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O VIVER COTIDIANO NAS ESTRUTURAS OFICIAIS E O CARNAVALISMO
COMO ALTERNATIVA DAS PERSONAGENS DO “AUTO DA BARCA DO
INFERNO”
João Gustavo Veríssimo dos Santos1 Lucas Fruzeri Bortoti2
Lucas Bondarenko Pereira da Silva3
Resumo: O presente trabalho tem como objetivo abordar a forma com que o cotidiano de Portugal no inicio do século XVI foi representado por Gil Vicente no Auto da Barca
do Inferno (1517). Nesta peça teatral apresentada para a corte portuguesa Gil Vicente empreendeu uma critica aos costumes vigentes no período buscando uma moralização
nos moldes cristãos. Para além deste objetivo religioso do dramaturgo, o Auto da Barca do Inferno nos oferece um rico panorama sobre as mudanças estruturais no que tange
à politica e à economia que estavam assolando Portugal desde fins da Idade Média e agora ganhando um poderoso catalizador com os descobrimentos. Neste momento de
metamorfoses profundas Gil Vicente construiu sua critica de forma que ela abrangesse desde as classes sociais mais baixas até as mais altas, nos dando desta forma pistas
sobre o cotidiano dos portugueses do inicio do século XVI, que é aqui nosso objeto de análise.
Palavras–chave: Gil Vicente, Auto da Barca do Inferno, cotidiano.
A crítica social que Gil Vicente faz no Auto da Barca do Inferno nos remete a um
mundo constituído na tensão entre as antigas estruturas feudais agonizantes e o
surgimento de novas formas de organização politica e econômica. Apesar destas
abruptas mudanças e da vertiginosa mobilidade social subsequente, a cultura
continuava a ser imposta por instituições como o Estado, agora com o poder mais
centralizado no monarca, e a Igreja a despeito da crise na qual estava imersa.
Antes de adentrar na questão da cultura popular como alternativa a esta
imposição cultural julgo necessário extrair das personagens do Auto da Barca do
Inferno indícios sobre o viver dentro das estruturas oficiais no inicio do século XVI em
Portugal. Em se tratando do poder estatal a Justiça aparece de forma marcante na
1 Pós-Graduando de Especialização em Religiões e Religiosidades pela Universidade Estadual de Londrina
(UEL). Graduado em História pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). 2 Graduando em História pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). 3 Graduando em História pela Universidade Estadual de Londrina (UEL).
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peça caricaturada nas personagens do Procurador e do Corregedor e se estendendo a
outras. Quando o Corregedor encontra Brízida Vaz no interior da barca infernal se
desenrola o seguinte diálogo:
Cor: Oh! Esteis muitieremá, senhora Brízida Vaz! Bri: Já siquer estou em paz, Que não me leixáveis lá. Cada hora sentenciada: “Justiça que manda fazer...” Cor: E vós... tornar a tecer e udir outra meada Bri: Dizede, juiz d’alçada: Vem lá Pero de Lixbõa? Levá-lo-emos à toa e irá nesta barcada. (VICENTE, 1998, p.65.).
O Corregedor conhecia Brízida Vaz e fala da má situação na qual ela se
encontrava, a alcoviteira refuta dizendo que ali, mesmo estando a meio caminho para
o inferno, tinha mais paz do que em vida na qual a justiça viva a lhe fustigar. Na
sequencia o funcionário da justiça diz que ela esta tramando mais uma intriga e desta
vez Brizida rebate perguntando se um escrivão da Corte esta vindo para também ser
levado ao inferno. Fica claro que há uma tensão entre Brízida Vaz, e tu do que sua
personagem representa, e a Justiça encarnada na figura do Corregedor apesar dos
seus desvios de conduta. Em uma passagem anterior para tentar embarcar para o
paraíso a alcoviteira diz:
Eu sô ua mártela tal, açoutes tenho levados e tormentos suportados que ninguém me foi igual. (VICENTE, 1998, p.54.)
