Post on 25-Sep-2020
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
DENIS DOMINGUES HERMIDA
OS SISTEMAS “AUTOMATIC VEHICLE
LOCATION” E O CONTROLE DE JORNADA
DE TRABALHO DO MOTORISTA
RODOVIÁRIO: MUTAÇÃO NORMATIVA DO
ARTIGO 62, I, DA CLT
Tese apresentada à banca examinadora da
Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo como exigência parcial para
obtenção do título de Doutor em Direito
das Relações Sociais, sob a orientação do
Professor Doutor Pedro Paulo Teixeira
Manus
SÃO PAULO
2012
Nome: HERMIDA, Denis Domingues.
Título: Os Sistemas “Automatic Vehicle Location” e o Controle de Jornada de
Trabalho do Motorista Rodoviário: Mutação Normativa do Artigo 62, I, da CLT.
Tese apresentada à banca examinadora da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo como exigência parcial
para obtenção do título de Doutor em Direito das Relações
Sociais, sob a orientação do Professor Doutor Pedro Paulo
Teixeira Manus.
Aprovado em: 10 de agosto de 2012.
Banca Examinadora:
Prof. Dr. Pedro Paulo Teixeira Manus Instituição: PUC/SP
Julgamento: ______________________ Assinatura:______________________
Profa. Dra. Carla Teresa Martins Romar Instituição: PUC/SP
Julgamento: ______________________ Assinatura:______________________
Prof. Dr. Paulo Sérgio João Instituição: PUC/SP
Julgamento: ______________________ Assinatura:______________________
Prof. Dr. Domingos Sávio Zainaghi Instituição: UNIFIEO
Julgamento: ______________________ Assinatura:______________________
Prof. Dr. Raimundo Simão de Melo Instituição: FDSBC
Julgamento: ______________________ Assinatura:______________________
Dedico esta tese, que é produto da
essência do meu ser, a Alzira Henrique
Pinto, Manoel Alves Pinto e Manuel
Hermida Fernandes, espíritos de luz que
iluminam os caminhos da minha vida,
exemplos de amor, de fé, de abnegação e
de vida.
Agradeço aos meus pais, Manoel
Roberto e Maria Regina, e ao meu irmão,
Michel, por toda a atenção, material e
moral, a mim dispensada durante os
longos períodos de estudo e em todos os
momentos da minha vida.
Agradeço à Thatiane, fiel
companheira e amada, pela paciência e
compreensão.
Agradeço à Giovanna, minha filha,
que, ainda em tenra idade, soube
instintivamente compreender a ausência
do pai nos momentos de estudo e reflexão.
Agradeço a orientação do Professor
Doutor Pedro Paulo Teixeira Manus.
V
RESUMO
As tecnologias fundadas em dispositivos móveis, redes telemáticas sem fio e
sensores geraram mudança no regime de visibilidade, que é a forma como os
indivíduos vêem e são vistos na sociedade. Atualmente, o regime de visibilidade
baseia-se não exclusivamente no espaço físico ou nos limites de alcance do olho
humano, mas também no espaço informacional, que é denominado “espaço
ampliado” e conceituado como representações, sob a forma de imagens, sons e
até mesmo de sensações táteis, de uma realidade que natural e fisicamente seria
distante do cidadão comum, permitindo ao indivíduo não só ter efetivo acesso a
essa realidade, como também com ela interagir. O regime de visibilidade é um
valor cultuado pela sociedade em realidades factuais que se apresentam e,
portanto, faz parte da experiência jurídica, devendo, frente à “eticidade”, incidir
sobre os fatos normados quando da construção da norma jurídica. A mudança,
numa sociedade, do regime de visibilidade é capaz de gerar mutação normativa,
entendida como modificação do conteúdo de uma norma jurídica apesar da
manutenção do enunciado prescritivo (texto legislativo), especialmente naquelas
normas jurídicas cujos elementos constitutivos baseiam-se na visibilidade. Os
sistemas “Automatic Vehicle Location” são resultado de uma montagem de
tecnologias e equipamentos que permitem o conhecimento da posição de um
determinado veículo, bem como a realização de operações associadas, como a
transmissão de informações disponíveis a bordo, sendo que o atual estado da
técnica de tais sistemas permite aos seus usuários o acesso a informações
fidedignas com alto grau de precisão e em tempo real, proporcionando ao seu
gestor um “espaço ampliado” do ambiente de trabalho, que extrapola em muito o
limitado território físico da sede da empresa e é ilimitado, acompanhando o
deslocamento do veículo e de seu condutor, bem como revelando o
comportamento do condutor no transcurso da atividade laboral externa. Através
dos sistemas “Automatic Vehicle Location” disponíveis no mercado brasileiro é
absolutamente possível ao empregador controlar a freqüência, o cumprimento de
ordens e a qualidade do serviço do empregado-motorista rodoviário com
atividade eminentemente externa, não mais se justificando o afastamento do
direito a horas extras à essa categoria de empregados sob o fundamento de
enquadramento no inciso I do artigo 62 da CLT. Tem-se, pois, que a mudança no
regime de visibilidade gerou mutação na norma jurídica construída a partir do
inciso I do artigo 62 da CLT.
Palavras-chave: tecnologia; regime de visibilidade; mutação normativa;
Automatic Vehicle Location; trabalho externo; horas extras.
VI
ABSTRACT
Technologies based on mobile devices, telematics wireless networks and sensors
have given rise to changes in the regime of visibility which is the way people see
and are seen in society. At present the regime of visibility is based not only on
the physical space or on the limits of human vision, but also on cyber space, the
so-called “enlarged space”. The concept of “enlarged space” includes
representations in the form of images, sounds and even tactile sensations relating
to a reality that may be physically far from the individual. Despite the physical
distance, the enlarged space allows individuals not only to have access to this
reality but also to interact with it. The regime of visibility is a value appreciated
by society in factual realities and therefore is part of the juridical experience and it
should, in the light of 'ethicity', govern normatized facts when the legal norm is
construed. Changes in the regime of visibility in a society may give rise to a
change in the norm, which is to be understood as a change in the content of a
norm despite the fact that the statute (the legal text) may remain unchanged. This
is so especially for those legal rules which constitutive elements are based on
visibility. Automatic Vehicle Location systems are an assembly of technologies
and pieces of equipment which allow the position of a vehicle to be known.
These systems also allow related operations to take place such as transmission of
information available on board, and at their current stage, these systems also
allow their users to have access to reliable and highly accurate information in real
time. The systems’ managers therefore have access to an “enlarged space” of the
work environment which goes well beyond the limited physical space of the
company’s headquarters. This new space is limitless and managers are able to
monitor the vehicle and the driver as they travel, and to monitor the driver’s
behavior during work activities outside the headquarters. The Automatic Vehicle
Location systems available in the Brazilian market allow employers to control
the work hours, compliance with orders and the quality of service of driver
employees who work on the road. It is no longer justifiable to rule out the right to
overtime pay of this type of employees based on Item I of Article 62 of CLT,
Consolidation of Labor Laws. The change in the regime of visibility has given
rise to a change in the legal norm construed based on Item I of Article 62 of
CLT, Consolidation of Labor Laws.
Keywords: technology; regime of visibility; norm change; Automatic Vehicle
Location; external work; overtime.
VII
RESUMEN
Las tecnologías fundamentadas en dispositivos móviles, redes telemáticas
inalámbricas y sensores produjeron cambios en el régimen de visibilidad, que es
la manera como los individuos ven y son vistos en la sociedad. Actualmente, el
régimen de visibilidad no se basa exclusivamente en el espacio físico ni en los
límites de alcance del ojo humano, sino también en el espacio informativo, que se
denomina “espacio ampliado” y se conceptualiza como representaciones, bajo la
forma de imágenes, sonidos e incluso de sensaciones táctiles, de una realidad que
de forma natural y física estaría distante del ciudadano común, permitiendo al
individuo no solo tener un efectivo acceso a dicha realidad, como también
interactuar con ella. El régimen de visibilidad es un valor estimado por la
sociedad en realidades factuales que se presentan y, por lo tanto, forma parte de
la experiencia jurídica y debe, ante la “eticidad”, incidir sobre los hechos
normados al construirse la norma jurídica. El cambio, en una sociedad, del
régimen de visibilidad es capaz de generar mutación normativa, entendida como
modificación del contenido de una norma jurídica a pesar del mantenimiento del
enunciado prescriptivo (texto legislativo), especialmente en las normas jurídicas
cuyos elementos constitutivos se basan en la visibilidad. Los sistemas
“Automatic Vehicle Location” son el resultado de un montaje de tecnologías y
equipos que permiten conocer la posición de un determinado vehículo, así como
realizar operaciones asociadas, como la transmisión de informaciones disponibles
a bordo. El actual estado de la técnica de dichos sistemas permite a sus usuarios
acceder a informaciones fidedignas con alto nivel de precisión y en tiempo real,
proporcionando a su gestor un “espacio ampliado” del entorno laboral, que
excede con creces el limitado territorio físico de la sede de la empresa y es
ilimitado, siguiendo el desplazamiento del vehículo y de su conductor y también
revelando el comportamiento del conductor en el transcurso de la actividad
laboral externa. A través de los sistemas “Automatic Vehicle Location”
disponibles en el mercado brasileño, es totalmente posible que el empleador
controle la asistencia, el cumplimiento de órdenes y la calidad del servicio del
empleado-conductor de carreteras con actividad eminentemente externa, por lo
que ya no se justifica la supresión del derecho a horas extraordinarias para esta
categoría de empleados bajo el fundamento de que se enmarca en el inciso I del
artículo 62 de la CLT (Consolidación de las Leyes del Trabajo), ley laboral
brasileña. Tenemos entonces que el cambio en el régimen de visibilidad generó
una mutación en la norma jurídica construida con base en el inciso I del artículo
62 de la CLT.
Palabras clave: tecnología; régimen de visibilidad; mutación normativa;
Automatic Vehicle Location; trabajo externo; horas extraordinarias.
VIII
LISTA DE SIGLAS
AVL - Automatic Vehicle Location
CF/88 - Constituição Federal de 1988
CLT - Consolidação das Leis dos Trabalho
CONTRAN - Conselho Nacional de Trânsito
DGPS - Differential Global Positioning System
GIS - Geographic Information System
GNSS - Global Navigation Satellite Systems
GPRS - General packet radio service
GSM - Global System for Mobile Communications ou Groupe Special Mobile
IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
IGS - International Geodynamics GPS Service
ITS - Inteligent Transportation Systems
LEO - Low Earth Orbit
OIT - Organização Internacional do Trabalho
RBMC - Rede Brasileira de Monitoramento Contínuo
SCA - Sistemas de Control Ativo
SIG - Sistema de Informações Geográficas
TI - Tecnologia da Informação
TIC - Tecnologia da Informação e da Comunicação
IX
SUMÁRIO
Introdução
Capítulo I – Interpretação e mutação normativa
1 Norma jurídica. Conceito e estrutura
2 Interpretação jurídica. Conceito e características
2.1 Os princípios como valores condutores da interpretação jurídica
2.2 A interpretação constitucional e seus princípios
2.3 As peculiaridades da interpretação de enunciados de natureza trabalhista
2.3.1 O princípio do protecionismo
2.3.1.1 A regra in dubio pro operario
2.3.1.2 A regra da norma mais favorável ao trabalhador
2.3.1.3 A regra da condição mais benéfica ao trabalhador
2.4 A interpretação dos direitos fundamentais
2.4.1 Conceito e espécies de Direitos Fundamentais
2.4.2 As normas jurídicas de Direito do Trabalho como Direitos
Fundamentais de 2ª Geração
2.4.3 A interpretação dos enunciados prescritivos introdutores de Direitos
Fundamentais
3. A Teoria Tridimensional do Direito de Miguel Reale e o fenômeno da mutação
normativa
3.1 O ambiente temporal de desenvolvimento da Teoria Tridimensional do
Direito
3.2 As espécies de Tridimensionalidade do Direito
3.2.1 A Tridimensionalidade genérica e abstrata do Direito
3.2.2 A Tridimensionalidade específica
3.3 As características da Tridimensionalidade do Direito de Miguel Reale
X
3.4 A “Eticidade” como reflexo da Teoria Tridimensional do Direito de
Miguel Reale
3.4.1 Análise semântica do termo “Eticidade”
3.4.2 A polissemia da palavra “Ética”
3.4.3 A definição de ética para Miguel Reale
3.4.3.1 Conduta e valor
3.4.3.2 Fins e categorias do agir
3.4.3.3 Momentos da conduta
3.4.3.4 Especificidade da conduta ética
3.4.3.5 Modalidades de conduta
3.4.4 O conceito e a aplicação de “Eticidade” em Miguel Reale
3.4.5 A Eticidade como instrumento de mutação normativa
4 Conclusões parciais
Capítulo II- O poder fiscalizatório do Empregador e as novas tecnologias de
vigilância
1 O Poder Empregatício
1.1 Conceito e características do Poder Empregatício
1.2 Natureza jurídica do Poder Empregatício
2 Espaço Ampliado. Conceito e características
3 O regime de visibilidade como “valor” e “fonte” de “mutação normativa”
4 Conclusões parciais
Capítulo III – Os sistemas “Automatic Vehicle Location”(AVL)
1 Os sistemas precursores do AVL
2 Conceito de AVL
XI
3 As partes componentes de um sistema AVL
3.1 Módulo “Banco de Dados de Mapa Digital”
3.2 Módulo de Posicionamento
3.2.1 Técnicas de posicionamento
3.2.1.1 GPS. Conceito e funcionamento
3.2.1.1.1 As observáveis GPS:características, erros e soluções
a) Erros relacionados aos satélites
b) Erros relacionados à propagação do sinal
c) Erros relacionados com o receptor e a antena
d) Erros e correções relacionados com a estação
3.2.1.1.2 Tipos de posicionamento
a) Posicionamento absoluto
b) Posicionamento relativo
c) Posicionamento diferencial
3.2.1.2 Outros sistemas globais de navegação por satélite
3.3 Módulo de “Planejamento de rota”
3.3.1 Conceitos de software e de hardware
3.3.2 Sistemática de um módulo de planejamento de rota
3.4 Módulo “Map Matching”
3.5 Módulo “Orientação de rota”
3.6 Módulo de “Comunicação sem fio”
3.6.1 Telemática. Conceito e desenvolvimento
3.6.1.1 Comunicação celular. Conceito, evolução e atual estado da
técnica
3.6.1.2 Comunicação através de satélite
3.7 Módulo de interface homem-máquina
3.8 Os sensores
XII
4 Espécies de sistemas AVL
4.1 Sistema AVL passivo
4.2 Sistema AVL ativo
4.3 Sistema AVL híbrido
5 Os equipamentos embarcados necessários ao funcionamento do sistema AVL
6 Características práticas dos sistemas “Automatic Vehicle Location”
6.1 Introdução
6.2 Perguntas a serem respondidas através da observação direta intensiva
6.3 Dados colhidos durante a operação
6.4 Das conclusões obtidas através da operação
7 Os sistemas AVL e o controle de paradas do veículo
Capítulo IV- A mutação normativa do artigo 62, I, da CLT em função
da mudança de regime de visibilidade
1 O contrato de trabalho e a jornada laboral
1.1 A Lei 12.619/12 e a jornada de trabalho do motorista rodoviário
2 Análise histórica do enunciado prescritivo constante do artigo 62 da CLT
3 A elasticidade semântica do enunciado contido no artigo 62, I, da CLT e
as hipóteses interpretativas
4 Da relação entre a norma jurídica oriunda do artigo 62, I, da CLT e os
Direitos Fundamentais contidos no artigo 7º, IX e XVI, da Constituição
Federal
5 Das hipóteses interpretativas do artigo 62, I, da CLT frente ao princípio
in dubio pro operario
XIII
6 Da natureza jurídica do poder empregatício e a interpretação do artigo
62, I, da CLT
7 Aplicação do princípio da unidade do Direito Positivo
7.1 Os “Valores Sociais do Trabalho” e a “Dignidade da Pessoa
Humana” como fundamentos da República Federativa do Brasil e,
consequentemente, das normas jurídicas vigentes
7.1.1 A Dignidade da Pessoa Humana
7.1.2 Os “Valores Sociais do Trabalho” e a “Valorização do
Trabalho Humano”
7.2 A inexistência de exceção constitucional expressa aos termos do
artigo 7º, XVI, da Constituição Federal além da hipótese do parágrafo
único do mesmo artigo 7º
8 O atual regime de visibilidade e a sua influência na interpretação do
inciso I do artigo 62 da CLT
9 A Lei 12.551/2011 e a incorporação expressa do novo regime de
visibilidade ao contrato de trabalho
9.1 A Convenção 177 da OIT e as normas internacionais de regulação do
trabalho à distância
9.2 A modificação do artigo 6º da Consolidação das Leis do Trabalho
pela Lei 12.551/2011
a) Do enquadramento do “trabalho realizado à distância” dentre as
formas de prestação laboral na relação de emprego que se
equiparam
b) A introdução formal da tecnologia de transmissão de dados à
distância como instrumento de exercício do poder empregatício
10 Dos contornos constitucionais do princípio da livre iniciativa e do ônus
do Empregador (contratante de Empregados-Motoristas rodoviários de
atividade externa) de instalar sistemas AVL (Automatic Vehicle
Location) nos veículos de sua frota
Conclusão
XIV
Bibliografia
Apêndice
Apêndice A – Técnicas de posicionamento de objetos e pessoas
Apêndice B- Técnicas de calibração de antenas GPS
Apêndice C – Outros “Sistemas Globais de Navegação por Satélite”
Apêndice D – A evolução da técnica de comunicação celular
Apêndice E – Erros relacionados à propagação dos sinais no sistema GPS
Anexo
Anexo A - Resolução no. 330/2009 do CONTRAN
Anexo B - Resolução no. 111/2011 do CONTRAN
Índice
1
INTRODUÇÃO
O presente estudo tem como foco os efeitos dos sistemas AVL (do inglês
Automatic Vehicle Location), mais conhecidos no Brasil como sistemas de
rastreamento e de monitoramento de frotas de veículos, na aplicabilidade do disposto
no artigo 62, I, da CLT aos motoristas rodoviários que desempenham atividade
eminentemente externa. A pesquisa é realizada dentro dos contornos da ciência do
direito, buscando-se, no entanto, em outras áreas da ciência, em especial na física, na
geografia e na tecnologia da informação e da comunicação (TIC), subsídios capazes de
contribuir para a demonstração de que a evolução tecnológica, principalmente nos
sistemas de rastreamento via satélite, na telemática e nos softwares desenvolvidos para
gerenciamento de frotas de veículos, gerou modificação na aplicação da regra do
artigo 62, I, da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) na atividade laboral dos
motoristas rodoviários.
Concentra-se a pesquisa no direito positivo brasileiro no momento atual,
início da segunda década do século XXI, em que a tecnologia da informação e da
comunicação (TIC) instrumentalizada pelos sistemas de posicionamento global e pelos
softwares de rastreamento e gerenciamento de frotas, constituindo os sistemas AVL,
transforma as formas de fiscalização e de controle das atividades externas realizadas
pelos motoristas rodoviários.
Mais especificamente, serão abordados os efeitos da atual tecnologia de
rastreamento e monitoramento de veículos (“Automatic Vehicle Location”) na relação
jurídica de emprego (entendida como espécie do gênero relação do trabalho e
correspondente à prestação de serviço subordinado por uma determinada pessoa, tendo
como características a habitualidade e a pessoalidade da prestação laboral, bem como a
onerosidade – fixada pela percepção de remuneração pelo empregado paga pelo
empregador-) do motorista rodoviário com prestação de serviço eminentemente
externa em relação à sede do empregador.
2
Não há na doutrina jurídica brasileira a produção de trabalho científico
debruçando-se especificamente sobre os efeitos dos sistemas AVL na compatibilização
do labor externo de motoristas rodoviários com controle de jornada, daí a originalidade
da pesquisa realizada. Acrescente-se que não há consenso na jurisprudência de nossos
Tribunais acerca da possibilidade de controle da jornada de trabalho de motoristas
rodoviários com atividades eminentemente externas através de sistemas AVL para fins
de enquadramento no artigo 62, I, da CLT, como se verifica, por exemplo, das ementas
de jurisprudência abaixo transcritas:
“MOTORISTA DE CARRETA - TRABALHO EXTERNO -
MONITORAMENTO VIA SATÉLITE (GPS) - HORAS EXTRAS
NÃO DEVIDAS. Via de regra, o motorista de carreta que realiza
trabalho externo não faz jus a horas extras, salvo quando demonstrado
o efetivo controle de sua jornada de trabalho pelo empregador. A
simples utilização de equipamento eletrônico de localização via
satélite pelo empregador não demonstra, por si só, a ocorrência de
controle de jornada, uma vez que não comprova o efetivo labor nos
períodos computados no equipamento, sendo que, no mesmo sentido,
a indicação de sua paralisação não pode ser entendida como descanso.
O localizador GPS visa a garantir a segurança do motorista, da carga
transportada e do veículo contra furtos e roubos, no caso de desvio de
rota, nesta época de tantos assaltos a caminhões e caminhoneiros.”
TRT da 3ª Região, processo 00056-2009-071-03-00-1 RO, 3ª Turma,
Rel. Convocado Danilo Siqueira de Castro Faria, Rev. Bolívar Viégas
Peixoto, publicado em 21/09/2009
“HORAS EXTRAS. MOTORISTA CARRETEIRO. ART.62, I, DA
CLT. ATIVIDADE EXTERNA. FIXAÇÃO DE HORÁRIO. O art.
62, I, da CLT exclui do regime de duração do trabalho previsto no
Capítulo II os empregados que exercem atividade externa
incompatível com a fixação de horário. Na hipótese, o conjunto
probatório, sistema de monitoramento via satélite, não serve como
elemento a confirmar a fiscalização de horários mencionados pelo
reclamante, não estando enquadrado na exceção do artigo citado.
Recurso não provido.”
TRT da 4ª Região, Processo 0035600-91.2009.5.04.0661, 7ª Turma,
Rel. Beatriz Zoratto Sanvicente, publicado em 06/10/2010
3
“MOTORISTA DE CARRETA. TRABALHO EXTERNO.
SUJEIÇÃO A CONTROLE DE HORÁRIO. HORAS EXTRAS.
Jornada de trabalho do reclamante, ainda que externa, que era passível
de fiscalização pelo empregador, em razão do rastreamento dos
deslocamentos através de satélite, tacógrafo e controle de chegadas e
saídas. Norma inserta no artigo 62, inciso I, consolidado que não se
aplica ao caso. Recurso provido para acrescer à condenação o
pagamento horas extras, com reflexos.”
TRT da 4ª Região, 1ª Turma, Processo 0106600-89.2008.5.04.0402
(RO), Rel. Ana Luiza Heineck Kruse, participaram do julgamento
Ione Salin Gonçalves e André Reverbel Fernandes, julgamento em
09/09/2010
MOTORISTA. JORNADA EXTERNA CONTROLADA. Tendo o
Regional consignado que a empresa dispunha de mecanismos de
controle da jornada do Reclamante (relatórios de viagem para
posterior prestação de contas, rastreamento do veículo por GPS, além
de tacógrafo), não há como, ante o quadro fático delineado pelo
Regional, afastar a conclusão de que o Reclamante sofria controle
sobre sua jornada de trabalho, ainda que de forma indireta. Esta Corte
já definiu o exato alcance da OJ 332 da SBDI-1 do TST, ao afirmar,
por reiterados precedentes, que não se presume o controle de jornada
pelo simples uso do tacógrafo, desacompanhado de outros elementos,
mas que, evidenciada a presença de mecanismos indiretos de controle
aliados ao tacógrafo, considera-se compatível o controle de jornada
com a função de motorista carreteiro. Recurso de revista conhecido e
provido.
TST, RR - 2100940-76.2002.5.09.0006, Relator Ministro: Márcio
Eurico Vitral Amaro, Data de Julgamento: 10/11/2010, 8ª Turma,
Data de Publicação: 12/11/2010
No que tange ao problema, objetiva-se responder à seguinte pergunta: As
tecnologias GPS e de comunicação celular, juntamente com softwares de
gerenciamento de frota, constituindo sistemas AVL (Automatic Vehicle Location),
tornam “compatíveis com o controle de jornada” as atividades externas exercidas por
motoristas rodoviários, afastando dessas atividades o alcance da norma contida no
artigo 62, I, da CLT?
Para solução, levantam-se duas hipóteses, quais sejam:
a) Sim, o sistema de posicionamento global em combinação com comunicação celular
e softwares de gerenciamento de frota, constituindo sistemas AVL, torna “compatíveis
4
com o controle de jornada” as atividades externas exercidas por motoristas
rodoviários, afastando dessas atividades o alcance da norma contida no artigo 62, I, da
CLT. A “compatibilidade com controle de jornada” não exige a presença física do
empregado aos olhos do Empregador ou preposto seu, mas tão somente a existência de
mecanismo que confira ao Empregador a certeza do efetivo exercício da atividade
laboral pelo Empregado durante um determinado período de tempo, sendo capaz de se
fixarem os momentos de inicio e de término diários das atividades realizadas, bem
como os eventuais intervalos realizados. A circunstância desse mecanismo se basear
em dados transmitidos via web (rede mundial de computadores) não afasta a sua
idoneidade, a certeza de veracidade das informações apresentadas.
b) Não, o sistema de posicionamento global em combinação com comunicação celular
e softwares de gerenciamento de frota, constituindo sistemas AVL, não torna
“compatíveis com o controle de jornada” as atividades externas exercidas por
motoristas rodoviários, não afastando dessas atividades o alcance da norma contida no
artigo 62, I, da CLT. Para que haja compatibilidade com controle de jornada e o não
enquadramento da atividade laboral externa exercida pelos motoristas rodoviários,
necessário é que haja a presença física (perceptível a olho nu) do Empregado no
transcorrer da jornada laboral diária, permitindo-se física, naturalmente a constatação
da presença do Empregado no transcurso da jornada laboral, o que não é oferecido
pelo sistema de posicionamento global em combinação com softwares de rastreamento
de frota, limitando-se referido sistema à apresentação ao Empregador de imagem ou
dados virtuais acerca dos momentos de inicio e de término diários das atividades
realizadas, bem como os eventuais intervalos realizados.
Buscamos demonstrar a veracidade da hipótese “a” acima apontada,
apresentando argumentos jurídicos capazes de convencer o leitor, desenvolvendo
raciocínio científico organizado nos seguintes pontos:
- No Capítulo I apresentaremos as bases necessárias ao procedimento de interpretação
do artigo 62, I, da CLT, partindo dos conceitos de norma jurídica e interpretação
5
jurídica e alcançando temas como os princípios informativos da hermenêutica jurídica,
a influência do “valor” na construção da norma jurídica frente aos termos da Teoria
Tridimensional do Direito e, finalmente, o conceito de mutação normativa.
- No capítulo II, abordaremos os efeitos das inovações tecnológicas no Direito, mais
especificamente dissertando como as inovações tecnológicas, modificando a realidade
que é normatizada pelo direito, influenciam a construção da norma jurídica, seja na
produção legislativa, seja na interpretação dos textos legislativos já postos, como
também no exercício do poder empregatício;
- No capítulo III, introduziremos conhecimentos a respeito do sistema “AVL”
(Automatic Vehicle Location), apresentando o seu conceito, as suas espécies,
abordando cada uma das tecnologias (sistema GPS, comunicação celular e softwares
de gerenciamento de frota) que, juntas, permitem a existência do AVL na forma como
se encontra atualmente, e apresentando os principais sistema AVL disponíveis no
mercado brasileiro. Também nesse capítulo, apresentaremos pesquisa destinada a
demonstrar, na prática, o funcionamento dos sistemas AVL, objetivando, por fim,
responder às seguintes perguntas: O sistema permite, de forma fidedigna e precisa, a
localização, a qualquer momento, do veículo monitorado com o efetivo controle do
cumprimento de rota pré-determinada? O sistema viabiliza a verificação da identidade
do condutor em quaisquer dos momentos da operação? O sistema permite ao gestor do
sistema manter comunicação com o condutor objetivando a transmissão de ordens? O
sistema possibilita, de forma objetiva, a verificação do cumprimento das ordens
impostas pelo gestor do sistema ao condutor do veículo?
- Finalmente, será, no capítulo IV, abordado o conteúdo do inciso I do artigo 62 da
CLT, buscando-se as suas diversas possibilidades interpretativas, constituindo um
leque de hipóteses interpretativas que serão confrontadas com as características do
labor do empregado motorista rodoviário e a possibilidade de controle da jornada de
6
trabalho através de sistemas AVL quando, então, encontraremos resposta ao problema
central levantado na presente tese.
Em razão dos limites fixados à presente pesquisa entendemos como
dispensável, para o alcance da solução do problema apresentado, a abordagem
alimentada pelo direito comparado, não se justificando a simples inclusão de tal
abordagem pelo simples caráter de curiosidade não vinculado à efetiva solução do
problema objeto da pesquisa.
Verdadeiro é que a literatura nacional é bastante diminuta em relação à
abordagem técnica das evoluções tecnológicas que servem de base de análise desta
tese, daí a necessidade de se ter buscado obras estrangeiras em especial descritivas de
sistemas GPS e de sistemas AVL. Tal situação se explica pelo fato de tais sistemas,
apesar de já existentes há décadas em países evoluídos, como nos Estados Unidos da
América, somente no início dos anos 2000 passaram a ser utilizados no Brasil, sempre
baseados em tecnologias desenvolvidas por países estrangeiros. É de se exemplificar
com o fato de que, já em 1981, Edward Skomal publicava, nos Estados Unidos da
América, obra intitulada “Automatic Vehicle Location Systems” tratando da
composição dos sistemas AVL, ainda que à época indisponível fosse, à comunidade
em geral, a tecnologia GPS (que revolucionou a funcionalidade de tais sistemas). Em
1997, Zhao Yilin publicava na Inglaterra a obra “Vehicle Location and Navigation
System”, tratando do tema AVL pormenorizadamente, inclusive sob o manto da
tecnologia “Global Positioning System”(GPS). No Brasil, da pesquisa bibliográfica
realizada, verificou-se que somente em 2009 fora publicada obra que tratasse do tema,
o que foi feito por Alfredo Pereira de Queiroz Filho, Carlos Eduardo Cugnasca e
Marcos Rodrigues com a obra Rastreamento de Veículos1.
1 RODRIGUES. Marcos et alli. Rastreamento de Veículos. São Paulo: Editora Oficina de Textos, 2009.
7
Capítulo I – INTERPRETAÇÃO E MUTAÇÃO NORMATIVA
A mutação normativa é fenômeno jurídico produto da interpretação
jurídica. A compreensão de como a interpretação jurídica é capaz de produzir a
mutação normativa e, mais especificamente, o processo que consolida a modificação
normativa do artigo 62, I, da CLT frente às novas técnicas de vigilância permitidas
pelo atual estado das tecnologias de rastreamento de objetos e pessoas, e de
transmissão de dados, que é o efetivo objeto desta tese, impõe prévias reflexões a
respeito não só da estrutura das normas jurídicas, como também em relação ao
conteúdo da interpretação jurídica e a relação entre a “eticidade”, procedimento
inerente à visão fenomenológica do Direito sob o enfoque da Teoria Tridimensional do
Direito de Miguel Reale, e a modificação do conteúdo da norma jurídica sem a
alteração do seu respectivo enunciado prescritivo (texto de lei).
1 Norma jurídica. Conceito e Estrutura
Num Estado dirigido pelo princípio da legalidade (inciso II do art. 5º da
Constituição Federal), realiza-se o Direito quando se aplica, a um caso concreto, uma
norma jurídica, que é produto de interpretação de enunciados prescritivos,
interpretação essa que leva em consideração os valores adotados pela sociedade e
busca a justiça para o caso concreto.
Isto é, no processo de realização do Direito (experiência jurídica) em sua
concretude, têm-se alguns fatores que devem ser harmonizados. Esses fatores devem
ser analisados frente ao fato do Brasil ser, declaradamente, conforme artigo 1º da
Constituição Federal de 1988, um “Estado Democrático de Direito”, classe essa de
Estado que possui nuances específicas que interferem diretamente na composição e na
harmonização dos fatores que instrumentalizam o Direito. Para tal demonstração,
apresentamos o conceito e as características do Estado Democrático de Direito no
Brasil através do magistério de José Afonso da Silva:
8
A configuração do Estado Democrático de Direito não significa
apenas unir formalmente os conceitos de Estado Democrático e
Estado de direito. Consiste, na verdade, na criação de um conceito
novo, que leva em conta os conceitos dos elementos componentes,
mas os supera na medida em que incorpora um componente
revolucionário de transformação do status quo2.
A democracia que o Estado Democrático de Direito realiza há de ser
um processo de convivência social numa sociedade livre, justa e
solidária (art. 3º, II), em que o poder emana do povo, que deve ser
exercido em proveito do povo, diretamente ou por representantes
eleitos (art. 1º, parágrafo único); participativa, porque envolve a
participação crescente do povo no processo decisório e na formação
dos atos de governo pluralista, porque respeita a pluralidade de ideias,
culturas e etnias e pressupõe assim o diálogo entre opiniões e
pensamentos divergentes e a possibilidade de convivência de formas
de organização e interesses diferentes da sociedade; há de ser um
processo de liberação da pessoa humana das formas de opressão que
não depende apenas do reconhecimento formal de certos direitos
individuais, políticos e sociais, mas especialmente da vigência de
condições econômicas suscetíveis de favorecer o seu pleno exercício3.
Dessas palavras podemos extrair que o papel do “Estado Democrático de
Direito” é a preservação da convivência social (possibilitar a vida harmoniosa em
sociedade), numa sociedade livre (não oprimida, livre para cultuar os seus valores) e
justa (como realização da justiça vista na forma exposta por Alcides Telles Júnior
como “adaptação recíproca da pluralidade dos entes, sua conexão e harmonia”4).
O papel da lei no Estado Democrático de Direito também é enfocado por
José Afonso da Silva:
O princípio da legalidade é também um princípio basilar do Estado
Democrático de Direito. É da essência de seu conceito subordinar-se à
Constituição e fundar-se na legalidade democrática. Sujeita-se, como
todo Estado de direito, ao império da lei, mas da lei que realize o
princípio da igualdade e da justiça não pela sua generalidade, mas pela
busca da igualização das condições dos socialmente desiguais. Deve,
pois, ser destacada a relevância da lei no Estado Democrático de
Direito, não apenas quanto ao seu conceito, forma de ato jurídico
abstrato, geral, obrigatório e modificativo da ordem jurídica existente,
mas também à sua função de regulamentação fundamental, produzida
segundo um procedimento constitucional qualificado. A lei é
efetivamente o ato oficial de maior realce na vida política. Ato de
2 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 32ª edição. São Paulo: Malheiros, 2009, p.108.
3 Ibidem, p.108.
4 TELLES JÚNIOR, Alcides. Discurso, Linguagem e Justiça. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1986, p. 33.
9
decisão política por excelência, é por meio dela, enquanto emanada da
atuação da vontade popular, que o poder estatal propicia ao viver
social modos predeterminados de conduta, de maneira que os
membros da sociedade saibam, de antemão, como guiar-se na
realização de seus interesses.5
O instrumento de formação da norma jurídica é exatamente a interpretação,
vista como procedimento de obtenção da significação de um determinado enunciado
prescritivo, a partir da interação entre o instrumento de observação (o texto legal) e a
coisa observada (a situação fática concreta, com todas as suas peculiaridades), tendo
como finalidade a prática do Direito.
A interpretação jurídica é verdadeiro ato de enunciação6, nos moldes
expostos por José Luiz Fiorin7, que realiza a função de harmonizar os instrumentos de
realização do direito em determinado caso concreto, tendo como seu produto
(enunciado) a norma jurídica.
A norma jurídica é o resultado de um processo de harmonização de
fatores(interpretação) e que essa harmonização, para a construção da norma jurídica, é
feita levando em consideração, inclusive, as características do caso concreto em
análise. Isto é, o caso concreto assume um duplo papel passivo, um primeiro de
incidência de valores sociais e da justiça para efeito do alcance da norma jurídica e um
segundo, posterior, de incidência da própria norma jurídica, regulando o
comportamento. Nesse sentido, transcreve-se o magistério de Celso Ribeiro Bastos:
Distinguem-se, claramente, no processo de efetivação da norma
jurídica, dois momentos distintos. Num primeiro momento, tem-se a
seleção da norma aplicável ao caso, dentre as várias potencialmente
incidentes. Num segundo momento, há então sua efetiva aplicação.
5 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 9ª edição. São Paulo: Malheiros, 1994, p. 110.
6 Enunciação é o ato de enunciar, que é a enunciação, é a “colocação do homem na história”, isto é,
temporalizar, especializar e actorizar a linguagem (tempo, espaço e ator como categorias enunciativas) ou, como ensina Benviste, citado por Fiorin, a enunciação é essa colocação em funcionamento da língua por um ato individual de utilização, é o ato de produzir enunciado, “é a instância de mediação, que assegura a discursivização da língua, que permite a passagem da competência à performance, das estruturas semióticas virtuais às estruturas realizadas sob a forma de discurso”. Conforme FIORIN, José Luiz. As astúcias da enunciação. As categorias de pessoa, espaço e tempo. 2ª edição. São Paulo: Editora Ática, 1998, p. 31. 7 FIORIN, José Luiz. As astúcias da enunciação. As categorias de pessoa, espaço e tempo. 2ª edição. São Paulo:
Editora Ática, 1998, p. 31.
10
Contudo, antes desta... é necessário interpretar a regra. E, também, no
processo de seleção da norma aplicável, há um processo
interpretativo, ainda que não seja “exauriente”.8
Passamos, agora, a nos atentar ao processo de incidência da norma jurídica
ao caso concreto, especificamente no sentido de se investigar a estrutura interna da
norma jurídica. Afinal, de que forma a norma jurídica incide ao caso concreto?
Através da implicação existente entre o antecedente e o consequente dessa norma, que
é bem analisada por Lourival Vilanova:
O revestimento verbal das normas jurídicas positivas não obedece a
uma forma padrão. Vertem-se nas peculiaridades de cada idioma e em
estruturas gramaticais variadas. Geralmente, usam o indicativo-
presente ou indicativo-futuro, modo verbal esse que oculta o verbo
propriamente deôntico. O dever-ser transparece no verbo ser
acompanhado de adjetivo participial: “está obrigado”, “está facultado
ou permitido”, “está proibido”(sem falar em outros verbos, como
“poder” no presente ou futuro do indicativo), Transparece, mas não
aparece com evidência normal. É preciso reduzir às últimas
modalidades verbas à estrutura formalizada de linguagem lógica para
se obter a fórmula “se se dá um fato F qualquer, então o sujeito S’”,
deve fazer ou deve omitir ou poder fazer ou omitir conduta C ante
outro sujeito S’’’, que representa o primeiro membro da proposição
jurídica completa.
Como se vê, no interior desta fórmula, destacamos a hipótese e a tese
(ou o pressuposto e a consequência). A estrutura interna desse
primeiro membro da proposição jurídica articula-se em forma lógica
de implicação: a hipótese implica a tese ou o antecedente (em sentido
formal) implica o consequente. A hipótese é o descritor de possível
situação fática do mundo (natural ou social, inclusive), cuja ocorrência
na realidade verifica o descrito na hipótese. Não cabe (...) interpretar a
hipótese como proposição prescritiva(“se alguém morre, deve ser a
sucessão de seus bens”: nada se prescreve na hipótese). É descritiva,
mas sem valor veritativo. Quer dizer, verificado o fato jurídico, no
suporte fático, ou não verificado, a hipótese não adquire valor-de-
verdade. Mas a hipótese da proposição normativa do Direito tem um
valer específico: vale, tem validade jurídica, foi posta consoante
processo previsto no interior do sistema jurídico. (...) Diremos: o
deôntico não reside na hipótese como tal, mas no vínculo entre a
hipótese e a tese. Deve ser o vínculo implicacional. Em outro giro:
deve ser a implicação entre hipótese e tese.9
8 BASTOS, Celso Ribeiro. Hermenêutica e interpretação constitucional. 2ª edição. São Paulo: Celso Bastos Editor:
Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, 1999, p. 46. 9 VILLANOVA, Lourival. As estruturas lógicas e o sistema de Direito Positivo. São Paulo: Max Limonad, 1997, p.
95-96 .
11
Assim, temos que, após a interpretação, encontramos uma estrutura lógica
(que é a própria norma jurídica) composta de dois fragmentos, o antecedente – que
descreve uma situação de fato permitida, proibida ou obrigatória – e o consequente –
que impõe determinado comportamento ou efeito jurídico – sendo que ambos os
fragmentos estão unidos por uma relação de implicação (se acontecer o antecedente,
então deve ser o consequente) gerada pelo modal deôntico genérico “deve ser”. No
interior do consequente (tese) temos a incidência de modal deôntico específico, que
pode ser “é proibido”(V), é “obrigatório”(O) e “é permitido”(P).
Há, assim, esquematicamente, a seguinte estrutura primária:
“D( h c)”10
Chama-se de “estrutura primária” em razão da existência de uma “estrutura
secundária” da norma jurídica, sobre a qual apresentamos as palavras de Villanova:
Seguimos a teoria da estrutura dual da norma jurídica: consta de duas
partes, que se denominam norma primária e norma secundária.
Naquela, estatuem-se as relações deônticas direitos/deveres, como
conseqüência da verificação de pressupostos, fixados na proposição
descritiva de situações fáticas ou situações já juridicamente
qualificadas; nesta, preceituam-se as conseqüências sancionatórias, no
pressuposto do não-cumprimento do estatuído na norma determinante
da conduta juridicamente devida.
(...) O Direito-norma, em sua integralidade constitutiva,
compõe-se de duas partes. Denominemos, em sentido inverso do da
teoria kelseniana, norma primária a que estatui
direitos/deveres(sentido amplo) e norma secundária a que vem em
conseqüência da inobservância da conduta devida, justamente para
sancionar seu inadimplemento (impô-la coativamente ou dar-lhe
conduta substitutiva reparadora). As denominações adjetivas
“primária” e “secundária” não exprimem relações de ordem temporal
ou causal, mas de antecedente lógico para consequente lógico.”11
10
Tal que “D” simboliza o modal deôntico genérico “Deve ser”, “H” a hipótese, “C” o conseqüente e “ ” o conector lógico condicional (que, na linguagem não formalizada, significa “se...., então....”. 11
VILLANOVA, Lourival. As estruturas lógicas e o sistema de Direito Positivo. São Paulo: Max Limonad, 1997, p. 111-112.
12
Finalizando a análise da norma jurídica como “estrutura lógica”,
apresentamos a “fórmula” completa da norma jurídica (primária mais secundária):
“D|{- [D( h c)]12
} -> s13
|”.
