mãos de Bentham, os pobres estariam, em aspectos essenciais para aqueles
78
que se recusam a avançar 'além da liberdade e da dignidade' muito pior do que
eles de fato já estavam".(5 (4) Bentham considerava que somente os
indigentes seriam objeto de suas políticas previdenciárias. Indigentes eram
aqueles que embora obrigados a trabalhar para sua sobrevivência, eram,
contudo, incapazes de trabalhar, ou incapazes de, mesmo trabalhando, prover
o suficiente para seu próprio sustento. Bentham considerava como pobres
todos aqueles que estivessem no estado de ter que trabalhar para sobreviver.
Nesse sentido, quase todas as pessoas viveriam em estado de pobreza. Ricos
seriam aqueles poucos cujas propriedades seriam suficientes para prover o
próprio sustento sem necessidade de recorrer ao trabalho.( (Bahmueller,
Charles F.; "The National Charity Company: Jeremy Bentham's Silent
Revolution"; London, University of California Press, 1981, p.02)
C. Bahmueller argumenta que Bentham teria sido influenciado pelas
conclusões de T. R. Malthus de que o aumento desenfreado da população era
uma ameça à prosperidade das nações. Nesse sentido, Bentham teria optado
pela sugestão de Malthus de que a emigração forçada seria uma solução.
Assim, Bentham escolhe a solução pela via da migração interna compulsória.
Seria uma emigração para uma economia separada e para uma sociedade
separada, o 'reino dos pobres'. Nesse reino o alimento seria plantado em terras
incultivadas, e separadamente retirado do mar. O alimento não seria, portanto,
retirado dos suprimentos do mercado. Esse sistema de migração interna
satisfaria o duplo objetivo de ampliar a produção durante os períodos de
escassez e diminuiria o peso do custo do sustento dos pobres sobre os
contribuintes. A perfeição do sistema poderia ser atingida quando essas
'colonias' se tornassem inteiramente auto-suficientes. Ademais, uma vantagem
adicional do sistema consistiria no fato de que, recolhidos em instituições
estritamente reguladas através do princípio do Panopticon ('as pessoas se
comportam melhor quando estão sob suspeita de inspeção'), os pobres seriam
destituídos do maior de todos os males; isto é, o hábito da preguiça.
Bahmueller usa essa reconstrução para sugerir conclusivamente que:"... os
indigentes quer como uma classe, quer como companheiros internos no
Panopticon, haveriam de terminar por ter a sua liberdade ameaçada ou ter a
sua dignidade como pessoa humana definitivamente comprometida pelo
regime das casas de trabalho de Bentham, nesse sentido, seriam colocados
em uma posição muito pior se o plano de Bentham tivesse tido outra sorte que
não aquilo que de fato ocorreu - ser enterrado na cova das ideias descartadas".
(Bahmueller, CHarles F.; "The National Charity Company: Jeremy Bentham's
Silent Revolution"; London, University of California Press, 1981, p.10)
79
Essa conclusão que Bahmueller adianta é, contudo, inconciliável com a
interpretação que ele mesmo constrói da teoria social de Bentham. Em sua
opinião o fim da sociedade para Bentham é a felicidade, ou o 'bem estar' de
seus membros, e a finalidade do governo é a busca desse fim. O 'bem estar'
social consiste em se obter o máximo do prazer e o mínimo de sofrimento para
todos os indivíduos que compõem a sociedade. O dever do Estado consiste em
garantir o 'bem estar' de todos os seus membros, cada um contando
igualmente como os outros. Nesse sentido, a felicidade do último camponês é
motivo de procupação do Estado, da mesma forma como o é a felicidade do
mais dignificado dos cidadãos. Contudo, nem sempre é possível maximizar a
felicidade de cada um dos membros constitutivos da sociedade;
frequentemente a felicidade de alguns precisa ser sacrificada em prol do 'bem
estar' de outros. O que pode ser esperado do Estado, nessa situação, é que
ele consiga maximizar a felicidade do maior número possível de cidadãos. Isto
pode ser conseguido através da busca de uma série de fins subordinados uns
aos outros. Nesse sentido, o primeiro dos objetivos do Estado é a segurança
dos súditos. Segurança significa que o Estado deve protegê-los contra a
violência, a fraude, a doença, a fome, ou qualquer outra fonte de sofrimento e
dor. Portanto, ao Estado compete garantir a subsistência material de todos os
cidadãos. Por isto, cabe ao Estado prover a abundância que é a garantia da
subsistência. Nesse sentido, se a abudância é a garantia da subsistência,
então, aquilo que excede o necessário para a sobrevivência de um indivíduo
deve ser transferido para outro, principalmente quando essa transferência se
faz necessária para garantir a sobrevivência desse outro indivíduo. Essa
transferência deve ser operada por uma agência pública, posto que a iniciativa
privada seria inadequada para realizar tal tarefa. Agências privadas não
disporiam de poder nem de capacidade técnica para fazer essa transferência.