Brízida Vaz comenta as punições que sofreu em vida, suas atividades ligadas à
prostituição frequentemente a levavam a ser açoitada a mando da justiça visto que a
prostituição era proibida. Apesar de sofrer castigos físicos sempre reincidia no seu
crime e devido a isto vivia uma vida de tormentos e instabilidade. As atribulações do
viver de Brízida podem ser vistas quando ela anuncia a carga que trás até o submundo:
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Bri: Seiscentos virgos postiços e três arcas de feitiços que nom podem mais levar. Três armários de mentir e cinco cofres de enlheos e alguns furtos alheos assi em jóias de vestir, guarda-roupa d’encobrir, enfim – casa movediça um estrado de cortiça com dous coxins d’encobrir. (VICENTE, 1998, p.53.)
Dentro das estruturas oficiais defendidas pelo aparato judiciário Brízida vivia
das práticas sexuais alheias visto que era uma alcoviteira. Os objetos que a alcoviteira
trás, em sua grande maioria alegórica, remetem às práticas de sua profissão e da vida
na ilegalidade dentro dela.
Os virgos postiços eram para a restituição do hímen das garotas que vendia ao
passo que as arcas de feitiço estabelecem uma ligação de Brízida com a bruxaria. Os
furtos, encobrir, mentir eram ações comuns em sua vida para enganar seus clientes, na
maioria clérigos, e aumentar sua margem de lucro. Casa movediça significa que a
alcoviteira não tinha endereço fixo visto a perseguição que sofria demonstrando assim
sua instabilidade.
O fato de possuir joias que é curioso, podemos atribuir isto a duas deduções, ou
que as havia comprado com os lucros de suas atividades ou que as havia ganhado de
alguém de alta patente. Quanto aos enlheos podem ser definidos como enredos, ou
seja, histórias nas quais se envolveu na sua atribulada vida entre suas práticas e as
instituições oficiais.
Apesar de toda a corrupção e hipocrisia que Gil Vicente mostra da justiça de seu
tempo no Auto da Barca do Inferno fica claro que ela funcionava como defensora de
costumes impostos pelas instituições oficiais, neste caso do poder monárquico, e
punia quem tentava contra elas. Esta conclusão pode parecer muito óbvia, mas se
compararmos este aparato jurídico que se mostra no Auto da Barca do Inferno com a
justiça medieval logo perceberemos uma brusca mudança.
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No Auto da Barca do Inferno Gil Vicente trás em cena o Corregedor que tinha
como responsabilidade fiscalizar outros juízes, trás também o Procurador que era um
advogado do Estado e ainda fala da existência de escrivães. Na esfera das punições
temos os açoites, o enforcamento, o pelourinho e a prisão do Limoeiro que era um
presidio do Estado.
Além disso, tanto o Corregedor quanto o Procurador sempre falam em latim,
que era uma linguagem típica no sistema judiciário, falam do Degredo que é uma
referência ao Decretum de Graciano que era um livro de direito e ainda são citados os
beleguins que eram a força policial do rei. O foco de Gil Vicente na peça é satirizar a
dissolução da justiça, mas da peça podemos extrair que apesar da corrupção a justiça
estava muito mais organizada do que sob o feudalismo. Marc Bloch sobre a justiça na
Idade Média coloca:
Logo ao primeiro exame, alguns traços, que dominavam superiormente o detalhe jurídico, ressaltam num vivo relevo. Em primeiro lugar, o prodigioso retalhamento dos poderes judiciários, e também, o seu entrelaçamento. Finalmente a sua ridícula eficácia. Numerosas cortes eram chamadas a resolver, a par, as mais graves questões. (BLOCH,2009, p.414.)
Mais a diante, ainda sobre a justiça medieval, Bloch trás a importante
informação:
Nesta sociedade que tinha multiplicado as relações de dependência, qualquer chefe – e Deus sabe como eles eram numerosos – desejava ser um juiz. Pois só o direito de julgar permitia conservar eficazmente no dever, os subordinados e, enquanto impedia que eles se deixassem submeter a sentenças de tribunais estranhos, fornecia a maneira mais segura de os proteger e os dominar, ao mesmo tempo. Pois este direito era essencialmente lucrativo. (BLOCH, 2009 p.415.)