O que pretendemos com essa exposição é formar a estrutura conceitual
necessária para o estudo de como a interpretação é capaz de, sem alteração necessária
da estrutura do enunciado prescritivo (texto de lei), realizar a modificação da norma
jurídica, dando origem ao fenômeno da mutação normativa.
2. Interpretação Jurídica. Conceito e Características
Primeiramente, partimos da premissa de que a interpretação não deve ser
realizada tendo como base a visão de Direito como algo abstrato e exclusivamente
sistêmico, como vem sendo feito por grande parte da comunidade jurídica brasileira,
debruçando-se numa normatividade abstrata que gera prejuízos não só ao próprio
Direito, que acaba não cumprindo o seu desiderato, como também, e principalmente, à
sociedade, que não vê o Estado cumprindo o seu papel de “construir uma sociedade
livre, justa e solidária”, com a promoção do “bem de todos” (incisos I e IV do art. 3º
da Constituição Federal). Nesse sentido, importante a transcrição de reflexão realizada
por Lenio Luiz Streck:
Como saber “operacional”, domina no âmbito do campo jurídico o
modelo assentado na idéia de que o processo interpretativo possibilita
que o sujeito (a partir da certeza-de-si-do-pensamento-pensante,
enfim, da subjetividade instauradora do mundo) alcance a
“interpretação correta”, o “exato sentido da norma”, “ o exclusivo
conteúdo/sentido da lei”, “o verdadeiro significado do vocábulo”, “o
real sentido da regra jurídica” etc. Pode-se dizer que o pensamento
dogmático do Direito acredita na possibilidade de que o intérprete
extrai o sentido da norma, como se estivesse contido na própria
norma, enfim, como se fosse possível extrair o sentido-em-si-mesmo.
12
Tal que “D” simboliza o modal deôntico genérico “Deve ser”, “H” a hipótese, “C” o conseqüente e “ ” o conector lógico condicional (que, na linguagem não formalizada, significa “se...., então....”. 13
Tal que “s” simboliza a norma secundária, de conteúdo sancionatório pelo não cumprimento da norma primária, o “-“ simboliza “não”, isto é, o não cumprimento da norma primária “D(h->c)”, o primeiro “D” simboliza o modal deôntico genérico (Deve-ser) que implica o não cumprimento da norma primária à norma secundária.
13
Trabalha, pois, com os textos no plano meramente epistemológico,
olvidando o processo ontológico da compreensão.
(...) é possível afirmar que, explícita ou implicitamente, parcela
expressiva da doutrina brasileira sofre influência da hermenêutica de
cunho objetivista de Emilio Betti, baseada na forma metódica e
disciplinada da compreensão, onde a própria interpretação é fruto de
um processo triplo que parte de uma abordagem objetivo-idealista.
Com isso, a interpretação é um processo reprodutivo, pelo fato de
interiorizar e traduzir para a sua própria linguagem objetificações da
mente, através de uma realidade que é análoga à que originou uma
forma significativa. Assim, a atribuição de sentido e a interpretação
são tratadas separadamente, pois Betti acredita que só isso vai garantir
a objetividade dos resultados da interpretação.14
Nesse ponto da investigação, procuramos responder à pergunta “O que é a
interpretação jurídica?”, no sentido de conhecermos o objeto de nosso estudo, sendo
que um trabalho que aborde a análise de um caso concreto de interpretação não
poderia ser satisfatoriamente desenvolvido sem que, preliminarmente, tivéssemos a
noção do que significa “interpretação jurídica”.
Interessantíssimo que o estudo da interpretação ainda seja tão exíguo na
ciência do Direito. Todos interpretam as leis ou até mesmo a Constituição, mas
pouquíssimos são capazes de afirmar, com bases sólidas, qual o procedimento por eles
utilizado, qual fora a finalidade do procedimento interpretativo e o que se perseguiu
com o trabalho interpretativo. E mais, no trabalho interpretativo, em raras
oportunidades há a reflexão do papel da interpretação na realização do Direito.
A questão que se coloca é: em que incide a interpretação, sobre que objeto
incide o trabalho interpretativo? Interpreta-se o “Direito” ou interpretam-se
“enunciados prescritivos” (entendendo-se “enunciados” como “produto da atividade
psicofísica de enunciação, que se apresenta como um conjunto de fonemas ou de
grafonemas que, obedecendo a regras gramaticais de determinado idioma,
consubstancia a mensagem expedida pelo sujeito emissor para ser recebida pelo
destinatário”15
). Importante, neste ponto, distinguirmos o Direito e as Leis (enunciados
14
STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica – Uma nova crítica do Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002, p.48.
15
CARVALHO, Paulo de Barros. Apostila do curso “Filosofia do Direito I. Lógica Jurídica”, lecionado no Programa de Pós-Graduação da PUC-SP, capítulo II, p. 13.
14
prescritivos) e, com tal objetivo, transcrevemos trechos das lições de Friederich
August Von Hayek:
O Direito, no sentido de normas de conduta aplicadas, é
indubitavelmente tão antigo quanto a sociedade; só a observância de
normas comuns torna possível a existência pacífica de indivíduos em
sociedade. Muito antes que o homem desenvolvesse a linguagem ao
ponto de esta lhe permitir enunciar determinações gerais, um
indivíduo só seria aceito como membro de um grupo na medida em
que se conformasse às suas normas.16
(...) para o homem moderno, por outro lado, a idéia de que toda lei
que governa a ação humana é produto de legislação parece tão óbvia,
que a afirmação de que o Direito é mais antigo que a legislação se lhe
afigura quase paradoxal. No entanto, não pode haver dúvida de que
existiam leis séculos antes de ocorrer ao homem que ele podia fazê-las
ou alterá-las. A idéia de que era capaz disso praticamente não surgiu
antes da era clássica grega; posteriormente desapareceu, ressurgindo
no final da Idade Média, quando gradualmente obteve aceitação mais
geral.17
Se o Direito e a Lei (vista essa num sentido lato, como “enunciado
prescritivo”) não mantêm entre si uma relação de identidade, não podemos deixar de
reconhecer que a “Lei” é adotada pelo sistema jurídico pátrio como o principal
instrumento de prática do Direito, conforme o princípio da legalidade, previsto no
inciso II do artigo 5º da Constituição Federal, in verbis: “ninguém será obrigado a
fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude da lei”.
Assim, desde já fixamos a premissa de que se interpretam os enunciados
prescritivos (leis) e não o Direito!
Se fixamos o objeto sobre o qual incide a interpretação, é importante
traçarmos mais alguns pontos a respeito desses enunciados prescritivos, buscando
sabedoria no magistério de José Luiz Fiorin, para quem:
O primeiro sentido de enunciação é o de ato produtor do enunciado.
Benviste diz que “a enunciação é essa colocação em funcionamento da
língua por um ato individual de utilização”. Ascombre e Ducrot
afirmam que “A enunciação será para nós a atividade linguageira
16
HAYEK, Friederich August Von. Direito, Legislação e Liberdade: uma nova formulação dos princípios liberais de justiça e economia política. São Paulo: Visão, s.d., p. 93.
17
Idem.
15
exercida por aquele que fala no momento que fala. Se a enunciação é a
instância constitutiva do enunciado, ela é a “instância linguística
logicamente pressuposta pela própria existência do enunciado (que
comporta seus traços e suas marcas” (...) O enunciado, por oposição à
enunciação, deve ser concebido como o “estado que ela resulta,
independentemente de suas dimensões sintagmáticas”...
Considerando dessa forma enunciação e enunciado, este comporta
frequentemente elementos que remetem à instância de enunciação: de
um lado, prenomes pessoais, demonstrativos, possessivos, adjetivos e
advérbios apreciativos, dêiticos espaciais e temporais – em síntese,
elementos cuja eliminação produz os chamados textos enuncivos, isto
é, sem nenhuma marca de enunciação; de outro lado, termos que
descrevem a enunciação, enunciados e reportados no enunciado...18
Aplicando os ensinamentos de Fiorin para o nosso objeto de estudo,
necessário termos o conhecimento da existência de um fenômeno de produção
linguística denominado “enunciação”, em que determinado indivíduo através de
trabalho intelectual e físico produz, sob a forma escrita ou falada, enunciados, que são,
em realidade, além de, por óbvio, produtos da enunciação, um conjunto de
signos(fonemas ou grafonemas) que, dispostos sob uma determinada forma (sintaxe),
são capazes de gerar significados (semântica), criando uma mensagem.
Ainda aproveitando as lições do renomado linguísta, o enunciado, sob o
ponto de vista daquele que o recebe (o intérprete), é o suporte físico, do qual se extrai
o significado e a significação com o fim de se obter a mensagem. Sobre a relação entre
suporte físico, significado e significação, transcrevem-se as palavras de Paulo de
Barros Carvalho:
O falar em linguagem remete o pensamento, forçosamente, para o
sentido de outro vocábulo: signo. Como unidade de um sistema que
permite a comunicação inter-humana, signo é um ente que tem o
status lógico de relação. Nele, um suporte físico se associa a um
significado e a uma significação, para aplicarmos a terminologia
husserliana. O suporte físico, da linguagem idiomática, é a palavra
falada (ondas sonoras, que são matéria, provocadas pela
movimentação de nossas cordas vocais, no aparelho fonético) ou a
palavra escrita (depósito de tinta no papel ou de giz na lousa). Esse
18
FIORIN, José Luiz. As astúcias da enunciação: as categorias de pessoa, espaço e tempo. 2ª edição. São Paulo: Editora Ática, 1998, p. 36.
16
dado, que integra a relação sígnica, como o próprio nome indica, tem
natureza física, material. Refere-se a algo do mundo exterior ou
interior, de existência concreta ou imaginária, atual ou passada, que é
seu significado; e suscita em nossa mente uma noção, ideia ou
conceito, que chamamos de significação.19
Isto é, através do contato do receptor20
com o enunciado (código utilizado)
se é capaz de extrair um significado (a “coisa”, de existência concreta ou imaginária, a
que se vincula o signo utilizado no enunciado) e uma significação (que é o conceito, a
noção que é suscitada na mente do receptor da mensagem – intérprete).
Do que já foi apresentado, percebe-se que começamos a tocar na
interpretação através da análise dos signos, do significado e da significação. E nesse
ponto, indaga-se: a interpretação é um ato produtor ou meramente um ato reprodutor?
Ou, utilizando-nos dos termos de Roman Jakobson, a interpretação se identifica com a
“tradução” ou é um fenômeno próprio que, a partir de um enunciado, produz novos
enunciados dirigidos a um determinado fim, no caso, a prática do Direito?
Nicola Abbagnano apresenta dois momentos do significado do termo
“interpretação”, um ligado à “Escolástica Latina”, sob a influência dos ensinamentos
de Aristóteles, e outro vinculado à “Semiótica Americana”, da seguinte forma:
Aristóteles denominou I.21
o livro em que estudou a relação entre os
signos linguísticos e os pensamentos e entre os pensamentos e as
coisas. Ele de fato considerava as palavras como “sinais de afeição da
alma, que são as mesmas para todos e constituem as imagens dos
objetos que são idênticos para todos”, considerando ademais como
sujeito ativo dessa referência a alma ou o intelecto.
Boécio, graças a quem essa doutrina passou para a Escolástica
Latina, entendia por I. os substantivos, os verbos e as preposições, e
excluindo as conjunções, as proposições e em geral os termos
gramaticais, que não significam nada por si mesmos. Para ele,
referência do signo ao que ele designa era o essencial da
interpretação...
Conquanto não falte hoje quem considera a I. um processo mental
(...), a semiótica americana apresentou outra doutrina fundamental da
19
CARVALHO, Paulo de Barros. Apostila do curso “Filosofia do Direito I. Lógica Jurídica”, lecionado no Programa de Pós-Graduação da PUC-SP, capítulo II, p. 12.
20
Estamos utilizando os termos apresentados por Roman Jakobson (em sua obra Linguística e Comunicação, p. 19) como fatores fundamentais da comunicação linguística com seus 4(quatro) elementos: o emissor, o receptor, o tema da mensagem e o código utilizado. 21
Abreviatura de “Interpretação”. Nota nossa.
17
I., que toma como base o comportamento. Os pressupostos dessa
doutrina são encontrados na obra de Pierce, que entendeu a I. como
um processo triádico que se dá entre um signo, seu objeto e seu
interpretante, constituindo este último a relação entre o primeiro e o
segundo termo...22
Nessa maturação de raciocínio, importante a transcrição do pensamento do
linguista russo Roman Jakobson, que diferencia “interpretação” de “tradução”:
É claro que os interpretarei e não serei uma máquina de tradução
que, como o mostrou de modo excelente nosso amigo Y.Bar-Hillel,
não compreende e por conseguinte traduz literalmente. Desde que haja
interpretação, emerge o princípio da complementariedade,
promovendo a interação do instrumento de observação e da coisa
observada.23
Da lição acima, conclui-se claramente que a interpretação, no sentido que se
deve adotar para o Direito (que tem como objeto os comportamentos humanos
intersubjetivos) não é uma mera tradução, não é uma mera enunciação que apresenta,
com signos diversos, o mesmo significado do texto interpretado, mas é um processo
que contém não só a apreensão do significação do enunciado analisado, mas que
possui o efetivo caráter de “complementariedade”, promovendo a adequação do
significado do enunciado ao objeto sob o prisma do qual é procedida à interpretação.
Ora, se desde que haja interpretação, emerge o princípio da
complementariedade, não é difícil afirmar, com convicção, que o resultado da
interpretação não se prende ao exato significado do enunciado analisado, mas,
promovendo a interação do instrumento de observação e da coisa observada, expande
os seus horizontes a uma finalidade, dirigida à coisa que será o “foco” da
interpretação.
Já sob o enfoque eminentemente jurídico, Luís Roberto Barroso afirma que
a interpretação é atividade prática de revelar o conteúdo, o significado e o alcance de
uma norma, tendo por finalidade fazê-la incidir num caso concreto. Tal conceito de
interpretação jurídica apresentado por Barroso é feito sob um contexto em que a
“hermenêutica jurídica é um domínio teórico, especulativo, cujo objeto é a formulação,
o estudo e a sistematização dos princípios e das regras de interpretação do direito” e a
22
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. 4ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 579. 23
JAKOBSON, Nicolla. Linguística e Comunicação. 24ª edição. São Paulo: Editora Cultrix, 2001, p. 19.
18
“aplicação da norma jurídica” é o momento final do processo interpretativo, é a sua
concretização pela efetiva incidência do preceito sobre a realidade de fato24
.
Das simples, porém relevantes, palavras de Barroso, atentamo-nos para a
finalidade da interpretação no Direito, que é fazer incidir num caso concreto a norma
jurídica. Assim, se a interpretação atua promovendo a interação do instrumento de
observação e da coisa observada, temos que, para o direito, o “instrumento de
observação” é o enunciado prescritivo e a “coisa observada” é o caso concreto sob
análise jurídica.
Do todo exposto, concluímos, como nosso conceito de “interpretação
jurídica”, o procedimento de obtenção da significação de um determinado enunciado
prescritivo, a partir da interação entre o instrumento de observação (o texto legal) e a
coisa observada (a situação fática concreta, com todas as suas peculiaridades), tendo
como finalidade a prática do Direito. Dessa forma, uma interpretação de enunciado
prescritivo não deve ser afastar jamais da realidade concreta para a qual é realizada,
isto é, a interpretação, sob o enfoque que ora analisamos, é uma atividade
eminentemente construtiva e re-construtiva25
, o que pode ser constatado da transcrição
abaixo dos ensinamentos de Alexandre de Moraes que, apesar de se referir à
interpretação constitucional, pode ser estendida à interpretação de qualquer norma
jurídica:
A Constituição Federal há de ser sempre interpretada, pois somente
por meio da conjugação da letra do texto com as características
históricas, políticas, ideológicas do momento, se encontrará o melhor
sentido da norma jurídica, em confronto com a realidade
sociopolítico-econômica e almejando sua plena eficácia.26
24
BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. 7ª edição. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 107.
25
A característica de “reconstrução” é encontrada na interpretação nas oportunidades em que a modificação dos fatos normados ou até mesmo a modificação dos valores sociais incidentes sobre os fatos normados pode levar à modificação do conteúdo da norma jurídica (modificação frente à uma significação anterior que compunha a norma jurídica), o que se caracteriza como mutação normativa. 26
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 23ª edição. São Paulo: Editora Atlas, 2008, p. 15.
19
2.1. Os princípios como valores condutores da interpretação jurídica
Os princípios são valores, ideias centrais de um sistema, que lhe dão sentido
lógico, harmônico, racional, permitindo a compreensão do modo de organizar-se do
sistema27
, são regras-mestras dentro do sistema positivo, que identificam as estruturas
básicas, os fundamentos e os alicerces desse sistema28
, iluminando a compreensão de
setores normativos, imprimindo-lhes caráter de unidade e servindo, em virtude dessa
mesma unidade, de fator de agregação das normas integrantes dos respectivos setores
normativos29
. Ou, como descreve Miguel Reale, são verdades fundantes de um sistema
de conhecimento, como tais admitidas, por serem evidentes ou por terem sido
comprovadas, mas também por motivos de ordem prática de caráter operacional, isto
é, como pressupostos exigidos pelas necessidades de pesquisa e da praxis30
.
Ensina Mauricio Godinho Delgado que os princípios podem ser comuns a
todo o fenômeno jurídico ou especiais a um ou alguns dos segmentos particularizados
do fenômeno jurídico, sendo construídos a partir de certa realidade, direcionando a
compreensão da realidade examinada, atuando no processo de exame sistemático
acerca de certa realidade – processo que é típico das ciências – conduzindo tal
processo31
.
Explorando mais profundamente as funções dos princípios frente ao sistema
jurídico, tem-se a atuação dos mesmos não só na construção dos enunciados
prescritivos (textos legais), atuando, pois, na fase pré-jurídica, de natureza
eminentemente política, como também na fase jurídica propriamente dita,
desempenhando função interpretativa (também denominada descritiva ou
informativa), função normativa subsidiária (atuando como fontes normativas frente à
27
SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de Direito Público. São Paulo: Malheiros, 1992, p. 137. 28
ARAUJO, Luiz Alberto David; NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Curso de Direito Constitucional. 7ª edição. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 59.
29
CONRADO, Paulo César. Introdução à Teoria Geral do Processo. São Paulo: Max Limonad, 2000, p. 25. 30
REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. São Paulo: Saraiva, 1988, p. 299. 31
DELGADO, Mauricio Godinho. Princípios de direito individual e coletivo do trabalho. 2ª edição. São Paulo: LTr, 2004, p. 14-15.
20
ausência de outras regras jurídicas utilizáveis pelo intérprete e aplicador do Direito
Positivo frente a um determinado caso concreto) ou função normativa concorrente
(inerente aos princípios essenciais do sistema jurídico, com status até mesmo
prevalecente sobre o papel normativo característico das demais normas jurídicas)32
.
No que se refere à função interpretativa, que é de mais importante análise
no presente momento de construção desta tese, Maurício Godinho Delgado ensina que:
A mais comum e recorrente dessas funções é a descritiva ou
interpretativa (ou, ainda, informativa), atada ao processo de revelação
e compreensão do próprio direito.
De fato, os princípios atuam, na fase jurídica, contínua e
incessantemente, como proposições ideais propiciadoras de uma
direção coerente na interpretação da regra de direito. São veios
iluminadores à compreensão da regra jurídica construída.
Os princípios cumprem, aqui, sem dúvida, sua função mais clássica e
recorrente, como veículo de auxílio à intepretação. Nesse papel,
contribuem no processo de compreensão da regra, balizando-a à
essência do conjunto do sistema jurídico. São chamados princípios
descritivos ou informativos (ou interpretativos), à medida que
propiciam uma leitura reveladora das direções essenciais da ordem
jurídica analisada. Os princípios informativos ou descritivos não
atuam, pois, como fonte formal do Direito, mas como instrumental de
auxílio à interpretação jurídica.33
É de se concluir que, uma vez realizada a técnica gramatical de
interpretação, extraindo-se as várias possibilidades semânticas do texto legal
(enunciado prescritivo) sob procedimento interpretativo, os princípios atuarão como
meio de seleção das hipóteses interpretativas que se compatibilizem não só com os
valores incidentes sobre o Direito Positivo como um todo (dentre eles, principalmente,
os valores constitucionais), como também os valores incidentes sobre o setor
normativo específico (como, por exemplo, o Direito do Trabalho) em que esteja
inserido o texto legal em interpretação, oferecendo efetiva unidade ao sistema jurídico,
como destacado por Maria Helena Diniz:
32
DELGADO, Mauricio Godinho. Princípios de direito individual e coletivo do trabalho. 2ª edição. São Paulo: LTr, 2004, p. 17-18.
33
Ibidem, p. 17.
21
O rigor científico requer que o jurista, ao estudar e ao interpretar
normas, estabeleça um entrelaçamento entre elas, de tal sorte que haja
unidade e coerência lógica do sistema normativo por ele criado
epistemologicamente.
O sistema apresentará unidade se as várias normas forem conformes
à norma-origem (Constituição); consequentemente haverá uma
coerência, ante a impossibilidade lógica de existirem preceitos infra-
constitucionais antagônicos à Lei Maior. Isto é assim pelo critério
hierárquico (lex superior derrogat legi inferior), baseado na
superioridade de uma fonte de produção jurídica sobre a outra. O
princípio lex superior quer dizer que, num conflito entre normas de
diferentes níveis, a de escalão mais alto, qualquer que seja a ordem
cronológica, terá a preferência em relação à de nível mais baixo.
Logo, a norma constitucional que deu início à ordem jurídica, por ser
norma-origem, prevalece sobre todas as disposições normativas
subconstitucionais. Daí falar-se em inconstitucionalidade da lei.
Portanto, a ordem hierárquica entre as fontes servirá de guia para
solucionar conflitos de normas de diferentes escalões. Kelsen ensina-
nos... que não pode haver, no sistema, em normas de diversos níveis,
contradição, porque a norma inferior retira seu fundamento de
validade da superior. Só será válida a norma inferior se estiver em
harmonia com a do escalão superior.
O sistema apresentará incoerência lógica se houver divórcio
entre suas normas no que atina ao processo de sua elaboração ou ao
seu conteúdo empírico.34
Daí a necessidade de se buscar interpretação do artigo 62, I, da
Consolidação das Leis do Trabalho que não só seja compatível com a realidade social
e tecnológica atual, como também com os ditames constitucionais e valores que
sistematizam as normas jurídicas de Direito do Trabalho no Direito Positivo brasileiro.
Passamos, agora, a apreciar não só os princípios inerentes à interpretação
constitucional, como também aqueles incidentes sobre a interpretação de textos legais
de Direito do Trabalho (classe das normas de Direito do Trabalho35
).
34
DINIZ, Maria Helena. Norma constitucional e seus efeitos. 2ª edição. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 120. 35
Entendemos como “classe das normas do Direito do Trabalho” o conjunto de normas jurídicas que têm em comum a propriedade de realizar o Direito do Trabalho, isto é, estabelecer regras para a relação jurídica empregatícia. Já a “classe das normas constitucionais” é o conjunto de todas as normas jurídicas que são resultado da interpretação de enunciados prescritivos constitucionais, sem a preocupação com a questão de serem ou não materialmente constitucionais.
22
2.2. A interpretação constitucional e seus princípios
Willis Santiago Guerra Filho afirma que uma tarefa de importância
inexcedível que se apresenta no momento para quem lida profissionalmente com o
Direito em nosso País é a de tomar consciência das pecularidades da hermenêutica
constitucional. Isso para que se venha a ter aplicada nossa Constituição, reconhecida,
inclusive internacionalmente, como dotada de grandes qualidades36
.
Ainda segundo o referido Professor, praticar a “intepretação constitucional”
é diferente de interpretar a Constituição de acordo om os cânones tradicionais da
hermenêutica jurídica, desenvolvidos, aliás, numa época em que as matrizes do
pensamento jurídico assentavam-se em bases privatísticas37
.
Celso Ribeiro Bastos ensina que a interpretação constitucional não despreza
a interpretação jurídica de um modo geral, mas apresenta uma série de particularidades
que justificam seu tratamento diferenciado, num estudo de certa forma autônomo dos
demais métodos interpretativos presentes no sistema jurídico38
, além de compreender o
campo de atuação da “interpretação constitucional” sob um espectro mais amplo,
envolvendo não só a atividade interpretativa dos enunciados prescritivos constantes da
Constituição, mas também a interpretação dos enunciados infraconstitucionais
segundo a Constituição:
... a interpretação constitucional não pode ser simplesmente
considerada como a interpretação da Constituição, exclusivamente. O
que se pode dizer, é certo, é que só haverá interpretação constitucional
quando a Constituição estiver envolvida.39
36
GUERRA FILHO, Willis Santiago. Da interpretação especificamente constitucional. In Revista de Informação Legislativa. Brasília, ano 32, n
o128, out/dez.1995, p. 255.
37
Idem. 38
BASTOS, Celso Ribeiro. Hermenêutica e Interpretação Constitucional. 2ª edição. São Paulo: Celso Bastos Editora, 1999, p. 49.
39
Ibidem, p. 87.
23
Dentre as razões que levam à essa diferenciação interpretativa dos
enunciados prescritivos40
constitucionais, estão: a inicialidade fundante das normas
constitucionais, sendo a Constituição o fundamento de todas as demais normas do
ordenamento jurídico e o caráter aberto das normas constitucionais e sua atualização,
vez que a norma constitucional, muito frequentemente, apresenta-se como uma petição
de direitos ou mesmo como uma norma pragmática sem conteúdo preciso ou
delimitado41
.
Objetivando a plena eficácia constitucional, a doutrina constitucionalista
construiu diversos princípios interpretativos das normas constitucionais, sendo que
nesta tese adotamos, por entendê-lo como o mais completo e suficiente para o nosso
objetivo, o rol apresentado por J.J.Gomes Canotilho, acrescentando-lhe somente o
princípio da supremacia da Constituição, destacado por Celso Ribeiro Bastos.
Segundo Canotilho, têm-se os seguintes princípios de interpretação
constitucional: princípio da unidade da Constituição, princípio da máxima efetividade,
princípio da justeza ou da conformidade funcional, princípio da concordância prática
ou da harmonização e princípio da força normativa da Constituição. Analisemos cada
um deles:
Por princípio da unidade da Constituição entende-se a obrigação do
intérprete de considerar a Constituição na sua globalidade e de procurar harmonizar os
espaços de tensão existentes entre as normas constitucionais a concretizar. Trata-se de
uma consequência de uma visão sistêmica das normas constitucionais, em que todas
são elementos de um mesmo sistema, harmonizando-se e se inter-relacionando. Daí
que o intérprete deve sempre considerar as normas constitucionais não como normas
isoladas, mas sim como preceitos integrados num mesmo sistema interno, unitário de
40
Referimo-nos às diferenças entre as interpretações de enunciados normativos infraconstitucionais e constitucionais. 41
BASTOS, Celso Ribeiro. Hermenêutica e Interpretação Constitucional. 2ª edição. São Paulo: Celso Bastos Editora, 1999, p. 53-54.
24
normas e princípios42
. Sobre esse princípio, transcrevemos os ensinamentos de Celso
Ribeiro Bastos:
Como consequência deste princípio, as normas constitucionais
devem sempre ser consideradas como coesas e mutuamente
imbricadas. Não se poderá jamais tomar determinada norma
isoladamente, como suficiente em si mesma. É que a Constituição
pode perfeitamente prever determinada solução jurídica num
determinado passo seu, para noutro tomar posição contrária, dando
lugar a uma relação entre norma geral e outra específica. Esta
predomina no espaço que abrange. Não há, pois, qualquer fratura
constitucional. E isso porque se a Constituição é uma, e se é ela o
documento supremo da nação, todas as normas que contempla
encontram-se em igualdade de condições, nenhuma podendo se
sobrepor à outra para lhe afastar o cumprimento. As duas normas
vigem por inteiro, apenas que em situações diversas (nunca para a
mesma situação). Assim, cada uma vige em seu campo próprio, do
que resulta a aplicação de ambas.43
Como princípio do efeito integrador, temos que na resolução dos problemas
jurídico-constitucionais deve-se dar primazia aos critérios ou pontos de vista que
favoreçam a integração política e social e o reforço da unidade política. Trata-se de
princípio muitas vezes associado ao princípio da unidade44
.
O princípio da justeza, também denominado princípio da conformidade
funcional, visa impedir que, em sede de concretização da Constituição, a alteração da
repartição de funções constitucionalmente estabelecidas. Hoje, este princípio tende a
ser considerado mais como um princípio autônomo de competência45
.
Quanto ao princípio da máxima efetividade, à uma norma deve ser atribuído
o sentido que maior eficácia lhe dê, sendo que a eficácia de que trata esse princípio é a
42
CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 3ª edição. Coimbra: Almedina, 1999, p. 1096-1097.
43
BASTOS, Celso Ribeiro. Hermenêutica e Interpretação Constitucional. 2ª edição. São Paulo: Celso Bastos Editora, 1999, p. 103.
44
CANOTILHO, J.J. Gomes. Op. Cit., p. 1097-1098. 45
Idem.
25
eficácia social46
, isto é, deve-se preferir interpretações que maximizem a sua atuação
efetiva no mundo social concreto47
, principalmente quando se trata de Direitos
Fundamentais.
O princípio da concordância prática, também denominado “princípio da
harmonização” é, na realidade, uma forma de superação de tensões entre normas
jurídicas que introduzem Direitos Fundamentais. Esse princípio impõe a coordenação
e combinação dos bens jurídicos em conflito de forma a evitar o sacrifício (total) de
uns em relação aos outros. Subjacente a este princípio está a ideia de igual valor dos
bens constitucionais (e não uma diferença de hierarquia) que impede, como solução, o
sacrifício de uns em relação aos outros, e impõe o estabelecimento de limites e
condicionamentos recíprocos de forma a conseguir uma harmonização ou
concordância prática entre estes bens48
.
Segundo o princípio da força normativa da Constituição, na solução dos
problemas jurídico-constitucionais deve-se dar prevalência aos pontos de vista que,
tendo em conta os pressupostos da Constituição (normativa), contribuem para uma
eficácia ótima da lei fundamental. Consequentemente, deve dar-se primazia às
soluções hermenêuticas que, compreendendo a historiciedade das estruturas
constitucionais, possibilitam a atualização normativa, garantindo, do mesmo pé, a sua
eficácia e permanência49
.
Finalmente, temos o princípio da supremacia da Constituição, segundo o
qual, pelo fato da Constituição ser a norma superior do ordenamento jurídico, não se
dá conteúdo à Constituição a partir das leis. A forma a adotar-se para a explicação de
46
CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 3ª edição. Coimbra: Almedina, p. 1097-1098.
47
MAGALHÃES FILHO, Glauco Barreira. Hermenêutica e unidade axiológica da Constituição. 3ª edição. Belo Horizonte: Mandamentos, 2004, p. 72.
48
CANOTILHO, J.J. Gomes. Op. Cit., p. 1098. 49
Idem, p. 1099.
26
conceitos opera sempre “de cima para baixo”, o que serve para dar segurança em suas
definições. Esse princípio repele todo o tipo de interpretação que venha de baixo, é
dizer, repele toda a tentativa de interpretar a Constituição a partir da lei50
, bem como
dá origem ao princípio da interpretação conforme a Constituição, destinado
principalmente à interpretação de textos infraconstitucionais, que é detalhadamente
descrito por Glauco Barreira Magalhães Filho no trecho abaixo, extraído de sua obra
Hermenêutica e unidade axiológica da Constituição:
Princípio da interpretação conforme à Constituição – De acordo com
esse princípio, a Constituição deve ser interpretada segundo os seus
valores básicos, e a norma infraconstitucional deve ser compreendida
a partir da Constituição. Assim, se uma norma infraconstitucional
admite várias interpretações, dar-se-á preferência àquela que
reconheça a constitucionalidade da norma e realize melhor os fins
constitucionais.
As normas definidoras de direitos fundamentais trazem a enunciação
de valores e não reportam aos fatos sobre os quais incidem, sendo
estes previstos nas normas infraconstitucionais ou identificados no
caso concreto. Embora tragam a previsão de um fato, as normas
infraconstitucionais (regras) não enunciam um valor, embora o
pressuponham. No caso, deve-se preferir a interpretação que vai ao
encontro de um valor constitucionalmente almejado.
Atingindo a norma infraconstitucional os fins constitucionais em
situações típicas (aquelas que, pela sua ocorrência habitual, podem ser
previstas pelo legislador), apenas em uma situação atípica (situação
limite ou situação não habitual), a norma será afastada para que se
possa fazer valer diretamente o preceito constitucional.
A interpretação conforme à Constituição está limitada pela
literalidade do texto normativo, ou seja, não pode, sob o pretexto de
economia normativa, dar a uma norma um sentido que contrarie suas
potencialidades linguísticas, a fim de que ela possa ser conciliada com
a Constituição e ter a sua validade preservada. Também não será
válida a regra infraconstitucional que, apesar de não agredir
diretamente um preceito da Constituição, tire a sua funcionalidade,
pois aí terá ocorrido violação ao princípio da proporcionalidade e ao
da razoabilidade.51
50
BASTOS, Celso Ribeiro. Hermenêutica e Interpretação Constitucional. 2ª edição. São Paulo: Celso Bastos Editora, 1999, p. 101-102.
51
MAGALHÃES FILHO, Glauco Barreira. Hermenêutica e unidade axiológica da Constituição. 3ª edição. Belo Horizonte: Mandamentos, 2004, p. 72-73.
27
2.3. As peculiaridades da interpretação de enunciados de natureza trabalhista
A primeira questão que se põe à discussão agora é: norma de cunho
eminentemente trabalhista inserta na Constituição perde a sua natureza de norma do
Direito do Trabalho? Afirmamos que não, e fundamentamos através da constatação de
que é possível uma norma jurídica pertencer tanto à “classe das normas de Direito do
Trabalho”, quanto à “classe das normas Constitucionais”52
.
Daí podermos também concluir que a interpretação de uma norma jurídica
que ocupe tanto a classe das normas do Direito do Trabalho quanto a classe das
normas constitucionais deve ser feita não somente adotando-se os princípios típicos da
interpretação constitucional, como também os princípios típicos da interpretação de
normas trabalhistas, em especial o princípio protecionista, numa harmônica
convivência de princípios interpretativos interagindo numa mesma tarefa
interpretativa.
E essa convivência harmônica se mostra até natural, vez que não se poderia
imaginar, sob a égide da supremacia da Constituição, a existência de princípios do
Direito do Trabalho que fossem incompatíveis à Constituição.
2.3.1 O princípio do protecionismo
O princípio da proteção refere-se ao critério fundamental orientador do
Direito do Trabalho, vez que, ao invés de se inspirar num propósito de igualdade
formal, responde ao objetivo de estabelecer um amparo preferencial à uma das partes
da relação jurídica empregatícia empregatícia, que é o trabalhador, a fim de se se
estabelecer a efetiva igualdade material, tratando-se diferente os diferentes, para que se
estabeleça o equilíbrio na relação jurídica.
Conceituamos o princípio da proteção como aquele em virtude do qual o
Direito do Trabalho, reconhecendo a desigualdade de fato entre os sujeitos da relação
jurídica de trabalho, promove a atenuação da inferioridade econômica, hierárquica e
52
Entendemos como “classe das normas do Direito do Trabalho” o conjunto de normas jurídicas que têm em comum a propriedade de realizar o Direito do Trabalho, isto é, estabelecer regras para a relação jurídica empregatícia. Já a “classe das normas constitucionais” é o conjunto de todas as normas jurídicas que são resultado da interpretação de enunciados prescritivos constitucionais, sem a preocupação com a questão de serem ou não materialmente constitucionais.
28
intelectual dos trabalhadores, ou melhor, tenta mitigar a hipossuficiência em suas
várias acepções na relação empregatícia (inferioridade-constrangimento, inferioridade-
vulnerabilidade e inferioridade ignorância53
).
Quanto às técnicas de que se vale o Direito do Trabalho para instrumentar,
no Direito Positivo, o princípio do protecionismo, estas são denominadas técnicas de
proteção, isto é, mecanismos através dos quais se procura corrigir a situação de
inferioridade do trabalhador, podendo-se, dentre elas, apontar:
- a intervenção do Estado nas relações de trabalho, que se concretiza na edição de
normas jurídicas e na adoção de outras providências tendentes ao amparo do
trabalhador;
- a negociação coletiva, que consiste em procedimentos destinados, entre outros, à
celebração de convenção coletiva de trabalho ou de acordo coletivo de trabalho;
- a autotutela, que é a defesa dos interesses do grupo ou do indivíduo mediante o apelo
à ação direta54
.
O princípio protecionista também está diretamente relacionado às
características de interpretação no Direito do Trabalho, no sentido de que esse Direito
vive na consciência popular, estando estreitamente vinculado à vida do povo, motivo
pelo qual a função do intérprete, em tal ramo do Direito, deve consistir em preservar
este caráter, resultando na regra básica de interpretação no Direito Trabalhista
consistente em julgá-lo de acordo com sua natureza, isto é, como estatuto que traduz a
53
Sobre as espécies de hipossuficiência (inferioridade), tem-se que inferioridade-constrangimento afeta o consentimento do contratante fraco em seu componente de liberdade. Não pode ele negociar da melhor maneira para os seus interesses porque não é realmente livre para aceitar ou recusar, vez que a aceitação tem somente um valor limitado quando emana de alguém que não tem meio de recusar, inferioridade-ignorância é o que faz o essencial da desigualdade entre os contratantes, quando um é profissional e o outro leigo, sendo que este último carece de conhecimentos técnicos, não dispondo das informações jurídicas que lhe permitam uma representação exata da operação de que resulta a conclusão do contrato, e, finalmente, a inferioridade-vulnerabilidade, no sentido de que o assalariado é um contratante vulnerável porque na execução do contrato, sua própria pessoa está implicada ou corre o risco de ser implicada, vez que o contrato incide em particular sobre a atividade física e, pois, de certo modo, sobre o corpo do empregado. Conforme SILVA, Luiz de Pinho Pedreira. Direito do Trabalho: principiologia. São Paulo: LTr, 1997, p. 22-24. 54
SILVA, Luiz de Pinho Pedreira. Direito do Trabalho: principiologia. São Paulo: LTr, 1997, p. 30.
29
aspiração de uma classe social (o proletariado) para obter, imediatamente, uma
melhoria em suas condições de vida55
.
Destaque-se que tal característica de interpretação dos enunciados
prescritivos de natureza trabalhista se estende a todas as espécies normativas, inclusive
às normas constitucionais, vez que, apesar de contidas na Lei Fundamental, as normas
típicas de Direito do Trabalho não perdem a sua essência, a sua razão de ser protetiva.
Importante também a recepção do princípio do protecionismo pelo Direito
Positivo brasileiro, principalmente frente aos paradigmas da escola positivista que
ainda vigora na prática do Direito no Brasil (a despeito da ainda lenta evolução do
normativismo concreto). A recepção desse princípio pelo Direito Positivo pode ocorrer
de duas maneiras distintas, seja em forma substantiva, seja numa forma instrumental.
A forma substantiva consiste em incorporar à norma constitucional, ou a uma norma
programática de especial significado, algum princípio genérico de proteção ao
trabalho, ou que ponha o trabalho sob a proteção do Estado. A forma instrumental se
traduz na incorporação de regras de intepretação que incluam seja o princípio geral,
sejam algumas das formas de sua aplicação. Por exemplo, quando se estabelece num
código do trabalho ou lei orgânica da Justiça do Trabalho, normas referentes à forma
de interpretação das leis do trabalho56
.
No Brasil, a introdução, ou melhor, a manutenção do princípio protecionista
no Direito Positivo acontece pela porta da frente e sob a forma substantiva. Há
fundamentação constitucional para a aplicação do princípio protecionista no Direito
Positivo brasileiro, vez que a proteção dos valores sociais do trabalho é fundamento da
República Federativa do Brasil (art. 1º, IV, da CF/88), além de que o rol de incisos do
art. 7º da CF/88 busca a proteção contratual do trabalhador. Não se pode esquecer que
o protecionismo decorre também do princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º,
III, da CF/88), de forma a evitar que o ser humano trabalhador seja utilizado como
mero instrumento do processo de produção, impondo que a pessoa humana seja o foco
central do Direito e, mais especificamente, do Direito do Trabalho. Em suma, o
55
DE LA CUEVA, Mario. Derecho Mexicano Del Trabajo. Mexico D.F, 1943, p. 212-214. 56
RODRIGUEZ, Américo Plá. Princípios de Direito do Trabalho. Tradução de Wagner D. Giglio. São Paulo: LTr, 1996, p. 40.
30
Constituinte de 1988, por via indireta, positivou o princípio do protecionismo no
Direito do Trabalho, resultando também naquilo que Amauri Mascaro Nascimento
denomina princípio de elaboração das normas jurídicas (e que, na verdade, é uma
extensão do princípio protecionista), isto é, que as normas jurídicas trabalhistas devem,
em regra, dispor sempre de modo favorável ao trabalhador, o que é justificado pelo
fato de que as leis trabalhistas devem contribuir para a melhoria da condição social do
trabalhador57
.
Acompanhando, também nesse ponto, Américo Plá Rodriguez, entendemos
que o princípio da proteção se expressa sob 3(três) formas distintas: a regra in dubio
pro operario, a regra da norma mais favorável e a regra da condição mais benéfica58
.
Importante compreendermos o significado dessas “formas de expressão” do princípio
protecionista, isto é, buscar saber qual a sua efetiva vinculação em relação ao princípio
em estudo.
Sem embargo de eventuais opiniões contrárias, firmamos que essas três
formas de expressão do princípio protecionista são também técnicas de atuação do
mesmo nas relações jurídicas. Verdadeiro é que a existência dessas técnicas a que se
refere Plá Rodriguez não afasta a existência das técnicas apontadas por Pinho Pedreira
e citadas linhas atrás. Todas fazem parte de uma mesma classe, a que denominamos
“classe das técnicas de instrumentalização do princípio protecionista”59
, pertencendo,
no entanto, a subclasses diferentes.
As técnicas apontadas por Luiz de Pinho Pedreira da Silva (intervenção
estatal, negociação coletiva e autotutela) referem-se à forma de introdução de normas
jurídicas protecionistas no Direito Positivo. Já as técnicas indicadas por Plá Rodriguez
como formas de expressão do princípio protecionista relacionam-se ao comportamento
do intérprete ou operador do Direito na aplicação das normas protecionistas já
existentes nas relações jurídicas in concreto.