(Bahmueller, Charles F.; "The National Charity Company: Jeremy Bentham's
Silent Revolution"; London, University of California Press, 1981, pp.202/203).
O Estado existe para realizar a igualdade de condições materiais entre os
cidadãos. A igualdade de condições materiais é desejável porque ela maximiza
a felicidade. Para Bentham toda pessoa normal tem a mesma capacidade de
sentir prazer e dor, entretanto, as pessoas não possuem necessariamente a
mesma capacidade de sentir o mesmo tipo de prazer e de dor. Todos sentem
igualmente a dor causada pela fome ou pelo ferimento de queimadura.
Contudo, nem todos sentem-se igualmente compadecidos com aqueles que
passam fome ou se queimaram com fogo. O fato é que a igualdade de
condições materiais aumenta o volume de 'bem estar' na coletividade. Mas,
alguns indivíduos são mais inteligentes, mais habilidoso do que os outros.
Nesse sentido, a igualdade absoluta não pode ser concretizada. Mesmo que
houvesse igualdade absoluta por um dia, a sociedade não teria essa mesma
80
situação no dia seguinte. Ademais há que se contabilizar a dor produzida pela
perda que os indivíduos mais ricos sofrem em todos os expedientes de
distribuição. Há ainda que se contar a dor da insegurança criada pelo pânico
que se generaliza nas sociedades quando se adotam medidas extensivas de
distribuição. O fato é que a dor dói mais do que o prazer agrada. Para
Bentham, a segurança gera expectativa. E a expectativa cria a possibilidade da
dor da perda, e cria também o prazer de prever certos prazeres futuros. Por
esta razão, uma das funções primárias do Estado consiste em garantir as
expectativas das pessoas. Isto significa oferecer segurança a elas.
Nessa interpretação da teoria social de Bentham, os seres humanos seriam
agentes controlados pela busca do prazer e fuga da dor. Contudo, as pessoas
são susceptíveis de cometerem enganos em suas buscas, entrando em conflito
e confundindo seus legítimos interesses. Assim, é dever do Estado criar um
sistema que harmonize os interesses. Para cumprir esta finalidade existe a lei
que transforma o interesse dos indivíduos em suas respectivas obrigações. A
lei para ser efetiva precisa estar associada aos motivos que levam as pessoas
a agir. E as pessoas somente agem no sentido de realizar o seu interesse
pessoal. Esta é a razão pela qual o sistema de leis necessita de estar vinculado
a um conjunto de sanções e de recompensas. O sistema de implementação
desse emaranhado de punições e recompensas é o que se chama governo.
Contudo, também o governo necessita de ser limitado em seus poderes sobre
os cidadãos. Da mesma forma que os indivíduos, os governos necessitam ser
fiscalizados. Isto se obtém através da publicidade dos atos governamentais e
da garantia de que todos os atos públicos estejam sujeitos ao critério de
obediência às razões científicas.(idem, ibidem, pp.203-204)
Para a fiscalização do governo necessita-se de uma população educada e
socialmente disciplinada. Educação e disciplina social são as duas pilastras
que garantem a sociedade e a civilização. A sociedade é um sistema de
recompensas e punições, e a tarefa do governo consiste em garantir a
estrutura para a implementação das punições e as condições para que os
indivíduos possam desfrutar das recompensas que se seguem de seus
próprios esforços. O sistema de recompensas e punições existe para
compensar interesses disparatados buscando harmonização daquilo que é o
interesse das pessoas com aquela conduta que elas devem praticar. Nesse
sentido a educação e a disciplina social são ingredientes indispensáveis para o
funcionamento da sociedade. Pessoas sem educação frequentemente buscam
a oportunidade de se aproveitar das recompensas devidas a outros, ou ainda
procedem sem levar em consideração os verdadeiros efeitos, em termos de
81
prazer e de dor, de sua conduta pessoal. Essa, portanto, é a função do Direito:
disciplinar as pessoas.(idem, ibidem, pp.204/205)
C. F. Bahmueller elabora essa extensa reconstrução da teoria social de
Bentham para, em seguida, de forma abrupta concluir afirmando que:"...Uma
vez que, conforme foi visto, ele chamou as casas de trabalho Panopticon de
sua 'Utopia', nós deveríamos perguntar a nós mesmos por que isto é algo
utópico para ele. A resposta, eu penso, é que aquí ele poderia realizar a sua
fantasia de possuir total controle; aquí ele poderia sonhar seu sonho de ter o
controle total sobre o sistema social".(idem, ibidem, p.206)
Esta acusação de que a intenção de Bentham seria obter total controle sobre o
sistema social não procede da própria forma como Bahmueller apresenta a
teoria social de Bentham. Entretanto, Bahmueller se sente justificado em
recorrer às fantasias e aos sonhos de Bentham para fundamentar sua
conclusão.