Em contraponto com a justiça organizada e integrada ao poder real que temos
no Auto da Barca do Inferno, Bloch nos mostra uma justiça ineficaz fragmentada entre
os senhores que a viam como meio para garantir o poder. E não estavam errados. Os
funcionários da justiça representados na peça agindo sob a jus majestatis e com a
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proteção dos beleguins são um indicio de que parte importante da centralização do
poder monárquico na Portugal do inicio do século XVI era o domínio sobre a justiça.
Outra personagem que esbarrou na justiça foi o Enforcado, aprisionado no
Limoeiro e em seguida condenado à morte por enforcamento esta personagem é
ainda uma incógnita. Provavelmente a figura do Enforcado está ligada a algum
acontecimento contemporâneo de Gil Vicente que para a plateia da época tinha algum
significado. Mas apesar das dúvidas podemos identificar indícios do viver e da tentativa
de burlar as estruturas oficiais. Em dado momento o Enforcado diz:
Enforcado: Oh! Nom praza a Barrabás! Se Garcia Moniz diz que os que morrem como eu fiz são livres de Satanás... (VICENTE, 1998, p.66.)
Tanto neste verso como em outras partes do dialogo que se desenrola entre o
Enforcado e Diabo não da para se saber ao certo o motivo do enforcamento. O nome
de Garcia de Moniz, que era uma figura importante da Corte, sempre surge como um
sujeito que encheu o condenado de promessas de santidade e salvação. Neste sentido
podemos interpretar que Moniz usou o Enforcado de alguma forma para fins
criminosos para preservar assim seu status de cortesão e não ter que se explicar à
justiça.
A forma com que Gil Vicente constrói e coloca em cena seus tipos sociais
demonstra a tensão em que viviam os homens e mulheres da primeira metade do
século XVI em Portugal. Por um lado encantados com a possibilidade de ascender
socialmente devido à economia monetária, mas por outro tendo que agir conforme os
preceitos do Estado e da Igreja. Uma das figuras que demonstra bem esta tensão é o
sapateiro de nome Joane Antão que em um dos versos é atacado pelo Diabo:
Dia: E tu morreste excomungado: nom o quiseste dizer. Esperavas de viver; calaste dous mil enganos Tu roubaste bem trint’anos o povo com teu mester. (VICENTE, 1998, p.44-45.)
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Este ataque do Diabo se da como resposta ao argumento de defesa do
Sapateiro que dizia que em vida havia se confessado e comungado. O Diabo então diz
que esses atos não tinham valor, pois o fato de ter roubado o povo durante trinta anos
com sua profissão havia sido ocultado na confissão. A vida do sapateiro se desenrolav a
entre a prática corrupta de seu oficio e obrigações com a Igreja, pois além de se
confessar e comungar assistia missas, dava ofertas para a Igreja e rezava pelos mortos.
Sobre este fenômeno Maria Leonor Garcia da Cruz coloca:
Perante o arrais das duas embarcações dos “autos das barcas”, muitos argumentam em seu favor as orações rezadas, a assistência a missas e pregações, a participação em romarias. Verificamos, contudo, que ou o Diabo ou o Anjo lhes contrapõe frequentemente o facto de tais manifestações não terem correspondido aos seus verdadeiros sentimentos de humildade ou contrição, não terem sido sinceras, dada a conduta desonesta que continuavam a praticar antes e depois do culto. (CRUZ, 1990, p.163.)
Para além da postura de Gil Vicente de defensor da moralidade cristã que Cruz
ilustra é perceptível a todo o momento nas personagens do Auto da Barca do Inferno a
dita tensão entre o lucro e os costumes e tradições religiosas da Igreja Católica. Sobre
Joane Antão ainda podemos colocar o fato de que como sendo uma personagem que
tipifica o comércio era vista com desconfiança por Gil Vicente, pois este era apologista
da formação feudal, e qualquer oficio que fugisse dessa lógica denotava algo de
malicioso.