57
NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Iniciação ao Direito do Trabalho. 18ª edição. São Paulo: LTr, 1992, p. 68. 58
RODRIGUEZ, Américo Plá. Princípios de Direito do Trabalho. Tradução de Wagner D. Giglio. São Paulo: LTr, 1996, p. 42-43.
59
Classe que tem a seguinte “condição de pertinência”: ser forma através da qual o direito é capaz de realizar, nas relações jurídicas empregatícias, os objetivos do princípio protecionista.
31
Analisemos, agora, as características gerais das formas de expressão do
protecionismo.
2.3.1.1 A regra in dubio pro operario
É o critério segundo o qual, na hipótese de uma norma ser suscetível de se
entender de vários modos, deve-se preferir a interpretação mais favorável ao
trabalhador60
. Assim, entre várias interpretações que um texto normativo comporte,
deve ser preferida a mais favorável ao trabalhador61
.
Trata-se de critério hermenêutico e que, em realidade, encontra a sua
justificativa no próprio objetivo do Direito do Trabalho, que é a proteção do
trabalhador.
Na preocupação de melhor corresponder às suas finalidades, o direito do
Trabalho deve ser formado por normas que tenham a máxima efetividade em seu
desiderato, daí a regra de se extrair a interpretação que melhor se compatibilize com o
seu fim, isto é, com a proteção do trabalhador, como acertadamente explica Cesarino
Júnior:
Sendo o Direito Social, em última análise, o sistema legal de proteção
dos economicamente fracos (hipossuficientes), é claro que, em caso de
dúvida, a interpretação deve ser sempre a favor do economicamente
mais fraco, que é o empregado, se em litígio com o empregador.62
Francisco Meton Marque de Lima, citando Perez Botija, obtempera a in
dubio pro operario, sinalizando que sua aplicação deve ser comedida, analisada,
desapaixonada, racional, ponderada e nunca cega63
, o que deve ser compreendido
juntamente com as lições de Plá Rodriguez ao afirmar que quando uma norma não
60
RODRIGUEZ, Américo Plá. Princípios de Direito do Trabalho. Tradução de Wagner D. Giglio. São Paulo: LTr, 1996, p.43.
61
SILVA, Luiz de Pinho Pedreira. Direito do Trabalho: principiologia. São Paulo: LTr, 1997, p. 41. 62
CESARINO JÚNIOR, Antonio Ferreira. Princípios Fundamentais da Consolidação das Leis do Trabalho. In: Legislação do Trabalho, no. 47. São Paulo: LTr, 1983, p. 36.
63
LIMA, Francisco Meton Marques de. Os princípios do Direito do Trabalho na lei e na jurisprudência. 2ª edição. São Paulo: LTr, 1997, p.81.
32
existe, não é possível recorrer a este procedimento para substituir o legislador e muito
menos é possível usar esta regra para se afastar do significado claro da norma ou para
lhe atribuir um sentido que de modo nenhum pode ser deduzido de seu texto ou de seu
contexto64
.
2.3.1.2 A regra da norma mais favorável ao trabalhador
Sobre o conceito da regra da norma mais favorável ao trabalhador, Perez
Botija diz que “en caso de pluralidad de normas aplicables a una relación de trabajo,
se ha de optar por la que sea más favorable ao trabajador”65
. Trata-se de verdadeira
regra para solução de conflito entre normas incidentes num mesmo caso concreto.
Havendo duas ou mais normas jurídicas trabalhistas sobre a mesma matéria, será
hierarquicamente superior e, portanto, em regra, aplicável ao caso concreto, a norma
que oferecer maiores vantagens ao trabalhador, dando-lhe condições mais favoráveis66
.
No Direito Positivo brasileiro localizamos a principal fonte de
fundamentação para aplicação da regra da norma mais favorável ao empregado no
caput do artigo 7º da Constituição Federal, tendo-se em vista que, quando o
Constituinte fixou enunciado no sentido de que “São direitos dos trabalhadores
urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social...”
acabou por imprimir pela prosperidade de normas jurídicas que sejam mais favoráveis
ao empregado, isto é, que obtivam à “melhoria de sua condição social”.
64
RODRIGUEZ, Américo Plá. Princípios de Direito do Trabalho. Tradução de Wagner D. Giglio. São Paulo: LTr, 1996, p. 45.
65
BOTIJA, Perez. Derecho del Trabajo. Apud LIMA, Francisco Meton Marques de. Os princípios do Direito do Trabalho na lei e na jurisprudência. 2ª edição. São Paulo: LTr, 1997, p.81.
66
NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Curso de Direito do Trabalho: história e teoria geral do Direito do trabalho: relações individuais e coletivas do trabalho. 13ª edição. São Paulo: Editora LTr, 1997, p. 233.
33
2.3.1.3 A regra da condição mais benéfica ao trabalhador
A regra da condição mais benéfica pressupõe a existência de uma situação
concreta, anteriormente reconhecida, e determina que ela deve ser respeitada na
medida em que seja mais favorável ao trabalhador que a nova norma jurídica
aplicável67
. Trata-se de regra intimamente correlacionada com a da norma mais
benéfica, distinguindo-se dela, no entanto, por supor a existência de uma norma
anterior, concreta e reconhecida que já foi aplicada e que deve ser respeitada por ser
mais proveitosa ao trabalhador68
.
Luiz de Pinho Pedreira da Silva acrescenta que as regras da norma mais
favorável e da condição mais benéfica apresentam em comum o fato de depender a sua
aplicação da existência de uma pluralidade de normas, diferenciando-se, no entanto,
porque a regra da norma mais benéfica trata de sucessão normativa e, daí o
entendimento de que a condição mais benéfica resolve um fenômeno de direito
transitório ou intertemporal69
.
Por intermédio da referida regra, o empregador contratado sob a vigência de
determinadas condições de trabalho a ele asseguradas não pode ser rebaixado à
condição inferior, sendo que a condição pode resultar de lei, de contrato individual de
trabalho, de instrumento coletivo ou de regulamento de empresa70
.
Da mesma forma que concluímos em relação à fundamentação da “regra da
norma mais favorável ao trabalhador”, o caput do artigo 7º da Constituição Federal
também é fonte de inserção, no Direito Positivo brasileiro, da “regra da condição mais
benéfica”, acrescentando-se, em relação à fundamentação desta última, também a
legislação infraconstitucional, especificamente a Consolidação das Leis do Trabalho
67
RODRIGUEZ, Américo Plá. Princípios de Direito do Trabalho. Tradução de Wagner D. Giglio. São Paulo: LTr, 1996, p. 60.
68
Ibidem, p. 26. 69
SILVA, Luiz de Pinho Pedreira. Direito do Trabalho: principiologia. São Paulo: LTr, 1997, p. 65. 70
LIMA, Francisco Meton Marques de. Os princípios do Direito do Trabalho na lei e na jurisprudência. 2ª edição. São Paulo: LTr, 1997, p. 8.
34
através dos seus artigos 442 e 444 (que permitem a criação de cláusulas tácitas no
contrato de trabalho) e do seu artigo 468 (que proíbe a alteração das condições de
trabalho que resulte em prejuízos diretos ou indiretos ao trabalhador).
2.4 A interpretação de direitos fundamentais
Aos Direitos Fundamentais, termo que utilizamos nesta tese como sinônimo
de Direitos Humanos, agregam-se técnicas de interpretação que objetivam a maior
efetividade possível das normas jurídicas qualificadas como introdutoras dessas
espécies de Direito. Daí a importância de, como anteparo para a efetiva interpretação
do artigo 62, I, da Consolidação das Leis do Trabalho, não só fixarmos o que são
Direitos Fundamentais, a forma como enunciados prescritivos introdutores de Direitos
Fundamentais devem ser interpretados, como também se as normas trabalhistas que
inserem direitos e garantias aos empregados pertencem ou não à classe dos Direitos
Fundamentais.
2.4.1 Conceito e espécies de Direitos Fundamentais
O conceito jurídico atual de “vida” é produto da evolução da sociedade, não
se restringindo ao conceito então pensado pelo Poder Constituinte Originário, mas se
ampliando a cada dia. Pietro de Jesus Lora Alarcón aponta a existência de 4(quatro)
acepções de “vida” na Constituição Federal de 1988, quais sejam: a integridade física
do ser humano (manutenção da anatomia e da fisiologia que caracterizam o corpo
humano); a liberdade (o homem como sujeito livre e autodeterminado); vida digna, no
sentido do homem poder contar com os recursos, inclusive materiais, necessários ao
alcance de sua felicidade (homem como sujeito social); e a tutela da vida a partir da
ótica genética71
. Todas essas acepções de vida não surgiram ao acaso, mas foram
resultado de um longo processo histórico em que foi se dilatando o conceito de vida e,
consequentemente, viu-se a necessidade de uma proteção mais ampla pelo Direito.
Nesse sentido, as lições de Airton Ferreira Pinto que, inclusive, utiliza a expressão
71
ALARCÓN, Pietro de Jesus Lora. Patrimônio Genético Humano e sua proteção na Constituição Federal de 1988. São Paulo: Editora Método, 2004, p. 167-219.
35
“homem total” (modelo de ser humano, com todas as suas necessidades e fragilidades,
que necessitam de proteção) como a referência para a construção dos Direitos
Fundamentais:
Um direito humano é aquele que é construído e que tem como
verdade pragmática a construção da igualdade entre os humanos, a
liberdade dignificante e respeitosa nas relações promovidas e
garantidas pelo Estado. Ele é legítimo pelo processo democrático de
sua construção que se realiza onde o princípio da razoabilidade
acontece. O direito é o que traz na própria essência o sentido real e
último do justo, e tendo o homem total no centro de sua preocupação,
trata a dignidade como expressão singular a ser promovida e
protegida. É preciso empreender, finalmente, que o direito individual
somente existe no conjunto social. Sem este aquele deixa sua condição
para ser exclusivo.72
A proteção da vida humana é dialética, confundindo-se a sua evolução com
a do Direito e, particularmente, com a evolução do Direito Constitucional, o que se
comprova examinando-se a preocupação da positivação constitucional, a partir da
Magna Carta, passando pelas Declarações de Direitos, por Constituições consideradas
marcos na história jurídica do mundo, como a Constituição soviética e a Constituição
de Weimar, finalizando com a Declaração Universal dos Direitos do Homem, com a
proteção do direito à vida. Pode-se até afirmar que o conjunto positivado de liberdades
e garantias forma o desdobramento do direito a viver, seja direito a existir, direito a
conviver, ou direito a viver protegido dos impactos e choques do convulsionado
mundo contemporâneo73
.
Francisco Pedro Jucá, dissertando sobre os direitos fundamentais do
trabalhador, conceitua Direitos Fundamentais como um conjunto de direitos que, por
sua natureza e papel desempenhado no contexto, servem de fundamento para a
construção do ser qualificado como humano, isto é, aqueles sem os quais não se pode
72
PINTO, Airton Pereira. Direito do trabalho, direitos humanos sociais e a Constituição Federal. São Paulo: LTr, 2006, p. 243.
73
ALARCÓN, Pietro de Jesus Lora. Patrimônio Genético Humano e sua proteção na Constituição Federal de 1988. São Paulo: Editora Método, 2004, p. 85.
36
entender a condição humana desse ser74
e acrescenta, Jucá, a respeito da variação do
conteúdo do direito à vida no tempo, que:
... os valores, especial e destacadamente o Justo, sobrepairam,
integram o universo fundamentalmente da organização cultural da
sociedade, pertinindo ao seu imaginário, ao seu caldo de cultura como
categoria ideal e, em razão disso, serve de referência à matriz na
formulação das normas de conduta que são obrigatórias aos membros
daquela comunidade, na medida em que estas normas buscam...
materializar, como representação, este valor nas suas repercussões e
rebatimentos às necessidades da vida social.75
De acordo com o raciocínio até aqui seguido, entendemos direitos
fundamentais como sendo o conjunto de normas jurídicas que têm por objetivo a
proteção do direito à vida em todas as suas acepções absorvidas pelo Direito, contendo
no seu antecedente normativo a descrição abstrata de um comportamento, obrigatório,
proibido ou permitido, que realiza a proteção do direito à vida sob cada uma das suas
acepções absorvidas pelo Direito. Em consonância com o conceito por nós
apresentado, Airton Pereira Pinto conclui que:
Os direitos que tratam da vida humana, em todos os seus aspectos,
complexidades e dimensões, não são algo dado, mas construído. Os
direitos humanos são o resultado do esforço e do engenho humano, em
dar conta da proteção da vida coletiva do homem – animal político.
Por isso, os direitos humanos não são separáveis, fragmentados e
estanques, e sim formam um todo conexo, enfeixado.76
A despeito do caráter de sistema dos Direitos Fundamentais, o que afasta
a possibilidade da compreensão efetiva dos mesmos de forma individualizada ou
fragmentada, o doutrina, com objetivos eminentemente didáticos, agrupa os Direitos
Fundamentais em subclasses que são denominadas gerações ou famílias de Direitos
Fundamentais, com as seguintes características:
74
JUCÁ, Francisco Pedro. Os direitos individuais fundamentais do trabalhador. In: NASCIMENTO, Amauri Mascaro (Coord.). A transição do Direito do Trabalho no Brasil. São Paulo: LTr, 1999, p. 264.
75
Ibidem, p. 266. 76
PINTO, Airton Pereira. Direito do trabalho, direitos humanos sociais e a Constituição Federal. São Paulo: LTr, 2006, p. 241.
37
- Direitos Fundamentais de Primeira Geração: conjunto de normas jurídicas que têm
por objetivo a proteção da vida do ser humano sob o enfoque de “liberdade
individual”, prendendo-se à idéia de que o poder central (estatal) deve se afastar de
tudo aquilo que não seja essencial para manter os Direitos individuais do ser humano,
passando a ter importância o indivíduo e o individualismo, a liberdade e a propriedade;
- Direitos Fundamentais de Segunda Geração: conjunto de normas jurídicas que têm
por objetivo a proteção da vida do ser humano sob o enfoque de “vida com qualidade”,
a vida com dignidade, a necessidade de intervenção do Estado nas relações jurídicas
no sentido de tentar igualar os diversos polos dessas relações, caracterizados por
efetiva diferença, oriunda da situação de fato em que são construídas e desenvolvidas
essas relações, no que tange a poder (político, econômico e/cultural) e privilégios.
Essas normas jurídicas (Direitos Fundamentais de Segunda Geração), que também são
denominadas “Direitos Sociais”, buscam equilíbrio nas relações jurídicas, garantindo
direitos mínimos à parte vulnerável. Sobre tal geração, Manoel Messias Peixinho
ensina que:
A dimensão social dos direitos fundamentais não suplantou a ideia
clássica dos direitos individuais, mas imprimiu profundas
transformações no conceito oriundo do liberalismo. Dentre outros
fatores responsáveis por essas mudanças, constata-se a influência da
ideologia marxista, segundo a qual as liberdades normais são, na
verdade, ficção jurídica, que tem o objetivo de mascarar a dominação
de uma classe por outra. A liberdade deve ser a de participação, na
qual os indivíduos são atores sociais da transformação. A
característica fundamental responsável pela mudança no conceito de
liberdade é a inclusão, na dimensão inseparável das liberdades, dos
direitos econômicos e sociais, que objetivam assegurar aos cidadãos as
condições materiais que lhes permitam exercer a cidadania plena. Não
se trata, aqui, ao contrário da concepção clássica, de proteger as
liberdades negativas e formais, mas garantir a intervenção do Estado
para que tutele as políticas públicas, concretize-as e torne acessíveis
aos cidadãos as garantias mínimas para que possam viver com
dignidade.77
77
PEIXINHO, Manoel Messias. As Teorias e os Métodos de Interpretação Aplicados aos Direitos Fundamentais. Rio de Janeiro: Lumem Juris, 2010, p. 27-28.
38
- Direitos Fundamentais de Terceira Geração: conjunto de normas jurídicas que têm
por finalidade a proteção da vida do ser humano sob o enfoque de “proteção da
humanidade como um todo”, visto que os avanços tecnológicos, com a maior
capacidade do homem de intervir na natureza, explorando-a, juntamente com uma
realidade retratada na irresponsabilidade do homem em seu ato de exploração dos
recursos naturais, fez com que surgisse a preocupação com a manutenção da existência
humana, mas não somente sob um referencial individual, mas sob toda a humanidade
- Outras gerações de Direitos Fundamentais: há Autores que já se referem a Direitos
Fundamentais de quarta, quinta e sexta gerações78
, sendo certo que tais gerações ainda
não se encontram consolidadas na doutrina, valendo, para os contornos da presente
tese, somente a indicação do início de construção das mesmas.
2.4.2 As normas jurídicas de Direito do Trabalho como Direitos Fundamentais de
2ª Geração
O Direito do Trabalho, analisado sob o prisma de Direito Positivo, é um
conjunto de normas jurídicas que objetiva regular as relações jurídicas de emprego,
tanto do ponto de vista individual quanto coletivo, a fim de alcançar, dentre outros, o
equilíbrio nas referidas relações jurídicas, mediante a fixação de direitos mínimos aos
Empregados.
Ora, frente ao objetivo de tais normas, em especial daquelas que objetivam
o equilíbrio das relações mediante garantias mínimas à parte hipossuficiente, fixamos
entendimento de que tal grupo de normas se enquadra na classe dos Direitos
Fundamentais de Segunda Geração, também denominada classe dos “Direitos
Sociais”, merecendo serem como tal interpretadas e aplicadas.
78
Como Pietro de Jesús Lora Alarcon, que cita a existência de Direitos Fundamentais de quarta geração -cujo foco é a proteção do ser humano no campo genético, frente à biotecnologia – (Cf. ALARCÓN, Pietro de Jesús Lora. Patrimônio Genético Humano e sua proteção na Constituição Federal de 1988. São Paulo: Editora Método, 2004, p. 87-100) e Arion Sayão Romita, que indica a existência de Direitos Fundamentais de Quinta Geração - cujo objetivo é a proteção da vida humana frente à utilização dos conhecimentos fornecidos pela cibernética e pela informática – e de Sexta Geração – cuja finalidade é a proteção da vida humana frente aos efeitos decorrentes da globalização – (Cf. ROMITA, Arion Sayão. Direitos Fundamentais nas relações de trabalho. São Paulo: LTr, 2005, p. 107-108).
39
Airton Pereira Pinto, em sua obra Direito do trabalho, direitos humanos
sociais e a Constituição Federal de 1988 descreve o conteúdo dos Direitos Humanos
Sociais, afirmando que numa sociedade com elevado grau de consciência social e de
cidadania, os sujeitos sociais concebem que a justiça será efetivada a partir do
momento em que todas as partes do contexto social contribuírem sem o desespero e o
exagero delas, isto é, o cidadão coletivo é respeitado como trabalhador, produtor de
riqueza e consumidor, merecendo do Estado uma proteção digna e promotora. Passou,
assim, o Estado a exercer intervenção nas relações econômicas e sociais para
promover o Bem Social clamado pelos parceiros marginalizados, concluindo, por fim
o conceito de Direitos Fundamentais Sociais como:
... direitos e garantias coletivas que beneficiam a coletividade, os
grupos e indivíduos, com reflexos em suas relações coletivas e
particulares, exigíveis dos poderes públicos, mediante prestações
positivas e afirmativas e políticas públicas econômicas e sociais,
mediante intervenções na ordem privada, para assegurá-los
efetivando-os.79
E, sobre a extensão dos Direitos Fundamentais na relação de emprego,
importantes são as palavras de Arion Sayão Romita:
São chamados direitos sociais, porque não assistem ao
indivíduo como tal, considerado abstratamente, mas sim à pessoa
em sua vida de relação no grupo em que convive, ao indivíduo
considerado em concreto, ao indivíduo situado. São os direitos
pertinentes à teia de relações sociais formada pela pessoa no
meio em que atua, como trabalhador, como membro de
comunidades, como participante de coletividades sem as quais
não poderia desenvolver suas potencialidades nem usufruir os
bens econômicos, sociais e culturais a que aspira. São direitos
relacionados no art. 6º da Constituição brasileira de 1988: a
educação, a saúde, o trabalho, o lazer, a segurança, a previdência
social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos
desempregados, a habitação.80
79
PINTO, Airton Pereira. Direito do trabalho, direitos humanos sociais e a Constituição Federal. São Paulo: LTr, 2006, p.131.
80
ROMITA. Arion Sayão. Direitos fundamentais nas relações de trabalho. São Paulo: LTr, 2005, p. 95.
40
Prosseguindo o raciocínio desenvolvido por Sayão Romita no sentido de
que os direitos sociais (Direitos Fundamentais de 2ª geração) encontram-se descritos
no artigo 6º da Constituição Federal, passamos a analisar a topologia do referido artigo
para, de forma lógica, confirmar que as normas jurídicas de Direito do Trabalho, em
especial as referentes ao direito individual do trabalho, são Direitos Fundamentais de
2ª geração.
A Constituição Federal de 1988 encontra-se logicamente dividida em
“títulos”, que contêm “capítulos”, que contêm “artigos”, que contêm “incisos”,
“parágrafos” e “alíneas”. Essa divisão leva em consideração conceitos lógicos
baseados na “teoria das classes”, no sentido de que uma classe é um conjunto de
indivíduos que preenchem alguns requisitos de admissão (requisitos de pertinência) e
que fazem com que entre eles haja identidade em determinado aspecto.
A própria “teoria das classes” traz-nos a noção de “subclasse”, como sendo
um conjunto inserido em outro conjunto de maior dimensão, conjunto maior esse que
abrange todos os elementos do conjunto. Em suma, a “classe” envolve todos os
elementos que compõem as subclasses nela insertas. E não temos dúvida de que,
seguindo a Constituição tal divisão lógica, temos, de uma forma global os “títulos”
como “classes” envolvendo os “capítulos” como subclasses. Tem-se, assim, que os
elementos contidos nas subclasses de uma mesma classe, ou melhor dizendo, os
artigos que compõem capítulos de um mesmo título devem ser harmônicos entre si,
impossibilitando, pois, a contradição entre termos, a incompatibilidade entre tais
elementos.
Procedendo-se à análise do Título II da Constituição Federal (“Dos Direitos
e Garantias Fundamentais”), verifica-se que o “Capítulo I” trata dos “Direitos e
Deveres Individuais e coletivos”, que são regras de conteúdo genérico aplicáveis a
todos os demais capítulos. E mais, o “Capítulo II” do mesmo Título II trata “Dos
Direitos Sociais”, apontando, em seu primeiro artigo, que é o artigo 6º, o rol dos
Direitos Fundamentais de Segunda Geração positivados constitucionalmente, que são:
a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a
41
proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma prevista
na Constituição.
No que tange ao “trabalho” como “Direito Fundamental de Segunda
Geração”, a própria Constituição prevê uma “forma mínima” de realização do
trabalho, isto é, um mínimo de direitos que consubstanciam um padrão mínimo em
termos de remuneração como contraprestação pela atividade laboral prestada, assim
como proteção mínima no que se refere à segurança e à saúde no trabalho. É o que
consta do artigo 7º da Constituição Federal, acrescentando-se que o próprio caput do
referido artigo (“São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que
visem à melhoria de sua condição social...”) incorpora a essa “forma mínima” outros
direitos que visem à melhoria de sua condição social.
Portanto, de acordo com o raciocínio ora desenvolvido, são Direitos
Fundamentais de 2ª Geração não só os direitos trabalhistas mínimos contidos nos
incisos do artigo 7º da Constituição Federal, como também as demais normas jurídicas
que regulam os direitos mínimos dos trabalhadores na relação de emprego constantes
da legislação infraconstitucional, incluindo-se nesse grupo as normas jurídicas
originadas dos enunciados prescritivos constantes da Consolidação das Leis do
Trabalho.
2.4.3 A interpretação de enunciados prescritivos introdutores de Direitos
Fundamentais
Os Direitos Fundamentais, como classe formada por normas jurídicas que
têm em comum o objetivo da proteção da vida sob cada uma das acepções absorvidas
pelo Direito, possuem características uniformes, dentre elas a universalidade (no
sentido de que os Direitos Fundamentais devem ser aplicados a todas as pessoas, sem
distinção de qualquer espécie), indivisibilidade e interdependência (um direito
fundamental somente alcança a plenitude de sua realização quando os demais direitos
fundamentais são respeitados81
; como afirma Flávia Piovesan, “todos os direitos
81
ROMITA, Arion Sayão. Direitos fundamentais nas relações de trabalho. São Paulo: LTr, 2005, p.68.
42
humanos constituem um complexo integral, único e indivisível, em que os diferentes
direitos estão necessariamente inter-relacionados e são interdependentes entre si”82
),
historiciedade (entre os Direitos Fundamentais não são um dado, mas um construído)
e unidade (os Direitos Fundamentais, apesar de compreenderem diversas famílias ou
gerações, estabelece-se uma interação pela qual uma geração de Direitos
Fundamentais se relaciona com outra e dela recebe influência83
).
Ora, na interpretação de enunciados prescritivos introdutores de Direitos
Fundamentais, em especial na exploração da elasticidade semântica dos enunciados, há
que se atentar para a manutenção de todas as características típicas dessa espécie de
norma jurídica, incluindo-se no procedimento interpretativo as seguintes limitações:
a) excluir hipóteses interpretativas que criem limitação subjetiva à aplicabilidade da
norma jurídica, destinando a aplicação da norma jurídica somente a determinados
sujeitos, excluindo a aplicação sobre outros sujeitos que se encontrem na mesma
situação objetiva. Dessa forma, garante-se a manutenção da “universalidade” do
Direito Fundamental;
b) levar em consideração o “Sistema de Direitos Fundamentais”, não se permitindo a
interpretação de um texto introdutor de Direito Fundamental sem levar em
consideração os demais Direitos Fundamentais aplicáveis no Direito Pátrio, evitando-
se, assim, ao máximo possível, a colisão entre Direitos Fundamentais. Utilizando-se tal
procedimento busca-se garantir a unidade, a indivisibilidade e a interdependência dos
Direitos Fundamentais;
c) dentre as hipóteses interpretativas que se apresentarem frente à elasticidade
semântica do enunciado prescritivo, deve-se adotar aquela que melhor se compatibilize
com o real conteúdo do Direito Fundamental frente ao seu processo de criação e
desenvolvimento até a data da realização da interpretação. Garante-se, assim, a
historiciedade.
82
PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o Direito Constitucional Internacional. 5ª edição. São Paulo: Max Limonad, 2002, p. 151.
83
ROMITA, Arion Sayão. Direitos fundamentais nas relações de trabalho. São Paulo: LTr, 2005, p.77.
43
É de se destacar, também, o princípio interpretativo da máxima
efetividade que, apesar de já apresentado por nós no item 2.2 deste Capítulo como
princípio aplicável à interpretação constitucional em geral, tem peculiar aplicabilidade
na interpretação de enunciados prescritivos introdutores de Direitos Fundamentais.
Impõe referido princípio que, à uma norma deve ser atribuído o sentido que maior
eficácia lhe dê, sendo que a eficácia de que trata esse princípio é a eficácia social84
,
isto é, deve-se preferir interpretações que maximizem a sua atuação efetiva no mundo
social concreto85
. Sobre este princípio, cabe transcrição dos ensinamentos de Luís
Roberto Barroso:
A ideia de efetividade, conquanto de desenvolvimento relativamente
recente, traduz a mais notável preocupação do constitucionalismo nos
últimos tempos. Ligada ao fenômeno da juridicização da Constituição,
e ao reconhecimento e incremento de sua força normativa, a
efetividade merece capítulo obrigatório na interpretação
constitucional. A doutrina contemporânea refere-se à necessidade de
dar preferência, nos problemas constitucionais, aos pontos de vista
que levem às normas a obter a máxima eficácia ante as circunstâncias
de cada caso.
É oportuno, aqui, para a operatividade do princípio, um
aprofundamento conceitual da efetividade. Os fatos jurídicos
resultantes de uma manifestação de vontade denominam-se atos
jurídicos. Quando emanados do Poder Público, tais atos serão
legislativos, administrativos ou judiciais. Classicamente, os atos
jurídicos comportam análise científica em três planos distintos e
inconfundíveis: o da existência, o da validade e o da eficácia. Não é
possível, nesta instância, aprofundar esses conceitos. Faz-se apenas o
registro de que a existência do ato jurídico está ligada à presença de
seus elementos constitutivos (normalmente, agente, objeto e forma) e
a validade decorre do preenchimento de determinados requisitos, de
atributos ditados pela lei. A ausência de algum dos requisitos conduz à
invalidade do ato, à qual o ordenamento, considerando a maior ou
menor gravidade, comina as sanções de nulidade ou anulabilidade.
De maior interesse para os fins aqui visados é a eficácia dos atos
jurídicos, o terceiro plano de análise, que se traduz na sua aptidão para
a produção de efeitos, para a irradiação das consequências que lhe são
próprias. Eficaz é o ato idôneo pra atingir a finalidade para a qual foi
gerado. Tratando-se de uma norma, a eficácia jurídica designa a
84
CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 3ª edição. Coimbra: Almedina, 1999, p. 1097-1098.
85
MAGALHÃES FILHO, Glauco Barreira. Hermenêutica e unidade axiológica da Constituição. 3ª edição. Belo Horizonte: Mandamentos, 2004, p. 72.
44
qualidade de produzir, em maior ou menor grau, os seus efeitos
típicos, ao regular, desde logo, as situações, relações e
comportamentos nela indicados; neste sentido, a eficácia diz respeito à
aplicabilidade, exigibilidade ou executoriedade da norma. Atente-se
bem: a eficácia refere-se à aptidão, à idoneidade do ato para a
produção de seus efeitos.86
Por fim, frente à universalidade dos Direitos Fundamentais e à máxima eficácia
que deve ser buscada na interpretação e na aplicação dos Direitos Fundamentais, surge
questão importante no que tange à interpretação de textos legais infraconstitucionais
introdutores de normas jurídicas limitadoras da aplicação objetiva de Direitos Fundamentais
como, por exemplo, o artigo 62 da CLT, que introduz hipóteses de afastamento do direito a
horas extras (direito a horas extras que, de acordo com a argumentação apresentada no item
2.4.2 deste capítulo da tese, entendemos ter natureza jurídica de Direito Fundamental) em
algumas situações objetivas (de impossibilidade de controle da jornada de trabalho).
Tais enunciados prescritivos devem ser interpretados restritivamente, limitando a
idoneidade das hipóteses interpretativas (surgidas frente à elasticidade semântica do texto
normativo) àquelas que indiquem a não aplicação, num caso concreto específico, de
determinado Direito Fundamental em razão exclusiva de efetiva impossibilidade concreta de
verificação quantitativa (constatação da quantidade) e/ou de verificação qualitativa
(constatação da qualidade) de fatos do mundo fenomênico capazes de se enquadrar no
antecedente de uma norma jurídica introdutora de Direito Fundamental.
Ilustrando a aplicabilidade da conclusão teórica exposta no parágrafo anterior,
somente haverá de se considerar hipóteses interpretativas do artigo 62, I, da CLT que
evidenciem, no mundo fenomênico, a efetiva impossibilidade de controle da jornada de
trabalho (isto é, a impossibilidade efetiva, em concreto, de verificação quantitativa do fato do
mundo fenomênico - no caso, tempo de prestação de atividade laboral no exercício das
obrigações inerentes à relação de emprego - que preenche o antecedente da norma jurídica
introdutora do Direito Fundamental de percepção de horas extraordinárias).
86
BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. 7ª edição. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 253-254.
45
3. A Teoria Tridimensional do Direito de Miguel Reale e o fenômeno da mutação
normativa
Importante, inicialmente, fixarmos o nosso objetivo na utilização da Teoria
Tridimensional do Direito de Miguel Reale como referencial teórico da presente tese.
Conforme capítulos II e III desta tese, a atual tecnologia de rastreamento e
monitoramento de veículos, instrumentalizada através dos sistemas “Automatic
Vehicle Location”, modificou o regime de visibilidade praticado na fiscalização e no
controle das atividades do Motorista Rodoviário pelo seu Empregador, sem que
houvesse qualquer eventual modificação nos textos legais que objetivam reger, do
ponto de vista jurídico, as relações entre as referidas partes. Se de um lado tal
modificação do regime de visibilidade se dê, inicialmente, no campo da sociologia, os
reflexos no Direito, e mais especificamente nas normas jurídicas destinadas a
normatizar as situações fáticas sujeitas a tal modificação de regime de visibilidade, são
inexoráveis, cabendo-nos, entretanto, proceder ao desenvolvimento do raciocínio
científico explicativo de tais reflexos, e é exatamente com base na Teoria
Tridimensional do Direito de Miguel Reale que desenvolveremos tal raciocínio.
3.1 O ambiente temporal de desenvolvimento da Teoria Tridimensional do Direito
A mentalidade do século XIX foi fundamentalmente analítica ou
reducionista, sempre atentada a encontrar uma solução unilinear ou monocórdica para
os problemas sociais e históricos, ao passo que em nossa época prevalece um sentido
concreto de totalidade ou de integração, na acepção plena destas palavras, superadas as
pseudototalizações realizadas em função de um elemento ou fator destacado do
contexto da realidade87
. A suposta correspondência entre a infraestrutura social e o
sistema de normas vigentes levava, por conseguinte, o jurista a concentrar a sua
atenção nos elementos conceituais ou lógico-formais, não havendo razões para
distinguir entre Filosofia do Direito e Teoria Geral do Direito88
.
87
REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito. 5ª edição. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 10. 88
Ibidem, p. 5.
46
Impõe-se reconhecer que houve plausíveis razões históricas para que, no
século XIX, por exemplo, predominasse a imagem do Direito com base na certeza
objetiva da lei. É que as estruturas jurídicas do Estado de Direito, modelado sob o
influxo do individualismo liberal dominante na cultura burguesa, cujos valores se
impunham como expressão natural de toda uma época histórica, correspondiam,
consoante crença generalizada, às necessidades e tendências da sociedade oitocentista.
Dominando entre os juristas a convicção de uma correspondência essencial entre a
realidade sócio-econômica e os modelos jurídicos consagrados nas leis, era natural que
o problema da validade fosse posto em termos de validade formal ou de vigência89
.
Sobretudo a partir do segundo pós-guerra, uma generalizada aspiração no
sentido da compreensão global e unitária dos problemas jurídicos, abandonadas as
predileções reducionistas que levam a pseudototalizações90
. Se é certo que as
estruturas lógicas da Dogmática Jurídica tradicional não correspondem mais às
transformações operadas na sociedade atual, nem às exigências morais e técnicas do
Estado do Bem-Estar Social ou da Justiça Social – expressões com as quais se
reclamada um Estado de Direito concebido em função de uma comunidade humana
plural e, ao mesmo tempo, solidária-, também é verdade que ao lado de salutar crise de
ordem metodológica, põe-se outro problema não menos essencial: o da nova
determinação do significado da Ciência do Direito para o destino do homem91
.
Reconhecido, com efeito, o desajuste entre os sistemas normativos e as
correntes subjacentes da vida social, os domínios da Ciência do Direito viram-se
agitados por uma nova “ventania romântica”, tal como qualificado o movimento do
“Direito Livre”(Freis Recht) ou da libre recherche du droit, chegando a ser postos em
xeque os elementos de certeza indispensáveis à ordem jurídica positiva. Foi através
dos debates sobre a teoria geral da interpretação que as inquietações filosófico-
jurídicas penetraram nos redutos da Ciência Jurídica. Ao mesmo tempo, a Filosofia do
Direito embebia-se de problemática positivista, achegando-se mais concretamente às
89
REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito. 5ª edição. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 16. 90
Ibidem, p. 20. 91
Ibidem, p. 10.
47
exigências práticas do direito92
. Eis as palavras de Gény, destacadas por Miguel Reale:
“É, pois, na essência e na vida mesma do Direito Positivo que, antes de mais nada, nos
cabe penetrar, recolocando-o no meio do mundo social, do qual ele é um elemento
integrante, para estudá-lo em função das forças intelectuais e morais da humanidade,
que, somente elas, lhe podem dar real valor”93
.
A busca do essencial e do concreto surge, assim, como uma exigência
indeclinável dos novos tempos. Há um chamado vivo para a Filosofia do Direito,
porque está em jogo o destino mesmo das hierarquias axiológicas de cuja estabilidade
os códigos eram ou ainda se pretende sejam reflexos94
. Nem é demais observar que,
paralelamente ao crescente interesse pelos estudos filosófico-jurídicos, o que afirma
cada vez mais é a exigência de uma Ciência Jurídica concreta, permanentemente
ligada aos processos axiológicos e históricos, econômicos e sociais, o que se pode
observar em múltiplas direções, sob variadas formas e expressões, amiúde empregadas
pelos diversos autores, tais como “infraestrutura econômica”, “experiência jurídica”,
“realidade do direito”, “fato normativo”, “jus vivens”, “direito como conduta”, “direito
como ordenamento”, “direito como fato, valor e norma”, “socialidade do direito”,
“jurisprudência dos interesses”, “jurisprudência dos valores”etc95
.
Se os juristas, porém, interessam-se cada vez mais pela Filosofia, a
recíproca também o é, visto como os filósofos do direito abandonaram também os seus
esquemas formais e abstratos para tomarem contato cada vez mais vivo com a
positividade do direito, aprendendo a dar valor ao particular, ao contingente e ao
empírico, tal como se desenrola e se dramatiza a vida dos advogados e dos juízes, em
suma, da experiência jurídica96
.
92
REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito. 5ª edição. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 6. 93
Idem. 94
Ibidem, p. 7. 95
Ibidem, p. 8. 96
Idem.
48
Quem assume, porém, uma posição tridimensionalista já está a meio
caminho andado da compreensão do Direito em termos de “experiência concreta”,
pois, até mesmo quando o estudioso se contenta com a articulação final dos pontos de
vista do filósofo, do sociólogo e do jurista, já está revelando salutar repúdio a
quaisquer imagens parciais ou setorizadas, com o reconhecimento da insuficiência das
perspectivas resultantes da consideração isolada do que há de fático, de axiológico ou
ideal, ou de normativo na vida do Direito. Se, como adverte Recasén Siches, o Direito
é essencialmente tridimensional, essa qualidade não pode existir só para o jurista, no
plano de sua atividade científico-positiva, mas deve constituir antes um pressuposto de
validade transcendental, condicionando, por conseguinte, todas as estruturas e modelos
que compõem a experiência do direito. Se assim não fora, começaria a existir, nos
domínios da Filosofia do Direito, um pernicioso divórcio entre filósofos e juristas97
.
Nesse contexto, vê-se que a Filosofia do Direito não pode se alienar dos
problemas da Ciência do Direito, mas, ao contrário, deve achegar-se a eles,
convertendo-os em seus problemas, sob outro prisma que não o da Ciência, empregada
a palavra problema no seu sentido original, como algo posto como objeto de análise,
implicando a possibilidade de alternativas98
. É claro que, nessa procura de novos
caminhos, visando atingir o direito concreto, o problema da efetividade ou da eficácia
assumiu posição de primeiro plano, passando os juristas a se preocupar com soluções
forjadas ao calor da experiência social, ainda que com os sacrifícios dos valores da
certeza e da segurança99
. É nesse amplo contexto histórico que se situam as diversas
formas de tridimensionalismo jurídico, infensos a interpretações setorizadas ou
unilaterais da experiência jurídica, a soluções, em suma, que impliquem a
desarticulação de uma estrutura, fora da qual os conceitos de vigência, eficácia e
fundamento resultariam mutilados100
.
97
REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito. 5ª edição. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 11. 98
Ibidem, p.12. 99
Ibidem, p.17-18. 100
Ibidem, p.20.
49
Na visão de Reale, vigência, eficácia e fundamento são qualidades inerentes
a todas as formas de experiência jurídica, muito embora prevaleça mais esta ou aquela,
segundo as circunstâncias, sem que se possa partir o nexo que as vincula ao todo,
como é próprio da estrutura do Direito101
, devendo-se correlacioná-los segundo uma
compreensão dialética de complementariedade102
. Tudo isto está a demonstrar como a
pesquisa filosófica, penetrando no âmago da validez formal, anima e fecunda, dando-
lhe um novo sentido de integralidade e concreção, a Ciência Dogmática do Direito,
colaborando com os juristas positivistas em sua difícil e árdua tarefa de determinar e
sistematizar as categorias jurídicas reclamadas por um mundo em mudanças103
.
3.2 As espécies de Tridimensionalidade do Direito
São múltiplas as teorias que põem em relevo a natureza tridimensional da
experiência jurídica, nela discriminando três “elementos”, “fatores” ou “momentos” (a
diversidade dos termos já denota as diferenças de concepção), usualmente indicados
com as palavras fato, valor e norma104
. Analisemos algumas dessas teorias para, ao
fim, apontar aquela que se identifica com o pensamento de Reale.
3.2.1 A Tridimensionalidade genérica e abstrata do direito
Destacam-se a posições de Emil Lask e Gustav Radbrucj, mestres da Escola
Sud-Ocidental Alemã, que recorreram a um elemento intermédio ou de ligação posto
entre os valores ideais e os dados da experiência jurídica: esse ponto de conexão entre
a realidade empírica e o ideal do Direito seria o mundo da cultura ou da história, isto
é, o complexo de bens espirituais e materiais constituído pela espécie humana através
101
REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito. 5ª edição. São Paulo: Saraiva, 1994, p.21. 102
Ibidem, p.22. 103
Idem. 104
Ibidem, p.23.
50
dos tempos105
. Plano do valor ou do dever ser, plano da realidade causalmente
determinada e plano da cultura ou do ser referido ao dever ser, eis aí assentes as bases
de um tipo de tridimensionalidade, segundo três ordens lógicas distintas,
correspondentes, respectivamente, a juízos de valor, juízos de realidade e juízos
referidos a valores106
. Destarte, procuravam Lask e Radbruch superar a antinomia
posta entre a historiciedade de um valor transcendental (do qual o jusnaturalismo
pretendera deduzir artificialmente todo o sistema das normas positivas) e o mero
significado contingente das relações de fato, insuscetíveis de compreensão de validade
universal, como sustentavam os positivistas107
.
Lask e Radbruch apontavam cômoda distribuição de pesquisas entre o
filósofo, o sociólogo e o jurista, o primeiro incumbido de estudar a transcendentalidade
dos valores jurídicos, ou os valores jurídicos em si mesmos, com a consequente
redução da Filosofia do Direito numa Axiologia Jurídica Fundamental, o segundo,
com a tarefa de indagar das leis que regem as estruturas e os processos fáticos do
direito, isto é, o direito como fato social, nos quadros da Sociologia e o terceiro,
finalmente, empenhado na análise do Direito enquanto realidade impregnada de
significações normativas, segundo os cânones da Jurisprudência ou Ciência do Direito,
distinta pela especificidade do método jurídico-dogmático108
. Desdobra-se, nos
raciocínios de Lask e Radbruch, de maneira mais nítida neste último, o que Miguel
Reale denomina Tridimensionalidade Genérica ou Abstrata do Direito, visto como a
análise ôntica do fenômeno jurídico que os conduz a conceber, abstrata e
separadamente, cada um dos três elementos encontrados, fazendo corresponder a cada
um deles, singularmente considerado, respectivamente, um objeto, um método e uma
ordem particular de conhecimentos: a Ciência Integral do Direito seria obtida graças à
integração dos três estudos(na forma apontada por Lask), ou em virtude de simples
justaposição de três perspectivas entre si irreconciliáveis e antinômicas (como na visão
105
REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito. 5ª edição. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 24. 106
Ibidem, p.23. 107
Ibidem, p.25. 108
Idem.