A evidência do caráter preconceituoso das críticas tecidas por Bahmueller pode
ser encontrada na conclusão a que ele chega após realizar um balanço dos
pontos positivos e negativos dos escritos de Bentham sobre a pobreza e a Lei
dos Pobres. Assim, Bahmueller reconhece que se a 'National Charity Company'
tivesse se tornado uma realidade muitos pobres teriam obtido uma série de
benefícios ao se utilizarem dos serviços prestados por essa instituição.
Certamente que a mobilidade dos pobres teria sido facilitada, principalmente
em decorrência do papel de local de hospedagem que as casas de trabalho
Panopticon exerciam. O desemprego teria diminuido em razão da maior
divulgação dos locais e das vagas de trabalho existentes. Os serviços de
instituição bancária exercido pelo Banco da Frugualidade ('Bank of Frugality")
previsto nos planos previdenciários de Bentham, certamente facilitariam a
poupança e o empréstimo de pequenas quantias para os pobres. O índice de
mortalidade infantil certamente haveria de diminuir, graças ao treino das mães
e a divulgação da relevância dos procedimentos de higiene. Outra vantagem
seria decorrente do sistema racionalizado de tratamento que os pobres
receberiam em todo o território inglês. Haveria uma diminuição no índice de
analfabetismo, uma vez que no Panopticon as crianças receberiam tratamento
especial no que se referia a sua educação e literalidade. Enfim, Bahmueller
reconhe que o sistema proposto por Bentham faria com que os pobres
pudessem desfrutar aquela que, em sua opinião é a mais fundamental de todas
as garantias de qualquer Estado de Bem-Estar Social ('Welfare State'). Isto é,
82
os pobre teriam garantida de sua expectativa de que em nenhuma
circunstância seriam abandonados e passariam fome.(idem, ibidem,
pp.208/209).
Na visão de Bahmueller todas essas vantagens seriam comprometidas pela
humilhação que o sistema como um todo impunha sobre os pobres. O fim da
caridade espontânea, como fonte de sustento dos pobres, associado ao
processo de encarceramento involuntário poria em curso um sistema
humilhante para os pobres. Ademais, a obrigatoriedade de utilização, pelos
pobres, de roupas identificadoras, a obrigação de residir em celas e se sujeitar
a um sistema de regras e punições, a obrigação de se submeter a um sistema
de planejamento rigoroso das atividades do dia e a destituição de qualquer
forma de privacidade, posto que no sistema Panopticon todos os internos estão
em todos os momentos sob a possibilidade de total inspeção, tudo isto criava
um sistema onde os pobres careciam de liberdade e eram destituidos de sua
dignidade pessoal. Nesse sistema os pobres seriam tratados não apenas como
seres menos responsáveis do que um adulto, mas também menos livres do
que qualquer ser humano.