Outra atitude condenada no Auto da Barca do Inferno é a usura, tida como a
venda do tempo devido aos juros impostos por ela em cima dos valores emprestados,
esta é representada pelo Onzeneiro que entra em cena carregando um bolsão e já
sendo saudado pelo Diabo: “Dia: Oh! Que má-hora venhais, onzeneiro, meu parente!
(VICENTE, 1998, p.37.). E ainda quando o Onzeneiro pede ao Anjo para ir ao Paraiso
este diz:
Pois cant’eu mui fora estou de te levar para lá. Essa barca que lá está vai pera quem te enganou. (VICENTE, 1998, p.38.).
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O mal que Gil Vicente, assim como as autoridades eclesiásticas, enxerga na
usura aqui é algo claro, o próprio Diabo trata o Onzeneiro por meu parente, e o Anjo se
recusa a levar o dito agiota para a salvação devido a seu ato de enganar as pessoas em
vida com seus juros. Diferente das outras personagens que tentam se agarrar em
orações para se salvar o Onzeneiro é representado de uma forma vazia de cristandade
e entregue completamente à cobiça e ao dinheiro que quer usar para embarcar para o
céu. As tensões entre a Igreja e os usurários aconteciam desde a Idade Média:
A usura é um dos grandes problemas do século XIII. Nesta data, a Cristandade, no auge na vigorosa expansão que empreendia desde o Ano Mil, gloriosa, já se vê em perigo. O impulso e a difusão da economia monetária ameaçavam os velhos valores cristãos. Um novo sistema econômico esta prestes a se formar, o capitalismo, que para se desenvolver necessita senão de novas técnicas, ao menos de uso massivo de práticas condenadas desde sempre pela Igreja. Uma luta encarniçada, cotidiana, assinalada por proibições repetidas, articuladas a valores e mentalidades, tem como objetivo a legitimação do lucro licito que é preciso distinguir da usura ilícita. Como uma religião que opões tradicionalmente Deus e o dinheiro, poderia justificar a riqueza, sobretudo a riqueza mal adquirida? (LE GOFF, 2004, p.6.)
Le Goff nos traz nesta passagem a tensão entre a usura e os valores cristãos no
século XIII que fica mais intensa na medida em que a economia capitalista avança,
quanto ao Onzeneiro representado por Gil Vicente no Auto da Barca do Inferno nos
mostra que este choque estava mais evidente devido ao fato de que na primeira
metade do século XVI, como já foi dito, a economia monetária já estava bem difundida
e dinamizada na sociedade portuguesa e desta forma usura se expandia contrariando a
Igreja.
Vimos até aqui o que é possível perceber sobre a imposição cultural por parte
das instituições oficiais no século XVI a partir do Auto da Barca do Inferno e como elas
interferiam no cotidiano das personagens, cabe agora analisar cenas da peça que
apresentem a cultura provinda das classes populares. Quando o Corregedor e o
Procurador se dirigem à barca do Anjo para solicitar a entrada Joane, o parvo, diz:
Joane. Hou, homens dos breviairos, rapinastis coelhorum
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et pernisperdiguitorum e mijais nos campanairos! (VICENTE, 1998, p.64.)
O Parvo se dirige aos poderosos funcionários da Justiça de maneira debochada
e grosseira, fazendo uso de um latim repleto de erros ele acusa os ditos funcionários
de se corromperem em troca de coelhos e pernas de perdizes. Em um verso posterior
Joane ainda diz: Beleguinis ubi sunt? Esta é uma provocação que significa onde estão os
policiais? Diferente de outras personagens que vivam em um jogo “diplomático” entre
suas práticas cotidianas e a presença do poder oficial Joane bate de frente com este.
Quando Frei Babriel um membro do clero e da Corte, portanto muito poderoso, estava
a se exibir com suas habilidades de esgrima o Parvo diz: “Joa: Andar, muitieremá!/
Furtaste o trinchão, frade?” (VICENTE, 1998, p.52.).