51
de Radbruch)109
. Ainda no campo do tridimensionalismo genérico, interessantes são as
palavras de Josef L. Kunz, que, segundo Miguel Reale, evidenciam sobremaneira as
características de tal espécie de tridimensionalidade:
Eu sempre defendi a opinião – escreve Kunz – que há três ramos da
Filosofia do Direito e que esses ramos existem atualmente: o Analítico
(que inclui a Teoria Jurídica Pura), o Sociológico e o
Axiológico(Direito Natural). A Escola Analítica é de maior
importância para o Juiz, o Advogado e o Jurista teórico: concebe o
direito como norma, como sistema de normas, de um ponto de vista
analítico, teórico, formal, construtivo. Porém, para compreender o
direito, em toda a sua complexidade, não é menos necessário estudá-lo
do ponto de vista sociológico e axiológico. O enfoque sociológico do
direito é uma ciência causal: mais do que o direito mesmo, examina a
sua criação, e esta é, naturalmente, um fato histórico, social e político:
pertence ao reino do ser, enquanto as normas criadas em tal processo
se acham inseridas no reino do dever ser. A filosofia sociológica
considera também a efetividade do direito, e aqui se trata igualmente
de investigações causais. A filosofia jurídica axiológica, de seu lado,
critica o direito e toma como parte dessa crítica uma série de normas
extrajurídicas: o Direito Natural não é direito, mas sim Ética. Esta
tripartição, desejo acrescentar logo, corresponde às ideias de Verdross,
que reconheceu a necessidade de combinar as três direções, não
obstante as suas grandes diferenças metodológicas, para compreender
o direito em toda a sua complexidade110
.
3.2.2 A Tridimensionalidade Específica
Afirma Miguel Reale que era natural que, num dado momento dos estudos,
parecesse insustentável a posição correspondente à uma concepção tridimensional
genérica ou abstrata, vacilante entre uma justa posição extrínseca de perspectivas e
uma confessada antinomia ou aporia entre os três pontos de vista possíveis suscitados
pela experiência do Direito. Foi por volta de 1940 que surgiram as primeiras tentativas
no sentido de se mostrar a ilogicidade das teorias que, apresentando a realidade
jurídica como sendo constituída de três elementos, isto não obstante, continuavam a
109
REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito. 5ª edição. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 25-26. 110
KUNZ, Josef L. La Filosofia Del Derecho de Alfred Verdross, 1962, p. 213. Apud REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito. 5ª edição. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 38-39.
52
conferir plena juridicidade a cada um deles, abstraído dos demais111
. Tal concepção
(tridimensionalidade específica) cessa de apreciar fato, valor e norma como elementos
separáveis da experiência jurídica e passa a concebê-los, ou como perspectivas ou
como fatores e momentos “inilimináveis” do Direito: é o que Reale denomina
“tridimensionalidade específica”112
.
Mesmo o tridimensionalismo específico oferece múltiplas e até mesmo
contrastantes formulações, de tal sorte que uma doutrina não pode se distinguir das
demais pelo simples afirmar-se de uma tricotomia essencial113
. Jerome Hall, após
considerar profunda a compreensão dos “realistas” norte-americanos quando
reclamavam uma base fática para as ciências sociais, afirmava que, segundo uma
perspectiva sociológico-humanística, o Direito não é puro fato, mas um tipo distinto de
realidade social: uma certa conduta que representa a fusão de ideias legais (normas)
com fatos e valores. O problema que fica em aberto consiste em saber como é que os
três elementos(fato, valor e norma) correlacionam-se na unidade essencial à
experiência jurídica, pois sem unidade de integração não há “dimensões”, mas simples
“perspectivas” ou “pontos de vista”, sendo que, conforme ensinamentos de Reale, é só
graças à compreensão dialética dos três fatores que se torna possível atingir uma
compreensão concreta da estrutura tridimensional do Direito, na sua natural
temporalidade114
.
111
REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito. 5ª edição. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 38-39. 112
Ibidem, p. 48-49. 113
Ibidem, p.49. 114
Ibidem, p. 50.
53
3.3 As características da Tridimensionalidade do Direito de Miguel Reale
Pensa Reale que o saber jurídico não se apresenta, em seu todo, como uma
espécie de scientia omnibus, na qual todas as investigações se justaponham, mas que
ele se desdobra em planos lógicos que não podem e não devem ser confundidos, o
plano transcendental e o plano empírico-positivo, e, mais ainda, que, no segundo,
discriminam-se âmbitos ou campos distintos de pesquisa, que dão título de autonomia
à Sociologia do Direito, à Política do Direito, à Ciência Dogmática do Direito, ou à
História do Direito. O Direito é, por certo, um só para todos os que o estudam,
havendo necessidade de que os diversos especialistas se mantenham em permanente
contato, suprimindo e complementando as respectivas indagações, mas isto não quer
dizer que, em sentido próprio, possa-se falar numa única Ciência do Direito, a não ser
dando ao termo “ciência” a conotação genérica de “conhecimento” ou “saber”
suscetível de desdobrar-se em múltiplas “formas de saber”, em função dos vários
“objetos” de cognição que a experiência do Direito logicamente possibilita115
.
A unidade do Direito é uma unidade de processos, essencialmente dialética
e histórica, e não apenas uma distinta aglutinação de fatores na conduta humana, como
se esta pudesse ser conduta jurídica abstraída daqueles três elementos (fato, valor e
norma), que são o que a tornam pensável como conduta e, mais ainda, como conduta
jurídica. Não se deve pensar, portanto, na conduta jurídica como uma espécie de
mansão onde se hospedam três personagens, pois a conduta é a implicação daqueles
três fatores e com eles se confunde, ou não passa de falaciosa abstração, de uma
inconcebível atividade desprovida de sentido e de conteúdo116
.
Quando se fala em conduta jurídica não devemos pensar em algo de
substancial ou de “substante”, capaz de receber os timbres exteriores de um sentido
axiológico ou de uma diretriz normativa: ela, ao contrário, só é conduta jurídica
enquanto e na medida em que é experiência social dotada daquele sentido e daquela
diretriz, ou seja, enquanto se revela fático-axiológico-normativamente, distinguindo-se
115
REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito. 5ª edição. São Paulo: Saraiva, 1994, p.56. 116
Idem.
54
das demais espécies de conduta ética por ser o momento bilateral-atributivo da
experiência social117
.
A Teoria Tridimensional do Direito desenvolvida por Miguel Reale
distingue-se das demais, de caráter genérico ou específico, por ser concreta e
dinâmica, isto é, por afirmar que:
c.1) Fato, Valor e Norma estão sempre presentes e correlacionados em qualquer
expressão da vida jurídica, seja ela estudada pelo filósofo ou sociólogo do direito ou
pelo jurista como tal, ao passo que, na tridimensionalidade genérica ou abstrata,
caberia ao filósofo somente o estudo do valor, ao sociólogo o do fato e ao jurista o da
norma. Tem-se, assim, na forma desenvolvida por Reale, a Tridimensionalidade como
requisito essencial ao Direito118
.
c.2) A correlação entre os três elementos (fato, valor e norma) é de natureza funcional
e dialética, dada a “implicação-polaridade” existente entre fato e valor, de cuja tensão
resulta o momento normativo, como solução superadora e integrante nos limites
circunstanciais de lugar e de tempo. Trata-se da concreção histórica do processo
jurídico numa dialética de complementariedade119
.
Seria absolutamente falho, portanto, reduzir o pensamento de Miguel Reale
sobre o Direito, como ele próprio destacou, aos dois enunciados discriminados acima,
omitindo-se outros pontos não menos relevantes, sem os quais a concepção do
Tridimensionalismo de Miguel Reale ficaria irremediavelmente mutilada, podendo-se
exemplificar com o acréscimo das seguintes proposições:
c.3) As diferentes ciências, destinadas à pesquisa do direito, não se distinguem umas
das outras por se distribuírem entre si fato, valor e norma, como se fossem fatias de
algo divisível, mas sim pelo sentido dialético das respectivas investigações, pois ora se
pode ter em vista prevalentemente o momento normativo, ora o momento fático, ora o
117
REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito. 5ª edição. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 57. 118
Idem. 119
Ibidem, p. 57.
55
axiológico, mas sempre em função dos outros dois. É o que Reale reduz como
tridimensionalidade funcional do saber jurídico120
.
c.4) A Jurisprudência é uma ciência normativa (mais precisamente, compreensivo-
normativa), devendo, porém, entender-se por norma jurídica bem mais que uma
simples proposição lógica de natureza ideal: é antes uma realidade cultural e não mero
instrumento técnico de medida no plano ético da conduta, pois nela e através dela se
compõem os conflitos de interesses, e se integram renovadas tensões fático-
axiológicas, segundo razões de oportunidade e prudência. Trata-se do normativismo
jurídico concreto ou integrante121
.
c.5) A elaboração de uma determinada e particular norma de direito não é mera
expressão do arbítrio do poder, nem resulta objetiva e automaticamente da tensão
fático-axiológica operante em dada conjuntura histórico-social: é antes um dos
momentos culminantes da experiência jurídica, em cujo processo se insere
positivamente o poder (quer o poder individualizado de um órgão do Estado, quer o
poder anônimo difuso do corpo social, como ocorre na hipótese das normas
consuetudinárias), mas sendo sempre o poder condicionado por um complexo de fatos
e valores, em função das quais é feita a opção por uma das soluções regulativas
possíveis, armando-se de garantia específica. Trata-se da institucionalização ou
jurisficação do poder na monogênese jurídica122
.
c.6) A experiência jurídica deve ser compreendida como um processo de objetivação e
discriminação de modelos de organização e de conduta, sem perda de seu sentido de
unidade, que vai desde as “representações jurídicas”, que são formas espontâneas e
elementares de juridicidade (experiência jurídica pré-categorial), até o grau máximo de
expansão e incidência normativas representado pelo direito objetivo estatal, com o
qual coexistem múltiplos círculos intermédios de juridicidade, segundo formas
diversificadas e autônomas de integração social, com a concomitante e complementar
120
REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito. 5ª edição. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 57. 121
Ibidem, p.61. 122
Idem.
56
determinação de situações e direitos subjetivos. Trata-se da teoria dos meios jurídicos
e da pluralidade gradativa dos ordenamentos jurídicos123
.
c.7) A norma jurídica, assim como todos os modelos jurídicos, não pode ser
interpretada com abstração dos fatos e valores supervenientes, assim como da
totalidade do ordenamento em que ela se insere, o que torna superados os esquemas
lógicos tradicionais de compreensão do direito. É o que Reale denomina como
elasticidade normativa e semântica jurídica124
.
c.8) A sentença judicial deve ser compreendida como uma experiência axiológica
concreta e não apenas como um ato lógico redutível a um silogismo, verificando-se
nela, se bem que no sentido da aplicação da norma, um processo análogo ao da
integração normativa125
.
c.9) Há uma correlação funcional entre fundamento, eficácia e vigência, cujo
significado só é possível numa teoria integral da validade do Direito126
.
c.10) A compreensão da problemática jurídica pressupõe a consideração do valor
como objeto autônomo, irredutível aos objetos ideais, cujo prisma é dado pela
categoria do ser. Sendo os valores fundantes do dever ser, a sua objetividade é
impensável sem ser referida ao plano da história, entendida como “experiência
espiritual”, na qual são discerníveis certas invariantes axiológicas, expressões de um
valor-fonte (a pessoa humana), que condiciona todas as formas de convivência
juridicamente ordenada. Trata-se do historicismo axiológico127
.
c.11) Reale aponta consequente reformulação do conceito de experiência jurídica
como modalidade de experiência histórico-cultural, na qual o valor atua como um dos
fatores constitutivos dessa realidade (função ôntica) e, concomitantemente, como
123
REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito. 5ª edição. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 61-62. 124
Ibidem, p. 62. 125
Idem. 126
Idem. 127
Idem
57
prisma de compreensão da realidade por ela constituída (função gnoseológica) e como
razão determinante da conduta (função deontológica)128
.
c.12) Em virtude da natureza trivalente do valor e da tripla função por ele exercida na
experiência histórica, o Direito é uma realidade in fieri, refletindo, no seu dinamismo,
a historiciedade mesma do ser do homem, que é o único ente que, de maneira
originária, é enquanto deve ser, sendo o valor da pessoa a condição transcendental de
toda experiência ético-jurídica. Trata-se do personalismo jurídico129
.
c.13) Há a necessidade de uma Jurisprudência que, no plano epistemológico,
desenvolva-se como experiência cognoscitiva, na qual sujeito e objeto se co-implicam
e, no plano deontológico, não se perca em setorizações axiológicas, mas atenda sempre
à solidariedade que une entre si todos os valores, assim como à sua condicionalidade
histórica. Trata-se da Jurisprudência histórico-cultural ou axiológica130
.
3.4 A “Eticidade” como reflexo da Teoria Tridimensional do Direito de Miguel
Reale
Apresentados, através de breve descrição, o fundamento e as características
da Teoria Tridimensional do Direito de Miguel Reale, importante destacar, frente ao
objetivo por nós quisto – explicar cientificamente, tendo como pano de fundo a Teoria
Tridimensional do Direito de Miguel Reale, como a modificação do regime de
visibilidade cultuado por uma sociedade implica na modificação das normas jurídicas
postas, mesmo sem a eventual alteração de texto de lei – a “Eticidade” como uma das
consequências da aplicação da Teoria Tridimensional do Direito no Direito posto.
128
REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito. 5ª edição. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 62-63. 129
Ibidem, p.63. 130
Idem.
58
3.4.1 Análise semântica do termo “Eticidade”
Objetivando a busca do conceito do “Eticidade”, entendemos importante
iniciar pelo estudo semântico da palavra que representa tal instituto, do suporte físico
introdutor do instituto no mundo da linguagem. O termo “Eticidade” é a soma da
palavra “ética”, que pode ser utilizada, na língua portuguesa tanto como substantivo
como sob a modalidade de adjetivo, com o sufixo “idade”. Referido sufixo tem
relevante e específico papel na língua portuguesa ao atuar como formador de
substantivos abstratos derivados de adjetivos, com o significado de “qualidade ou
característica do que x”(em que x corresponde ao adjetivo que serve de base)131
. Sobre
o tema, vale transcrever as lições de Adriana Cristina Chan-Vianna e Maria Aparecida
Curupaná da Rocha Mello:
Em português, a formação de substantivos a partir de adjetivos faz-se
por sufixação, estando entre as estruturas mais produtivas aquelas
formadas por –idade (juntamente com –eza e –ice). O sufixo –idade é
o sufixo mais utilizado para a formação de substantivos a partir de
adjetivos, dado que, embora possa ocorrer em qualquer tipo de
construção, adiciona-se sobretudo a formas já derivadas a partir de
adjetivos com as estruturas X–al, X-vel, X-ico, X-ário. O sufixo
normalizador –idade, do português, é classificado como sufixo
categorial não significativo, pois determina transposição da classe dos
adjetivos para a classe dos substantivos abstratos, sem especificar
qualquer acréscimo semântico além daquele da base.132
No caso específico do termo “Eticidade”, aplicando-se o quanto acima
exposto, podemos afirmar que tal termo é substantivo abstrato que significa qualidade
ou característica de ser ético. Essa conclusão não é muito diferente daquela apontada
pelo Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa ao trazer o sentido denotativo da
palavra “Eticidade”, qual seja: qualidade ou caráter do que é condizente com a
moral133
. No entanto, parece-nos que a definição apresentada no referido dicionário
131
“Ciberdúvidas da Língua Portuguesa”. 2008. Disponível em: <http://ciberduvidas.sapo.pt/pergunta.php?id=21193>. Acesso em 12.set.2008.
132
CHAN-VIANNA, Adriana Cristina e MELLO, Maria Aparecida Curupaná da Rocha. A construção da gramática guineense. 2008. Disponível em: <http://www.abecs.net/papia/docs/17/Chan-Vianna%20&%20Melo%202007.pdf>. Acesso em: 12.set. 2008.
133
Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Disponível em: <www.uol.com.br>. Acesso em 12.set. 2008.
59
não pode ser simplesmente transposta para o raciocínio que travamos nesta pesquisa,
vez que parte da sinonímia entre “ética” e “moral” que, parece-nos, não é o sentido
utilizado para o radical “ética” no termo derivado “Eticidade” quando utilizado por
Miguel Reale.
Para que possamos ter uma definição mais profunda do que vem a ser
Eticidade é necessário que investiguemos o significado do adjetivo que serve de
radical para a formação de tal termo, isto é, o significado em que o adjetivo “ética” é
utilizado.
3.4.2 A polissemia da palavra “Ética”
O termo “ética” é, sem dúvida alguma, polissêmico, podendo, a partir do
seu mesmo suporte físico, gerar grande quantidade de significados. Passamos, nos
próximos parágrafos, a apontar alguns significados que são utilizados para o referido
termo para que, num passo seguinte, possamos investigar, de forma certeira o sentido
do adjetivo “ética” que se encontra qualificado pelo sufixo “idade” formando o
substantivo abstrato “Eticidade” sob o enfoque do raciocínio desenvolvido por Miguel
Reale.
O Homem diferencia-se dos demais animais pela sua racionalidade, pela
sua capacidade de, tendo conhecimento da realidade que o envolve e da potencialidade
de seus atos, exercer a sua própria razão. Esse processo de atuação racional do Homem
envolve o livre-arbítrio, entendido como a liberdade de praticar os atos desejados, mas
que tem como baliza os efeitos potenciais dos atos realizados sob a permissão do livre
agir. Esses efeitos potenciais do agir humano se dirigem não só à individualidade do
ser atuante, mas também à comunidade que o cerca, motivo pelo qual o binômio
liberdade-responsabilidade interessa não só à cada cidadão, mas à sociedade.
A manutenção da sociedade e o seu funcionamento harmônico dependem
diretamente da responsabilidade, do cuidado de cada indivíduo no exercício de seu
livre arbítrio. O Homem, frente à uma determinada situação concreta que é enfrentada,
60
realiza o seu juízo de valor, que é a parte da psique humana onde reside o
discernimento primordial entre o erro e a verdade. É o hábito mental de apreciar as
coisas, as pessoas e as situações. Através do juízo de valor, há a efetiva análise das
possibilidades que tem o Homem, naquele momento, de agir, isto é, dos
comportamentos possíveis frente à situação, bem como dos efeitos potenciais que
cada um desses comportamentos possíveis é capaz de gerar na sua individualidade e
no mundo que o rodeia. Exemplifiquemos: atrasado para o serviço, o Homem trafega
pela via pública, quando avista um idoso caído ao chão em razão de um acidente
automobilístico sem que qualquer pessoa estivesse por perto para ajudá-lo. Nesse
momento, o Homem tem a liberdade de agir, praticando o ato que bem entender. Aqui
começa a agir o seu livre-arbítrio. Munido pelo juízo de valor, o Homem passa a
enumerar os comportamentos que lhe são possíveis naquela situação, como continuar o
seu percurso sem auxiliar o ferido, continuar o percurso e telefonar para que alguém
socorra o ferido, entre outros. Para cada um desses comportamentos possíveis, o
Homem analisa os efeitos potenciais de cada um deles: se continuar o seu percurso, o
idoso poderá vir a falecer por omissão de socorro; se suspender o seu percurso, poderá
sofrer punições de seu empregador em razão do atraso; entre outras possibilidades.
Aberta na mente humana essa virtualidade de possibilidades e seus potenciais efeitos,
cabe ao homem optar por um dos comportamentos possíveis, realizando-os e se
responsabilizando por seus efeitos.
A relação entre o livre arbítrio e os efeitos por ele gerados resulta na
necessidade de existência de parâmetros, de balizas, de limites para o livre agir
humano. Tais parâmetros são gerados pelo próprio Homem, vez que, sentindo no seu
interior que foi criado para aperfeiçoar a sua essência, passa a direcionar o seu juízo de
valor para a realização do bem, buscando a sua auto-perfeição, perfeição essa que
também é buscada pela sociedade, que impulsiona o indivíduo para a realização de
comportamentos que não desarmonizem a vida social. Através da experiência, do
conviver e da observação do mundo que o rodeia, o homem acumula um grupo de
regras que acredita serem eficazes e úteis para o seu aperfeiçoamento. A formulação
61
dessas regras, bem como o conjunto sistemático de normas oriundas dessa formulação,
recebem a denominação de moral134
.
Assim, por moral entende-se não só a formulação das normas morais, como
também a “moral positiva”, que é o conjunto de normas e valores morais de fato
aceitos por uma comunidade para regular as relações entre os seus membros135
. E
mais, se a moral está diretamente relacionada à comunidade a que é inerente, a
variedade de contextos históricos, sociais e culturais leva à uma pluralidade de morais,
significando dizer que morais concretas podem coexistir ou suceder uma às outras,
sendo nessa pluralidade que o Homem, como sujeito moral, expressa seu papel ativo e
criador136
. Essa teoria é percebida na prática ao, por exemplo, verificarmos que numa
mesma cidade existem bairros com diferentes características, gerando morais positivas
diferentes em cada um desses.
Apresentado o conceito de moral, partimos para o conhecimento da ética.
Muitos estudiosos não conseguem constatar a diferença entre a ética (que advém do
grego ethos, que significa modo de ser) e moral (que tem origem no latim mores, cujo
significado é costumes), tratando-as, em razão da semelhança semântica dos termos,
como sinônimos137
. Essa, entretanto, não será a forma que compreenderemos ética e
moral. Tratando-se o presente texto de um estudo científico, devemos nos atentar à
precisão dos termos, que é uma característica da ciência, evitando-se a ambiguidade
dos vocábulos, já que a delimitação do objeto é pressuposto do controle da incidência
das proposições descritivas produzidas pelo conhecimento científico138
.
134
DROPA, Romualdo Flávio. Ética, Política e Justiça. 2006. Disponível em: < http://dropa.sites.uol.com.br/etica3.htm>. Acesso em 15.mar.2006.
135
GARRAFA, Volnei; KOTTOW, Miguel e SAAD, Alya (organizadores). Bases conceituais da bioética: enfoque latino-americano. Tradução de Luciana Moreira Pudenzi e Nicolas Nyimi Campanário. São Paulo: Gaia, 2006, p. 122-123.
136
SOARES, André Marcelo M. e PIÑERO, Walter Esteves. Bioética e Biodireito: uma introdução. São Paulo: Edições Loyola, 2002, p.25.
137
Ibidem, p.21. 138
CARVALHO, Paulo de Barros. Língua e Linguagem – Signos Linguísticos – Funções, Formas e Tipos de Linguagem – Hierarquia de Linguagem. In Apostila de Filosofia do Direito I (Lógica Jurídica), utilizada como
62
A ética é a ciência que tem como objeto a moral, é um conhecimento
racional que, a partir da análise de comportamentos concretos, caracteriza-se pela
preocupação em definir o que é bom, enquanto a moral preocupa-se com a escolha da
ação que, em determinada situação, deve ser empreendida139
. A ética foi
profundamente tratada pelos filósofos gregos, sendo que para eles a ética se
subordinava à ideia de felicidade da vida presente e do soberano bem, entendendo que
o objetivo supremo era encontrar uma definição desse bem, de tal maneira que o sábio
se bastasse a si mesmo, isto é, que dependesse dele mesmo para ser feliz, estando a
felicidade ao alcance de todo homem racional140
. Para muitos, ética e moral não se
excluem e não estão separadas, embora os problemas teóricos e práticos se
diferenciem, de maneira que decidir e agir concretamente é um problema prático e,
portanto, moral. Investigar essa decisão e essa ação, a responsabilidade que a elas é
inerente, e o grau de liberdade e de determinismo aí envolvidos é um problema teórico
e, portanto, ético141
.
Hoje, muito se fala sobre a “crise da ética”, fenômeno gerado em nome da
modernidade, do avanço tecnológico ou das novas tendências em que se verifica a
existência de um modo de pensar, de agir, de viver fora dos princípios morais que até
pouco tempo eram respeitados e aceitos, essa é a chamada crise ética. E a aceitação
natural e constante dessa nova situação caracteriza a denominada crise da ética, ao
arrepio das regras que regem os atos humanos, tanto particulares, como públicos,
existindo uma superestimação das coisas em detrimento do sentido da vida142
. A ética
material de apoio na cadeira de “Lógica Jurídica” no curso de pós-graduação stricto sensu na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo no 2º semestre do ano de 2002, p. 33.
139
GARRAFA, Volnei; KOTTOW, Miguel e SAAD, Alya (organizadores). Bases conceituais da bioética: enfoque latino-americano. Tradução de Luciana Moreira Pudenzi e Nicolas Nyimi Campanário. São Paulo: Gaia, 2006, p.24.
140
BARONI, Robison. Cartilha de ética profissional do Advogado: perguntas e respostas sobre ética profissional baseadas em consultas formuladas ao Tribunal de Ética da OAB/SP. 3ª edição. São Paulo: LTr, 1999, p. 23.
141
SOARES, André Marcelo M. e PIÑERO, Walter Esteves. Bioética e Biodireito: uma introdução. São Paulo: Edições Loyola, 2002, p. 24-25.
142
BARONI, Robison. Cartilha de ética professional do Advogado: perguntas e respostas sobre ética profissional baseadas em consultas formuladas ao Tribunal de Ética da OAB/SP. 3ª edição. São Paulo: LTr, 1999, p. 27.
63
se divide em dois grandes campos de estudo, quais sejam: a Deontologia (que é a
“ciência dos deveres”) e a Diceologia (que é a “ciência dos direitos”). Como a ética
cobra o comportamento moral, abre, por consequência, caminho para o exercício de
direitos e cumprimento de obrigações. No campo da ética, o que pode ser feito ou
realizado é chamado direito, no sentido do que é autorizado, aceito ou admitido, e o
que não pode é denominado dever, no sentido de obrigação143
.
Diversos são os tipos de moral ou de sistema ético, vez que, como já
tratamos, a moral está diretamente relacionada à comunidade a que é inerente, sendo
que a variedade de contextos históricos, sociais e culturais leva à uma pluralidade de
morais. Assim, cada tipo de moral, que leva, respectivamente, a diversos sistemas
éticos, possui características próprias, onde cada uma delas foca-se em questões
particulares. Assim, têm-se as “éticas grupais”, as “éticas profissionais”, entre
outras144
.
Importante também a distinção que é feita entre “ética formal” e “ética de
valores”. Em relação à primeira, segue-se a visão kantiana, em sua filosofia prática, no
sentido de que a significação moral do comportamento não reside em seus resultados
externos, mas na pureza da vontade e na retidão dos propósitos do agente considerado.
Afere-se a moralidade de um ato a partir do foro íntimo da pessoa. A boa vontade não
é boa pelo que efetue ou realize, não é boa por sua adequação para alcançar algum fim
que nos tenhamos proposto, é boa só pelo querer, isto é, é boa em si mesma.
Considerada por si mesma, é, sem comparação, muitíssimo mais valiosa do que tudo
aquilo que por meio dela pudéssemos realizar em proveito ou graça de alguma
inclinação145
. A compatibilidade externa entre a conduta e a norma é mera legalidade,
sem repercussão no valor ético da ação. Moralmente valioso é o atuar que, além da
143
BARONI, Robison. Cartilha de ética professional do Advogado: perguntas e respostas sobre ética profissional baseadas em consultas formuladas ao Tribunal de Ética da OAB/SP. 3ª edição. São Paulo: LTr, 1999, p. 43.
144
Ibidem, p. 24. 145
KANT, Emmanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Versão castelhana de Manuel García Morrente, Madrid: Caple, 1921, p. 22. Tradução nossa.
64
concordância com aquilo que a norma impõe, exprime o cumprimento do dever pelo
dever, ou seja, por respeito à exigência ética146
.
O fundamento da lei moral, para a ética formal, não está na experiência,
mas se apóia em princípios racionais apriorísticos. A lei cuja representação deve
representar o móvel da conduta eticamente boa é o imperativo categórico, o critério
supremo da moralidade: “age sempre de tal modo que a máxima de tua ação possa ser
elevada, por sua vontade, à categoria de lei de universal observância”147
.
Já a “ética de valores” é uma inversão da tese kantiana. Para Kant, o valor
de uma ação depende da relação da conduta com o princípio do dever, o imperativo
categórico. Para a filosofia valorativa, o valor moral não se baseia na ideia de dever,
mas dá-se o inverso: todo dever encontra fundamento num valor148
. Só deve ser aquilo
que é valioso e tudo o que é valioso deve ser. A noção de valor passa a ser o conceito
ético essencial, o valor não arbitrariamente convencionado, pois, o que é valioso vale
por si, ainda quando seu valor não seja reconhecido nem apreciado.
Frente à essa multiplicidade de significados de “ética”, é necessário que
investiguemos, de forma específica, aquele que é utilizado no termo “eticidade” nos
moldes delineados por Miguel Reale, vez que é exatamente essa a definição que nos
levará à correta conclusão quanto ao conteúdo e a aplicabilidade da “eticidade” no
sentido em que o termo é ora estudado.
3.4.3 A definição de “ética” para Miguel Reale
“Ética” é vista por Reale como uma espécie de conduta, havendo
necessidade, portanto, de uma leitura sobre a relação feita pelo referido Mestre entre
conduta e valor e, posteriormente, os tipos de conduta por ele apresentados.
146
NALINI, José Renato. Ética Geral e Profissional. 2ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 53-54. 147
KANT, Emmanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Versão castelhana de Manuel García Morrente, Madrid: Caple, 1921, p. 67. Tradução nossa.
148
NALINI, José Renato. op.cit., p.57.
65
3.4.3.1 Conduta e valor
Afirma Reale que o Homem, enquanto meramente causado, não se
distingue dos outros animais, a não ser pela consciência de sua determinação,
porquanto realiza os mesmos atos de que participam todos os seres do mesmo gênero.
O específico do Homem é conduzir-se, é escolher fins e pôr em correspondência meios
e fins149
. A ação dirigida finalisticamente (o ato propriamente dito ou a ação em seu
sentido próprio e específico) é algo que só pertence ao Homem. Não se pode falar, a
não ser por metáfora, de ação ou de ato de um cão ou de um cavalo. O “ato” é algo
pertinente, exclusivamente, ao ser humano. Ação, em seu sentido rigoroso, ou o ato, é
energia dirigida para algo, que sempre é um valor. O valor, portanto, é aquilo a que a
ação humana tende, porque se reconhece, num determinado momento, ser motivo,
positivo ou negativo da ação mesma (a que se denomina relatividade temporal do
valor). Atuar sem motivo é próprio do alienado. Alienado é aquele que está alheio ao
seu conduzir-se, é o que perdeu o sentido de sua direção e de sua dignidade150
.
Valor e dever ser implicam-se e se exigem reciprocamente. Sem a idéia de
valor, não temos a compreensão do dever ser. Quando o dever ser se origina do valor,
e é recebido e reconhecido racionalmente como motivo da atuação ou do ato, temos
aquilo a que se chama fim, que é o dever ser do valor reconhecido racionalmente como
motivo de agir151
. O que se declara fim não é senão um momento de valor abrangido
por nossa racionalidade limitada, implicando um problema de meio adequado à sua
realização. O nexo ou relação de meio e fim é, não pode deixar de ser, de natureza
racional, mas a referibilidade ou imantação a um valor pode ser ditada por motivos que
a razão não explica. A História humana é um processo dramático de conversão de
valores e fins e de crises culturais resultantes da perda de força axiológica, verificada
em fins que uma nova geração se recusa a “reconhecer”152
.
149
REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 20ª edição. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 378. 150
Ibidem, p.379. 151
Idem. 152
Ibidem, p. 379.
66
3.4.3.2 Fins e categorias do agir
Sendo diversos os valores e, por consequência, os fins que o Homem se
propõe, ensina Reale que a ação teleologicamente determinada, ou o ato, pode ser
discriminada segundo tenha por fim:
- conhecer ou realizar algo, sem visar direta e necessariamente a outras ações possíveis
(ações de natureza teorética, ou de natureza estética);
- conhecer ou realizar algo, visando direta e necessariamente a outras ações possíveis
(ações de natureza prática: ou econômicas, ou éticas)153
.
Na primeira categoria (atividades teoréticas e estéticas), a lei e a forma
constituem, de certo modo, a plenitude do agir, delas não brota uma atitude necessária
para a ação, pois são ambas modalidades de conhecimento, de explicação ou de
compreensão, mas não postulam fins em razão do fim já atingido pelo conhecimento.
Na segunda categoria (ações de natureza prática – econômicas ou éticas), o que
distingue é o fato de não visarem a um resultado como tal, mas como simples
momento que conduz a outros comportamentos possíveis: não é senão ponto de partida
para novas ações complementares. Assim, por exemplo, o alcance de um bem
econômico é condição ou estímulo para novas atividades tendentes à conquista de
novas utilidades, pois, na realidade, só é econômica uma ação enquanto é momento ou
elo no processo da produção das riquezas. Como se trata de ações que são base ou
condição de ações sucessivas da mesma natureza, dizemos que são ações práticas154
.
Neste tipo de ações (ações práticas) cabe distinguir, porém, as que sucedem segundo
um nexo opcional de conveniência ou de oportunidade, o que lhes dá um cunho
técnico (ações econômicas), e aquelas que se ligam por uma necessidade deontológica
reconhecida pelo agente como razão essencial de seu agir (ações éticas)155
.
153
REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 20ª edição. São Paulo: Saraiva, 2002, p.380. 154
Ibidem, p.381. 155
Ibidem, p.383.
67
Desse modo, podemos distinguir certas ações ou atividades, as de ordem
ética, que, ao atingirem um termo visado, subordinam-se a normas ou a regras, abrem-
se para o campo das ações possíveis, como uma flor que se vai converter em fruto: a
ação possível é, no fundo, o conteúdo mesmo da norma ética, o seu destino, o seu
significado. Sem referibilidade à praxis, a norma não tem significado, vez que
erradicada do processo de que provém e do processo a que se destina, não é
compreendida em sua verdadeira natureza, daí se originando o equívoco dos que a
concebem como puro juízo lógico ou mera forma sem conteúdo156
.
Momento da dinâmica social e da existência coletiva, em seu projetar-se
como linha entre passado e o futuro, a norma exprime sempre a congruência e a
integração de dois elementos: o valor e a ação. Há, por conseguinte, uma modalidade
de ação que é de tipo normativo. É a essa categoria de ação que se dá o nome de
conduta ética, que pode ser religiosa, moral, política, jurídica157
.
Eis uma ilustração do exposto até o presente momento:
Integração e congruência AÇÃO de tipo Religiosa
entre VALOR e AÇÃO NORMATIVO CONDUTA ÉTICA Moral
Política
Jurídica
NORMA NÃO É MERO JUÍZO LÓGICO OU FORMA SEM CONTEÚDO
NORMA É FRUTO DA CONGRUÊNCIA ENTRE VALOR E AÇÃO
156
REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 20ª edição. São Paulo: Saraiva, 2002, p.383. 157
Idem.
68
Se a ação humana subordina-se a um fim ou a um alvo, há direção, ou pauta
assinalando a via ou a linha de desenvolvimento do ato. A expressão dessa pauta de
comportamento é o que se chama de norma ou de regra. Não existe possibilidade de
“comportamento social” sem forma ou pauta que não lhe corresponda. A cada forma
de conduta corresponde a norma que lhe é própria. A conduta religiosa implica normas
ou regras religiosas, assim como a conduta moral implica regras ou normas de origem
moral. Em geral, somos levados a confundir conduta com a sua norma, tão difícil é
separar o problema do comportamento ético da sua medida158
.
Comportar-se, de certa forma, é proporcionar-se uma regra, é integrar, no
processo da ação, aquela pauta que marca a sua razão de ser. É por tais motivos que
não podemos compreender o estudo das regras jurídicas ou morais como simples
entidades lógicas, como meras noções, sem a referência necessária ao problema da
ação, ao problema da realidade social159
. Tem-se, assim, uma necessária relação entre
a norma e a realidade social, isto é, a impossibilidade de análise normativa meramente
abstrata.
Contesta Reale que uma regra possa ser erradicada da conduta a que se
refere, porque, se fizermos abstração do problema da conduta, não estaremos fazendo
Ciência Jurídica, mas, sim, Lógica Jurídica, por esforço de abstração (não
desqualificando o estudo de ordem lógica, que é legítimo e necessário, mas deve ser
completado com a implicação da realidade social ordenada, sem a qual a norma não
tem valor de norma jurídica). Norma e conduta são, portanto, termos que se exigem e
se implicam, mas sem se reduzirem um ao outro, subsistindo cada um deles em
implicação recíproca, segundo o que Miguel Reale identifica como “dialética de
complementariedade”, que caracteriza e governa todo o processo histórico-cultural160
.
Elucidada a correspondência entre norma e conduta, podemos esclarecer
que a Ética não é a doutrina da ação em geral, mas propriamente a doutrina da
158
REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 20ª edição. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 384. 159
Idem. 160
Ibidem, p.385.
69
conduta enquanto inseparável de sua razão ou critério de medida, de sua norma,
mediante a qual se expressa teleologicamente um valor. A Ética é, em suma, a
ordenação da conduta, o que equivale a dizer: a teoria normativa da ação161
. Eis a
definição de Ética para Miguel Reale.
Fica, assim, delineada uma distinção essencial entre Economia (atividade
prática de cunho opcional e técnico) e Ética (atividade não subordinada a fins
particulares, e de caráter obrigatório), compondo ambas a esfera de estudos
denominada Teoria da Conduta162
. Quando o homem age, desloca-se em relação a
outros homens, toma uma posição nova perante os demais, assume uma “dimensão”
nos planos social e histórico, e o faz sempre na dependência de suas circunstâncias. A
conduta, portanto, é sempre um fato social e humano, um acontecer no “habitat”
natural do homem, que é a sociedade, embora, como já se verificou, nem toda ação
seja “conduta”. A sociedade não é simples dado da natureza, mas também um
“construído”, algo que a espécie humana veio modelando através do tempo, tendo
como fator inicial o instinto de socialidade, a força que levou o Homem à convivência,
dada a sua estrutura ou conformação biopsíquica163
. A socialidade é tendência natural
do homem, mas a sociedade é permanentemente “construída”, algo que uma geração
recebe e transmite a outra, quando mais não seja pelo fato fundamental da linguagem,
sendo uma das gerações mais felizes por poderem transferir proporcionalmente mais
do que receberam. Portanto, toda conduta é um fato social e histórico, porque envolve
sempre um enlace concreto do Homem com outros Homens, ou uma posição do
Homem com referência a outros homens e a seus bens, numa trama de interesses e de
fins que se desenrola no tempo164
.
161
REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 20ª edição. São Paulo: Saraiva, 2002, p.385. 162
Idem. 163
Ibidem, p.386. 164
Ibidem, p.387.
70
3.4.3.3 Momentos da conduta
O Homem reconhece nas verdades encontradas um motivo preferencial de
ação, caso em que o verdadeiro é estimado como bem165
. A meta da atividade ética é
dada pelo valor do bem que pode ser de cunho moral, religioso, jurídico, econômico,
estético etc, desde que posto como razão essencial do agir. Certos valores assumem
uma espécie de dupla valoração, como se passa, por exemplo, quando o valor
puramente lógico da verdade, tornando-se também objeto de uma valoração ética,
reveste o caráter de um bem moral, dando lugar a um dever, cujo cumprimento é uma
virtude que se chama veracidade166
.
Na realidade, atribuir a um valor a força determinante da conduta é, no
domínio da “prática”, convertê-lo em fim ético, o que explica possam o esteticismo, o
utilitarismo ou o cientificismo assumir a dignidade de concepções morais da vida. Em
tais casos temos valores objetivados nas ciências, nas artes, nas instituições jurídicas,
valendo como bens morais, sem alteração de seu conteúdo axiológico específico167
. O
certo é que o bem ético implica sempre “medida”, ou seja, regras ou normas,
postulando nesse sentido de comportamento, com possibilidade de livre escolha por
parte dos obrigados, exatamente pelo caráter de dever ser e não de necessidade física
(ter que ser) de seus imperativos168
. Tem-se, assim, a norma como “medida” do
comportamento, compreendendo-se “medida” como atribuição de valor.
Em geral, o bem, que na conduta ética se atinge, representa um momento
maravilhoso de plenitude do ser, não deixa de ser um momento cuja atualização gera
novos ideais, o que demonstra o caráter transcendental dos valores169
, podendo-se
concluir pela relatividade temporal do bem, com a consequente modificabilidade
natural frente a novos ideais.
165
REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 20ª edição. São Paulo: Saraiva, 2002, p.388. 166
Ibidem, p.389. 167
Idem. 168
Ibidem, p.389. 169
Idem.
71
3.4.3.4 Especificidade da conduta ética
É no plano específico da conduta ética, mais do que no plano da ação
prático-econômica, exatamente em razão de seu projetar-se obrigatório e geral para
ações futuras, que a tridimensionalidade se mantém como característica ou traço
essencial, sem jamais se resolver em unidade capaz de pôr termo à tensão entre fato e
valor. Não se trata, em tal caso, de se expressar um juízo, de se formular uma lei, nem
tampouco de se subordinar um conteúdo à plasticidade de uma forma. Trata-se de se
modelar o Homem mesmo, de legalizar-se ou de formalizar-se, daí o caráter
provisório, insuficiente de toda norma ética particular, cuja universalidade ética reside
na tensão inevitável que a liberdade espiritual estabelece entre a realidade e o ideal170
.
O Homem jamais se desprende do meio social e histórico, das
circunstâncias que o envolvem no momento de agir. Delas participa e sobre elas reage,
são forças do passado que atuam como processos e hábitos lentamente constituídos,
como laços tradicionais e linguísticos, que a educação preserva e transmite, são forças
do presente com seu peso histórico imediato, são forças do futuro que se projetam
como idéias-força, antecipações e programas de existência envolvendo
dominadoramente a psique individual e coletiva171
. Esse elemento que cerca o Homem
e lhe impõe limites, que é de certa maneira negativo perante uma liberdade criadora
sem peias, é o que se denomina fato. Não há conduta humana (e o “humano” aqui é
redundante) que não se desenvolva condicionalmente a um complexo de fatos (físicos,
econômicos, históricos, estéticos, jurídicos, morais, religiosos) de maneira que sempre
o valor é atingido ou negado, não só na proporção da capacidade realizadora subjetiva
do agente, mas também em função da totalidade das circunstâncias em que o seu agir
se situa, a norma representa tensão entre fato e valor, e o sentido concreto e unitário
dessa relação172
.