Bahmueller considera que: "Quaisquer que fossem as vantagens últimas que o
sistema Panopticon pudesse ter trazido para os contribuintes, os pobres
estariam obviamente em uma situação pior do que aquela que eles possuiam
no sistema então prevalescente. Isto poderia não ser verdade para alguns
indivíduos, mas seria para os pobres como um todo: posto que os pobres
sofreriam de anxiedade quando do lado de fora, ou então seriam humilhados e
degradados, sujeitos a um minucioso controle de cada uma de suas ações
quando internos, com sua liberdade de movimento, de expressão e de
associação tendo sido inteiramente retirada, pode-se questionar como pode
alguém com um mínimo de simpatia pelos pobres ter outra reação se não ficar
horrorizado com o plano de Bentham". Ele conclui seu argumento negando que
a reforma previdenciária proposta por Bentham pudesse ser assumida por
razões utilitaristas. Em sua opinião, a 'National Charity Company' teria sido o
resultado da aplicação idiosincrática que Bentham teria feito de sua própria
filosofia. Ele acredita, contudo, que Bentham teria sido um dos primeiros
defensores do Estado de Bem-Estar Social ('Welfare State'). Bentham teria
encontrado no Estado de Bem-Estar Social ('Welfare State') uma resposta para
a questão que pergunta pelas justificativas dos procedimentos que consistem
em tirar riqueza dos produtivos e distribuí-la entre os improdutivos. O motivo
consite na alegação de que o Estado de Bem-Estar Social ('Welfare State') é o
meio mais efetivo disponível pelo qual se pode prevenir o sofrimento. Ele faz
83
isto em dois sentidos: ele provê os bens necessários para a sobrevivência
daqueles que necessitam deles; e ele cria a expectativa de que ninguém
haverá de morrer de fome, ficar sem casa, perecer por falta de cuidados
médicos, enfim, ter as condições mínimas de sobrevivência. A caridade
particular voluntária é incerta, pode oferecer recursos insuficientes, bem como
não apresenta um entendimento uniforme do que seja o sofrimento. Para
Bentham a caridade seria uma responsabilidade da sociedade e não apenas
uma obrigação dos indivíduos sensíveis e generosos. Bahmueller, contudo,
não se satisfaz com esta veemente defesa do Estado de Bem-Estar Social
('Welfare State') que ele mesmo reconstrói para Bentham. Ele acusa Bentham
de haver aumentado a lista dos confortos oferecidos aos internos no sistema
Panopticon, tendo em vista convencer seus leitores mais sensíveis com as
agruras que amargavam o regime de encarceramento obrigatório a que se
viam submetidos os pobres.
A leitura da forma como Bahmueller reconstrói as teses de Bentham
evidenciam a impropriedade do tratamento crítico que lhes é oferecido.
Bahmueller faz alegações críticas e acusa Bentham de haver construído um
sistema cujos qualificativos parecem não corresponder ao caráter que lhe dá a
reconstrução de Bahmueller. Este parece atribuir a Bentham a defesa de um
modelo de Estado que somente surge na primeira metade do século XX. Fazer
de Bentham um defensor do Estado de Bem-Estar Social ('Welfare State') é
anacronismo. Tentar qualificar o projeto previdenciário construído por Bentham
como se fosse uma obra de teoria política, desvinculada do contexto filosófico
em que estão os seus pressupostos é ter uma visão preconceituosa. Bentham
parece ter sido muito mais um filósofo moral do que um cientista político. O que
isto significa é que, todas as teorias defendidas por Bentham somente são
completamente compreendidas quando analisadas à luz de suas teoria
filosóficas. O sistema Panopticon em suas duas dimensões, quer como um
sistema de penitenciárias, quer como um sistema da casas de trabalho, isto é,
'Panopticon in both its branches: the prison branch and the pauper branch',
como queria Bentham, é parte de um projeto ético que possui fundamentação
filosófica. Quando dissociado de seus presssupostos morais, os planos
previdenciários de Bentham podem dar margem a interpretações de supostas
intenções que estariam escondidas nas entrelinhas daquilo que ele propõe.
84
5.3. TERCEIRAS CRITICAS: AS POSIÇÕES DE ACADÊMICOS
CONVENCIONAIS
Uma terceira modalidade de críticas pode ser encontrada nas últimas obras
sobre o pensamento de Bentham publicadas por acadêmicos convencionais
que investigaram com profundidade os argumentos utilitaristas e que
pretenderam discutir as implicações das teorias a partir dos pressupostos em
que elas se embasavam.
Um modelo exemplar desse tipo de críticas será aquí caracterizado a partir de
uma parte substancial do texto referido de Hanna Fenichel Pitkin. Em seu artigo
intitulado "Slippery Bentham", Pitkin argumenta que, embora os críticos tenham
feito várias tentativas no sentido de fazer prevalecer a acusação de que a
doutrina de Bentham é extraordinariamente escorregadia, nenhum teve
sucesso em demonstrar que isto decorre, principalmente, da ambiguidade dos
conceitos fundamentais que expressam o pensamento do próprio Bentham.