O Frade é zombado pela má situação na qual se encontra e é questionado se
roubou a espada com a qual se exibia demonstrando assim a atitude rebelde e
renitente de Joane em relação a ele. Sobre a rebeldia com as formas de autoridade
Paul Teyssier coloca:
O reino da ordem e da harmonia, porém, tem excepções. A Idade Média tinha institucionalizado em toda a Europa manifestações em que se exprimiam a negação, a recusa das disciplinas e das regras. Era o caso do Carnaval, da “festa dos loucos”, da “festa do burro”, das “soties”. Essas manifestações obedeciam a uma corrente muito antiga de alegria popular, irrespeitosa e folgazã. (TEYSSIER, 1982, p.158.)
O Parvo do Auto da Barca do Inferno personifica então uma cultura rebelde que
não se restringiu somente a ritos, mas que também penetrou nas mais variadas
expressões cotidianas incluindo a literatura e consequentemente o teatro de Gil
Vicente. Mikhail Bakhtin coloca como raiz desta cultura popular especificamente o
carnaval. Sobre esta cultura popular carnavalizada diz:
O mundo infinito de formas e manifestações do riso opunha-se à cultura oficial, ao tom sério religioso e feudal da época. Dentro de sua diversidade, essas formas e manifestações – as festas públicas carnavalescas, os ritos e cultos cômicos especiais, os bufões e tolos, gigantes, anões e monstros, palhaços de diversos estilos e categorias, a literatura paródica, vasta e multiforme, etc.- possuem uma unidade
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de estilo e constituem partes e parcelas da cultura cômica popular, principalmente da cultura carnavalesca, una e indivisível. (BAKHTIN, 2013, p.3-5).
Levando em conta as colocações de Bakhtin podemos enquadrar o Parvo ainda
como um bufão devido ao fato de ser um tolo e possuir traços de comicidade
reforçando assim todo o carnavalismo inerente à sua figura. Analisando o conceito de
cultura popular carnavalesca Paul Teyssier diz que “A grosseria, a obscenidade e a
escatologia tornam-se nela alegres [...]” e com base nesta ideia podemos estabelecer
mais conexões com o Auto da Barca do Inferno. Ao fazer uma suplica pedindo para o
Anjo colocar suas formas no interior da barca o Sapateiro diz:
Ora eu me maravilho haverdes por grão pejilho quatro forminhas cagadas que podem ir i chantadas num cantinho desse leito! (VICENTE, 1998, p.46.)
O sapateiro Joane Antão se diz maravilhado com a dificuldade imposta pelo
Anjo para colocar na barca as formas que usava em seu oficio, mas ao usar a palavra
cagadas está sendo grosseiro com uma figura cristã que denota um conjunto de ideias
ligadas à seriedade e santidade fazendo saltar aos nossos olhos aqui um pequeno
traço de carnavalismo enraizado em sua linguagem popular. O linguajar grosseiro é
uma frequente também no próprio Parvo durante toda a peça, em um trecho de um
ataque que faz contra o Diabo diz:
Hiu! Hiu! Lanço-te ua pulha! Dê-dê! Pica naquela. Hump! Hump! Caga na vela! Hio, cabeça de grulha! Perna de cigarra velha, caganita de coelha, pelourinho da Pampulha! Mija n’agulha, mija n’agulha! (VICENTE, 1998, p.43.).
O linguajar que o Parvo emprega para atacar o Diabo é repleto das ditas
grosserias e ainda obscenidades, alguns dizeres são até incompreensíveis em virtude
de sua personagem ser um tolo completamente impulsivo e sem qualquer traço de
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racionalidade. O escárnio estabelecido na ligação entre as grosserias e sujidades,
apesar de constituir um ataque, tem toda uma leveza devido ao conteúdo cômico e
carnavalizado típico da cultura popular.
Além da linguagem popular outro fator que aparece no Auto da Barca do Inferno
como sintoma da cultura carnavalizada e integra a comicidade da obra é a paródia. O
Auto da Barca do Inferno em si já é uma paródia do juízo final, mas ainda tem em seu
interior o caso interessante da paródia que é feita do Diabo. Sobre o Diabo, Jean
Delumeau coloca:
A emergência da modernidade em nossa Europa ocidental foi acompanhada de um inacreditável medo do diabo. A Renascença herdava seguramente conceitos e imagens demoníacos que se haviam definido e multiplicado no decorrer da Idade Média. Mas conferiu-lhes uma coerência, um relevo e uma difusão jamais atingidos anteriormente. (DELUMEAU, 2009, p.239.)