170
REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 20ª edição. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 391-392. 171
Ibidem, p.392. 172
Idem.
72
Quando Reale afirma que o processo cultural só é compreensível segundo
uma dialética de implicação e polaridade, ou de complementariedade, quer o mesmo
se referir à tensão fato-valor, pois estes elementos não são suscetíveis de se resolverem
um no outro, mas tão somente de se comporem em implicação ou integração, quer
através de formas estéticas, quer através de normas éticas. Daí a impossibilidade de se
compreender a norma como algo per se stante, fora do processo em que se instaura e
que lhe dá conteúdo, de seus pressupostos fáticos e axiológicos. Isto posto, se toda
espécie de conduta ética é tridimensional, não bastará apontar a existência de três
elementos ou fatores para caracterizar e distinguir qualquer de suas modalidades, a
diferença deverá resultar do modo de enlace que se constitui entre os elementos fático
e o axiológico para dar nascimento a distintas espécies de normas morais, religiosas ou
jurídicas173
.
3.4.3.5 Modalidades de conduta
Afirma Reale que as principais modalidades de conduta que compõem o
amplo domínio da ética são as condutas religiosa, moral, costumeira e jurídica,
passando a analisar cada uma delas:
a) conduta religiosa: o Homem, em primeiro lugar, pode agir sem encontrar em si
mesmo a razão de agir, nem tampouco nos demais, mas adaptando a sua conduta ou
comportamento a algo que é posto acima dos homens individualmente considerados ou
de sua totalidade. Tais valores não se referem também à “sociedade” tomada como um
todo distinto de seus elementos componentes ou à síntese das aspirações humanas. Em
tais casos, tem-se que o valor determinante da ação transcende aos indivíduos e à
sociedade. Quando o Homem age no pressuposto dessa direção transcendente, tem-se
a conduta religiosa. Manifesta-se, pois, um valor transcendente, que não se refere ao
indivíduo, ao social ou ao histórico. Trata-se da conduta religiosa, que se desenvolve
no espaço e no tempo, como toda conduta, mas subordinada intencionalmente a
valores não temporais174
.
173
REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 20ª edição. São Paulo: Saraiva, 2002, p.393. 174
Ibidem, p.394.
73
b) conduta moral: os homens não se vinculam em seu agir apenas por valores de
transcendência, mas também se ligam por algo que está neles mesmos ou, então, nos
outros homens. Praticamos determinado ato e sentimos que é reflexo ou expressão de
nossa personalidade e que, portanto, o motivo de nosso agir é um motivo que se põe
radicalmente em nós. A última instância do agir é o Homem na sua subjetividade
consciente. Quando a ação se dirige para um valor, cuja instância é dada por nossa
própria subjetividade, estamos perante um ato de natureza moral. O que distingue a
conduta moral é esta pertinência da estimativa ao sujeito mesmo da ação. De certa
forma, poder-se-ia dizer que, no plano da conduta moral, o Homem tende a ser o
legislador de si mesmo. Não é preciso, porém, que ele mesmo tenha posto a regra
obedecida, porque basta que a tenha tornado sua. Quando o nosso comportamento se
conforma a uma regra e nós a recebemos espontaneamente, como regra autêntica e
legítima de nosso agir, o nosso ato é moral175
.
O que importa, pois, é que haja sempre recepção e assentimento. Ninguém
pode praticar um ato moral pela força ou pela coação. A moral é compatível com
qualquer ideia ou plano de natureza coercitiva, quer de ordem física, quer de ordem
psíquica. No ato moral é essencial a espontaneidade, de tal maneira que a educação
para o bem tem de ser sempre uma transmissibilidade espontânea de valores, uma
adesão ao valioso, que não implica nenhuma subordinação que violente a vontade ou a
personalidade. A ideia de pessoa vem exatamente desse reconhecimento do Homem
como um ser que deve ser autenticamente ele mesmo. O Homem é pessoa enquanto
age segundo sua natureza e seus motivos, na totalidade de seu ser, sem se alienar a
outrem. O indivíduo é o Homem enquanto casualmente determinado, mas a pessoa é o
Homem enquanto se propõe fins de ação, sendo raiz inicial do processo estimativo.
Por outras palavras, o Homem enquanto mero indivíduo, como ser puramente
biológico, não foge às regras determinadas causalmente, só superando o plano
naturalístico quando se põe como instaurador de valores e fins. O homem, visto na
175
REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 20ª edição. São Paulo: Saraiva, 2002 p.396.
74
essência de sua finalidade, é pessoa, isto é, um ser com possibilidade de escolha
constitutiva de valores176
.
Portanto, existe uma modalidade de conduta cuja direção se encontra no
Homem mesmo como instância que valora o agir e dá a pauta do comportamento: é a
conduta moral177
. O ato moral é um ato que encontra no plano da existência do sujeito-
agente a sua razão de ser e, mais propriamente, tem sua instância axiológica no plano
da existência do sujeito que pratica a ação. A instância valorativa, a medida axiológica
da ação, é dada, em última análise, pelo foro do sujeito, que, no fundo, é o juiz último
que mede, com seu critério, a ação moral, que não é possível ser concebida sem adesão
e assentimento178
.
c) conduta costumeira: é possível conceber-se e se admitir uma outra espécie de
conduta ética, que é aquela em que a instância valorativa ou medida fundamental do
agir não se encontra propriamente no sujeito que age, mas, ao contrário, no outro
sujeito, nos demais sujeitos. Esse campo vastíssimo das ações que se referem aos
costumes sociais, às regras consuetudinárias de trato social, ou de civilidade, tais como
as de etiqueta, cortesia ou cavalheirismo. Efetivamente, existem condutas que o
homem segue em razão do que lhe dita a convivência social, sendo mais guiado pelos
outros do que por si mesmo, mais se espelhando na opinião alheia do que na própria
opinião, recebendo do todo social a medida de seu comportamento, donde falar-se em
moral social, na qual a força dos usos e hábitos é relevante179
.
O costume coloca o Homem na atitude de quem está se conformando ao
viver comum e, em certos casos, fá-lo partícipe do comportamento dos demais,
subordinando-se ao estalão apreciativo dominante no seio do grupo social. Pelas regras
de costume se situa o Homem na sociedade, por sua maneira de ser e de se conduzir,
176
REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 20ª edição. São Paulo: Saraiva, 2002, p.397. 177
REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito. 5ª edição. São Paulo: Saraiva, 1994, p.397. 178
Ibidem, p. 298-399. 179
Ibidem, p.399.
75
de participar dos bens da vida, assim como em suas reações perante o mal sofrido, em
sucessivos atos de participação. O que nessas regras sobreleva é a “conformidade
exterior”. Não é dito que não seja possível nesse domínio haver espontaneidade e
sinceridade, ciência e consciência de sua legitimidade, mas estes não são requisitos
essenciais. Há, nesse domínio das regras de trato ou civilidade social, certa nota
dominante de exterioridade, porquanto a pauta do julgamento, a instância axiológica
do agir, é mais dada pela pessoa dos outros do que por nossa própria pessoa. Pode
haver coincidência entre nossa sinceridade e o nosso agir, mas o elemento intencional,
em tal caso, é acessório. O ato de cortesia ou de gentileza, por exemplo, subsiste desde
que a exterioridade do gesto ou do comportamento seja observada180
.
Comparando a conduta costumeira com a conduta moral, podemos observar
que ambas são bilaterais, no sentido de que pressupõem sempre a presença de dois ou
mais homens. Trata-se, porém, de bilateralidade diversa do ponto de vista estimativo,
porquanto o ato moral não prescinde jamais da íntima e sincera participação do sujeito
da ação181
.
d) conduta jurídica: a palavra bilateralidade pode ser usada ou em sentido ôntico ou em
sentido axiológico, ora levando-se em conta a relação ou nexo entre dois ou mais
indivíduos, ora atendendo-se mais propriamente o sentido dessa relação mesma. Tanto
o Direito quanto a Moral são bilaterais, porquanto são sempre fatos sociais que
implicam a presença de dois ou mais indivíduos. Não existe ato moral fora do meio
social. Quando se fala, portanto, em bilateralidade do Direito, o que se visa é mais o
sentido dessa relação, a instância valorativa ou deontológica que nela se verifica, e não
o seu aspecto de puro enlace social que também existe na moral182
.
Segundo o prisma valorativo ou deôntico é que podemos falar em
unilateralidade ou bilateralidade. No plano moral, como é o sujeito mesmo a medida
de seu agir, a regra diz-se axiologicamente unilateral. Já no campo dos costumes
180
REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 20ª edição. São Paulo: Saraiva, 2002, p.400. 181
Ibidem, p. 400-401. 182
Ibidem, p.401.
76
sociais, como o indivíduo encontra na sociedade, no outro sujeito, a pauta de seu agir,
deve-se dizer que, axiologicamente, as respectivas regras são bilaterais, mas de uma
bilateralidade não exigível. Não podemos ser obrigados a cumprimentar alguém, nem
haverá obediência às regras de cortesia se nos coagirem a sermos gentis. Acontece,
porém, coisa diversa quando devemos cumprimento a um magistrado em audiência ou
quando o soldado deve continência ao capitão. Já aí o tratamento de Excelência devido
ao magistrado não é mero tratamento de cortesia, embora o homem bem-educado não
precise de regras obrigatórias para ser cavalheiro. Trata-se de obrigação que Reale
reconhece como sendo jurídica183
. O fato é que o capitão pode exigir que o soldado lhe
preste continência e, ante a recusa, pode e deve aplicar-lhe uma pena. Aquilo que para
os demais homens é uma simples convenção ou costume, para determinado campo da
atividade humana passa a ser obrigação jurídica. A medida deste comportamento,
porém, não é dada nem pelo sujeito que age, nem pelo outro sujeito a que se destina,
mas é dada por algo que os entrelaça numa objetividade discriminadora de pretensões,
muitas vezes, mas nem sempre e necessariamente, recíprocas. A razão de medir do
Direito não se polariza num sujeito ou no outro sujeito, mas é transobjetiva. A relação
jurídica apresenta sempre a característica de unir duas pessoas entre si, em razão de
algo que atribui às duas certo comportamento e certas exigibilidades. O enlace
objetivo de conduta que constitui e delimita exigibilidades entre dois ou mais sujeitos,
ambos integrados por algo que os supera, é o que Reale chama de bilateralidade
atributiva. A essência do fenômeno jurídico é dada por esse elemento que não se
encontra nas outras formas de conduta184
.
É de se notar que não se trata de transcendência para além do real, mas de
superação da subjetividade no plano social, razão pela qual se fala em
transubjetividade. Na relação jurídica há sempre um valor que integra os
comportamentos de dois ou mais indivíduos, permitindo-lhes e lhes assegurando um
183
REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 20ª edição. São Paulo: Saraiva, 2002, p.402-403. 184
Ibidem, p. 403.
77
âmbito de pretensões exibíveis. É da essência da vida jurídica a exigibilidade
objetiva185
.
Do quanto exposto, pode-se concluir que o termo Ética, para Reale, não tem
relação de sinonímia com moral (apesar de versarem sobre idéias intimamente
relacionadas, de difícil distinção, chegando a ser empregadas como sinônimos, mesmo
porque, do ponto de vista etimológico, tanto em grego quanto no latim, ambas provêm
da palavra costume, que indica as diretrizes de conduta a serem seguidas186
),
refletindo, portanto, gênero de conduta onde se inserem as espécies condutas religiosa,
moral, costumeira e jurídica, sendo certo que toda conduta tem relação com
determinado valor (conduta como ação finalisticamente dirigida, tendo valor
significado daquilo que a ação humana tende, porque se reconhece, num determinado
momento, ser motivo, positivo ou negativo, da ação mesma).
Dessa forma, podemos afirmar que o termo Ética, sob o sentido de adjetivo
e de acordo com a visão de Miguel Reale, é a qualidade da ação finalisticamente
dirigida, que se compatibiliza com os valores que levaram à sua prática e caracterizada
pela obrigatoriedade (dever ser). Portanto, qualquer conduta ética não pode ser
apreciada sem o devido relevo ao valor que a dirigiu, restando afastada a construção
ou a análise de qualquer conduta ética de forma abstrata, desvinculada dos valores a
ela inerentes ante a sua finalidade, havendo clara vinculação de Reale à visão de ética
de valores.
3.4.3.6 O conceito e a aplicabilidade de “Eticidade” em Miguel Reale
Frente às informações colhidas nos itens anteriores, possível é afirmarmos o
conceito de “Eticidade” como método de incidência, na construção da norma jurídica
(que envolve não só a atividade legislativa de produção de enunciados prescritivos,
como também a atividade de interpretação com vistas à aplicação da norma jurídica ao
185
REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 20ª edição. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 403-404. 186
REALE, Miguel. Variações sobre Ética e Moral. 2005. Disponível em: < www.miguelreale.com.br>. Acesso em: 12. Setembro.2008.
78
caso concreto) de valores incidentes na realidade fatual (no momento da aplicação da
norma jurídica) sob o prisma do fato a ser normado e do sistema jurídico como um
todo, afastando-se, dessa forma, qualquer visão abstrata ou pseudototalizante da norma
jurídica, bem como qualquer método mecanicista de mera subsunção do texto legal ao
caso concreto.
No que se refere à sua aplicabilidade, é de se afirmar que:
- No campo da produção legislativa: a elaboração de uma determinada e particular
norma de direito não é mera expressão do arbítrio do poder, nem resulta objetiva e
automaticamente da tensão fático-axiológica operante em dada conjuntura histórico-
social: é antes um dos momentos culminantes da experiência jurídica, em cujo
processo se insere positivamente o poder (quer o poder individualizado num órgão do
Estado, quer o poder anônimo difuso no corpo social, como ocorre na hipótese das
normas consuetudinárias), mas sendo sempre o poder condicionado por um complexo
de fatos e valores, em função dos quais é feita a opção por uma das soluções
regulativas possíveis, armando-se de garantia específica187
.
- No campo da interpretação jurídica: sintetiza-se a “Eticidade” como incidência do
“valor” ao fato gerando a escolha de uma das possibilidades semânticas do texto
normativo interpretado (tal escolha terá como vertente a incidência do “valor” ao fato
concreto em análise) levando-se em consideração a sua “elasticidade semântica” (a sua
polissemia, capacidade de um mesmo suporte físico referir-se a mais de um
significado), realizando-se, assim, a experiência jurídica nos moldes compatíveis com
o pensamento tridimensional de Miguel Reale, que bem pode ser caracterizada através
dos seguintes trechos de sua obra:
... sendo a experiência jurídica uma das modalidades da experiência
histórico-cultural, compreende-se que a implicação polar fato-valor se
resolve, a meu ver, num processo normativo de natureza integrante,
cada norma ou conjunto de normas representado, em dado momento
histórico e em função de dadas circunstâncias, a compreensão
operacional compatível com a incidência de certos valores sobre os
187
REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito. 5ª edição. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 61.
79
fatos múltiplos que condicionam a formação dos modelos jurídicos e
a sua aplicação.188
A norma jurídica, assim como todos os modelos jurídicos, não pode
ser interpretada com abstração dos fatos e valores supervenientes,
assim como da totalidade do ordenamento em que ela se insere, o que
torna superados os esquemas lógicos tradicionais de compreensão do
direito (elasticidade normativa e semântica jurídica).189
... não destaco a experiência jurídica da experiência social, da qual é
uma das formas ou expressões fundamentais, distinguindo-se pela
nota específica de “bilateralidade-atributiva” que lhe é própria, isto é,
por implicar, em cada uma das relações que a constituem, sempre um
nexo de validade objetiva que correlaciona entre si duas ou mais
pessoas, conferindo-lhes e assegurando-lhes pretensões ou
competências que podem ser de reciprocidade contratual, ou de tipo
institucional, sob forma de coordenação, subordinação ou
integração.190
...como a experiência jurídica não se destaca da experiência social, da
qual é uma das formas ou expressões fundamentais, distinguindo-se
pela nora específica de “bilateralidade-atributiva”191
... ela só pode ser
compreendida em termos de normativismo concreto,
consubstanciando-se às regras de direito toda a gama de valores,
interesses e motivos de que se compõe a vida humana, e que o
intérprete deve procurar captar, não apenas segundo as significações
particulares emergentes da “praxis social”, mas também na unidade
sistemática e objetiva do ordenamento vigente.192
3.4.4 A “Eticidade” como instrumento de “mutação normativa”
Sendo o Direito Positivo um conjunto de normas jurídicas aplicáveis num
determinado Estado, num determinado momento, objetivando a organização social, é
indiscutível a necessidade de tais normas jurídicas acompanharem a evolução da
sociedade e, mais especificamente, as mudanças dos valores sociais, principalmente
188
REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito. 5ª edição. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 74. 189
Ibidem, p. 62. 190
Ibidem, p. 75. 191
Idem. 192
Ibidem, p. 77.
80
num Estado Democrático de Direito, sob pena de falta de eficácia social193
. Tal
necessária compatibilização entre valores sociais e comandos normativos impõe tantas
modificações normativas quantas forem as alterações dos valores sociais, sendo que
tais modificações normativas podem se realizar de 2(duas) formas:
- alteração do enunciado prescritivo(texto legal), o que se faz através de emendas
constitucionais (obviamente nas hipóteses de alteração textual da Constituição) ou de
produção de novas leis infraconstitucionais que tácica ou expressamente alterem textos
legais anteriores (nas hipóteses de alteração dos textos legais infraconstitucionais);
- opção por nova hipótese interpretativa, explorando a elasticidade semântica194
do
texto normativo vigente.
É exatamente nesta segunda forma de atualização das normas jurídicas que
se enquadra a “mutação normativa”, isto é, a modificação da norma jurídica sem a
alteração do texto legal da qual origina (necessariamente, em razão do princípio da
legalidade, imposto pelo art. 5º, II, da Constituição Federal), através de técnicas de
interpretação que, explorando a elasticidade semântica dos textos legais, passa a
selecionar, para fins de aplicabilidade, hipótese interpretativa compatível com novos
valores sociais.
A figura da “mutação normativa” é objeto de estudo do Direito
Constitucional há muito tempo, normalmente sob a denominação de “mutação
constitucional” que é, conforme conceito de Gilmar Mendes, Inocêncio Mártires
Coelho e Paulo Gustavo Gonet:
... as alterações semânticas dos preceitos da Constituição, em
decorrência de modificações no prisma histórico-social ou fático-
axiológico em que se concretiza a sua aplicação...decorrentes da
193
A eficácia social é a capacidade de uma norma jurídica de ser efetivamente cumprida pela sociedade, tendo em vista a compatibilidade da mesma com os valores cultuados pela sociedade que lhe é sujeita. Como afirma Luís Roberto Barroso, a eficácia social, a que denomina efetividade (utilizando os termos como sinônimos), simboliza a “aproximação, tão íntima quanto possível, entre o dever ser normativo e o ser da realidade social”. Conforme BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. 7ª edição. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 375. 194
A elasticidade semântica é a capacidade de um determinado enunciado (no caso, um texto de lei) de gerar vários significados possíveis em razão da ambiguidade das palavras que o compõem.
81
conjugação da peculiaridade da linguagem constitucional, polissêmica
e indeterminada, com os fatores externos, de ordem econômica, social
e cultural, que a Constituição – pluralista por antonomásia -, intenta
regular e que, dialeticamente, interagem com ela, produzindo leituras
sempre renovadas das mensagens enviadas pelo constituinte.195
O que busca esta tese, no atual momento de desenvolvimento do raciocínio
de seu objeto, é generalizar o conceito de “mutação constitucional”, estendendo-o às
normas jurídicas infraconstitucionais, afastando a sua limitação às normas
constitucionais, sob o enfoque de que a modificação do conteúdo de uma norma
jurídica, sem a alteração do enunciado prescritivo que lhe serve de fonte, é fenômeno
típico da experiência jurídica e não característica inerente exclusivamente as normas
constitucionais. Daí a utilização, neste trabalho, da expressão “mutação normativa”.
Importante destacar que vários Autores já se referiram ao objeto a que ora
denominamos “mutação normativa”, utilizando-se de outras denominações, como, por
exemplo, Celso Ribeiro Bastos, que faz uso do termo interpretação evolutiva, como se
verifica da transcrição a seguir:
O desenvolvimento técnico da ciência em geral, com as repercussões
que acarreta na vida do indivíduo em sociedade, e que a legislação
muitas vezes não é capaz de acompanhar, acaba por propiciar um
substrato favorável ao desenvolvimento da interpretação evolutiva.
Esta forma de interpretação baseia-se na realidade para, a partir dela,
mas sem se descurar dos limites normativos do texto legal, chegar a
resultados mais satisfatórios do ponto de vista do nível evolutivo em
que se encontra a sociedade.196
Vê-se, na realização da mutação normativa, a aplicação da “Eticidade” (que
já conceituamos como procedimento de incidência do “valor” ao fato gerando a
escolha de uma das possibilidades semânticas do texto normativo interpretado
levando-se em consideração a sua “elasticidade semântica”, realizando-se, assim, a
experiência jurídica nos moldes compatíveis com o pensamento tridimensional de
Miguel Reale), daí que a mutação normativa somente pode ser efetivamente
195
MENDES, Gilmar; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 2ª edição. São Paulo: Saraiva, 2008, pp. 129-130.
196
BASTOS, Celso Ribeiro. Hermenêutica e Interpretação Constitucional. 2ª edição. São Paulo: Celso Bastos Editora, 1999, p. 157.
82
compreendida quando inserido o Jurista numa visão “normativista concreta”197
do
Direito, valendo, mais uma vez, a transcrição do magistério de Celso Ribeiro Bastos:
Não é apenas no sentido de incorporação dos avanços técnicos que
o dado empírico deve ser incorporado à norma para fins de lhe revelar
a plenitude de sua significação.
É que o intérprete simplesmente não pode cindir a norma do caso a
ser solucionado (ainda que seja hipotético). Ao analisar a norma, o
intérprete está estudando-a em relação a um caso. Consequentemente,
o dado decorrente deste caso entra no processo interpretativo.
Para se chegar a uma interpretação de uma norma, ter-se-á de estar
levando em consideração uma hipótese, sob pena de não ser possível
enunciar, decidir nada, caso não se esteja decidindo sobre alguma
hipótese... A interpretação é fruto dessa atividade de cotejo da norma
com o fato ou caso hipotético, e com o próprio valor, aqui substituído
pelo princípio. Isso porque não se consegue interpretar em abstrato. É
necessário olhar a norma e imaginar situações sobre as quais se passe
a emitir opiniões. É isto que permite a variedade muito grande de
interpretação. É porque muitas vezes o que está variando não é o
aspecto normativo, mas o aspecto fático. Pode haver divergência
numa interpretação num caso concreto, sobre o aspecto da
qualificação fática.
Cumpre anotar ainda que os valores não são passíveis de
concretização, no sentido de se elaborar um rol taxativo das hipóteses
de sua aplicação. E isso é assim por contemplarem eles, em si
mesmos, as mais variadas e amplas situações, dada sua abstratividade
exacerbada.198
197
O normativismo concreto se caracteriza pela compreensão do ato normativo e do ato interpretativo como elementos que se co-implicam e se integram, não se podendo, senão como abstração e linha de orientação de pesquisa, separar a regra e a situação regulada, a norma e a situação normada (Cf. COELHO, Inocêncio Mártires. Legado de Miguel Reale – IV : O tridimensionalismo jurídico concreto e o problema da interpretação/apliação do direito. 2007. Disponível em: <www.lubjus.com.br/bjur.php?artigos&ver=2.10356>. Acesso em 01.outubro.2011). Em contraposição ao normativismo concreto, tem-se o normativismo abstrato, caracterizado pela visão de que o Direito se confunde com a lei, e que somente a lei positiva é Direito, fazendo surgir a exegese, o silogismo, a dogmática analítia, o servilismo do Poder Judiciário ao Poder Legislativo, já que, para os positivistas (normativistas abstratos), o julgador deve buscar exclusivamente na lei (sempre justa e absoluta) a vontade do legislador e que é exatamente essa vontade do produtor do enunciado prescritivo a referência para a interpretação do respectivo texto, sem qualquer interferência do valores incidentes sobre o fato concreto sujeito à normatização (Cf. WELTER, Belmiro Pedro. Teoria Tridimensional do Direito de Família. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2009, p. 82). 198
BASTOS, Celso Ribeiro. Hermenêutica e Interpretação Constitucional. 2ª edição. São Paulo: Celso Bastos Editora, 1999, p. 157-158.
83
4) Conclusões parciais
Frente aos pontos enfrentados no presente capítulo, podemos concluir que:
a) o direito à percepção de horas extras (art. 7º, XVI, da Constituição Federal) é um
Direito Fundamental de Segunda Geração, assumindo características típicas desta
natureza de direito, isto é, universalidade, indivisibilidade e interdependência e
unidade frente aos demais Direitos Fundamentais;
b) o enunciado prescritivo constante do art. 7º, XVI, da Constituição Federal
(“remuneração do serviço extraordinário superior, no mínimo, em cinquenta por cento
à do normal;”), por ser de natureza constitucional deve ser interpretado levando em
consideração os princípios aplicáveis à interpretação constitucional, em especial o
princípio da supremacia da Constituição, princípio da unidade da Constituição e
princípio da máxima efetividade;
c) o enunciado prescritivo contido no artigo 62, I, da CLT enquadra-se à classe dos
enunciados prescritivos de Direito do Trabalho, motivo pelo qual à interpretação do
mesmo devem incidir os princípios interpretativos típicos do Direito do Trabalho,
especialmente o princípio in dubio, pro operario, princípio da prevalência da norma
mais favorável ao empregado e princípio da condição mais favorável ao empregado;
d) o enunciado prescritivo contido no artigo 62, I, da CLT enquadra-se à classe dos
enunciados infraconstitucionais introdutores de normas jurídicas limitadoras da
aplicação objetiva de Direitos Fundamentais. Assim sendo, deve ser interpretado de
forma restritiva, limitando a idoneidade das hipóteses interpretativas (surgidas frente à
elasticidade semântica do texto normativo) somente àquelas que indiquem a não
aplicação, num caso concreto específico, do Direito Fundamental à percepção de horas
extraordinárias em razão exclusiva de efetiva impossibilidade concreta de verificação
quantitativa (constatação da quantidade) e/ou de verificação qualitativa (constatação
da qualidade) de fatos do mundo fenomênico capazes de se enquadrar no antecedente
de uma norma jurídica introdutora de Direito Fundamental. Mais especificamente, no
84
caso do enunciado prescritivo sob análise, somente haverá de se considerar hipóteses
interpretativas do artigo 62, I, da CLT que evidenciem, no mundo fenomênico, a
efetiva impossibilidade de controle da jornada de trabalho (isto é, a impossibilidade
efetiva, em concreto, de verificação quantitativa do fato do mundo fenomênico - no
caso, tempo de prestação de atividade laboral no exercício das obrigações inerentes à
relação de emprego - que preenche o antecedente da norma jurídica introdutora do
Direito Fundamental de percepção de horas extraordinárias).
e) Frente à “Eticidade”, a interpretação do enunciado prescritivo contido no artigo 62,
I, da CLT deve ser realizada com incidência do “valor” social incidente ao fato
normado, gerando a escolha de uma das possibilidades semânticas do texto normativo
interpretado (tal escolha terá como vertente a incidência do “valor” ao fato concreto
em análise) levando-se em consideração a sua “elasticidade semântica” (a sua
polissemia, capacidade de um mesmo suporte físico referir-se a mais de um
significado), realizando-se, assim, a experiência jurídica nos moldes compatíveis com
o pensamento tridimensional de Miguel Reale.
85
Capítulo II – O PODER FISCALIZATÓRIO DO EMPREGADOR E AS NOVAS
TECNOLOGIAS DE VIGILÂNCIA
É necessária a abordagem da intersecção entre as recentes tecnologias de
vigilância e o exercício do “poder fiscalizatório” de que se encontra munido o
Empregador na constância da relação jurídica empregatícia.
1 O Poder Empregatício.
As características da relação jurídica de emprego, especialmente no que
tange à forma de relação entre empregado e empregador, são questão estrutural para o
efetivo enfrentamento do problema a ser resolvido na presente tese, vez que a natureza
jurídica do poder empregatício gerará valor a ser considerado na interpretação dos
enunciados prescritivos trabalhistas e, mais especificamente, do enunciado constante
do artigo 62, I, da CLT. Daí nos dedicarmos, neste momento de desenvolvimento da
pesquisa, ao estudo do conceito, das características e da natureza jurídica do poder
empregatício.
1.1 Conceito e características do poder empregatício
Parte-se do conceito denotativo de “poder” no sentido de “ter a faculdade
ou a possibilidade de”, “possuir força física ou moral”, “ter autorização para”, “ser
capaz de”199 a fim de se encontrar, via interação com a teoria geral do direito, o
conceito jurídico de poder, que afirmarmos ser a faculdade, permitida por norma
jurídica vigente, do detentor do poder de impor a sua vontade à outrem (sujeito passivo
do poder), dentro dos contornos impostos pelo Direito Positivo.
199
HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Versão eletrônica disponível em:<http://houaiss.uol.com.br>. Acesso em: 23.set. 2011.
86
No campo do Direito, não só a existência do poder emerge de uma norma
jurídica, como também o exercício de tal poder deve seguir os contornos normativos
(em especial o conteúdo das normas jurídicas que fixam “liberdades” ao cidadão e
aquelas que protegem a “privacidade, a honra e a intimidade” do mesmo).
Especificamente no campo do direito material do trabalho, a doutrina é
majoritária no sentido de fixar o poder empregatício como o conjunto de prerrogativas
com respeito à direção, regulamentação, fiscalização e disciplinamento da economia
interna à empresa e correspondente prestação de serviços200
, originando-se não só das
normas jurídicas trabalhistas (em especial e conceitualmente, dos artigos 2º e 3º da
Consolidação das Leis do Trabalho), mas também do exercício da “livre iniciativa”
(entendido como faculdade do empresário – no sentido de aquele que exerce atividade
econômica – organizar a sua atividade da forma que melhor lhe aprouver, obedecendo
aos contornos das normas jurídicas de liberdade e proteção da privacidade, intimidade,
da imagem, e da honra dos seres humanos, bem como zelando pela dignidade da
pessoa humana) contemplada não só como fundamento da República Federativa do
Brasil (art. 1º, IV, da Constituição Federal de 1988), como também fundamento da
ordem econômica constitucional (art. 170, caput, da Constituição Federal de 1988).
Não encontra diversidade na doutrina o entendimento de que o poder
empregatício se desenvolve sob a forma de “poder diretivo”, “poder regulamentar”,
“poder fiscalizatório” e “poder disciplinar”201
(a despeito de alguns doutrinadores,
200
DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de direito do trabalho. 3ª edição. São Paulo: LTr, 2004, p. 629. 201
Sobre o tema, Maurício Godinho Delgado afirma que “O poder empregatício divide-se em poder diretivo(também chamado poder organizativo), poder regulamentar, poder fiscalizatório(este também chamado de poder de controle) e poder disciplinar” (Cf. DELGADO, Maurício Godinho. Curso de direito do trabalho. 3ª edição. São Paulo: Ltr, 2004, p. 631) e Amauri Mascaro Nascimento ensina que “Poder de direção é a faculdade atribuída ao empregador de determinar o modo como a atividade do empregado, em decorrência do contrato de trabalho, deve ser exercida. O poder de direção manifesta-se mediante três principais formas: o poder de organização, o poder de controle sobre o trabalho e o poder disciplinar sobre o empregado” (Cf. NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Curso de Direito do Trabalho: história e teoria geral do direito do trabalho: relações individuais e coletivas do trabalho. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 433). Délio Maranhão, apreciando o poder empregatício como a contraface da subordinação do empregado narra que “A situação de subordinação é fonte de direitos e deveres para ambos os contratantes. Seja qual for a forma do trabalho subordinado, encontram-se, mais ou menos rigorosamente, exercidos de fato, mas sempre, potencialmente, existentes, os seguintes direitos do empregador: a) de direção e de comando, cabendo-lhe determinar as condições para a utilização e aplicação concreta da força de trabalho do empregado, nos limites do contrato; b) de controle, que é o de verificar o exato cumprimento da prestação de trabalho; c) de aplicar penas disciplinares, em caso de
87
como Amauri Mascaro Nascimento202
e Sergio Pinto Martins203
apontarem “poder
diretivo” como sinônimo de “poder empregatício” e não uma das facetas deste. Outros,
como Maurício Godinho Delgado204
, apontam o “poder diretivo” como um dos
prismas do “poder empregatício”, não havendo sinonímia entre este e aquele), no
sentido de que, como ensina Délio Maranhão, a situação de subordinação é fonte de
direitos e deveres para ambos os contratantes, sendo que, seja qual for a forma do
trabalho subordinado, encontram-se, mais ou menos rigorosamente, exercidos de fato,
mas sempre, potencialmente, existentes, os seguintes direitos do empregador: a) de
direção e de comando, cabendo-lhe determinar as condições para a utilização e
aplicação concreta da força de trabalho do empregado, nos limites do contrato (o que
caracteriza o poder diretivo); b) de controle, que é o de verificar o exato cumprimento
da prestação de trabalho (o que caracteriza poder fiscalizatório) e c) de aplicar penas
disciplinares, em caso de inadimplemento de obrigação contratual (o que caracteriza o
poder disciplinar). No que tange especificamente ao poder regulamentar, ensina
Mauricio Godinho Delgado que é “o conjunto de prerrogativas tendencialmente
concentradas no empregador dirigidas à fixação de regras gerais a serem observadas
no âmbito do estabelecimento e da empresa”205
.
Dentre as facetas do “Poder Empregatício”, a que nos interessa
efetivamente na presente tese é a de natureza fiscalizatória, descrita pela maioria dos
inadimplemento de obrigação contratual. Ao direito do empregador de dirigir e comandar a atuação concreta do empregado corresponde o dever de obediência, diligência e fidelidade (Cf. MARANHÃO, Délio; SÜSSEKIND, Arnaldo; TEIXEIRA, Lima; VIANA Segadas e TEIXEIRA, Lima. Instituições de direito do trabalho. 19ª edição. São Paulo: LTr, 2000, pp. 248-249). Sergio Pinto Martins ministra que “Como o empregado é um trabalhador subordinado, está sujeito ao poder de direção do empregador. O poder de direção é a forma como o empregador define como serão desenvolvidas as atividades do empregado decorrentes do contrato de trabalho... Compreende o poder de direção não só o de organizar suas atividades, como também de controlar e disciplinar o trabalho, de acordo com os fins do empreendimento (Cf. MARTINS, Sergio Pinto. Direito do Trabalho. 23ª edição. São Paulo: Atlas, 2007, p. 193). 202
Vide NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Curso de Direito do Trabalho: história e teoria geral do direito do trabalho: relações individuais e coletivas do trabalho. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 433. 203
Vide MARTINS, Sergio Pinto. Direito do Trabalho. 23ª edição. São Paulo: Atlas, 2007, p. 193. 204
Vide DELGADO, Maurício Godinho. Curso de direito do trabalho. 3ª edição. São Paulo: Ltr, 2004, p. 632. 205
DELGADO, Maurício Godinho. Curso de direito do trabalho. 3ª edição. São Paulo: Ltr, 2004, p. 632.
88
doutrinadores como “Poder Fiscalizatório”206
e conceituada como “conjunto de
prerrogativas dirigidas a propiciar o acompanhamento contínuo da prestação de
trabalho e a própria vigilância efetivada ao longo do espaço territorial interno”207
,
prerrogativa de “verificar o exato cumprimento da prestação de trabalho”208
ou direito
de fiscalizar o trabalho do empregado que “estende-se não só como o trabalho é
prestado, mas também ao comportamento do trabalhador”.209
Tradicionalmente, a fiscalização, como bem acentua Mauricio Godinho
Delgado, ocorre no “espaço empresarial interno”210
, entendendo-se este como espaço
físico de titularidade do Empregador, onde se encontram estruturados os meios de
produção (chão de fábrica, departamentos administrativos etc) e cujo conteúdo é
objeto possível do campo visual do Empregador ou de preposto seu. É exatamente esse
“espaço empresarial interno” que, frente às novas tecnologias de vigilância (nessas
incluindo-se os sistemas “Automatic Vehicle Location”), obteve uma natural
amplitude. Não que haja uma modificação no conceito de espaço empresarial interno,
mas a dimensão de tal espaço em muito multiplicou-se, atingindo campos
inesgotáveis. Surgem, com as novas tecnologias de vigilância, os “espaços ampliados”
cujas características são analisadas ainda neste capítulo.
206
Amauri Mascaro Nascimento utiliza a expressão “Poder de Controle” para identificar o quê aqui apresentamos como “Poder Fiscalizatório”. Vide NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Curso de Direito do Trabalho: história e teoria geral do direito do trabalho: relações individuais e coletivas do trabalho. São Paulo: Saraiva, 1997, pp. 433-434, onde consta: “O poder de controle dá ao empregador o direito de fiscalizar o trabalho do empregado. A atividade deste, sendo subordinada e mediante direção do empregador, não é exercitada do modo que o empregado pretende, mas daquele que é imposto pelo empregador. A fiscalização inerente ao poder diretivo estende-se não só ao modo como o trabalho é prestado, mas também ao comportamento do trabalhador, tanto assim que é comum a revista dos pertences do empregado quando deixa o estabelecimento”. 207
DELGADO, Maurício Godinho. Curso de direito do trabalho. 3ª edição. São Paulo: Ltr, 2004, p. 634. 208
MARANHÃO, Délio; SÜSSEKIND, Arnaldo; TEIXEIRA, Lima; VIANA Segadas e TEIXEIRA, Lima. Instituições de direito do trabalho. 19ª edição. São Paulo: LTr, 2000, p. 248.
209
NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Curso de Direito do Trabalho: história e teoria geral do direito do trabalho: relações individuais e coletivas do trabalho. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 436.
210
DELGADO, Maurício Godinho. Op. Cit., p. 634.
89
1.2 Natureza jurídica do poder empregatício
No que se refere à natureza jurídica do poder empregatício, várias são as
teorias existentes, dentre as quais destacam-se: teoria do poder empregatício como
direito potestativo, teoria do poder empregatício como direito subjetivo, teoria do
poder empregatício como status jurídico, teoria do poder empregatício como direito-
função e teoria do poder empregatício como relação jurídica complexa. Passamos a
analisar o conteúdo de cada uma dessas teorias.
A teoria do direito potestativo define o poder empregatício como
prerrogativa assegurada pela ordem jurídica a seu titular (o empregador) de alcançar os
efeitos jurídicos que são de seu interesse mediante o exclusivo uso de sua própria
vontade, existindo, em contraposição, um dever, uma obrigação pela parte contrária (o
empregado). A noção de direito potestativo consuma a realização, ao máximo, da
soberania da vontade particular no contexto de um universo social, vinculando-se a
uma ideologia individualista possessiva, característica do período do liberalismo
clássico211
.
De acordo teoria do direito subjetivo compreende-se o poder
empregatício como prerrogativa conferida pela ordem jurídica ao titular (o
empregador) no sentido de agir para satisfação de interesse próprio em estrita
conformidade com a norma ou com a cláusula contratual por esta protegida. Se esta
teoria, de um lado, contrapõe-se à concepção de direito potestativo, civilizando as
prerrogativas inerentes ao poder intra-empresarial, submetendo o exercício do poder a
induções normativas gerais da ordem jurídica e reduzindo a amplitude da vontade
empresarial, de outro lado essa concepção não ultrapassa a percepção unilateral, rígida
e assimétrica do fenômeno do poder empregatício, mantendo no empregador a
titularidade de uma vantagem propiciada pela conduta em conformidade com a ordem
jurídica212
.
211
DELGADO, Maurício Godinho. Curso de direito do trabalho. 3ª edição. São Paulo: Ltr, 2004, p. 648-649. 212
Idem.
90
A teoria do status jurídico tem como fundamento a natureza hierárquica
inerente à estrutura diferenciada da empresa ou a noção de que o poder empregatício é
decorrência necessária da relação de emprego, concluindo pela concepção de poder
como senhorio, no sentido de que o empregador comandaria o empregado não como
credor, mas como senhor, proprietário, com absoluta assincronia e unilateralidade de
posições213
.
Como direito função é conferido ao poder empregatício a característica de
ser exercido pelo seu titular (o empregador) não em seu estrito interesse próprio, mas
na tutela de interesse de terceiro. Tal forma de se apreciar o poder empregatício se
caracterizaria, ilustrativamente, como as relações do pai perante a família, do
administrador perante a fundação, do sindicato perante a categoria, do empresário
perante a empresa. Esta teoria traduz claro avanço teórico em relação às concepções
anteriores, mostrando-se sensível ao dado empírico da participação obreira no contexto
empresarial, além de submeter o titular do poder (o empregador) a um dever,
cumprindo-lhe praticar condutas de tutela de interesses alheios214
.
A teoria do poder empregatício como relação jurídica complexa parte da
premissa de que qualquer investigação sobre a natureza jurídica de um instituto de
direito somente se completa quando encontrar concepção apta a reter a essência do
fenômeno examinado e tiver a habilidade necessária para acolher as alterações
circunstanciais, vez que necessariamente o fenômeno terá passado ao longo de sua
existência histórica.
Por esta concepção, o poder intra-empresarial seria uma relação jurídica
contratual complexa, qualificada pela plasticidade de sua configuração e pela
intensidade variável do peso de seus sujeitos componentes. Isto é, caracterizar-se-ia
pela assimetria variável entre seus polos componentes (empregado e empregador),
estes considerados em suas projeções individual e coletiva, mediante a qual se
preveem (previsão no sentido de poder diretivo/regulamentar), alcançam (alcance no
213
DELGADO, Maurício Godinho. Curso de direito do trabalho. 3ª edição. São Paulo: Ltr, 2004, p. 649-650. 214
Ibidem, p. 651.
91
sentido de poderes fiscalizatório e diretivo) ou sancionam condutas no plano do
estabelecimento e da empresa.
De acordo com a teoria da relação jurídica complexa, o poder intra-
empresarial não seria um poder exclusivo do empregador, nem do empregado, mas,
sim, uma relação de poder própria de uma realidade socioeconômica e jurídica
específica, a relação de emprego.