Pitkin se propõe, então a tarefa de demonstrar que existe total ambiguidade no
pensamento de Bentham e analizar sua natureza. Ela alega que Bentham
argumenta através de um modelo, de tal forma ambíguo, que isto permite a ele
estar nos dois lados da cerca ao mesmo tempo. Isto é, em todas as questões
em que Bentham se envolveu ele teria usado um estilo de argumentação que
lhe permitia colher as vantagens decorrentes das diferentes posições a
propósito do tema, sendo que muitas vezes ele nem sequer tomava em
consideração a existência de diferentes pontos de vista sobre a questão.
(Pitkin, Hanna Fenichel; "Slippery Bentham: Some Neglected Cracks in the
Foundation of Utilitarianism"; Political Theory, Vol. 18, No. 1, Feb. 1990, p.107)
Aqui se argumentará que, conforme sugere o texto de Popper citado na
abertura deste artigo, o sucesso das críticas esboçadas por Pitkin fica
prejudicado, na medida em que se constituem fundamentalmente de
discussões sobre o sentido de palavras. Embora Pitkin acuse Bentham de
ambiguidade, parece ficar claro de seu argumento que aquilo que ela realiza é
uma tentativa, não muito bem sucedida, de demonstrar que ele teria sido
demasiadamente impreciso. Contudo, acusar Bentham de ser um pensador
impreciso em suas análises é contrariar uma versão corrente na literatura sobre
o tema. Recentemente, em 1983, Ross Harrison sugeriu que Bentham talvez
85
pudesse ser entendido como um dos precursores do uso do método analítico
em filosofia; principalmente devido ao seu esforço em demonstrar a
importância da precisão dos termos para a compreensão das teorias. (Harrison,
Ross; "Bentham"; London, Routledge & Kegan Paul, 1983).
Para demonstrar seu ponto de vista, Pitkin analisa as ambiguidades existentes
em três pontos da teoria de Bentham. Inicialmente as ambiguidades do
'princípio da maior felicidade' são tomadas como uma instância especial da
maneira como Bentham manipula as palavras de tal forma que elas adquirem
diferentes sentidos, mudando conforme o contexto da argumentação. Assim,
conceitos importantes tais como 'prazer', 'dor', 'interesse' e 'cálculo' teriam
diferentes significados, variando para ter sentido estrito ou ampliado em
diferentes momentos do argumento. Pitkin diz:"Conforme já foi discutido,
quando Bentham reduz todos os motivos [de ação] à busca do prazer e fuga da
dor , ele não distingue prazer de alegria, deleite, satisfação, alívio, ganho,
sucesso, recompensa, vantagem, e assim por diante. Ele usa a palavra 'prazer'
em sentido amplo de forma a abarcar todos esse sentidos e mais alguns. De
igual forma, ele não distingue dor de sofrimento, perda, desapontamento,
desespero, agonia, e outros. Ele pretende agrupar todos esses sentidos numa
única, ampla categoria que ele rotula como 'dor', abstraindo a palavra de seus
contextos e contrastes usuais alargando o sentido da palavra para cobrir com
ela metade do mundo".(Pitkin, Hanna Fenichel; "Slippery Bentham: Some
Neglected Cracks in the Foundation of Utilitarianism"; Political Theory, Vol. 18,
No. 1, Feb. 1990, p.109) Bentham, na opinião de Pitkin, não consegue manter
durante toda a sua argumentação o sentido ampliado de prazer e de dor.
Assim, o princípio de utilidade se torna totalmente inexpressivo se os conceitos
são tomados em seu sentido amplo, e se torna virtualmente vazio, ao se
estreitar o sentido de prazer e dor.