Delumeau nos mostra uma sociedade em que o temor em torno do diabo era
tão grande que se materializou por meio das mais variadas expressões culturais.
Delumeau ainda acrescenta: “Essa obsessão ganha duas formas essenciais, ambas
refletidas pela iconografia: um alucinante conjunto de imagens infernais e a ideia fixa
das incontáveis armadilhas e tentações que o grande sedutor não cessa de inventar
para perder os humanos.” (DELUMEAU, 2009, p.240) Em contraste com esta criatura
aterradora provinda do imaginário medieval, Gil Vicente nos trás um diabo debochado
que por meio da ironia despe as personagens condenadas de qualquer argumento ou
tentativa de salvação plausível. Na primeira cena este fala: “Dia: À barca, à barca,
houlá!/ Que temos gentil maré!” (VICENTE, 1998, p.29.).
Em meio aos preparativos que faz para zarpar do porto e desembarcar no
inferno, o Diabo de forma animada convoca as pessoas para sua barca. Sua fala não
denota toda a dor e sofrimento que aguarda os embarcados, mas sim o fato da maré
estar boa. As falas do Diabo no Auto da Barca do Inferno não são carregadas de
ameaças e maldade, como era de se esperar de um ser tão temível, sendo ele uma
paródia é carregado de comicidade em seus dizeres. Quando o Sapateiro entra em
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cena ele diz: “Dia: Quem vem i?/ - Santo sapateiro honrado!/ Como vens tão carregado?”
(VICENTE, 1998, p.44.).
Esta pequena fala é carregada de ironias, começando por tratar o sapateiro por santo e
honrado, algo que ele estava longe de ser. O fato de o Sapateiro ter roubado por meio
de seu oficio é tratado pelo Diabo de forma sarcástica e a este desvio de conduta se
soma o fato de que o sapato era um objeto desvalorizado e podendo até ser usado
como insulto (BOMFIM, 2008, p.106) demonstrando dessa forma a incompatibilidade
do adjetivo honrado com o Sapateiro e tudo que ele representa.
O Diabo então se utiliza de uma nova ironia, desta vez em torno do duplo
sentido da palavra carregado que significa tanto as formas que o Sapateiro trás quanto
a grande quantidade de pecados que este possuía. Durante a peça são múltiplos os
gracejos do Diabo como quando ele trata Frei Babriel por padre marido por este ter
como mulher Florença apesar de ser clérigo, ou ainda quando chama o Corregedor de
descorregedor devido às más praticas deste em seu oficio. Sendo assim esta paródia da
figura do Diabo contrariando a visão oficial sobre o dito ser está ligada diretamente ao
carnavalismo.
Então se no Auto da Barca do Inferno faz-se perceber a imposição cultural e os
limites estabelecidos pela Igreja e pelo Estado também é possível notar, a partir dos
trechos analisados, a rebeldia da cultura popular carnavalizada e a forma que em
oposição à vida oficial ela formava também uma vida em si mesma. Sobre esta
dualidade cultural Bakhtin diz:
Todos esses ritos e espetáculos organizados à maneira cômica apresentavam uma diferença notável, uma diferença de princípio, poderíamos dizer, em relação às formas do culto e às cerimônias oficiais sérias da Igreja e do Estado feudal. Ofereciam uma visão do mundo, do homem e das relações humanas totalmente diferente, deliberadamente não-oficial, exterior à Igreja e ao Estado; pareciam ter construído, ao lado do mundo oficial, um segundo mundo e uma segunda vida aos quais os homens e mulheres da Idade Média pertenciam em maior ou menor proporção, e nos quais eles viviam em ocasiões determinadas. (BAKHTIN, 2013, p.5)
Apesar de na peça esta dualidade ser bem presente não podemos classifica-la
como algo fixo e indissolúvel, pois “[...] temos, por um lado, dicotomia cultural, mas
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por outro, circularidade, influxo recíproco entre cultura subalterna e cultura
hegemônica, particularmente intensa na primeira metade do século XVI.” (GINZBURG,
2006, p.15.).