Frente à uma Constituição que impõe a dignidade da pessoa humana e os
valores sociais do trabalho e da livre iniciativa como fundamentos do Estado (art. 1º,
III e IV, da Constituição Federal), que fixa como objetivos fundamentais do Estado a
construção de uma “sociedade livre, justa e solidária”, a erradicação da pobreza e da
marginalização e a redução das desigualdades sociais e regionais (art. 3º, I e III, da
Constituição Federal) e exige que a ordem econômica seja fundada na valorização do
trabalho humano juntamente com a livre iniciativa, observando, entre outros
princípios, a função social da propriedade e a redução das desigualdades regionais e
sociais (art. 170, caput e incisos III e VII, da Constituição Federal), não há como se
conceber a existência de poder empregatício que garanta a exclusividade de imposição
de vontade de somente uma das partes da relação jurídica de emprego para que a
referida parte privilegiada, no exercício de seu exclusivo interesse, escolha os efeitos
jurídicos a serem alcançados na manutenção da relação de emprego (daí a
impossibilidade de se admitirem as teorias do direito potestativo e do direito
subjetivo). Também absolutamente contraditório com o texto constitucional a
concepção de poder empregatício que viabilizasse a relação empregador-empregado
sob enfoque de propriedade ou senhorio (não se admitindo, pois, a teoria do status
juridico).
Assim, frente às exigências do arcabouço constitucional vigente no Estado
brasileiro, somente as teorias do direito-função e da relação jurídica complexa são
capazes de prosperar como viáveis, motivo pelo qual, na interpretação do enunciado
prescritivo contido no artigo 62, I, da CLT, serão tais teorias consideradas na
valoração da distribuição de deveres e obrigações das partes da relação jurídica
empregatícia.
92
2 Espaço Ampliado. Conceito e características
Como ensinam Fernanda Bruno, Marta Kanashiro e Rodrigo Firmino em
recente estudo intitulado “Vigilância e Visibilidade: espaço, tecnologia e
identificação”215
, os parâmetros e os limites a partir dos quais estava a sociedade
habituada a ordenar os comportamentos de “ver” e de “ser visto” estão em plena
mutação, vez que as margens do visível ampliam-se e se modificam, o mesmo
ocorrendo em relação à forma de ser visto, graças a técnicas e instrumentos como as
tecnologias de geolocalização (como o GPS – Global Position System - e o GIS –
Sistema de Informações Geográficas), visualização miniaturizada e individualizada
das pequenas telas de celulares, palmtops e laptops, passando pelas câmeras de vídeo-
vigilância cada vez mais presentes tanto nos espaços públicos quanto privados, ou
ainda pelos discretos sensores e tecnologias que monitoram o espaço físico e o
informacional, tornando sensíveis processos usualmente desapercebidos e criando o
que se convenciona chamar de “realidade ou espaço ampliados”, assim como formas
sutis de vigilância de dados216
.
A existência de “espaços ampliados” tem direta relação com os dispositivos
de vigilância, que participam ativamente desses múltiplos e concorrentes modos de
fazer ver e de ser visto na nossa sociedade, articulando tais modos de visibilidade com
procedimentos mais ou menos explícitos de monitoramento, identificação, controle,
coleta e produção de informações sobre os indivíduos e suas ações217
.
As tecnologias fundadas em dispositivos móveis (como telefones celulares,
smartphones, módulos GPS), redes telemáticas sem fio (Wi-Fi, Wi-Max, Bluetooth218
)
215
BRUNO, Fernanda; KANASHIRO, Marta; FIRMINO, Rodrigo. Vigilância e visibilidade: espaço, tecnologia e identificação. Porto Alegre: Sulina, 2010.
216
Ibidem, p.7. 217
Idem, p.8. 218
Wi-Fi significa é uma marca registrada da Wi-Fi Alliance, que é utilizada por produtos certificados que pertencem à classe de dispositivos de rede local sem fios (WLAN) baseados no padrão IEEE 802.11. Wi-Max(Worldwide Interoperability for Microwave Access/Interoperabilidade Mundial para Acesso de Micro-ondas) trata-se de tecnologia de comunicação sem fio para redes metropolitanas. Bluetooth é uma especificação industrial para áreas de redes pessoais sem fio (Wireless personal area networks – PANs) que provê uma maneira de conectar e trocar informações entre dispositivos como telefones celulares, notebooks,
93
e sensores geraram uma mudança no regime de visibilidade antes existente, criando
um regime que se baseia não exclusivamente no espaço físico ou nos limites do
alcance do olho humano, mas também fundado no espaço informacional (constituído
por serviços e tecnologias baseados em localização que estão em franca expansão e
que possibilitam aliar localização, vigilância e mobilidades física e informacional -
capacidade de consumir, produzir e distribuir informação -219
.
Se, antes de tais tecnologias, o regime de visibilidade (entendido como
forma pela qual “se vê e se é visto” na sociedade) baseava-se exclusivamente no
alcance do campo ocular, isto é, no alcance visual do olho humano, hoje tal regime se
baseia em “espaços ampliados”, que não se fundam no espaço físico ou nos limites do
alcance do olho humano, mas sim em espaço informacional (que é o resultado de
serviços e tecnologias baseados em localização e transmissão de dados). Sobre regimes
de visibilidade, vale transcrever ensinamento de Michel Foucault:
Cada sociedade tem seu próprio regime de verdades, sua própria
“política geral”: os tipos de discursos que suportam e quais são
considerados como verdadeiros; os mecanismos e os grupos que
permitem distinguir as posições verdadeiras das falsas, o modo como
as pessoas são sancionadas; as tecnologias e os procedimentos válidos
para a obtenção da verdade; o status dos encarregados de dizer o que é
considerado verdade.220
Se antes o cidadão somente percebia aquilo que naturalmente se encontrava
à mostra em seu campo visual, agora esse mesmo cidadão, sem qualquer necessária
evolução de seu sentido visual, vê de forma ampliada, vez que representações (sob a
forma de imagem, sons ou até mesmo sensações táteis) de uma realidade que lhe é
fisicamente distante (e seria inatingível naturalmente pela visão) lhe são apresentadas,
inclusive em tempo real e com altos graus de acurácia e fidedignidade, passando não
computadores, impressoras, câmeras digitais e consoles de videogames digitais através de uma frequência de rádio de curto alcance globalmente não licenciada e segura. 219
LEMOS, André. Mídias locativas e vigilância. Sujeito inseguro, bolhas digitais, paredes virtuais e territórios informacionais. In BRUNO, Fernanda; KANASHIRO, Marta; FIRMINO, Rodrigo (org.). Vigilância e Visibilidade: espaço, tecnologia e identificação. Porto Alegre: Sulina, 2010, p.61.
220
FOUCAULT, Michel. La fonction politique de l’intellectuel (entrevista com P. Rabinow). Radical Philosophy, vol. 17, 1977, p. 12-14. Tradução nossa.
94
só o cidadão a ter acesso à tal realidade, mas também podendo com ela interagir.
Inaugura-se, portanto, um novo regime de visibilidade. Cabe, neste ponto do
desenvolvimento do raciocínio, transcrever o magistério de Fábio Duarte e Rodrigo
Firmino:
Se as câmeras de vigilância representam a cidade fragmentariamente
sem se constituir um campo de ação direta, os mapas
georreferenciados alimentados pelas imagens de satélite buscam a
compreensão do espaço em sua totalidade e em suas minúcias, e sua
compressão em uma representação extremamente codificada, onde
qualquer existência ou manifestação no espaço de origem será
“significada” apenas se suas características estiverem previamente
inscritas no código desse espaço informacional (...) uma vez que o que
interessa à análise informacional, assim, não é saber o que diz uma
mensagem, mas quantas dúvidas ela elimina – e nesses mapas a
existência de um signo implica que qualquer dúvida sobre a natureza
foi eliminada ao não ser filtrado pelos tamises do código constituinte
desse espaço.
A alimentação constante e reconstituinte das imagens de satélite sobre
uma base informacional georreferenciada cria a “aura” de uma
espacialidade mais que abrangente, plena; a ilusão de que a
representação é “fidedigna” e supremamente descritiva, com aspectos
que não são vistos a olhos nus (temperatura da superfície, intensidade
de luminescência etc) cria um espaço mais completo que o próprio
espaço “vivido”: a hiperespacialidade. Tal ilusão descritiva é tamanha
que essa hiperespacialidade torna-se o campo exclusivo de análise e
de ações: movimentos populacionais, padrões de ocupações urbanas
ou análises socioeconômicas prescindem da “ida a campo”, e ações de
rearranjo urbanos têm decisões tomadas com referência à hiper
espacialidade codificada.221
Nesse sentido, deve ser fixado para regular apreciação científica, o conceito
de “espaço ampliado”, qual seja: representações, sob a forma de imagem, sons e até
mesmo de sensações táteis, de uma realidade que é fisicamente distante do cidadão
comum (isto é, realidade que lhe seria inatingível naturalmente pela visão), permitindo
ao cidadão não só ter efetivo acesso à essa realidade, como também com ela interagir.
221
DUARTE, Fábio; FIRMINO, Rodrigo. Espaço, visibilidade e tecnologias: (Re)caracterizando a experiência urbana. In BRUNO, Fernanda; KANASHIRO, Marta; FIRMINO, Rodrigo (org.). Vigilância e Visibilidade: espaço, tecnologia e identificação. Porto Alegre: Sulina, 2010, p. 105.
95
No que se refere às características do novo regime de visibilidade, baseado
no conceito de “espaço ampliado”, ensina André Lemos que as mídias locativas, onde
localização e mobilidade significam possibilidades de produção de sentido no espaço e
nos lugares, são também instrumentos de controle, monitoramento e vigilância de
lugares, espaços e indivíduos enredados em bancos de dados moduláveis, sensores
ubíquos e onipresentes, redes sem fios fluidas e inteligentes, dispositivos de
localização, associando mobilidade e localização, podendo ser utilizada para monitorar
movimentos, vigiar pessoas e controlar ações no dia-a-dia.”222
. Não se trata mais de
fechar e imobilizar para vigiar, mas de deixar fluir o movimento, monitorando,
controlando e vigiando pessoas, objetos e informações para prever consequências e
exercer domínio223
.
Tem-se, pois, como uma das principais características do novo regime de
visibilidade, a realização do monitoramento do comportamento de pessoas sem a
necessidade de fixar a elas um espaço físico próprio de vigilância, sendo que o “espaço
informacional” acompanha o ser vigiado independentemente do local físico onde se
encontre. E mais, o novo regime permite o efetivo controle do controlado à distância e
independentemente das características do espaço físico que ocupa quando da
realização de cada um de seus comportamentos.
O novo regime de visibilidade também cria um novo conceito de território,
o “território informacional”, constituído por áreas de controle de fluxo informacional
digital em uma zona de intersecção entre o ciberespaço (i.e. espaço cibernético,
caracterizado por representações geradas por instrumentos tecnológicos de última
geração) e o espaço urbano. No “território informacional” o acesso e o controle se
realizam a partir de dispositivos móveis e de redes sem fio, caracterizando-se como um
espaço movente, híbrido, formado pela relação entre o espaço eletrônico e o espaço
222
LEMOS, André. Mídias locativas e vigilância. Sujeito inseguro, bolhas digitais, paredes virtuais e territórios informacionais. In BRUNO, Fernanda; KANASHIRO, Marta; FIRMINO, Rodrigo (org.). Vigilância e Visibilidade: espaço, tecnologia e identificação. Porto Alegre: Sulina, 2010, p.71.
223
Ibidem, p.72.
96
físico224
. Para demonstração, utilizamos exemplo trabalhado por André Lemos: o lugar
de acesso sem fio num parque por redes Wi-Fi é um território informacional, distinto
do espaço físico parque e do espaço eletrônico internet. Ao acessar a internet por essa
rede Wi-Fi, o usuário está num território informacional imbricado no território físico
(e político, cultural, imaginário etc) do parque, e no espaço das redes telemáticas.
Assim, o território informacional cria um lugar, dependente dos espaços físico e
eletrônico a que ele se vincula225
. É criada uma nova tensão de controle, logo um novo
território, informacional, criado por redes sem fio e dispositivos digitais nos lugares.
Posso, assim, ser monitorado, controlado ou vigiado num “café” se estiver usando o
celular, o laptop, ou se houver um reader que acione a etiqueta RFID226
da minha
caneta227
.
Se de um lado o “território informacional” depende do “território físico,
tradicional”228
, de outro lado, conceitualmente, aquele é uma evolução deste. Entende-
se “território físico, tradicional” como “extensão da superfície terrestre”229
, “área certa
e delimitada da superfície da terra”230
, delimitado e fixo por si só. No contexto do
território físico, ou o cidadão encontra-se no interior do território ou no exterior do
224
LEMOS, André. A cidade e mobilidade. Telefones celulares, funções pós-massivas e territórios informacionais. In Matizes, Revista do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Computação, Universidade de São Paulo, ano 1, no. 1, São Paulo, 2007, p. 128.
225
Ibidem, p. 128.
226 Identificação por radiofrequência ou RFID é um método de identificação automática através de sinais de
rádio, recuperando e armazenando dados remotamente através de dispositivos denominados etiquetas RFID. Uma etiqueta ou tag RFID é um transpondedor, pequeno objeto que pode ser colocado em uma pessoa, animal, equipamento, embalagem ou produto, dentre outros. Contém chips de silício e antenas que lhe permite responder aos sinais de rádio enviados por uma base transmissora. Além das etiquetas passivas, que respondem ao sinal enviado pela base transmissora, existem ainda as etiquetas semipassivas e as ativas, dotadas de bateria, que lhes permite enviar o próprio sinal. São bem mais caras que do que as etiquetas passivas.
227 LEMOS, André. Op. Cit., p. 128.
228
Tal “dependência” se faz em razão de que o “território informacional” é representação do “território físico”. 229
DE PLÁCIDO E SILVA. Vocabulário Jurídico. Volume IV. 4ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 1975, p. 1547. 230
NUNES, Pedro. Dicionário de Tecnologia Jurídica. Volume II, 8ª edição. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1974, p. 1179.
97
território, diferentemente do que ocorre no contexto do território informacional, em
que o território acompanha o vigiado onde quer que o mesmo se encontre.
Laurent Beslay231
e Hannu Hakala232
introduzem, no texto intitulado
“Digital Territory:Bubbles”233
, o conceito de “bolha digital”, afirmando que o
território digital deve ser pensado em vários níveis, com permeabilidades
diferenciadas, sendo que bolhas informacionais podem evitar que informações
“pinguem” para fora desses níveis. Um primeiro território seria o pessoal (o corpo e a
subjetividade), a casa é o segundo nível de isolamento e controle de fronteiras e o
espaço público o terceiro nível territorial, onde as pessoas negociam proximidade e
distanciamento. O design do território digital isolaria os três tipos de espaço,
protegendo o indivíduo, disponibilizando uma ferramenta que permite aos usuários
gerenciarem proximidades e distâncias entre si nesse espaço de inteligência ambiente,
no sentido social e legal, assim como no mundo físico234
. A imagem da bolha tem por
objetivo constituir uma camada de isolamento, de controle informacional, dando aos
usuários o poder sobre o que sai ou entra235
.
Como afirma André Lemos, conceito similar ao de “bolha digital” é do de
“paredes digitais”, pensadas como sistemas que permitem que os usuários controle as
suas pegadas digitais. Essas paredes virtuais atestam, como as bolhas digitais, a nova
territorialidade dos lugares como zona de controle informacional, de forma que o
controle entre as “bordas eletrônicas” que compõem os espaços de lugar devem
231
Consultor de tecnologia da Autoridade Europeia para a Proteção de Dados, em Bruxelas, com pós-doutorado em Gestão Global de Riscos Tecnológicos e Crise pela Universidade de Paris, Sorbone. 232
Diretor de computação da Elektrobit Ltd, tendo já desenvolvido atividades junto ao “Centro de Pesquisa Técnica da Finlândia” na área de ferramentas de sistema móvel, soluções integradas e telemática para automóveis. 233
BESLAY, Laurent; HAKALA, Hannu. Digital Territory: Bubbles. 2009. Disponível em: <Http://cybersecurity.jrc.ec.europa.eu/docs/DigitalTerritoryBubbles.pdf>. Acesso em: 10. Jul.2011.
234
BESLAY, Laurent; HAKALA, Hannu. Digital Territory: Bubbles. 2009. Disponível em: <Http://cybersecurity.jrc.ec.europa.eu/docs/DigitalTerritoryBubbles.pdf>. Acesso em: 10. Jul.2011.
235
LEMOS, André. Mídias locativas e vigilância. Sujeito inseguro, bolhas digitais, paredes virtuais e territórios informacionais. In BRUNO, Fernanda; KANASHIRO, Marta; FIRMINO, Rodrigo (org.). Vigilância e Visibilidade: espaço, tecnologia e identificação. Porto Alegre: Sulina, 2010, p.84.
98
garantir a privacidade, o anonimato e a liberdade236
. Tanto as “bolhas” quanto as
“paredes” digitais surgem como instrumento de contenção do “território digital”,
evitando que o mesmo se torne espaço sem controle, local de liberdade ilimitada.
3 O regime de visibilidade como “valor” e fonte de “mutação normativa”
Tem-se como “regime de visibilidade” a forma pela qual “se vê ou se é
visto” na sociedade, que se caracteriza como a forma como certa sociedade considera
verdadeiro discurso baseado numa determinada imagem, numa determinada exposição
produzida a partir dos recursos tecnológicos disponíveis na respectiva época.
Como já apontado anteriormente, se antes das tecnologias de
monitoramento, de transmissão de dados através de redes sem fio, o regime de
visibilidade baseava-se exclusiva ou preponderantemente no alcance do campo ocular
(isto é, no alcance visual do olho humano), hoje tal regime se baseia também em
“espaços ampliados”, que não se fundam no espaço físico ou nos limites do alcance do
olho humano, mas sim em espaço informacional (que é o resultado de serviços e
tecnologias baseados em localização e transmissão de dados).
Inequívoco, pois, que o “regime de visibilidade” é próprio de determinada
sociedade e de certo “momento histórico”, é um valor cultuado pela sociedade em
realidades fatuais que se apresentem e que, portanto, faz parte da experiência jurídica,
devendo, frente à “Eticidade”, incidir sobre os fatos normados, gerando a escolha de
uma das possibilidades semânticas do texto normativo interpretado (tal escolha terá
como vertente a incidência do “valor” ao fato concreto em análise) levando-se em
consideração a sua “elasticidade semântica” (a sua polissemia, capacidade de um
mesmo suporte físico referir-se a mais de um significado).
A mudança, numa sociedade, do regime de visibilidade é capaz de gerar
mutação normativa - entendida como modificação do conteúdo da norma jurídica, a 236
LEMOS, André. Mídias locativas e vigilância. Sujeito inseguro, bolhas digitais, paredes virtuais e territórios informacionais. In BRUNO, Fernanda; KANASHIRO, Marta; FIRMINO, Rodrigo (org.). Vigilância e Visibilidade: espaço, tecnologia e identificação. Porto Alegre: Sulina, 2010, p.87.
99
despeito da manutenção do enunciado prescritivo (texto legislativo) -, especialmente
naquelas normas cujos elementos baseiam-se na visibilidade237
(capacidade de ser ver
ou ser visto). A mutação normativa tem como principal instrumento a interpretação
jurídica.
Nesse sentido, importa grave equívoco a interpretação de texto legislativo
considerando “valor desatualizado” da sociedade e, mais especificamente, regime de
visibilidade já ultrapassado. Citado equívoco desnatura o direito, afasta as “soluções
jurídicas” impostas da experiência jurídica vivenciada.
4 Conclusões parciais
Frente aos pontos enfrentados no presente capítulo, podemos concluir que:
a) Em razão das exigências do arcabouço constitucional vigente no Estado brasileiro,
somente as teorias do direito-função (poder empregatício sob característica de ser
exercido pelo seu titular -o empregador- não em seu estrito interesse próprio, mas na
tutela de interesse de terceiro) e da relação jurídica complexa (poder empregatício
caracterizado pela assimetria variável entre seus polos componentes -empregado e
empregador-, estes considerados em suas projeções individual e coletiva, mediante a
qual se preveem -previsão no sentido de poder diretivo/regulamentar-, alcançam -
alcance no sentido de poderes fiscalizatório e diretivo- ou sancionam condutas no
plano do estabelecimento e da empresa) são capazes de prosperar como viáveis,
motivo pelo qual, na interpretação do enunciado prescritivo contido no artigo 62, I, da
CLT, serão tais teorias consideradas na valoração da distribuição de deveres e
obrigações das partes da relação jurídica empregatícia;
237
A expressão “normas cujos elementos baseiam-se na visibilidade” é aqui utilizada para se referir a normas jurídicas cujo antecedente é formado pela descrição de um comportamento abstrato (proibido, obrigatório ou proibido) que deve ser objeto de fiscalização ou observação por terceira pessoa. Isto é, para a ocorrência do antecedente de tais normas jurídicas é necessária a ocorrência do evento “realização ou possibilidade de realização de fiscalização ou observação por terceiro”.
100
b) ante o disposto nos artigos 1º, III e IV, 3º, I e III e 170, caput e incisos III e VII,
todos da Constituição Federal, não há como se admitir, na relação de emprego,
prerrogativa de exclusividade na imposição de vontade de somente uma das partes da
relação para que a referida parte privilegiada, no exercício de seu exclusivo interesse
(direito potestativo), escolha os efeitos jurídicos a serem alcançados na realização do
vínculo empregatício;
c) o surgimento, em razão do atual estado da tecnologia de rastreamento de objetos e
pessoas e de transmissão sem fio de dados, do conceito de “espaço ampliado”
(representações, sob forma de imagens, sons e até mesmo de sensações táteis, de uma
realidade que é fisicamente distante do cidadão comum – isto é, realidade que lhe seria
inatingível naturalmente pela visão -, permitindo ao cidadão não só ter efetivo acesso à
essa realidade, como também com ela interagir), bem como a acessibilidade de grande
parte da sociedade a essas tecnologias, gerou uma modificação no regime de
visibilidade (forma como a sociedade considera verdadeiro discurso baseado numa
determinada imagem, numa determinada exposição produzida a partir dos recursos
tecnológicos disponíveis na respectiva época);
d) o novo regime de visibilidade (baseado no conceito de “espaço ampliado”)
considera como verdadeiro discurso baseado no efetivo controle do controlado à
distância, através do atual estado da tecnologia de rastreamento de bens e objetos e de
transmissão sem fio de dados, e independentemente das características do espaço físico
que ocupa quando da realização de cada um de seus comportamentos;
e) o regime de visibilidade é próprio de determinada sociedade e de certo momento
histórico, sendo um valor cultuado pela sociedade em realidades fatuais que se
apresentem e que, portanto, faz parte da experiência jurídica, devendo, frente à
“Eticidade”, incidir sobre os fatos normados, gerando a escolha de uma das
possibilidades semânticas do texto normativo interpretado (tal escolha terá como
vertente a incidência do “valor” ao fato concreto em análise), levando em consideração
a elasticidade semântica do respectivo texto normativo;
101
f) a mudança, numa sociedade, do regime de visibilidade é capaz de gerar mutação
normativa – entendida como modificação do conteúdo da norma jurídica, apesar da
manutenção do enunciado prescritivo (texto legislativo ou texto normativo238
) –
especialmente naquelas normas jurídicas cujos elementos baseiam-se na visibilidade
(normas jurídicas cujo antecedente é formado pela descrição de um comportamento
abstrato -proibido, obrigatório ou proibido- que deve ou pode ser objeto de
fiscalização ou observação por terceira pessoa. Isto é, para a ocorrência do antecedente
de tais normas jurídicas é necessária a ocorrência do evento “realização ou
possibilidade de realização de fiscalização ou observação por terceiro”).
238
As expressões “enunciado prescritivo”, “texto legislativo”, “texto normativo” e “enunciado normativo” são utilizadas, na redação da presente tese, como sinônimas.
102
Capítulo III - OS SISTEMAS “AUTOMATIC VEHICLE LOCATION” (AVL)
São elementos fulcrais para a compreensão desta tese conhecimentos a
respeito de sistemas de localização automática de veículos, que atendem pela sigla
AVL (do inglês Automatic Vehicle Location), motivo pelo qual neste capítulo nos
preocupamos com a apresentação não só do conceito de “sistemas de localização
automática de veículos”, como também trataremos de suas espécies, abordando cada
tecnologia vinculada a esse sistema (sistema GPS, comunicação celular e softwares de
gerenciamento de frota) que, juntas, permitem a existência do AVL no atual estado da
técnica. Por fim, apresentaremos os principais sistemas AVL disponíveis no mercado
brasileiro.
1 Os sistemas precursores do AVL
A humanidade desde há muito se preocupa com a pesquisa e o
desenvolvimento de técnicas de localização de veículos e de navegação. O primeiro
sistema de navegação de veículo remonta a milhares de anos, sendo denominado
“South-Pointing Carriage” (figura 1), inventado na China cerca de 2.600 anos antes de
Cristo. Tal sistema caracterizava-se por uma carroça de duas rodas na qual era
montada uma figura humana moldada em material metálico que, graças à ação de um
sistema de engrenagens, mantinha-se sempre direcionada para o sul, pouco importando
o caminho seguido pelo veículo239
.
Figura 1 – Exemplar do equipamento South-Pointing Carriage
Fonte: ZHAO, Yilin. Vehicle location and navigation system.Londres: Artech House, 1997, p.3.
239
ZHAO, Yilin. Vehicle location and navigation system. Londres: Artech House, 1997, p. 1-2.
103
Quase que paralelamente à invenção do “South-Pointing Carriage”, outra
importante técnica foi inventada, a “Li-Recording” (figura 2), que se constituía por um
conjunto de engrenagens e duas figuras humanas em madeira, sendo que, conforme o
veículo se deslocasse, uma das figuras humanas tocava num tambor, significando o
deslocamento por uma determinada medida de distância (no caso, um ”li”, que
representava cerca de 500 metros) e quando a outra figura humana tocasse num gongo
constatado era o deslocamento por dez vezes uma determinada medida de distância (
no caso, dez “li”, que representava cerca de 5.000 metros).
Figura 2 – Exemplar do equipamento Li-Recording
Fonte: ZHAO, Yilin. Vehicle location and navigation system. Londres: Artech House, 1997, p.3.
Outras técnicas básicas de localização e de navegação, como o odômetro240
e a bússola magnética241
, foram inventadas cerca de 2.000 anos atrás. No século XIX,
essas e outras tecnologias de localização foram incorporadas aos automóveis. Nos
Estados Unidos da América, o primeiro mapa automotivo foi publicado em 1895 e os
sinais de trânsito foram instalados, juntamente com a identificação das rodovias, no
início do século XX. Entre 1900 e 1920 passaram a ser produzidos mapas com rotas
incorporadas e com várias instruções sequenciais impressas. Como as estradas
240
Instrumento que indica distâncias percorridas por pedestres ou por veículos. 241
Bússola ou Agulha Magnética nada mais é que uma haste ou várias hastes de ferro imantadas e dispostas por baixo de um círculo graduado de 0° a 360°, denominado Rosa-dos-Ventos, suspensas por um estilete de forma a poder girar livremente e, portanto, dar indicações de direção em relação a uma direção de referência na superfície da Terra, direção essa que se denomina Norte Magnético da Terra, conforme ensinamentos de Geraldo Luiz Miranda de Barros (Barros, Geraldo Luiz Miranda de. Navegar é fácil. 12ª edição. Rio de Janeiro: Catedral das Letras, 2006, p. 319).
104
tornaram-se melhor sinalizadas e os roteiros se tornaram mais precisos, o interesse por
aparelhos de orientação diminuiu entre 1920 e 1940. Durante a Segunda Grande
Guerra, um sistema de navegação eletrônica foi desenvolvido nos Estados Unidos da
América para veículos militares, que era constituído de uma bússola magnética cuja
posição era lida por uma fotocélula, sendo que um servomecanismo era impulsionado
pela saída da bússola para girar um eixo mecânico correspondente à posição do
veículo. Tal haste foi acoplada a um computador mecânico que, obtendo a distância do
curso derivado do odômetro, convertia tais informações em componentes X e Y,
permitindo a localização automática na trajetória do veículo num mapa de escala
adequada242
.
No final da década de 1960, um sistema de orientação eletrônico cuja
denominação era “ERG” foi inventado, constituindo-se num sistema sem fio de
navegação utilizado para controle e distribuição de fluxo de tráfego. Para
funcionamento deste sistema, uma rede de curto alcance era utilizada para
comunicação bidirecional e havia um console no veículo com opções, acessíveis
através de botão giratório, que permitiam ao condutor introduzir um código de destino.
Ao aproximar-se de intersecções de vias, o código de destino era transmitido a partir
de um transmissor localizado a bordo do veículo para a baliza de mais de uma antena
de comunicação incorporada na superfície da via e conectado a um controlador que,
por sua vez, era conectado a um sistema central para acessar dados de tráfego. Depois
de receber o código de destino, o controlador o decodificava e planejava uma melhor
rota, sendo que as instruções de orientação eram exibidas num display no veículo. É
verdade que devido a recursos limitados, esse sistema nunca foi efetivamente
implementado, tendo servido, no entanto, para introduzir o conceito de navegação
dinâmica243
.
No início dos anos 1970, um sistema autônomo de navegação foi
introduzido nos Estados Unidos da América. Esse sistema utilizava um módulo “dead
242
ZHAO, Yilin. Vehicle location and navigation system. Londres: Artech House, 1997, p. 2-3. 243
Ibidem, p. 3-4.
105
reckoning”244
assistido por um algoritmo245
vinculado a um mapa para localizar o
veículo. Uma segunda versão desse sistema permitia a exibição de instruções de
orientação de rota num painel de plasma246
.
Durante os últimos vinte anos, muitos componentes e tecnologias para
localização de veículos e navegação foram desenvolvidos, ganhando, os respectivos
sistemas, alto grau de acurácia e alta capacidade de localização, inclusive com
informações aos usuários em tempo real através de redes sem fio, o que foi permitido
com o surgimento do “Global Positioning System” (GPS) e com a evolução da
telemática247
, em especial através da comunicação celular.
2 Conceito de AVL
Os sistemas AVL(Automatic Vehicle Location) são parte de uma classe
mais extensa de sistemas, denominada “Sistemas Inteligentes de Transportes”, que
atende pela sigla ITS (do inglês Inteligent Transportation Systems). O objetivo dos
ITS é a aplicação de tecnologias avançadas para fazer o transporte funcionar de forma
mais segura e eficiente, com menos congestionamento, poluição e impacto ambiental.
A teoria e a prática dos sistemas de transporte inteligentes estão entre as áreas mais
promissoras estudadas nas áreas do transporte, da informática, da informação, da
comunicação e da engenharia e que desempenham e continuarão desempenhando no
244
Conhecida como técnica de posição estimada. Trata-se de um sistema de localização de veículos que emprega em cada unidade móvel instrumentos que medem a distância percorrida e a mudança na direção do movimento. Para aferir a determinação da localização do veículo, o sistema se baseia numa posição inicial e, com base nas distâncias e direcionamentos realizados, estima a posição da unidade móvel que, no caso, pode ser um veículo. Ilustração dessa técnica consta do Apêndice “A” desta tese. 245
Algorítimo é uma sequência determinada de instruções bem definidas, sendo que cada uma delas é executada mecanicamente num determinado tempo. Constitui-se um algoritimo, de forma ilustrada, como uma receita, os passos necessários para a realização de uma tarefa. 246
ZHAO, Yilin. Vehicle location and navigation system. Londres: Artech House, 1997, p. 4. 247
Telemática é a comunicação à distância realizada através da junção de recursos das telecomunicações (como telefonia, satélite, cabos, fibras óticas etc) e da informática (como computadores, periféricos, softwares e sistemas de rede), que possibilita o processamento, a compreensão, o armazenamento e a comunicação de grandes quantidades de dados, em formatos de texto, imagem e som, em curto prazo de tempo, entre usuários localizados nos mais diversos pontos do Planeta Terra.
106
futuro um papel primordial na vida dos seres humanos, afetando, de alguma forma,
toda a sociedade248
.
A existência dessa nova ciência, denominada ITS, dá-se graças à aplicação
da tecnologia da informação249
, aliada à telecomunicação e à eletrônica no
planejamento e nas gestão, operação e fiscalização do transporte urbano. A arquitetura
de ITS está baseada na interação de três “camadas” de infraestrutura, quais sejam: a)
camada de transportes, que é composta pela infraestrutura física de ITS, contendo os
usuários, veículos, centros de controle e equipamentos viários; b) camada de
comunicação, composta pela infraestrutura de informações que conecta todos os
elementos da camada de transportes, sendo a camada que dá a característica de
sistema, propiciando coordenação e compartilhamento de informações entre sistemas e
pessoas; e c) camada institucional, composta pelas organizações e regras sociais que
definem as fronteiras institucionais e os papéis dos organismos governamentais,
empresas privadas, associações de usuários e outros participantes no contexto dos
serviços de ITS. As atividades referentes à camada institucional incluem o
desenvolvimento de uma política local, o financiamento e a criação de parcerias que
direcionem o desenvolvimento de ITS250
.
As possibilidades de aplicação dos sistemas inteligentes de transportes são
muito amplas, envolvendo, entre outros, sistemas de informações para usuários,
gerenciamento de rodovias e de transporte coletivo, controle de tráfego, gerenciamento
248
ZHAO, Yilin. Vehicle location and navigation system. Londres: Artech House, 1997, p. 1. 249
Como ensina Adriana V. Bottos, as “Tecnologias da Informação e da Comunicação”, que atendem pela sigla TIC, congregam os seguintes conceitos: a) tecnologia, com a aplicação dos conhecimentos científicos para facilitar a realização das atividades humanas, com a criação de produtos, instrumentos, linguagens e métodos ao serviço das pessoas; b) informação, que são dados que têm significado para determinados grupos e de fundamental importância, vez que é a partir do processo cognitivo da informação que tomamos as decisões que dão lugar a todas as nossas ações; e c) comunicação, que é a transmissão de mensagens entre as pessoas. Quando são unidos esses três conceitos, faz-se referência a um conjunto de avanços tecnológico que nos proporcionam a informática, as telecomunicações e as tecnologias audiovisuais, que compreendem os desenvolvimentos relacionados com os computadores, internet, telefonia, as aplicações de multimídia e a realidade virtual.” (In BOTTOS, Adriana V. Teletrabajo: su protección em el derecho laboral – 1ª Ed. – Buenos Aires: Cathedra Juridica, 2008, p. 27. Tradução nossa). 250
MEIRELLES, Alexandre Augusto de Castro. Sistemas de Transportes Inteligentes: aplicação da telemática na gestão do trânsito urbano. 2010. Disponível em: <www.ip.pbh.gov.br/ANO1_N1_PDF/ip0101meirelles.pdf>. Acesso em: 15 abr. 2011.
107
de serviços de emergência, arrecadação automática de tarifas no transporte coletivo,
nos estacionamentos e nos pedágios, rastreamento de frotas de veículos de carga, de
transporte público e de emergência, coleta automática de dados, fiscalização eletrônica
de veículos e vias inteligentes251
. A realidade é que a cada dia abrem-se novas
possibilidades de aplicação de ITS, a cada novo problema e a cada nova tecnologia
criada, novas aplicações de ITS surgem.
Como afirma Alexandre Augusto de Castro Meirelles, pode-se, a título
exemplificativo, indicar mais de uma dezena de tipos de serviços de ITS, como:
gerenciamento de viagens e tráfego (como informações anteriores à viagem,
informações para motoristas durante a viagem, serviços de informações para
passageiros, orientação sobre rotas, gerenciamento de sinistros, gerenciamento de
demandas de viagens, controle de tráfego, controle de emissões de partículas
poluidoras e controle de cruzamentos rodoferroviários), operação de veículos
comerciais (envolvendo, entre outros, desembaraço eletrônico de veículos, inspeção
automatizada das condições de segurança, dos veículos, processos administrativos
automatizados de veículos comerciais, monitoração de segurança a bordo, gestão de
frotas comerciais e notificação de incidentes com cargas perigosas), gerenciamento de
transporte público (como na informação aos usuários durante a viagem, no
gerenciamento integrado do transporte público, no transporte coletivo personalizado e
na segurança pública nos transportes), pagamento eletrônico (serviços de pagamento
eletrônico em transporte público, em estacionamento e nos pedágios), gerenciamento
de serviços de emergência (gestão de frotas de emergência e notificação de
emergências) e sistemas avançados de segurança veicular (prevenção de acidentes,
sensoriamento de segurança, desenvolvimento de dispositivos de segurança pré-
colisão e operação automatizada de veículos)252
.
251
MEIRELLES, Alexandre Augusto de Castro. Sistemas de Transportes Inteligentes: aplicação da telemática na gestão do trânsito urbano. 2010. Disponível em: <www.ip.pbh.gov.br/ANO1_N1_PDF/ip0101meirelles.pdf>. Acesso em: 15 abr. 2011.
252
Idem.
108
Os sistemas denominados “Automatic Vehicle Location” são, de acordo
com minucioso conceito apresentado pelo Institute of Transportation Research and
Education of North Carolina State University, sistemas de posicionamento e
comunicação que permitem o conhecimento da posição de um veículo e a realização
de operações associadas, como a transmissão de informações disponíveis a bordo
obtidas através de dispositivos de aquisição de dados ou fornecidas pelo motorista253
.
Tais sistemas são resultado de uma montagem de tecnologias e equipamentos que
permite a determinação automática e centralizada, visualização e controle da posição e
do movimento de vários veículos254
.
Os sistemas AVL têm sido utilizados há mais de vinte anos para variadas
propostas, desde a localização emergencial de veículos a monitoramento de frota e
monitoramento de dados255
. No Brasil, é comum denominarem-se tais sistemas como
“rastreamento de veículos”256
, o que entendemos como incorreto, vez que atualmente
tais sistemas desempenham atividades muito mais amplas que o simples rastreamento,
contendo257
:
a) Instrumentos de emergência, como:
- botão de pânico para alertas à central nas situações de emergência;
- mecanismo de bloqueio remoto do veículo;
- comando de trava de baú de caminhão;
- notificação de abertura de airbag;
- Automatic Crash Notification, que é um mecanismo a bordo do veículo desenvolvido
para notificar a um centro de chamada determinada ocorrência de colisão, informando
253
ITRE – Institute of Transportation Research and Education of North Carolina State University-. Automatic Vehicle Transportation(AVL) for pupil transportation. 2009. Disponível em: <http://www.itre.ncsu.edu/pupil/STG/documents/AVL.pdf>. Acesso em 14.fev.2011.
254
Ibidem. 255
Ibidem. 256
Marcos Rodrigues, Carlos Eduardo Cugnasca e Alfredo Pereira de Queiroz Filho, na obra “Rastreamento de Veículos” (Editora Oficina de Textos, 2009), utilizam a expressão rastreamento de veículos para se referir aos sistemas AVL.
257
A relação de funções, abaixo apresentadas, oferecidas pelos sistemas AVL, foi adaptada do quanto contido no artigo “Mercado Brasileiro de Wireless M2M: Conceitos”, de autoria de Ian Bonde. 2010. Disponível em: <http://www.teleco.com.br/tutoriais/tutorialm2mI/default.asp>. Acesso em: 12.abr. 2011.
109
à localização do veículo, à velocidade e ao grau de gravidade do acidente,
acionamento de airbag e outras informações fornecidas por sensores a bordo258
.
b) Mecanismos para comunicação, em tempo real, entre o motorista e a central de
monitoramento:
- display para recebimento e envio de mensagens com teclado para comunicação;
- instrumento “phone on board” com viva-voz, permitindo a comunicação entre o
motorista e a central de gerenciamento de frota.
c) Mecanismos de roteirização259
, oferecendo informações em mapas digitais,
conduzindo o motorista ao emprego do trajeto mais rápido ou mais curto ao destino
pretendido.
d) Mecanismos de controle como:
- termômetro para motor e baú;
- sensor de porta, apontando o momento em que as portas do veículo são abertas e
fechadas;
- sensor de engate, informando se carretas e baús encontram-se engatados ao veículo,
bem como os momentos de desengate;
- sensor de tanque, permitindo o monitoramento do consumo de combustível;
- sensor e controle de velocidade;
- câmeras (web cams) permitindo a visualização, na central de monitoramento, de
todos os atos praticados pelo motorista no interior do veículo em tempo real. Tais
imagens são obtidas, em tempo real, através da internet (via web);
- diagnóstico do motor.
e) Armazenagem de informação, permitindo:
- gravação interna de dados;
- relatórios de jornada de trabalho do motorista;
- relatório de pedágios alcançados no decorrer da viagem .
258
Fleetboss Global Positioning Solutions. An introduction to GPS fleet management. 2010. Disponível em: <http://www.fleetboss.com/index.php?option=com_content&view=article&id=35:white-papers&catid=56&Itemid=65>. Acesso em: 14.fev.2011.
259
Roteirização é processo de definição de roteiros ou itinerários buscando-se o caminho mais curto ou mais rápido entre dois pontos. Segundo Luiz Martins, num sentido mais amplo, a roteirização “pode ser entendida como um processamento de otimização, ao nível operacional, que consiste na programação de um ou mais veículos, quer seja em ambiente urbano ou rodoviário, cujo resultado consiste na alocação racional de serviços de transporte (coleta e/ou entrega) à frota e à definição dos itinerários (roteiros) e consequente sequência ou ordem em que os atendimentos são realizados (MARTINS, Luiz. Geoprocessamento para roteirização de veículos. 2009. Disponível em: <http://www.administradores.com.br/informe-se/artigos/geoprocessamento-para-roteirizacao-de-veiculos/29589/>. Acesso em: 06 abr. 2011).
110
É possível, assim, afirmar que aquilo de que tratamos na presente pesquisa
como sistemas “Automatic Vehicle Location (AVL)” é um conjunto de equipamentos
e técnicas interrelacionadas que permite não só o rastreamento do veículo (isto é, o
fornecimento e gerenciamento sistemático da posição e do estado do veículo, com
variados níveis de exatidão e intervalo de tempo260
), mas também o oferecimento de
informações em tempo real sobre todas as atividades realizadas pelo condutor no
interior do veículo e sobre as condições gerais do veículo. Nesse sentido, vale citar
Marcos Rodrigues, Carlos Eduardo Cugnasca e Alfredo Pereira de Queiroz Filho que,
em obra coletiva, afirmam:
Nota-se uma clara expansão das funcionalidades originais do
sistema. Embora a posição do veículo possa ser considerada como a
informação mais importante do sistema RV261
, outros atributos do
veículo são igualmente relevantes, como: o estado de portas/baú, a
presença de pessoas na cabine, os dados de telemetria (velocidade,
temperatura, falhas mecânicas) e os dados operacionais, como a
identificação do motorista e da carga.