Dificuldade semelhante ocorreria com o conceito de 'cálculo' implicado na compreensão do princípio da maior felicidade. Quando Bentham é criticado sobre a possibilidade de se 'calcular' prazer ou dor, sua resposta consiste em expandir o sentido do termo. Assim, 'calcular' significa a escolha que estaria implicada em toda ação. Contudo, na medida em que o argumento resiste à crítica, ele perde conteúdo informativo. Pois, dizer que o 'cálculo' consiste na operação de escolha de motivos implicada em toda e qualquer ação, dificilmente poderia ser tomado como algo mais do que um truismo. (idem, ibidem, p.109)
86
Pitikin, investe contra a forma como Bentham defende o princípio de utilidade
face a outros princípios supostamente capazes de explicar os motivos da ação
humana. Nesse caso, pesaria contra Bentham a acusação de que ele
argumenta de forma a se tornar impossível dicidir se o princípio de utilidade
destroi seus concorrentes ou se os supera pela própria impossibilidade
intrínseca desses mesmos princípios. Ele argumenta que todo princípio
possível é tão somente uma versão do princípio de utilidade. Nesse sentido, o
princípio de utilidade seria preferível sobre todos os demais. Pitkin argumenta
que a posição de Bentham consiste em flutuar expandindo e contraindo o
significado dos termos. Pois, se todos os princípios são formulações do
princípio de utilidade não há como preferir esse mesmo princípio. Para resolver
esse impasse, Bentham teria introduzido, então, a idéia de que os demais
princípios seriam formas incorretas de aplicar o princípio de utilidade.(idem,
ibidem, p. 110).
Uma segunda parte do argumento de Pitikin consiste num exame detalhado de
uma série de conceitos que teriam sido alegadamente utilizados de forma
ambígua por Bentham em seu livro 'An Introduction to the Principles of Morals
and Legislation'. Assim, Bentham é acusado de ser ambíguo sobre o sentido
que teria atribuído ao conceito de 'felicidade da comunidade'. Contudo, o ponto
alto do argumento de Pitikin consiste na alegação de que:"Em 'Introduction'
pode ser encontrado um conjunto complexamente interrelacionado de
ambiguidades, nenhuma das quais é reconhecida como problemática por
Bentham. Nós podemos destacar: (1) a relação entre necessidade eventual,
moralidade individual, legislação correta e prudência; (2) 'ações de indivíduos
particulares' contra 'medidas de governo'; (3) felicidade ou interesse individual
contra felicidade ou interesse coletivos; (4) e felicidade aparente antecipada
contra felicidade atual experimentada. Falando matematicamente, as
ambiguidades listadas somam 32 combinações diferentes".(idem, ibidem,
p.113) De igual forma, Pitkin problematiza os conceitos de 'legislação' e
'educação, procurando evidenciar suas alegadas ambiguidades.
Pitkin conclui seu argumento afirmando que uma inspeção rigorosa da forma
como Bentham constroi sua teoria revela que ela padece de uma destruidora
ambiguidade nos conceitos. Como consequência disso, o esforço de Bentham
em produzir uma teoria sistemática fracassa, pois que, ele não fornece um
princípio consistente. Bentham não é acusado de ser um autor inconsistente ou
contraditório. Ele é acusado por Pitikin de algo muito mais devastador. Pitikin
investe contra Bentham acusando-o de ser, de tal forma ambíguo, de ser
'escorregadio' em tal proporção que, nem mesmo a tensão implicada na
87
inconsistência e na contradição dos conceitos pode ser identificada em seu
pensamento. Na opinião de Pitkin:"... Este é o segredo da irritante qualidade e
da longevidade de sua teoria: sua capacidade de ser (quase) todas as coisas
para (quase) todas as pessoas, ela emerge intacta das críticas ordinárias,
sempre pronta para ser 'aplicada' novamente. O seu caráter escorregadio
pode ser uma das razões pelas quais Bentham foi incapaz de terminar
qualquer obra".(idem, ibidem, p. 127)
Não se pretende discutir todos os detalhes do argumento apresentado por
Pitkin em sua crítica a Bentham. Contudo, de uma forma geral, não parece
razoável aceitar, em todas as suas implicações o ponto central que ela
pretende fazer passar. Assim, concluir que Bentham tenha fracassado em
produzir uma versão significativa e coerente do Utilitarismo seria concluir
avançando além das premissas. Ademais, há que se ponderar se a estratégia
argumentativa empregada por Pitkin não vai de encontro à sugestão de
fornecida por Popper no texto de abertura do presente trabalho. Argumentar
contra uma teoria alegando mal uso de expressões, ou dubiedade de sentido é
uma estratégia demasiadamente fácil. Essa estratégia de argumentação beira
à tão deplorada discussão sobre palavras. Certamente que dela não pode se
seguir uma consequência do calibre da alegação de que um pensador do porte
de Bentham teria fracassado simplesmente porque foi ambíguo em suas
expressões.