O próprio Auto da Barca do Inferno é uma amostra de circularidade cultural no
inicio do século XVI em Portugal. Em uma espécie de prefácio temos escrito:
Auto de Moralidade composto per Gil Vicente por contemplação à sereníssima e muito católica rainha dona Lionor, nossa senhora, e representado per seu mandado ao poderoso príncipe e mui alto rei dom Manuel, primeiro de Portugal deste nome. (VICENTE, 1998, p.27.)
Esta peça foi apresentada diante do rei e da rainha de Portugal, e não devemos
nos esquecer de que esta era uma Corte muito ligada ao catolicismo, como o próprio
Gil Vicente o era. Sendo assim, Gil Vicente, que era integrado à Corte e baseava sua
forma de arte nos pressupostos católicos, apresentou uma peça carregada de cultura
popular carnavalizada para representantes do poder oficial. Desta forma ao mesmo
tempo em que a cultura hegemônica era disseminada entre as massas, a cultura
popular também era transmitida para as classes dominantes.
É muito dificultoso demonstrar a circularidade cultural a partir das personagens
tendo em vista que grande parte das vezes elas são trazidas em cena de forma
individual, se tornando assim pouco perceptível as trocas culturais. Apesar disto o Auto
da Barca do Inferno, como já foi trabalhado no capitulo anterior, deixa transparecer o
fenômeno da mobilidade social e consequentemente o maior contato entre os grupos
sociais do século XVI em Portugal criando condições para o fluxo cultural.
Então fatos como o Onzeneiro emprestar dinheiro para o fidalgo decadente,
Brízida Vaz ser fustigada pela Justiça, o Corregedor receber peitas (subornos) de
judeus, o Enforcado fazer acordos com Garcia de Muniz, o Judeu clamar pelo poder de
Dom Anrique, e outros tantos mais, nos indicam que neste período, em virtude da
mobilidade social, os grupos sociais estavam em constante contato facilitando assim o
“influxo reciproco entre a cultura subalterna e a cultura hegemônica” como coloca
Ginzburg.
Tzvetan Todorov, em uma de suas análises literárias, trás sua definição de o que
é uma personagem: “[...] a personagem é uma história virtual que é a história de sua
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vida. Toda nova personagem significa uma nova intriga. Estamos no reino dos homens-
narrativas.” (TODOROV, 2008, p.123.).
Levando em conta que a partir das personagens do Auto da Barca do Inferno foi
possível detectar fatores políticos, econômicos e culturais, nada mais justo do que
encaixa-las no conceito de homem-narrativa cunhado por Todorov. Não só uma
psicologia fechada em si mesma, não só a pura e simples ação, antes de tudo as
personagens do Auto da Barca do Inferno são história, e não só sua história, mas a
história do cotidiano do inicio do século XVI em Portugal.
Referências
BAKHTIN, Mikhail. Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: O contexto de
François Rabelais. São Paulo: Editora Hucitec, 2013.
BLOCH, Marc. A Sociedade Medieval. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2009.
BOMFIM, Eneida. Traje e Aparência nos Autos de Gil Vicente. Rio de Janeiro: Editora
PUC-Rio, 2008.
CRUZ, L.G.Maria. Gil Vicente e a Sociedade Portuguesa de Quinhentos . Lisboa.
Gradiva, Edição 1990.
DELUMEAU, Jean. História do Medo no Ocidente: 1300 – 1800. São Paulo: Companhia
das Letras, 1996.
GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: O cotidiano e as ideias de um moleiro
perseguido pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
HUIZINGA, Johan. O Outono na Idade Média. São Paulo: Cosac Naify, 2010.
LE GOFF, Jacques. A bolsa e a vida: economia e religião na Idade Média São Paulo:
Brasiliense, 2004.
TODOROV, Tzvetan. As Estruturas Narrativas. São Paulo: Perspectiva, 2004.
TEYSSIER, Paul. Gil Vicente – O Autor e a Obra. Lisboa: Biblioteca Breve, 1982.