Atualmente, há uma tendência de crescimento desse mercado em
decorrência da ampliação de funções, principalmente pelo uso
conjunto do RV com outras tecnologias, como Location Based
Services (LBS)262
, comunicação sem fio (wireless), ferramentas de
Sistemas de Informações Geográficas (SIG) e de Internet.263
3 As partes componentes de um Sistema AVL
Os sistemas AVL são, antes de qualquer outra característica, um “sistema”,
isto é, um conjunto de elementos interdependentes, ou um todo organizado, ou partes
260
RODRIGUES, Marcos et alli. Rastreamento de Veículos. São Paulo: Oficina de Textos, 2009, p. 15. 261
Os Autores citados utilizam a sigla “RV” para expressar “Rastreamento de Veículos”. 262
Location Based Services são, conforme ensinamentos de Stefan Steiniger, Moritz Neun e Alistair Edwardes, serviços de informação acessíveis com aparelhos móveis através de rede móvel e utilizando o recurso de fazer uso da localização do dispositivo móvel. Também podem ser compreendidos como um serviço sem fio que utiliza informação geográfica para servir um usuário de aparelho móvel ou qualquer serviço que explore a posição de um terminal móvel (Cf. STEINIGER, Stefan et alli. Foundations of Location Based Services. 2010. Disponível em: <http://citeseerx.ist.psu.edu/viewdoc/download?doi=10.1.1.94.1844&rep=rep1&type=pdf>. Acesso em : 13. Mai. 2011). 263
RODRIGUES, Marcos et alli. Op. Cit., p. 15.
111
que interagem formando um todo unitário e complexo264
. Os elementos que compõem
um AVL são equipamentos e técnicas que, interrrelacionados, são capazes de não só
rastrear um veículo, como também oferecer informações em tempo real sobre todas as
atividades realizadas pelo condutor no interior do veículo e sobre as condições gerais
do veículo.
Yilin Zhao, em sua obra Vehicle Location and Navigation System, agrupa
os elementos componentes de um sistema AVL em “módulos”, integrando várias
funções e tecnologias. Tais módulos são, em realidade, subsistemas (entendendo-se
aqui subsistema como conjunto de partes interdependentes que formam uma unidade
funcional, que se agrega a outros subsistemas para a composição de um sistema265
,
cujas funcionalidades agregarão as funcionalidades de cada subsistema) que, uma vez
reunidos, formam o macrosistema AVL. Ante o caráter didático do raciocínio traçado
por Zhao, utilizaremos de seu magistério no sentido de descrever que um moderno
sistema de localização é formado normalmente pelos seguintes módulos:
- módulo “banco de dados de mapas digitais” que contém informações do mapa com
um formato predefinido, que pode ser processado por um computador para as funções
relacionadas à mapa, tais como identificar e fornecer a localização, a classificação da
estrada, as regras de trânsito, além de informações sobre a viagem266
;
- módulo de “posicionamento” que, utilizando técnica viável (como sinais de rádio,
Global Positioning System-GPS, etc), é capaz de determinar automaticamente a
posição de um veículo para identificar o caminho percorrido e cada intersecção entre
vias que se aproximam267
;
264
BIO, Sérgio Rodrigues. Sistemas de informação: um enfoque gerencial. São Paulo: Atlas, 1996, p. 18. 265
Ibidem, p. 18. 266
ZHAO, Yilin. Vehicle location and navigation system. Londres: Artech House, 1997, p. 6-7. 267
Ibidem, p. 7.
112
- módulo “planejamento de rota”, cujo objetivo é a orientação de rota, isto é,
processo para orientar o condutor do veículo ao longo da rota que é gerada pelo
próprio módulo. O planejamento de um trajeto, seja aquele realizado antes do início do
percurso, seja o empreendido durante o percurso, é possível graças ao módulo “banco
de dados de mapas digitais” juntamente com informações em tempo real recebidas
através de uma rede de comunicação sem fio268
;
- módulo “map matching”, que possibilita o processo pelo qual a trajetória do veículo
é correlacionada com um mapa rodoviário digital, permitindo a localização do veículo
em relação ao mapa;
- módulo “orientação de rota”, cujo objetivo é orientar o condutor do veículo ao
longo da rota gerada pelo módulo “planejamento de rota”;
- módulo “comunicação sem fio” , permitindo que um veículo, seus ocupantes e/ou
gestores de sistemas de gerenciamento de transportes recebam informação, em tempo
real269
, atualizada do trânsito, além de relatórios sobre o percurso270
;
268
ZHAO, Yilin. Vehicle location and navigation system. Londres: Artech House, 1997, p. 8. 269
A expressão “em tempo real” é utilizada no sentido de “sistema de tempo real”, que é sistema computacional que deve reagir a estímulos oriundos do seu ambiente em prazos específicos, como ensinam Jean Marie Farine, Joni da Silva e Romulo Silva Oliveira (Cf. FARINES, Jean Marie; FRAGA, Joni da Silva; OLIVEIRA, Romulo Silva. Sistemas em tempo real. São Paulo: USP, IME, Escola de Computação, 2000, pp. 3-4). Tais prazos específicos são muito curtos chegando a décimos de segundo, tendo-se, pois, que o tempo entre a ocorrência de uma situação constatada pelo sistema e a resposta do mesmo (informando o usuário, por exemplo, como ocorrem nos sistemas de informação em tempo real) é ínfimo, podendo-se afirmar que a resposta do sistema ocorre no mesmo momento da ocorrência do evento objeto da resposta. 270
ZHAO, Yilin. Op. Cit., p. 8.
113
- módulo “interface homem-máquina”, cujo papel é fornecer aos usuários do sistema
meios de interagir com o computador de localização e navegação, bem como com os
demais dispositivos utilizados no sistema.
Tais módulos interagem-se conforme ilustração abaixo (figura 3), adaptada
a partir de fluxograma apresentado por Yilin Zhao271
:
Figura 3. Interação entre módulos básicos de um sistema de um AVL
Planejamento de rota Orientação de rota
Comunicação Interface Homem-Máquina
Sem fio
Banco de Dados de Mapa Digital
Sensor de Posicionamento Map Matching
Passamos, a seguir, a abordar de forma detalhada cada um desses módulos.
3.1 Módulo “Banco de Dados de Mapa Digital”
Um banco de dados de mapas digitais é um módulo indispensável para
qualquer localização de veículos. Sem um mapa é muito difícil para um viajante
explorar uma área pouco conhecida e tomar decisões corretas sobre o trajeto a ser
realizado. Também igualmente difícil seria a atuação de um gestor de frota em
organizar a prestação de serviço com base em sistema AVL sem que pudesse se basear
em informações apontadas em mapa. Utilizando-se mapa, informações complexas
podem ser comunicadas de forma extremamente fácil272
.
271
ZHAO, Yilin. Vehicle location and navigation system. Londres: Artech House, 1997, p.7. 272
Ibidem, p. 18.
114
Impossíveis seriam a construção e a manutenção de banco de dados de
mapa digital sem a tecnologia denominada GIS (Geographic Information System), que
em obras nacionais sobre o tema recebe a denominação SIG (Sistema de Informação
Geográfica), caracterizando-se como um poderoso conjunto de ferramentas para
coleta, armazenamento e exibição dos dados geográficos, a partir do mundo real, para
um conjunto particular de objetivos, com alto grau de fidelidade273
. Na prática, pode-se
afirmar ser o GIS identificado como programas de computador que combinam banco
de dados com imagens espaciais (ou geográficas), mapas eletrônicos com capacidade
de se relacionar com outros mapas, além de permitir a facilidade de análise das
informações274
. Abaixo segue exemplo de mapa eletrônico que compõe um sistema
AVL:
Figura 4. Mapa eletrônico produzido a partir do sistema GIS
Fonte: “Autocargo Rastreamento” (http://www.autocargo.com.br/produtos.php#)
273
MONICO, João Francisco Galera. Posicionamento pelo Navstar-GPS. Descrição, fundamentos e aplicações. São Paulo: Editora Unesp, 2000, p. 225-226.
274
PERROTTA, Bruno Araujo. Contribuição Metodológica para o Planejamento de Transporte Rodoviário de Resíduos Sólidos comerciais e Industriais com Uso de Tecnologia SIG – Estudo de caso na Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Dissertação de Mestrado em Engenharia de Transportes apresentada na UFRJ – Universidade Federal do Rio de Janeiro – no ano de 2007, p. 49.
115
A tecnologia GIS oferece ferramentas operacionais que auxiliam e agilizam
procedimentos de planejamento, gerência e de tomada de decisão e que, por tais
características, vem sendo utilizada de forma cada vez mais promissora nas mais
diferentes áreas. A propriedade do GIS que oferece todo esse potencial é a capacidade
de identificar relações entre objetos, ou seja, análises espaciais graças a algoritmos275
que definem os conceitos básicos de objetos no espaço: pontos, linhas e retas276
. É em
muito diferente a situação em que o sistema informa simplesmente as coordenadas da
localização, isto é, a longitude e a latitude de determinado objeto no espaço quando
comparada à situação em que o sistema não só informa as coordenadas, mas também
as aponta num mapa especificando-as geograficamente, com a exata localização do
bem. Eis a facilidade criada pela tecnologia GIS para a Engenharia de Transportes,
razão pela qual, inclusive, criou-se nomenclatura especial, o GIS-T, para designar a
adaptação e adoção dessa tecnologia para propósitos específicos em transportes,
armazenando, exibindo e analisando dados típicos do setor de transportes277
.
A obtenção de dados de um GIS é realizada geralmente através de duas
técnicas, denominadas aerografia (do inglês aerography) e acorografia (do inglês
chorography). Na aerografia, todos os pontos na Terra devem ser obtidos através de
fotografias através de satélites e serem essas fotografias projetadas sobre folhas
quadriculadas para calcular coordenadas, procedimento esse denominado mapping. Na
acorografia não é necessário obter fotografias no extenso espaço terrestre, podendo
uma aeronave ser utilizada para fazer imagens e, então, continua-se com passos
similares à aerografia278
, em especial com o procedimento de mapping.
275
Algoritmo é uma sequência determinada de instruções bem definidas, sendo que cada uma delas é executada mecanicamente num determinado tempo. Constitui-se um algoritmo, de forma ilustrada, como uma receita, os passos necessários para a realização de uma tarefa. 276
PERROTTA, Bruno Araujo. Contribuição Metodológica para o Planejamento de Transporte Rodoviário de Resíduos Sólidos comerciais e Industriais com Uso de Tecnologia SIG – Estudo de caso na Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Dissertação de Mestrado em Engenharia de Transportes apresentada na UFRJ – Universidade Federal do Rio de Janeiro – no ano de 2007, pp. 49-50.
277
Ibidem, p. 49-54. 278
MAHDAVIFAR,S.A, SOTUDEH, G.R., e KEYDARI K. Automatic Vehicle Location Systems. Jornal da Academia Mundial de Ciência, Engenharia e Tecnologia (Jornal World Academy of Science, Engineering and
116
Os dados inerentes ao GIS podem ser de caráter cartográfico e de conteúdo
não-cartográfico. Os dados cartográficos são as feições geográficas representadas no
mapa, que são armazenadas na forma digital e representadas por pontos, linhas ou
polígonos com as seguintes características279
:
- ponto: é uma feição que necessita somente de uma posição geográfica para sua
representação (figura 5). A localização de um determinado objeto móvel num certo
momento é caracterizada por um ponto no mapa;
Figura 5. Ilustração de ponto de localização fixado num mapa eletrônico
Ponto de Localização no mapa
Fonte: Positron Rastreamento (http://www.positron.com.br)
- linha: é constituída a partir de uma série de pontos conectados, servindo à
identificação do percurso realizado por um objeto móvel num certo intervalo de
tempo. A soma de diversas localizações (representadas por pontos) distribuídas num
período de tempo leva à constatação do percurso (representado por uma ou várias
linhas), conforme figura 6;
Technology), edição 54, ano 2009. Disponível em: < http://www.waset.org/journals/waset/>. Acesso em 08 fev.2011, p. 309.
279
MONICO, João Francisco Galera. Posicionamento pelo Navstar-GPS. Descrição, fundamentos e aplicações. São Paulo: Editora Unesp, 2000, p. 228-229.
117
Figura 6. Linhas identificando percurso num mapa eletrônico
Fonte: GeoSiga Soluções em Geoposicionamento (http://www.geosiga.com.br/)
- polígono: é uma área limitada por linhas, delimitando um determinado espaço
territorial, conforme figura 7;
Figura 7. Ilustração de polígono delimitando área num mapa eletrônico
Fonte: “Tracsat Rastreamento” (http://www.tracsat.com.br/)
Como ensina Bruno Araujo Perrota, um GIS utiliza uma estrutura de
camadas, isto é, cada uma contém um tipo de informação que pode ser manipulada em
conjunto ou separadamente, sendo certo que cada camada é georeferenciada, ou seja,
118
está numa escala definida em pontos que têm coordenadas reconhecidas de latitude e
longitude280
, conforme tabela abaixo:
Tabela 1. Exposição das funções e aplicações de cada camada em um GIS
Itens Camada de Áreas Camada de Linhas Camada de Pontos
Função
Esta camada serve
para definir as
regiões geográficas
Esta camada forma
a rede viária
Esta camada serve
para georeferenciar
locais com
propósitos
específicos
Aplicação no mapa
Bairros, setores,
cidades, estados,
países etc
Ruas, estradas,
viadutos, pontes,
vias férreas, metrô,
etc
Pontos de coleta,
pontos de entrega,
depósitos etc
Fonte: PERROTA, Bruno Araujo. Contribuição Metodológica para o Planejamento de Transporte Rodoviário de Resíduos Sólidos Comerciais e Industriais com o Uso de Tecnologia SIG – Estudo de Caso na Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Dissertação de Mestrado em Engenharia de Transportes. UFRJ, 2007, p. 52
No que se refere aos elementos de natureza não-cartográfica, trata-se de
dados descritivos sobre as feições representadas nos mapas ou cartas (denominados
“atributos”) como, por exemplo, a posição geográfica, a dimensão, o uso e o nome do
proprietário de um imóvel, nome de uma rodovia, tipo de pavimento, entre outros281
.
Num GIS podem-se prover novas informações ou dados através da
integração de diferentes níveis de informação existentes, permitindo que os dados
originais sejam visualizados e analisados com uma perspectiva mais ampla e completa,
sendo certo que uma das características básicas de um GIS é viabilizar a integração
dos mais variados tipos de dados, coletados das mais diversas formas e instantes282
,
como pode ser verificado na tabela abaixo (tabela 2). Por exemplo, uma vez inseridos
dados no sistema GIS, este integrará tais dados apontando a localização no mapa
identificada com as informações inseridas, daí, pois, a perfeita compatibilização do
280
PERROTTA, Bruno Araujo. Contribuição Metodológica para o Planejamento de Transporte Rodoviário de Resíduos Sólidos comerciais e Industriais com Uso de Tecnologia SIG – Estudo de caso na Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Dissertação de Mestrado em Engenharia de Transportes apresentada na UFRJ – Universidade Federal do Rio de Janeiro – no ano de 2007, p. 51.
281
MONICO, João Francisco Galera. Posicionamento pelo Navstar-GPS. Descrição, fundamentos e aplicações. São Paulo: Editora Unesp, 2000, p. 229.
282
Ibidem, p. 227-228.
119
módulo “banco de dados de mapa digital” com o módulo “sensor de posicionamento”,
cabendo a este o fornecimento de informações ao banco de dados de mapa digital.
Tabela 2. Descrição de cada função de um sistema GIS
Função Descrição Exemplos
AQUISIÇÃO
- Coleta de informações
de uma série de fontes
distintas;
- conversão de informação
analógica em digital
Fontes: fotografias aéreas,
ortofotos, levantamentos
topográficos, imagens de
satélites, cartas,
levantamentos estatísticos
que são digitalizados
GERENCIAMENTO
- Inserção, remoção ou
modificação dos dados
Tarefas: armazenamento
de banco de dados,
manutenção e
recuperação de bancos de
dados, controle do
processo de manipulação
de arquivos
Função Descrição Exemplos
ANÁLISE
- Examina os dados que
contenham as informações
relacionadas
Tarefas: seleção e
agregação de
informações, controle e
geométrica e topologia,
conjugação de
informações temáticas,
extração de informações
estatísticas.
EXIBIÇÃO DE
RESULTADOS
- Refere-se à
representação dos
resultados dos dados
manipulados
Mapas temáticos.
Mapas cadastrais
Fonte: PERROTA, Bruno Araujo. Contribuição Metodológica para o Planejamento de Transporte Rodoviário
de Resíduos Sólidos Comerciais e Industriais com o Uso de Tecnologia SIG – Estudo de Caso na Região
Metropolitana do Rio de Janeiro. Dissertação de Mestrado em Engenharia de Transportes. UFRJ, 2007, p. 51.
3.2 Módulo de Posicionamento
O módulo de posicionamento é um componente vital para qualquer sistema
AVL, vez que um dos principais recursos oferecidos pelo sistema (senão o principal) é
auxiliar os usuários do sistema na obtenção da localização precisa do veículo.
120
O posicionamento envolve a determinação das coordenadas de um veículo
na superfície da Terra, situando o veículo em relação a pontos de referência e a outras
características do terreno, tais como estradas, sendo que essa tarefa é realizada pelo
módulo de posicionamento em conjunto com outros módulos, como o de banco de
dados de mapa digital283
.
3.2.1 Técnicas de posicionamento
Embora hoje a tarefa de posicionamento possa ser realizada com relativa
simplicidade através da utilização, por exemplo, de satélites artificiais apropriados
para tal finalidade, o posicionamento foi um dos problemas que o ser humano há muito
tempo procura solucionar, valendo transcrever, a respeito da evolução histórica dos
sistemas de localização, o magistério de João Francisco Galera Monico:
O homem sempre esteve interessado em saber onde estava;
inicialmente restrita à vizinhança imediata de seu lar, mais tarde a
curiosidade ampliou-se para os locais de comércio e, por fim, com o
desenvolvimento da navegação marítima, praticamente alcançou o
mundo todo. Conquistar novas fronteiras, de modo que o
deslocamento da embarcação fosse seguro, exigia o domínio sobre a
arte de navegar, ou seja, saber ir e voltar de um local a outro e
determinar posições geográficas, seja em terra, seja no mar. Por muito
tempo, o sol, os planetas e as estrelas foram excelentes fontes de
orientação. Mas, além da necessária habilidade do navegador, as
condições climáticas podiam significar a diferença entre o sucesso e o
fracasso de uma expedição(...). Surgiu, em seguida, a bússola,
inventada pelos chineses, que proporcionou uma verdadeira revolução
na navegação. Mas ainda perdurava um problema: como determinar a
posição de uma embarcação em alto-mar? O astrolábio, a despeito de
seu peso e tamanho, possibilitava apenas a obtenção da latitude sujeita
à grande margem de erro, e a medição só podia ser realizada à noite,
desde que com boa visibilidade. Melhorias ocorreram, no transcorrer
dos anos, com a introdução de novos instrumentos, tais como o
quadrante de Davis e o sextante. A determinação da longitude foi
considerada o maior problema científico do século XVIII (...). De
qualquer forma, mesmo com os melhores instrumentos, a navegação
celeste só proporcionava valores aproximados da posição, os quais
283
ZHAO, Yilin. Vehicle location and navigation system. Londres: Artech House, 1997, p.83.
121
nem sempre eram apropriados para encontrar um ponto durante a
noite.284
3.2.1.1 Conceito e funcionamento do GPS
O Global Positioning System é um sistema de radionavegação mundial
formado por uma constelação de 24 satélites, sendo que, desses, 21 são operativos e 3
são reservas prontos para entrar em funcionamento na hipótese de pane em algum dos
satélites funcionais285
. Esses satélites ocupam órbitas circulares a cerca de 20.187
quilômetros da superfície terrestre, em grupos de seis planos orbitais, sendo que cada
satélite tem um período útil de 12 horas sobre o horizonte286
, o que garante que, a
qualquer momento, pelo menos 4 ou 5 satélites estão sobre o céu do receptor de um
usuário em qualquer ponto do Planeta Terra. Trata-se de um sistema de abrangência
global que tem facilitado todas as atividades que necessitam de posicionamento287
, vez
que a concepção do sistema GPS permite que um usuário, em qualquer local da
superfície terrestre ou próximo dela, tenha à sua disposição um número de, no mínimo,
4 satélites para serem rastreados, permitindo que se realize um posicionamento em
tempo real, e, inclusive, a utilização desse sistema independentemente das condições
climáticas288
.
O princípio básico da navegação baseada em GPS consiste na medida de
distância entre o usuário e quatro satélites, vez que, conhecendo-se as coordenadas
(longitude e latitude) dos satélites é possível calcular as coordenadas da antena do
284
MONICO, João Francisco Galera. Posicionamento pelo Navstar-GPS. Descrição, fundamentos e aplicações. São Paulo: Editora Unesp, 2000, p. 19-20.
285
BARROS, Geraldo Luiz Miranda de. Navegar é fácil. 12ª edição. Petrópolis – Rio de Janeiro: Catedral das Letras, 2006, p. 399.
286
Idem. 287
MONICO, João Francisco Galera. Op. Cit., p. 21. 288
Ibidem, p. 21.
122
usuário no mesmo sistema de referência dos satélites289
. Sob o ponto de vista
geométrico, apenas três distâncias seriam suficientes para a localização do receptor
GPS de um determinado usuário, no entanto, a quarta distância é necessária em razão
do não-sincronismo entre os relógios dos satélites e o do usuário, adicionando-se uma
incógnita ao problema290
.
O pesquisador e professor do Departamento de Computação da Faculdade
de Ciências da UNESP – Universidade Estadual Paulista -, João Eduardo Perea
Martins, com o objetivo de facilitar a compreensão quanto ao funcionamento do
sistema GPS, elaborou software explicativo extremamente didático, do qual se extrai a
sequência abaixo:
a) um sistema de coordenadas geográficas permite que o globo terrestre seja dividido
em linhas imaginárias, assim pode-se definir precisamente a localização de um
determinado ponto. As linhas imaginárias básicas são os paralelos e os meridianos. Os
paralelos formam linhas paralelas à Linha do Equador, sendo traçadas no sentido
horizontal. Já os meridianos formam linhas semicirculares traçadas verticalmente
partindo do Polo Norte até o Polo Sul. Nesse contexto, tem-se que a latitude é uma
distância medida em relação ao Equador e a longitude é a distância em relação ao
meridiano de Greenwich, que passa pela cidade de igual denominação (Greenwich) na
Inglaterra, onde convencionou-se estar o meridiano “0”291
.
A latitude varia de 0° a 90° para o Norte ou para o Sul. Já a longitude varia
de 0° a 180° para o Leste ou para o Oeste. Um grau (identificado pelo símbolo ” ° “
acompanhado de um determinado número) é dividido em 60 minutos (os minutos são
identificados pelo símbolo “ ’ “ acompanhado de determinado número cardinal) e
289
MONICO, João Francisco Galera. Posicionamento pelo Navstar-GPS. Descrição, fundamentos e aplicações. São Paulo: Editora Unesp, 2000, p. 22.
290
Ibidem, p. 21. 291 MARTINS, João Eduardo Perea. Software de Apoio ao Ensino de Sistema de Posicionamento Global (SAE-
GPS). Departamento de Computação da Faculdade de Ciências da UNESP – Universidade Estadual Paulista,
2009. Disponível em <http://wwwp.fc.unesp.br/~perea/gps.php>. Acesso em: 20. jan.2011.
123
cada minuto é dividido em 60 segundos (os segundos são identificados pelo símbolo
“ ’’ “). As ilustrações abaixo(figuras 8 e 9) nos ajudam a visualizar os conceitos de
latitude e longitude.
Figura 8. Meridianos, paralelos e sistema de coordenadas
Fonte: MARTINS, João Eduardo Perea. Software de Apoio ao Ensino de Sistema de Posicionamento Global (SAE-GPS).
Figura 9. Sistemas de coordenadas aplicáveis sobre o Mapa Mundi
Longitude
Latitude
Fonte: Adaptado de MARTINS, João Eduardo Perea. Software de Apoio ao Ensino de Sistema de
Posicionamento Global (SAE-GPS).
b) O sistema de posicionamento global (GPS) é um sistema eletrônico que permite ao
usuário saber a sua exata localização na Terra (latitude e longitude), sendo que, para
isso, o sistema depende do sinal de alguns dos satélites de um sistema denominado
Navstar (Navegational Satellite Timing and Ranging), que é composto por 24 satélites,
124
acrescentando-se que cada um desses satélites está a uma altura de aproximadamente
20.000 quilômetros da superfície terrestre292
.
Para que o usuário do sistema GPS saiba a sua localização na Terra, o
receptor GPS deve captar o sinal de, pelo menos, 3 satélites, que transmitem as suas
respectivas coordenadas (latitude e longitude) e os respectivos horários dos seus
relógios internos, os quais são extremamente precisos, sendo que cada satélite
transmite essas informações a cada 1 milisegundo. O receptor GPS também tem um
relógio interno, razão pela qual, quando o mesmo recebe a informação do satélite, ele
pode calcular quanto tempo a informação levou para se propagar do satélite até o GPS
e, por consequência, calcular a distância entre ambos, conforme equação abaixo293
:
D= dt x C
Tal que:
“D” significa a distância entre um receptor GPS e o satélite do qual recebeu
informações;
“dt” é o tempo gasto para que um sinal emitido pelo satélite alcance o receptor GPS;
“C” é a velocidade da luz no vácuo (que se aproxima de 300.000 Km/s).
c) A triangulação é uma técnica que permite a determinação da localização exata de
um ponto na superfície terrestre a partir do uso referencial de outros três pontos de
referência, cujas posições são conhecidas. Assim, para realizar a triangulação é
necessário saber a distância entre o ponto desejado e os outros três pontos. O sistema
GPS utiliza-se da triangulação para determinar a posição do usuário do GPS no globo
terrestre (apontando as suas longitude e latitude) e, nesse caso, a distância é calculada
em relação ao usuário (em verdade, é em relação ao receptor GPS que se encontra
junto ao usuário) e três satélites, não se podendo deixar de informar que o receptor
292 MARTINS, João Eduardo Perea. Software de Apoio ao Ensino de Sistema de Posicionamento Global (SAE-
GPS). Departamento de Computação da Faculdade de Ciências da UNESP – Universidade Estadual Paulista, 2009. Disponível em <http://wwwp.fc.unesp.br/~perea/gps.php>. Acesso em: 20. jan.2011.
293
Idem.
125
GPS também utiliza o sinal de um quarto satélite, a fim de obter uma melhor precisão
no sistema294
.
Na prática do sistema GPS, utilizam-se satélites como pontos de referência,
vez que os mesmos são capazes de transmitir informações com suas posições exatas.
Devido à exigência de pelo menos três pontos de referência para se realizar a
triangulação, é necessária uma rede de satélites, possibilitando que o receptor GPS
consiga sempre captar o sinal de três ou mais satélites295
.
d) um satélite pode transmitir a sua posição através de ondas eletromagnéticas, assim
como as emissoras de TV ou de rádio transmitem as suas informações. Uma pessoa
que estiver no raio de alcance do sinal do satélite e possuir um aparelho receptor GPS
poderá receber o sinal transmitido pelo mesmo(figura 10) e realizar os cálculos de
triangulação. Em realidade, os aparelhos receptores GPS são capazes de proceder a
todos esses cálculos automaticamente296
, apontando a distância entre o próprio
receptor e o satélite.
Figura 10. Recepção das ondas eletromagnéticas de um satélite pelo usuário do sistema GPS
Fonte: MARTINS, João Eduardo Perea. Software de Apoio ao Ensino de Sistema de Posicionamento Global
d) o sinal transmitido pelo satélite informa a posição em que está localizado e também
a hora em que o sinal foi transmitido e chega ao usuário (receptor GPS) depois de
294
MARTINS, João Eduardo Perea. Software de Apoio ao Ensino de Sistema de Posicionamento Global (SAE-GPS). Departamento de Computação da Faculdade de Ciências da UNESP – Universidade Estadual Paulista, 2009. Disponível em <http://wwwp.fc.unesp.br/~perea/gps.php>. Acesso em: 20. jan.2011.
295
Idem.
296
Idem.
126
alguns instantes. Então, o GPS compara a hora recebida com o horário do seu relógio
interno e, como a velocidade da onda eletromagnética é de 300.000 Km/s, o receptor
GPS pode calcular a sua distância em relação ao satélite297
, conforme figura 11.
Figura 11. Cálculo da distância entre o satélite e o receptor GPS
Fonte: MARTINS, João Eduardo Perea. Software de Apoio ao Ensino de Sistema de Posicionamento Global
(SAE-GPS)
Com base no cálculo acima demonstrado, pode-se determinar a distância
entre o satélite e o receptor GPS que se encontra com o usuário. No entanto, isso
define apenas uma circunferência ao redor do satélite, sendo que o usuário poderia
estar em qualquer ponto dessa circunferência, como ilustra a figura 12.
Figura 12. Possibilidades de posição do usuário em relação à medição de distância a um satélite
Fonte: MARTINS, João Eduardo Perea. Software de Apoio ao Ensino de Sistema de Posicionamento Global
297
MARTINS, João Eduardo Perea. Software de Apoio ao Ensino de Sistema de Posicionamento Global (SAE-GPS). Departamento de Computação da Faculdade de Ciências da UNESP – Universidade Estadual Paulista, 2009. Disponível em <http://wwwp.fc.unesp.br/~perea/gps.php>. Acesso em: 20. jan.2011.
127
f) Para seguir-se o apontamento preciso da localização do usuário, é necessário inserir
o sinal de um segundo satélite, que também transmite a sua posição e a hora no
momento da emissão da onda, possibilitando ao receptor GPS, recebendo tais
informações, proceder ao cálculo da distância em relação ao segundo satélite. Com o
cálculo da distância em relação ao segundo satélite são obtidos também diversos
pontos possíveis que satisfazem a distância entre receptor GPS e o novo satélite.
Procedendo-se à intersecção entre as circunferências de possíveis posicionamentos do
receptor GPS em relação ao primeiro e ao segundo satélite, encontram-se dois pontos
onde possivelmente esteja o usuário298
, conforme ilustração 13.
Figura 13. Resultado da intersecção entre as distâncias do receptor GPS em relação a dois satélites
Fonte: MARTINS, João Eduardo Perea. Software de Apoio ao Ensino de Sistema de Posicionamento Global
g) Tendo-se em vista que a intersecção entre as distâncias do receptor GPS em relação
a dois satélites não é suficiente para a informação precisa quanto à localização do
usuário (vez que dois pontos de localização são possíveis), é necessário um terceiro
ponto de referência para se conhecer a posição real do usuário, daí a necessidade de
informações obtidas a partir de um terceiro satélite, que também transmite sua posição
e a hora (momento de emissão da onda magnética contendo as informações), da
mesma maneira com que fazem os outros dois satélites e, com tais informações, é
possível calcular a posição exata do receptor GPS (usuário) na superfície da Terra, isto
298 MARTINS, João Eduardo Perea. Software de Apoio ao Ensino de Sistema de Posicionamento Global (SAE-
GPS). Departamento de Computação da Faculdade de Ciências da UNESP – Universidade Estadual Paulista, 2009. Disponível em <http://wwwp.fc.unesp.br/~perea/gps.php>. Acesso em: 20. jan.2011.
128
é, a intersecção entre as distâncias do receptor GPS em relação a cada um dos três
satélites faz com que seja possível apontar as coordenadas (longitude e latitude) da
localização do usuário299
, como demonstra a figura 14.
Figura 14. Resultado da intersecção entre as distâncias do receptor GPS em relação a três satélites
Fonte: MARTINS, João Eduardo Perea. Software de Apoio ao Ensino de Sistema de Posicionamento Global
Para alcançar o resultado pretendido (localização em tempo real do usuário,
apontando-se as suas coordenadas – longitude e latitude -), o GPS mantém três
segmentos básicos, quais sejam: segmento espacial, segmento de controle e segmento
de usuários, com as seguintes características:
- Segmento espacial: consistente em 24 satélites distribuídos em seis planos orbitais
igualmente espaçados, com quatro satélites em cada plano, numa altitude aproximada
de 20.000 Km. Os planos orbitais são inclinados 55° em relação ao Equador e o
período orbital é de aproximadamente 12 horas siderais, motivo pelo qual a posição
dos satélites se repete, a cada dia, 4 minutos antes que a do dia anterior. Tal
configuração é garantia de que, no mínimo, quatro satélites GPS (pertencentes à rede
299 MARTINS, João Eduardo Perea. Software de Apoio ao Ensino de Sistema de Posicionamento Global (SAE-
GPS). Departamento de Computação da Faculdade de Ciências da UNESP – Universidade Estadual Paulista, 2009. Disponível em <http://wwwp.fc.unesp.br/~perea/gps.php>. Acesso em: 20. jan.2011.
129
Navstar) sejam visíveis em qualquer local da superfície terrestre a qualquer
momento300
.
- Segmento de controle: cujo objetivo é monitorar e controlar continuamente o sistema
GPS, determinar o sistema de tempo, predizer as efemérides301
dos satélites, calcular
as correções dos relógios dos satélites e atualizar periodicamente as mensagens de
navegação da cada satélite302
. O sistema de controle do GPS é composto por cinco
estações monitoras (em Hawaii, Kawajelein, Ascension Island, Diego Garcia e
Colorado Springs), sendo três delas com antenas para transmitir os dados para os
satélites e uma estação de controle central (denominada Master Control Station –
MCS) localizada em Colocado Springs, no estado do Colorado, nos Estados Unidos da
América. Todas essas estações pertencem à Força Aérea Norte-Americana (AAF –
American Air Force)303
.
- Segmento de usuários: é constituído pelos receptores GPS, que devem ser
apropriados para os propósitos a que se destinam, tal como navegação, geodésia ou
outra atividade qualquer. A categoria de usuários é dividida em civil e militar. Os
militares utilizam os receptores GPS para estimar suas posições e deslocamentos
quando realizam manobras de combate e treinamento. Os civis, por sua vez, utilizam
os receptores para as mais diversas aplicações, limitadas apenas pela imaginação dos
usuários304
.
Os principais componentes de um receptor GPS são: antena com pré-
amplificador; seção de RF (radiofrequência) para identificação e processamento dos
dados; microprocessador para controle do receptor, amostragem e processamento dos
dados; oscilador; interface para o usuário, painel de exibição e comandos; provisão de 300
MONICO, João Francisco Galera. Posicionamento pelo Navstar-GPS. Descrição, fundamentos e aplicações. São Paulo: Editora Unesp, 2000, p.23.
301
Efeméride é “tábua astronômica que registra, em intervalos de tempo regulares, a posição relativa de um astro” (Cf. Dicionário “Hoaiss” da língua português, versão eletrônica disponível no site http://biblioteca.uol.com.br/. Acesso em 15.fevereiro.2011). 302
MONICO, João Francisco Galera. Op. Cit, p. 34-35. 303
Ibidem, p. 35. 304
Idem.
130
energia e memória para armazenamento de dados305
. Passamos a descrever, a seguir, as
características de cada um desses elementos:
- antena: tem como função detectar as ondas eletromagnéticas emitidas pelos satélites,
convertendo a energia da onda em corrente elétrica, amplificando o sinal e o enviando
para a parte eletrônica do receptor. Tendo em vista que os sinais GPS(figura 15) são
bastante fracos, comparando-os aos sinais de emissoras de TV, os receptores GPS não
necessitam de antenas de grande dimensão, como as parabólicas. De qualquer forma,
uma antena GPS contém geralmente um pré-amplificador de baixo ruído cuja função é
amplificar o sinal antes do mesmo ser processado pelo receptor306
.
Figura 15. Antena GPS
Fonte. Satcom Rastreadores
- Seção de Rádio-Freqüência (RF): os sinais que entram no receptor sofrem conversão
na divisão de rádio-freqüência para uma freqüência mais baixa, denominada
freqüência intermediária, que é mais facilmente tratada pelos demais componentes do
receptor GPS. Tal procedimento é realizado pela combinação do sinal recebido pelo
305
MONICO, João Francisco Galera. Posicionamento pelo Navstar-GPS. Descrição, fundamentos e aplicações. São Paulo: Editora Unesp, 2000, p. 35.
306
Ibidem, p. 35-37.
131
receptor com um sinal senoidal gerado pelo oscilador do receptor, que normalmente é
de quartzo307
.
- Canais: o canal de um receptor é a sua unidade eletrônica mais importante, sendo
possível um receptor GPS possuir vários canais, fazendo com que os receptores
possam ser classificados em multicanais (canais dedicados), sequenciais ou
multiplexados308
.
Nos receptores multicanais, cada canal rastreia continuamente um dos
satélites visíveis, sendo necessárias informações de quatro canais para a obtenção da
posição e correção do relógio em tempo real. Havendo mais do que quatro canais
disponíveis, um número maior de satélites pode ser rastreado309
. Nos receptores
denominais sequenciais, o canal alterna entre satélites dentro de intervalos regulares,
fazendo com que a mensagem do satélite somente seja recebida completamente depois
de várias seqüências, sendo certo que na maioria dos casos são utilizados canais
seqüenciais rápidos, com taxa de alternância de cerca de um segundo310
. Nos
receptores multiplexados têm-se sequências efetuadas entre satélites numa velocidade
bastante rápida, fazendo com que a razão de troca seja bem sincronizada com as
mensagens de navegação, permitindo que tais mensagens sejam obtidas quase
simultaneamente311
.
- microprocessador: é de suma importância no controle das operações do receptor
(obtenção e processamento do sinal e decodificação da mensagem de navegação),
como também no procedimento de cálculo de posições e velocidades, no controle de
307
MONICO, João Francisco Galera. Posicionamento pelo Navstar-GPS. Descrição, fundamentos e aplicações. São Paulo: Editora Unesp, 2000, p. 37-38.
308
Ibidem, p. 35. 309
Ibidem, p. 38. 310
Idem. 311
Ibidem, p. 39.
132
dados de entrada e saída e na exibição de informações, utilizando-se de dados digitais
para realização das suas funções312
.
- interface com o usuário: trata-se da unidade de comando e visor que proporciona a
interação com o usuário. As teclas (bem como o sistema touch screen, que existe nos
receptores mais modernos) podem ser usadas para inserir comandos para as mais
variadas opções de coleta de dados e monitoramento das atividades do receptor, além
de exibição das coordenadas calculadas313
.
- memória: os receptores modernos possuem memória interna utilizada para
armazenamento de dados, sendo que alguns desses equipamentos têm, em
complemento à armazenagem interna, capacidade de armazenar informações
diretamente em cartões de memória que podem ser inseridos em slots314
contidos no
receptor GPS315
.
- suprimento de energia: é necessária uma fonte de energia para o funcionamento do
receptor.
Finalmente, para efetiva visualização de um receptor GPS, segue a figura
16 trazendo foto do receptor “GPSMap 6008”, produzido pela empresa Garmin, uma
das mais conceituadas produtoras de equipamentos baseados na tecnologia GPS.
312
MONICO, João Francisco Galera. Posicionamento pelo Navstar-GPS. Descrição, fundamentos e aplicações. São Paulo: Editora Unesp, 2000, p. 39.
313
Idem. 314
Slots significam “fendas de conexão” constantes em equipamentos como receptores GPS e que permitem o encaixe de periféricos e, mais comumente, de cartões de memória, permitindo, assim, não só o aumento final da capacidade de armazenamento do equipamento, como também o intercâmbio dos dados armazenados num cartão, com outro equipamento, mediante a inserção do cartão de memória no slot do outro equipamento. 315
MONICO, João Francisco Galera, op. cit., 2000, p. 39-40.
133
Figura 16. Receptor GPS
Fonte: Garmin (https://buy.garmin.com/shop/shop.do?cID=148&pID=28115)
A tecnologia GPS, combinada com softwares de análise e mapeamento,
oferece um olhar vigilante à atividade de frota de veículos, permitindo localizações
instantâneas e anotações gráficas dos principais eventos característicos de uma
viagem, como: momentos de paradas de serviço e localização de cada parada,
velocidade do veículo e rastreamento de rota316
.
3.2.1.1.1 As observáveis GPS: características, erros e soluções
Esta apresentação detalhada a respeito das características da técnica GPS,
como o principal instrumento utilizado no “módulo de posicionamento” de Sistemas
AVL, tem como objetivo demonstrar o grau de precisão alcançado por essa tecnologia,
o que será de sua importância para o momento em que enfrentarmos, nesta tese, as
repercussões de tais modificações tecnológicas na aplicabilidade e na construção da
norma jurídica contida no artigo 62, inciso I, da Consolidação das Leis do Trabalho.
Daí a necessidade de, para efetivo convencimento da comunidade científica em relação
à veracidade da hipótese defendida, apresentarem-se os erros característicos da técnica
GPS e as soluções desses erros, que são automaticamente realizadas pelos receptores
GPS modernos.
316
Fleetboss Global Positioning Solutions. An introduction to GPS fleet management. 2009. Disponível em: < http://www.fleetboss.com/index.php?option=com_content&view=article&id=35:white-papers&catid=56&Itemid=65>. Acesso em: 14. Fev. 2011.
134
São consideradas “observáveis do GPS” as principais informações em que
se baseia o sistema para apontar com precisão a localização de um usuário do sistema
na superfície terrestre. Como ensina João Francisco Galera Monico, as observáveis do
GPS que permitem determinar posição, velocidade e tempo podem ser identificadas
como: pseudodistância a partir do código e fase da onda portadora ou diferença de
fase da onda portadora317
. Passamos a seguir, ainda sob o magistério de Galera
Monico, que é uma referência no assunto GPS na bibliografia nacional, a descrever
cada uma dessas observáveis:
- Pseudodistância: a distância entre o receptor GPS e determinado satélite é obtida pela
multiplicação do tempo de propagação do sinal emitido pelo satélite, resultante do
processo de correlação, pela velocidade da luz. Na literatura a respeito de GPS, essa
observável é denominada pseudodistância ao invés de distância, em razão da falta de
sincronismo entre os relógios (osciladores) responsáveis pela geração do código no
satélite e sua réplica no receptor318
.
De maneira mais detalhada, pode-se afirmar que cada satélite transmite dois
sinais para os propósitos de posicionamento, quais sejam: o sinal L1, baseado na
portadora de freqüência de 1.575,42MHz, e o sinal L2, com freqüência de
1.227,60MHz. Modulados na portadora L1 estão dois códigos pseudo-aleatórios, que
são o C/A e o Y , e, sobrepostas à portadora L1 constam também mensagens de
navegação. A portadora L2 é modulada pelo código Y e pelas mensagens de
navegação. Os códigos pseudo-aleatórios utilizados em cada satélite são únicos e
qualquer par deles apresenta baixa correlação, permitindo que todos os satélites
partilhem da mesma frequência. As medidas de distância entre o satélite e a antena do
receptor se baseiam nos códigos gerados nos satélites e no receptor, que gera uma
réplica do código produzido no satélite. Assim, o retardo entre a chegada de uma
317
MONICO, João Francisco Galera. Posicionamento pelo Navstar-GPS. Descrição, fundamentos e aplicações. São Paulo: Editora Unesp, 2000, p.40.