É certo que o poder das idéias de Bentham constitui parte dos motivos que
teriam gerado a fúria de seus ilustres 'críticos'. Segundo Hanna Pitkin algumas
das idéias de Bentham tornaram-se nossos pressupostos comuns até um ponto
que se pode afirmar que elas teriam triunfado dentro de cada um de nós. Ela
afirma: "Se acontecesse de Bentham retornar hoje, ele certamente ficaria
contente com a extensão de seu triunfo, a influência de suas invenções,
reformas, vocabulário, o prestígio que contemporaneamente desfruta o
utilitarismo e seus derivados: a teoria da escolha pública, a teoria da escolha
racional, a teoria dos jogos e a teoria da análise de custo e benefício". (idem,
ibidem, p.105) O que parece irritar mais um certo tipo de crítico de Bentham é
que suas invectivas não parecem suficientes para desacreditar os
pressupostos de inspiração benthamiana que estariam dentro de cada um de
nós.
Bentham parece ter sido aquilo que imaginamos que pode resultar da mistura
de filosofia, inventividade e loucura. Um indivíduo com um profundo treino no
88
trato com abstrações, ao ponto de ser capaz de pensar num único princípio
suficiente para identificar o curso de ação correto em cada situação em que o
ser humano viesse a se envolver. Ele tinha a pretensão de chegar a construção
de um sistema completo de legislação positiva partindo da formulação do
princípio de utilidade. Idealizou o sistema 'panopticon' que se constituia em um
modelo arquitetônico e administrativo que atendesse às finalidades de estritas
economia e fiscalização. O sistema 'Panopticon' seria aplicável, em particular, a
todas as instituições onde fosse necessário atuar sobre o comportamento de
determinadas pessoas. Bentham foi ainda um gênio brilhantemente inventivo.
Construiu utencílios tais como um telefone primitivo, um sistema de
aquecimento central para residências, um sistema para identificar dinheiro
falso, uma geladeira. Inventou palavras novas tais como 'internacional',
'maximizar', 'minimizar', 'codificar', 'desmoralizar', 'deontologia', 'falsa
consciência'. Sua excentricidade, contudo, sugere que Bentham esteve a um
passo da loucura. Sua compulsão pelo trabalho fez dele uma pessoa que
escrevia cerca de 15 páginas todos os dias durante a parte produtiva de seus
84 anos. Um certo senso de humor morbido lhe permitia brincar com o horror
que sentiam seus interlocutores quando lhes colocava nas mãos os olhos de
vidro que haveriam de ornar a caveira de Bentham após o embalsamamento.
Deixou marcada a sua propensão em ultrapassar os limites da sanidade
quando determinou em testamento que seus despojos fossem preservados sob
a forma de "auto-ícone".
O que se pretende aqui sugerir é que a mescla de ingredientes filosóficos com
inventividade prática e laivos de excentricidade que parecem constituir as
características do acervo de contribuições de Bentham para o patrimônio
cultural da humanidade exercem um fascínio inescapável até mesmo sobre
seus mais ferrenhos adversários.
Entretanto, as críticas mais rigorosas que têm sido postas ao pensamento de
Bentham são aquelas construídas pelos acadêmicos convencionais. Essas
críticas, de uma forma ou outra, podem ser resumidas a duas alegações:
1. Bentham teria construído uma abordagem simplista e grosseira das
motivações que levam as pessoas a agir como agentes morais. Ao afirmar
que o único mecanismo que controla a ação das pessoas é a busca do prazer
e a fuga da dor, ele estaria construindo uma teoria que trivializa a estrutura da
intencionalidade humana. Assim, na formulação utilitarista de J. Bentham não
teriam lugar os mais altos ideais da amizade, dignidade, justiça, liberdade,
89
patriotismo, fraternidade, amor materno. Nesse sentido, a ética benthamiana
não comportaria os ideais dos atletas, dos herois, dos santos, dos mártires,
nem de masoquistas. Aquilo que essas críticas alegam é em parte procedente.
Assim, parece razoável afirmar que Bentham não vê sentido para os supostos
ideais éticos dotados de valor moral em sí mesmos. Somente tem valor moral
aquilo que produz o bem estar do ser humano. Contudo, alegar que a visão de
Bentham corresponde a uma visão simplista das motivações humanas é
desconsiderar o trabalho de identificação e classificação que ele realiza em
suas obras. Ele chega a sugerir uma teoria das motivações que levasse em
consideração sete variáveis capazes de identificar a moralidade das ações.
Nesse sentido a crítica não procede.
2. Uma segunda crítica consiste em afirmar que Bentham teria construído uma
teoria da moral que pressupõe que se possa medir o incomensurável e
comparar o incomparável. Nesse sentido, a teoria de Bentham seria
construída sobre o pressuposto de que, antes de cada ação em toda situação
de ação possível, o agente moral pode calcular a utilidade interpessoal de cada
ação e de cada norma descritiva de cada ação. Segundo essa crítica, esse
cálculo interpessoal de utilidade é impossível, posto que a utilidade em termos
de prazer e de dor não é mensurável nem quantificável. Essa crítica, contudo,
não se sustenta. Primeiramente, porque Bentham não tem uma teoria ingênua
sobre o cálculo do valor da moralidade das ações e regras. Assim, ele não
pensa que seja esperado que cada pessoa faça o cálculo do prazer e da dor
implicados na ação em particular. A conduta moral não é precedida pela
elaboração do cálculo antes de cada julgamento moral, ou de qualquer
instância de ação. Os ideais morais são sinalizados por práticas e regras que
são expressas em discurso que tem a forma de agenda, ou seja, existem
princípios secundários e terciários que indicam como se pode efetivar
praticamente os primeiros princípios, e até mesmo o princípio de utilidade.
Existem autênticas 'regras de polegar' sinalizando em que direção se deve agir,
no sentido de avançar em busca do procedimento exigido pelo cálculo de uma
certa aritmética moral a mais rigorosa possível.
É certo, contudo, que as críticas dos acadêmicos convencionais têm apontado
um caminho seguro para as pesquisas sobre o utilitarismo de inspiração
benthamiana. Há um ponto em que essas críticas estão cobertas de razão.
Esse ponto concerne à inexistência de dois ferramentais indispensáveis ao
caráter prático da teoria utilitarista em sua formulação clássica. Primeiramente,
o utilitarismo carece de uma fisiologia do prazer e da dor. Muitas das críticas
que se fazem ao utilitarismo perderiam sua eficácia com a apresentação de um
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constructo especulativo que descrevesse os mecanismos pelos quais as
pessoas sentem prazer ou dor. Essa teoria das sensações descreveria as
condições de percepção do prazer e da dor humanas de tal forma que se
pudesse construir um referencial para a classificação e comparação dos
diferentes prazeres e dores. Em segundo lugar, o utilitarismo de inspiração
benthamiana carece de um instrumental matemático que forneça uma
aritmética capaz de permitir as operações necessárias para comparação de
diferentes indicadores de prazer e dor. Nesse sentido o utilitarismo carece de
uma teoria matemática que possibilite cálculo moral com a precisão capaz de
possibilitar a tomada de decisões.
Importa que se destaque, contudo, que nenhuma teoria moral tem tido sucesso
em indicar precisamente o que as pessoas devem fazer em todas as diferentes
situações. Aquelas teorias que têm sido eficazes em apontar com precisão qual
a regra a ser seguida, têm conseguido isto à custa de concessões ao
irracionalismo. Outras, renunciando totalmente à pretensão de racionalidade,
chegaram ao extremo de alegar que o sentido da vida não pode ser dado pela
dimensão racional do ser humano. Isto certamente significa afirmar que as
ações humanas não tem sentido. O que, aliás é um truismo. Contudo o fato é
que nós podemos dar um sentido racional à vida e ao agir humano. E nisto
consiste a moral. O que parece ser a meta das teorias morais é servirem de
instrumentos racionais que permitam aproximações de modelos ideais de
conduta. Nesse sentido, as teorias morais são julgadas em função do sucesso
que podem produzir nessas aproximações. O que isto parece indicar é que,
nem mesmo as teorias que se constroem a partir de descrições fisiológicas ou
cálculos morais são instrumentos capazes de garantir respostas definitivas
para as justificações que somos capazes de construir para nossos juízos
morais. Contudo, exigir que as éticas sejam capazes de dar conta de produzir
respostas definitivas para nossas indagações morais é ir mais longe do que o
estado atual as nossas investigações especulativas sobre o tema permite supor
que seria alcançável.
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