318
Ibidem, p. 116-117.
135
transição particular do código gerado pelo satélite e a sua réplica no receptor GPS nada
mais é que o tempo de propagação do sinal no trajeto ligando o satélite ao receptor319
.
A pseudodistância é proporcional à diferença entre o tempo registrado no
receptor no instante de recepção do sinal e o tempo registrado no satélite no instante de
transmissão do sinal, multiplicado pela velocidade da luz no vácuo (que é de 300.000
Km/s)320
.
- Fase da onda portadora: uma onda é, sob o ponto de vista da física, uma perturbação
oscilante de alguma grandeza física no espaço e periódica no tempo, podendo também
ser entendida como um pulso energético que se propaga no espaço ou num meio, seja
esse líquido, sólido ou gasoso. De uma onda, podem-se extrair as características
abaixo descritas e identificadas na figura 17:
ciclos: são as repetições do padrão de uma onda;
amplitude: é a medida, negativa ou positiva, da magnitude de oscilação de uma
onda;
período: refere-se ao tempo de um ciclo completo de uma oscilação de uma
onda;
frequência: trata-se de uma grandeza física ondulatória que indica o número de
ocorrências de um evento (como ciclos, oscilações, entre outros) num
determinado intervalo de tempo;
comprimento: refere-se à distância entre valores repetidos num padrão de onda,
sendo usualmente representado através da letra grega lambda (λ).
319
MONICO, João Francisco Galera. Posicionamento pelo Navstar-GPS. Descrição, fundamentos e aplicações. São Paulo: Editora Unesp, 2000, p.115-116.
320
Ibidem, p.117.
136
Figura 17. Características de uma onda eletromagnética
1 = Elementos de uma onda
2 = Distância
3 = Deslocamento
λ = Comprimento de onda
γ = Amplitude
Fonte: Site Wikipedia (http://pt.wikipedia.org/wiki/Onda)
Quando se fala em fase de uma onda, refere-se a quanto uma onda difere
(em relação a cada um de seus pontos) de outra de igual freqüência e comprimento.
Tem-se, pois, que ondas podem estar mais ou menos defasadas conforme pontos
caracterizados por mesmo tempo e posição tenham fases mais ou menos próximas.
Realizados os apontamentos introdutórios a respeito do comportamento das
ondas, pode-se afirmar que a “fase da onda portadora” é outro método de determinar a
distância entre o satélite e o receptor GPS e se baseia no número de ciclos decorridos
desde o instante em que a portadora foi emitida até o instante em que foi recebida,
medindo-se a diferença de fase. Na prática, tem-se que o comprimento de onda da
portadora é muito mais curto que o comprimento do código C/A , motivo pelo qual a
medição da fase de batimento da onda portadora permite atingir um nível de precisão
muito superior à precisão obtida para a distância através da pseudo-distancia.
Como ensina João Francisco Galera Monico, a fase da onda portadora é
igual à diferença entre a fase do sinal do satélite recebido no receptor e a fase do sinal
gerado no receptor, ambas no instante da recepção. Assim, os receptores GPS medem
137
a parte fracional da onda e efetuam a contagem do número de ciclos que entram no
receptor a partir de então, resultando numa medida contínua321
.
As observáveis envolvidas na técnica GPS estão sujeitas a erros, sendo
certo que, para tornar o sistema confiável, necessário é não só constatar os erros
possíveis como também apresentar as formas de correção realizáveis. Passamos,
assim, a apresentar as modalidades de erros possíveis e as formas de correção
realizáveis e que são realizadas automaticamente pelos centros de controle do sistema
e pelos receptores GPS.
a) Erros relacionados aos satélites
Os erros relacionados aos satélites podem se dividir em erros relativos às
órbitas, erros relacionados aos relógios dos satélites, erros promovidos pela
relatividade e erros por atraso entre as duas portadoras no hardware do satélite.
a.1) Erros orbitais: referem-se ao fato de que as informações orbitais podem ser
obtidas a partir das efemérides322
transmitidas pelos satélites, efemérides pós-
processadas (estas últimas denominadas efemérides precisas) fornecidas pelo IGS323
e
efemérides estimadas (ora denominadas efemérides preditas) pelos órgão de controle
(IGS). As coordenadas dos satélites calculadas a partir das efemérides são
normalmente tidas como fixas durante o processo de ajustamento dos dados GPS,
motivo pelo qual qualquer erro nas coordenadas do satélite se propagará para a posição
321
MONICO, João Francisco Galera. Posicionamento pelo Navstar-GPS. Descrição, fundamentos e aplicações. São Paulo: Editora Unesp, 2000, p.118.
322
Efeméride é “tábua astronômica que registra, em intervalos de tempo regulares, a posição relativa de um astro” (Cf. Dicionário “Houaiss” da língua portuguesa, versão eletrônica disponível em: < http://biblioteca.uol.com.br/>. Acesso em 15.fev.2011). 323
IGS (International Geodynamics GPS Service) é um serviço internacional do qual participam instituições dos mais diversos países dedicadas à qualidade de estação de observação, centro de dados e centro de processamento, sendo que os dados das estações são repassados para um centro global da rede, situado no Crustal Dynamics Data Center(CDDIS), da NASA. O Brasil está integrado à rede IGS através da RBMC - Rede Brasileira de Monitoramento Contínuo – (Cf. RIBAS, Wanderley Kampa. Efemérides Precisas. 2009. Disponível em: <http://www.esteio.com.br/downloads/pdf/efemerides_precisas.pdf>. Acesso em 05.mai.2011).
138
do usuário324
. Para evitar tais consequências geradas pelo erro de órbita, as efemérides
preditas, com precisão da ordem de 50 cm, são disponibilizadas pelos órgãos de
controle (IGS) horas antes do dia a que se referem325
.
a.2) Erros no relógio do satélite: embora seja alta a precisão dos relógios atômicos
contidos nos satélites, estes não acompanham o sistema de tempo GPS, gerando-se
diferença que chega a ser, no máximo, de 1 milissegundo. Para correção de tal erro, os
relógios são monitorados pelo segmento de controle do sistema GPS326
, sendo que o
valor pelo qual tais relógios diferem do tempo GPS faz parte da mensagem de
navegação, na forma de coeficientes de um polinômio de segunda ordem, com as
características abaixo327
:
dts(t) = a0 + a1(t-t0c) + a2(t – t0c)
2, tal que
dts(t) é o erro do relógio no instante t da escala de tempo GPS;
t0c é o instante de referência do relógio;
a0 é o estado do relógio no instante de referência;
a1 é a marcha linear do relógio; e
a2 é a variação da marcha do relógio.
a.3) Quanto a erros promovidos pela relatividade, tem-se que os efeitos da relatividade
no GPS não são restritos somente aos satélites (órbitas e relógios), incluindo-se
também os efeitos sobre a propagação do sinal (ondas eletromagnéticas emitidas pelos
satélites) e sobre os relógios dos receptores GPS328
. O relógio do satélite varia em
razão da relatividade geral e espacial, e os relógios dos receptores nas estações
terrestres e a bordo dos satélites situam-se em campos gravitacionais diferentes,
324
MONICO, João Francisco Galera. Posicionamento pelo Navstar-GPS. Descrição, fundamentos e aplicações. São Paulo: Editora Unesp, 2000, p. 54.
325
Ibidem, p.123. 326
Vide item 3.2.1.1 deste capítulo que trata, entre outros, dos segmentos de estrutura do sistema GPS, dentre eles o segmento de controle cujo objetivo é monitorar e controlar continuamente o sistema GPS, determinar o sistema de tempo, predizer as efemérides
326 dos satélites, calcular as correções dos relógios dos satélites e
atualizar periodicamente as mensagens de navegação da cada satélite. 327
MONICO, João Francisco Galera. op. cit., p. 124-125. 328
Ibidem, p. 125.
139
provocando uma aparente alteração na frequência dos relógios de bordo com relação
aos terrestres. Com o objetivo de pôr fim a tais erros, os efeitos são compensados,
antes do lançamento do satélite, pela redução da frequência nominal dos satélites,
reduzindo-se os efeitos a níveis desprezíveis329
.
a.4) Erros por atraso entre as duas portadoras no hardware do satélite: também
denominados pela expressão Interferency Biases, decorre da diferença entre os
caminhos percorridos pelas portadoras L1 e L2330
através do hardware do satélite. É
certo, no entanto, que no momento da calibração realizada durante a fase de testes dos
satélites, o quantum do atraso é determinado, multiplicado por um determinado fator e
introduzido como parte das mensagens de navegação (emitidas pelo satélite aos
receptores)331
, impedindo-se, assim, a consolidação do erro e comprometimento dos
dados fornecidos ao usuário do sistema GPS.
b) Erros relacionados à propagação do sinal
Como os sinais (ondas eletromagnéticas) emitidos pelos satélites
propagam-se através da atmosfera, atravessando camadas de diferentes naturezas e
com estados variáveis, há o sofrimento de influências que provocam variações na
direção da propagação, na velocidade de propagação, na polarização e até mesmo na
potência do sinal. O movimento de rotação da Terra também gera efeitos nas
coordenadas do satélite durante a propagação do sinal332
. Tais efeitos têm como fatos
329
MONICO, João Francisco Galera. Posicionamento pelo Navstar-GPS. Descrição, fundamentos e aplicações. São Paulo: Editora Unesp, 2000, p. 125.
330 Como já exposto no item 3.2.1.4.2 deste capítulom cada satélite transmite dois sinais para os propósitos de
posicionamento, o sinal L1, baseado na portadora de freqüência de 1.575,42MHz, e o sinal L2, com freqüência de 1.227,60MHz. Modulados na portadora L1 estão dois códigos pseudo-aleatórios, que são o C/A e o Y , e, sobrepostas à portador L1 constam também mensagens de navegação. A portadora L2 é modulada pelo código Y e pelas mensagens de navegação. As medidas de distância entre o satélite e a antena do receptor se baseiam nos códigos gerados nos satélites e no receptor, que gera uma réplica do código produzido no satélite. Assim, o retardo entre a chegada de uma transição particular do código gerado pelo satélite e a sua réplica no receptor GPS, nada mais é que o tempo de propagação do sinal no trajeto ligando o satélite ao receptor. 331
MONICO, João Francisco Galera. op. cit., 2000, p. 125-126. 332
Ibidem, p. 126.
140
geradores a refração troposférica, a refração ionosférica, a perda de ciclos e a rotação
da Terra, sendo que o atual estado da técnica do sistema GPS permite a correção de
todos esses erros através de técnicas apropriadas, que são detalhadamente analisadas
no Apêndice E desta tese.
c) Erros relacionados com o receptor e a antena
Os erros que podem ser gerados no sistema GPS em razão do receptor e
de sua antena têm como relação mais específica os equipamentos (hardware) e podem
ser analisados como: erros do relógio, erros entre canais (Interchannel Biases) e erros
relacionados ao centro da fase da antena.
c.1) Erros do relógio: é normal que os receptores GPS possuam osciladores (relógios)
de quartzo, que possuem boa estabilidade e custo relativamente baixo, havendo, no
entanto, receptores com osciladores altamente estáveis (mais estáveis que os baseados
em quartzo), mas com custo elevadíssimo, sendo utilizados habitualmente para
atividades de alta precisão333
. É incontroverso que cada receptor GPS, por ter seu
próprio relógio interno, possui uma escala de tempo que lhe é própria ( à exceção dos
receptores com osciladores de alta precisão que aceitam padrões externos de tempo) e
difere da escala de tempo de GPS334
.
Tais diferenças de escala de tempo poderiam gerar erros em relação à
fixação da localização do usuário. No entanto, no posicionamento relativo ( método de
localização através de sistema GPS que se baseia em informações obtidas por dois ou
mais receptores fixos, isto é, ajustam-se as diferenças de observáveis coletadas em
duas ou mais estações do segmento de controle GPS), que é a técnica normalmente
utilizada, os erros dos relógios são praticamente eliminados, não se exigindo, para a
maioria das aplicações (incluindo-se nessas o rastreamento de veículos), padrões de
333
MONICO, João Francisco Galera. Posicionamento pelo Navstar-GPS. Descrição, fundamentos e aplicações. São Paulo: Editora Unesp, 2000, p. 152.
334
Idem.
141
tempo altamente estáveis, desde que o erro do relógio de cada receptor envolvido no
posicionamento não seja superior a 1 microssegundo em relação ao tempo GPS335
.
c.2) Erros entre canais: tendo em vista que atualmente a maioria dos receptores GPS
possui mais do que um canal, é possível a ocorrência de erros sistemáticos entre os
canais, vez que o sinal de cada satélite percorrerá caminho eletrônico diferente. A fim
de corrigir tais erros, os receptores GPS possuem dispositivos que realizam a
calibração no início de cada levantamento, possibilitando que cada canal rastreie um
satélite em particular e determine os erros em relação a um canal tomado como
padrão336
, o que é denominado “autocalibração”337
, afastando praticamente a
possibilidade de que erros entre canais gerem efeitos na precisão da localização do
objeto rastreado. Resíduos pós-calibração podem causar erros, mas que são
considerados desprezíveis, não alcançando mais de 2,5 mm338
.
c.3) Erros relacionados ao centro da fase da antena: o centro da fase eletrônica da
antena é o ponto no qual as medidas dos sinais são referenciadas. É certo, entretanto,
que o centro da fase da antena não coincide com o centro geométrico da superfície
(como demonstrado na figura 18), havendo, pois, discrepância que varia com a
intensidade e com a direção dos sinais. Para levantamentos de alta precisão, todas as
antenas envolvidas devem estar calibradas com o objetivo de corrigir a discrepância
entre o centro da fase eletrônica da antena e o centro geométrico da antena339
.
335
MONICO, João Francisco Galera. Posicionamento pelo Navstar-GPS. Descrição, fundamentos e aplicações. São Paulo: Editora Unesp, 2000, p.152.
336
Idem. 337
SOUSA, Carlos Renato Macedo de. GPS: uma análise do sistema e de potenciais fontes de interferência, no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Instituto Militar de Engenharia. Dissertação de mestrado, 2005, p. 62.
338
Ibidem, p. 62. 339
MONICO, João Francisco Galera. Op. Cit., p. 153.
142
Figura 18. Variações do Centro de Fase de uma Antena GPS
Ponto de referência da antena
Fonte: FREIBERGER JUNIOR, Jaime. Antenas de receptores GPS: características gerais.
No que se refere às formas de calibração das antenas GPS, têm-se as
seguintes técnicas: calibração em câmaras anecóicas, calibração relativa e calibração
absoluta340
. Maiores detalhes sobre cada uma das citadas técnicas de calibração
constam do Apêndice B desta tese.
d) Erros e correções relacionados com a estação
Os erros relacionados com a estação ocorrem não só em razão de
possíveis equívocos nas coordenadas da estação-base quando são fixadas no
processamento, como também em razão de outras variações (como as marés terrestres,
o movimento do polo, a carga dos oceanos e a carga da atmosfera), resultantes de
fenômenos geofísicos ocorridos durante o processo de coleta das observáveis,
comprometendo a precisão das coordenadas das estações envolvidas no
levantamento341
. Passamos a seguir a analisar com mais detalhes tais erros:
d.1) Erros relacionados às coordenadas da estação: sempre que é feito o transporte
de coordenadas, deve ser verificada a exatidão das coordenadas da estação-base, tendo
340
FREIBERGER JUNIOR, Jaime. Antenas de receptores GPS: características gerais. Material teórico de apoio ao Curso de Extensão Error sources in Highly Precise GPS Positioning da Universidade Federal do Paraná, 2004, p. 11. Disponível em: < http://www.geomatica.ufpr.br/docentes/ckrueger/pessoal/D_antenas.pdf>. Acesso em: 02.mai.2011.
341
MONICO, João Francisco Galera. Posicionamento pelo Navstar-GPS. Descrição, fundamentos e aplicações. São Paulo: Editora Unesp, 2.000, p.154.
143
em vista que qualquer erro no ponto inicial será propagado para todos os demais
pontos levantados a partir dele utilizando-se o modo relativo (posicionamento
relativo). Assim, é imprescindível que o usuário busque sempre um ponto da Rede
Brasileira de Monitoramento Contínuo – RBMC ( o que é disponível à consulta
através do site do IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatítica -
http://www.ibge.gov.br/home/geociencias/geodesia/rbmc/rbmc_est.shtm_),permiti
ndo-se a certeza quanto à precisão das coordenadas.
d.2) Erros relacionados às marés terrestres: a maré é o movimento vertical do nível
oceânico como resultado das mudanças de atração gravitacional entre a Terra, a Lua e
o Sol342
. Tal movimentação vertical do oceano provoca deformação do Planeta Terra,
sendo certo que próximo ao Equador, a superfície desloca-se cerca de 40 cm durante
um período de 6 horas. Tal variação é função do tempo, mas também depende da
posição da estação, sendo similar o efeito para estações adjacentes343
, ocorrendo certa
compensação que torna os efeitos irrisórios.
d.3) Erros relacionados ao movimento do polo: a rotação da Terra não é uniforme,
seu eixo de rotação não é fixo no espaço e mesmo a forma do planeta e as posições
relativas de pontos sobre sua superfície não são fixas e, como resultado, as
coordenadas de um objeto no espaço não são rigorosamente constantes: se muda a
direção do eixo de rotação, por exemplo, mudam os valores da ascensão reta e da
declinação de todos os objetos na esfera celeste344
. Dependendo da precisão com que
desejamos medir a posição das estrelas, faz-se necessária a correção para estes efeitos.
Quando da realização de procedimentos que imponham alta precisão, é necessário
levar-se em consideração a variação das coordenadas das estações causadas pelo
342
BARROS, Geraldo Luiz Miranda de. Navegar é fácil. 12ª edição. Petrópolis-RJ: Catedral das Letras, 2006, p. 142.
343
MONICO, João Francisco Galera. Posicionamento pelo Navstar-GPS. Descrição, fundamentos e aplicações. São Paulo: Editora Unesp, 2.000, p. 155-156.
344
SANTIAGO, Basilio. Apostila de astronomia geodésica – texto eletrônico de auxílio nas disciplinas Astronomia Posicional, Fundamental e Esférica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Disponível em http://www.if.ufrgs.br/oei/santiago/fis2005/textos/index.htm. Acesso em 10 de maio de 2011.
144
movimento do polo, sendo que tal variação pode atingir até 25mm no componente
radial e não se cancela quando se aumenta a duração da sessão de observação. No
entanto, quando da utilização da técnica de posicionamento relativo tal variação é
praticamente eliminada345
, afastando a ocorrência de erro relevante.
d.4) Erros relacionados à carga dos oceanos: o peso que o oceano exerce sobre a
superfície da Terra produz cargas periódicas resultando em deslocamentos da
superfície terrestre, sendo que a magnitude desses deslocamentos depende das
características da crosta terrestre e das posições do Sol, da Lua e da estação, podendo
alcançar cerca de 10 cm na componente vertical em alguma parte do globo,
decrescendo tal valor em regiões afastadas da costa, podendo, ainda assim, alcançar
cerca de 1 cm para uma distância oceano-estação de 1.000 Km346
. Considerando-se a
precisão objetivada pelo GPS, tais efeitos devem ser levados em consideração quando
se objetiva levantamento de altíssima precisão. No entanto, para a maioria de
aplicações (como as de rastreamento veicular, objeto deste estudo), tal efeito pode ser
desprezado, tal como o é na prática, não gerando maiores problemas347
.
d.5) Erros relacionados à carga atmosférica: a carga da atmosfera exerce força sobre
a superfície terrestre, induzindo deformações sobre a crosta terrestre, principalmente
na direção vertical, valendo afirmar que a maioria das deformações estão associadas a
tempestades na atmosfera, podendo alcançar cerca de 10mm de deformação348
.
Verdadeiro é que a maioria dos softwares para processamento de dados GPS ainda não
apresenta modelos para correções dessa natureza, vez que não se trata, regra geral, de
345
MONICO, João Francisco Galera. Posicionamento pelo Navstar-GPS. Descrição, fundamentos e aplicações. São Paulo: Editora Unesp, 2.000, p. 156.
346
Idem. 347
Idem. 348
Idem.
145
um efeito com o qual o usuário do sistema GPS deva se preocupar ante a irrelevância
das variações no resultado final349
.
3.2.1.1.2 Tipos de Posicionamento
Por posicionamento tem-se a determinação da localização de um objeto,
ou seja, o conhecimento das coordenadas desse objeto, num sistema de coordenadas
específico350
. O princípio fundamental do posicionamento utilizando-se GNSS (Global
Navigation Satellite Systems – classe na qual se inclui o sistema GPS) tem por base
estimar, com precisão, a distância entre um emissor, de coordenadas conhecidas, e o
receptor, cujas coordenadas se pretendem estimar351
. Mais especificamente, o
posicionamento usando sistemas de navegação baseados em satélites artificiais é
obtido a partir de sinais transmitidos pelos satélites em órbita e recebidos por
receptores na superfície da Terra, sendo que, de acordo com o tratamento efetuado a
esses sinais, que permite distintos níveis de precisão, foi realizada a classificação nos
seguintes tipos de posicionamento: o posicionamento absoluto, o posicionamento
relativo e o posicionamento diferencial.
Analisemos cada um desses métodos:
a) Posicionamento Absoluto: caracteriza-se pelo fato das coordenadas da posição de
um objeto estarem associadas diretamente ao geocentro352
, sendo também denominado
“Posicionamento Pontual Simples”(vinculado à sigla SPP, do inglês Single Point
349
MONICO, João Francisco Galera. Posicionamento pelo Navstar-GPS. Descrição, fundamentos e aplicações. São Paulo: Editora Unesp, 2.000, p.157. 350
MORUJÃO, Daniela Maria Barbosa. Resolução instantânea da ambigüidade da fase no posicionamento cinemático preciso com os sistemas globais de navegação por satélite. Tese de doutoramento em ciências geofísicas e da geoinformação junto à Universidade de Lisboa, 2009, p.1.
351
Ibidem, p.1. 352
MONICO, João Francisco Galera. Op. Cit., p.181.
146
Positioning)353
ou “Posicionamento por Ponto”354
. Com base nesse método, estima-se
a localização de um receptor com base no método da trilateração – se medirem-se as
três distâncias entre o receptor e três satélites com posicões conhecidas, as
coordenadas tridimensionais do receptor podem ser calculadas-355
, como se verifica da
figura 19. No posicionamento absoluto necessita-se apenas de um receptor, sendo um
método utilizado em navegação de baixa precisão356
, alcançando, em média, uma
precisão horizontal de 13 a 25 metros357
.
Figura 19. Posicionamento Absoluto
Fonte:HASEGAWA, Julio Kiyoshi; GALO, Mauricio; MONICO, João Francisco Galera; IMAI,
Nilton Nabuhiro. Sistema de localização e navegação apoiado por GPS.
b) Posicionamento Relativo: caracteriza-se pelo fato da posição de um receptor ser
determinada relativamente à posição de outro receptor, denominado receptor de
353
MORUJÃO, Daniela Maria Barbosa. Resolução instantânea da ambigüidade da fase no posicionamento cinemático preciso com os sistemas globais de navegação por satélite. Tese de doutoramento em ciências geofísicas e da geoinformação junto à Universidade de Lisboa, 2009, p. 60.
354
MONICO, João Francisco Galera. Posicionamento pelo Navstar-GPS. Descrição, fundamentos e aplicações. São Paulo: Editora Unesp, 2.000, p. 182.
355
MORUJÃO, Daniela Maria Barbosa. op. cit., p.60. 356
MONICO, João Francisco Galera. op.cit, p. 184. 357
KRUEGER, Cláudia Pereira; HUINCA, Suelen Cristina Movio; MAIA, Oriana Carneiro. Método de Posicionamento Absoluto, qual precisão pode ser obtida atualmente? Trabalho apresentado no III Simpósio Brasileiro de Ciências Geodésicas e Tecnologias de Geoinformação realizado no Recife/PE entre os dias 27 e 30 de julho de 2010. Disponível em: < http://www.ufpe.br/cgtg/SIMGEOIII/IIISIMGEO_CD/artigos/Cad_Geod_Agrim/Geodesia%20e%20Agrimensura/A_11.pdf>. Acesso em 10. Mai.2011.
147
referência, cujas coordenadas são conhecidas358
, conforme figura 20. O receptor cujas
coordenadas se pretende determinar pode estar fixo ou móvel, já o receptor de
referência, normalmente encontra-se fixo359
. Para realizar posicionamento relativo, o
usuário deveria dispor de dois ou mais receptores. No entanto, com o advento dos
chamados Sistemas de Controle Ativos (SCA)360
, tal afirmativa não é mais verdadeira,
vez que um usuário que disponha de apenas um receptor poderá efetuar
posicionamento relativo, desde que, para tal, acesse os dados de uma ou mais estações
pertencentes ao SCA, sendo que no Brasil tais estações pertencem à RBMC (Rede
Brasileira de Monitoramento Contínuo) e, nesse caso, o sistema de referência do SCA
será introduzido na solução do usuário através das coordenadas das estações utilizadas
como estação de referência361
.
Figura 20. Posicionamento Relativo
Fonte:HASEGAWA, Julio Kiyoshi; GALO, Mauricio; MONICO, João Francisco Galera; IMAI,
Nilton Nabuhiro. Sistema de localização e navegação apoiado por GPS.
358
MORUJÃO, Daniela Maria Barbosa. Resolução instantânea da ambigüidade da fase no posicionamento cinemático preciso com os sistemas globais de navegação por satélite. Tese de doutoramento em ciências geofísicas e da geoinformação junto à Universidade de Lisboa, 2009, p.64.
359
Idem. 360
Em Sistema de Controle Ativos, receptores rastreiam continuamente os satélites visíveis e os dados podem ser acessados via sistema de comunicação (como afirma MONICO, João Francisco Galera. Posicionamento pelo Navstar-GPS. Descrição, fundamentos e aplicações. São Paulo: Editora Unesp, 2.000, p.205). 361
MONICO, João Francisco Galera. Posicionamento pelo Navstar-GPS. Descrição, fundamentos e aplicações. São Paulo: Editora Unesp, 2.000, p.205.
148
Existem várias espécies de posicionamento relativo, sendo que, para bem
entendermos cada uma dessas variações da técnica do posicionamento relativo,
necessitamos dominar as formas de combinações lineares das observáveis GPS entre
diferentes estações que permitem eliminar ou reduzir o efeito de alguns erros presentes
nas observações GPS, quais sejam: diferenças simples, diferenças duplas e diferenças
triplas , com as seguintes características:
- Diferenças simples: se duas estações efetuarem, simultaneamente, observações do
mesmo tipo para o mesmo satélite, pode-se obter “diferença simples” entre as estações
(também denominada de diferença simples entre receptores) a partir das observações
básicas, fazendo-se a diferença entre as duas observações do mesmo tipo efetuadas,
simultaneamente, pelos dois receptores, para um mesmo satélite, conforme figura 21.
Figura 21. Formação da Diferença Simples
Fonte: MONICO, João Francisco Galera. Posicionamento pelo Navstar-GPS. Descrição, fundamentos
e aplicações. São Paulo: Editora Unesp, 2.000, p. 172
- Diferenças duplas: é a diferença entre duas diferenças simples (figura 22),
envolvendo, portanto, dois receptores e dois satélites362
.
362
MONICO, João Francisco Galera. Posicionamento pelo Navstar-GPS. Descrição, fundamentos e aplicações. São Paulo: Editora Unesp, 2.000, p.173.
149
Figura 22. Formação da Diferença Dupla
Fonte: MONICO, João Francisco Galera. Posicionamento pelo Navstar-GPS. Descrição, fundamentos
e aplicações. São Paulo: Editora Unesp, 2.000, p. 174
- Diferenças Triplas: é dada pela diferença entre duas duplas diferenças, envolvendo
os mesmos receptores e satélites, mas em tempos (épocas) distantes363
.
A literatura especializada aponta para a existência de várias espécies de
posicionamento relativo, quais sejam: o posicionamento relativo estático, o
posicionamento relativo estático rápido, o posicionamento relativo semicinemático e o
posicionamento relativo cinemático. Passamos a analisar cada uma dessas espécies:
b.1) Posicionamento relativo estático: baseia-se na observável “dupla diferença da
fase de batimento da onda portadora”, embora também possa basear-se na dupla
diferença da pseudodistância ou em ambas364
. Nessa técnica de posicionamento, as
antenas dos receptores estão estacionadas em posições fixas durante o período de
observação (período esse denominado sessão de observação), cuja duração depende da
distância entre os dois receptores, do número de satélites visíveis, da qualidade dos
receptores e da precisão pretendida365
.
363
MONICO, João Francisco Galera. Posicionamento pelo Navstar-GPS. Descrição, fundamentos e aplicações. São Paulo: Editora Unesp, 2.000, p. 175.
364
Ibidem, p.207. 365
MORUJÃO, Daniela Maria Barbosa. Resolução instantânea da ambigüidade da fase no posicionamento cinemático preciso com os sistemas globais de navegação por satélite. Tese de doutoramento em ciências geofísicas e da geoinformação junto à Universidade de Lisboa, 2009, p.64.
150
b.2) Posicionamento relativo estático rápido: parte do mesmo princípio do
posicionamento relativo estático, tendo como diferença fundamental o período de
ocupação da estação de interesse. Nesse caso, as ocupações não excedem a 20
minutos, enquanto que no posicionamento estático podem durar várias horas. O
posicionamento relativo estático rápido propicia alta produtividade, mas há muitas
obstruções entre as estações a serem levantadas366
.
b.3) Posicionamento relativo semicinemático: baseia-se no fato de que a solução do
vetor de ambiguidades, presente numa linha base a determinar, requer que a geometria
envolvida entre as duas estações dos satélites não se altere, possibilitando que sejam
coletados dados de pelo menos dois curtos períodos na mesma estação, sendo que tais
coletas devem estar separadas por um intervalo de tempo suficientemente longo (entre
20 e 30 minutos) para proporcionar alteração na geometria dos satélites. Tal método
requer que o receptor continue rastreando os mesmos satélites durante as visitas às
estações367
.
b.4) Posicionamento relativo cinemático: caracteriza-se por ter como observável
fundamental a fase da onda portadora, muito embora o uso da pseudodistância seja
muito importante na solução do vetor de ambigüidades, sendo certo que os dados desse
tipo de posicionamento podem ser processados após a coleta (denominando-os como
pós-processados) ou durante a própria coleta (processados em tempo real)368
.
No posicionamento relativo cinemático pós-processado, um receptor ocupa
uma estação de coordenadas conhecidas enquanto o outro se desloca sobre as feições
de interesse. As observações simultâneas dos dois receptores geram as duplas
diferenças onde vários erros envolvidos nas observáveis são reduzidos. Nessa
366
MONICO, João Francisco Galera. Posicionamento pelo Navstar-GPS. Descrição, fundamentos e aplicações. São Paulo: Editora Unesp, 2.000, p.212.
367
Ibidem, p.213. 368
Ibidem, p.216.
151
modalidade o processamento dos dados obtidos é realizado num laboratório ou
escritório, após a coleta de dados369
.
O posicionamento relativo cinemático em tempo real tem sua razão de
existência em muitas aplicações que obteriam grande benefício se as coordenadas da
antena do receptor fossem determinadas em tempo real, como no caso do rastreamento
de veículos. Para que tal constatação em tempo real seja possível, é preciso que os
dados coletados na estação de referência sejam transmitidos para a estação móvel,
necessitando-se de um link de rádio370
.
c) Posicionamento Diferencial: também denominada “DGPS”, trata-se de técnica de
posicionamento desenvolvida com o objetivo de contornar a degradação da precisão
do posicionamento absoluto devido ao “Acesso Seletivo”371
e de diminuir o efeito dos
outros erros presentes nas observações GPS372
. Com a desativação do “Acesso
Seletivo” em maio de 2000, a principal fonte de erro do posicionamento absoluto
desapareceu, no entanto, o Posicionamento Diferencial continua a ter lugar entre os
tipos de posicionamento baseados em GPS nas aplicações com maiores exigências de
precisão373
. Essa técnica envolve o uso de um receptor estacionário numa estação com
coordenadas conhecidas, rastreando todos os satélites visíveis, sendo que o
processamento dos dados nessa estação permite que se calculem as correções
posicionais, bem como das pseudodistâncias e da fase portadora, o que é possível 369
MONICO, João Francisco Galera. Posicionamento pelo Navstar-GPS. Descrição, fundamentos e aplicações. São Paulo: Editora Unesp, 2.000, p. 216-217.
370
Ibidem, p.217. 371
A “Selective Avaliability” (que atende pela sigla S/A e significa, em português “Acesso Seletivo”) é considerada a maior fonte de erros do sistema GPS. Trata-se de uma degradação intencional impostas aos sinais GPS, que é realizada através da manipulação dos dados das efemérides transmitidas e dos relógios satélites. Tal técnica foi implementada pela primeira vez em março de 1990, mas foi desativada em agosto do mesmo ano, durante a Guerra do Golfo. Em novembro de 1991 foi reativada, sendo novamente desativada em 01 de maio de 2000 (conforme SILVEIRA, Augusto Cesar da. Avaliação de Desempenho de Aparelhos Receptores GPS. Dissertação de mestrado em Engenharia Agrícola na UNICAMP – Universidade Estadual de Campinas, em janeiro de 2004, tendo como orientador o Prof. Dr. Nelson Luis Cappelli, p.28). 372
MORUJÃO, Daniela Maria Barbosa. Resolução instantânea da ambigüidade da fase no posicionamento cinemático preciso com os sistemas globais de navegação por satélite. Tese de doutoramento em ciências geofísicas e da geoinformação junto à Universidade de Lisboa, 2009, p.73.
373
Ibidem, p.73-74.
152
graças ao conhecimento das coordenadas da estação-base374
, como se verifica da figura
23.
Figura 23. Formação da Diferença Dupla
Fonte: MONICO, João Francisco Galera. Posicionamento pelo Navstar-GPS. Descrição, fundamentos e
aplicações. São Paulo: Editora Unesp, 2.000, p. 221
Finalmente, após a leitura das principais obras disponíveis a respeito do
funcionamento do sistema GPS e das pesquisas que vêm sendo realizadas, tanto no
Brasil quanto no exterior, com o objetivo de aprofundar a análise de erros possíveis no
sistema, garantindo métodos de correção eficazes, pode-se afirmar que o sistema GPS
é, no atual estado da técnica375
, um método altamente eficaz de apontamento da
localização exata ou muito aproximada de um determinado objeto na superfície
terrestre, garantindo informações fidedignas em tempo real e de perfeita aplicação ao
módulo de posicionamento dos equipamentos AVL (Automatic Vehicle Location).
3.2.1.2 Outros Sistemas Globais de Navegação por Satélite
O sistema GPS é uma das espécies de “Sistemas Globais de Navegação por
Satélite” (atendendo pela sigla GNSS, do inglês Global Navigation Satellite Systems),
havendo, entretanto, outros sistemas caracterizados como GNSS, destacando-se, dentre
eles, o GLONASS, o GALILEO e o COMPASS, cujas principais características
encontram-se descritas no Apêndice C desta tese.
374
MONICO, João Francisco Galera. Posicionamento pelo Navstar-GPS. Descrição, fundamentos e aplicações. São Paulo: Editora Unesp, 2.000, p.220.
375
Utiliza-se, nesta tese, a expressão “atual estado da técnica” como tudo aquilo que, em relação à determinada tecnologia, é colocado à disposição do público, do mercado.
153
3.3 Módulo de “Planejamento de rota”
O planejamento de rota, também denominado roteirização, é um processo que
ajuda os condutores de veículos a traçarem um plano para o seu percurso, antes ou
durante a viagem376
, buscando-se o caminho mais curto ou mais rápido entre dois
pontos. Num sentido mais amplo, pode ser entendido como um processamento de
otimização, em nível operacional, que consiste na programação de um ou mais
veículos quer seja em ambiente urbano ou rodoviário, cujo resultado consiste na
alocação racional de serviços de transporte a uma determinada frota de veículos e a
definição dos itinerários (roteiros)377
.
Como ensina Bruno Araujo Perrota, a roteirização de veículos é vista como
um dos maiores sucessos na área de pesquisa operacional nas últimas décadas, o que
pode ser associado à atuação conjunta da teoria e da prática, visto que, por um lado, a
pesquisa operacional tem desenvolvido algoritmos que têm um importante papel na
implementação de sistemas de roteirização e, de outro lado, o desenvolvimento de
hardware e software têm contribuído para um alto grau de interesse das empresas
usuárias dos benefícios potenciais da roteirização378
.
Nesse ponto de nosso trabalho, importante é a distinção entre software e
hardware.
3.3.1 Conceitos de Software e Hardware
Partimos do conceito de software apontado pelo artigo 1º da Lei Federal
Ordinária 9.609/98, no sentido de que software é a expressão de um conjunto de
376
ZHAO, Yilin. Vehicle location and navigation system. Londres: Artech House, 1997, p. 105. 377
MARTINS, Luiz. Geoprocessamento para roteirização de veículos. 2009. Disponível em: < http://www.administradores.com.br/informe-se/artigos/geoprocessamento-para-roteirizacao-de-veiculos/29589/>. Acesso em: 06.abr.2011.
378
PERROTTA, Bruno Araujo. Contribuição Metodológica para o Planejamento de Transporte Rodoviário de Resíduos Sólidos comerciais e Industriais com Uso de Tecnologia SIG – Estudo de caso na Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Dissertação de Mestrado em Engenharia de Transportes apresentada na UFRJ – Universidade Federal do Rio de Janeiro – no ano de 2007, p. 43.
154
instruções em linguagem natural ou codificada, contida num suporte físico de qualquer
natureza, de emprego necessário em máquinas automáticas de tratamento da
informação, dispositivos, instrumentos ou equipamentos periféricos, baseados em
técnica digital ou análoga, para fazê-los funcionar de certo modo e para fins
determinados.
A ciência denominada “engenharia de software” aponta software como
uma sequência de instruções a serem seguidas ou praticadas na manipulação, no
redirecionamento ou na modificação de um dado ou informação. É um elemento
lógico, não físico379
. Nesse sentido, o software é uma espécie de “algoritmo”,
conforme figura 24, que, como já conceituamos, trata-se de uma sequência finita de
instruções bem definidas e não ambíguas, sendo que cada uma dessas instruções pode
ser executada mecanicamente num período finito e como uma quantidade de esforço
finita. O que especializaria o algoritmo para se caracterizar como software é a
finalidade, que, repetimos, é a manipulação, redirecionamento ou modificação de um
dado ou informação.
Figura 24. Exemplo de algoritmo de planejamento de rota
Fonte: SILVA, José Dionísio Simões; MEDEIROS, Felipe Leonardo Lobo. Aplicação de Algoritmo
Dijkstra ao Planejamento de Movimentos de VANTS.
O software pode ser visto também como “programa de computador”,
vez que aquilo que entendemos como programa de computador é uma sequência de
379
DUTRA, Leoncio Regal. Software: conceito, características e aplicações. 2009. Disponível em http://www.redes.unb.br/material/Metodologia%20de%20Desenvolvimento%20de%20Software/aula1.pdf. Acesso em: 01. Jun. 2011.
155
instruções380
, que é decodificada e executada por uma determinada máquina (a que
chamamos de computador), gerando a prática de uma determina tarefa. Esses
“programas” são normalmente produzidos em determinada linguagem de
programação381
que, decodificada pela máquina a que se destina, gera o cumprimento
da sequência necessária à prática de certo comportamento.
No que se refere aos tipos de softwares, temos os softwares de sistema, que
são indispensáveis para o funcionamento do computador e sua interação com seus
periféricos (aparelhos ou placas que, ligados a CPU - unidade de central de
processamento do computador -, trocam informações com o computador). Têm-se
também os softwares aplicativos, que são aqueles que permitem ao seu usuário realizar
uma determinada tarefa (para o qual foi produzido o software).
Já hardware é um conjunto de componentes eletrônicos, circuitos
integrados e placas que, organizados como um sistema, formam a parte física de um
computador, capaz de, decodificando as instruções de softwares, realizar determinadas
tarefas.
3.3.2 Sistemática de um módulo de planejamento de rota
Afirma Yilin Zhao que muitas vezes as pessoas referem-se a encontrar uma
rota a partir do ponto A ao ponto B como um problema de caminho mais curto, sendo
que muitos algoritmos têm sido desenvolvidos para resolver todos os problemas
relacionados à busca do caminho mais curto. Existe, porém, uma variedade de critérios
de otimização de rotas, visto que a qualidade de um percurso depende de muitos
fatores como distância, tempo, velocidade de deslocamento, número de curvas e de
semáforos e informações dinâmicas sobre o tráfego382
.
380
DUTRA, Leoncio Regal. Software: conceito, características e aplicações. 2009. Disponível em http://www.redes.unb.br/material/Metodologia%20de%20Desenvolvimento%20de%20Software/aula1.pdf. Acesso em: 01. Jun. 2011.
381
Citamos como exemplos de “linguagem de programação” a linguagem Java, o Visual Basic e as linguagens C e C++. 382
ZHAO, Yilin. Vehicle location and navigation system. Londres: Artech House, 1997, p. 105.
156
Alguns condutores podem preferir a distância mais curta, outros preferem o
menor tempo de viagem, entre outros critérios de preferência, motivo pelo qual a
avaliação da função escolhida para minimizar o custo da viagem depende das
variações oferecidas pelo software de planejamento de rota que, obtendo informações
do módulo de posicionamento, concatenando-as com as preferências selecionadas pelo
usuário, oferecerá a melhor rota a ser percorrida, que normalmente é apresentada num
mapa digital exibido no equipamento embarcado (hardware).
Num sistema AVL, que é o nosso foco específico, o módulo de
planejamento de rota oferece ao usuário recursos como adoção, antes mesmo do início
da viagem, do caminho a ser percorrido para alcance do destino final, inclusive com a
indicação de eventual desvio, como ocorre em sistemas de “cerca eletrônica” que
permitem a fixação do espaço físico que poderá ser ocupado pelo veículo rastreado
durante o percurso, sendo que eventual afastamento do veículo em relação ao
perímetro demarcado gera imediata comunicação ao controlador do sistema AVL.
3.4 Módulo Map Matching
Primeiramente, fazemos a observação no sentido de que a utilização de
termo em língua inglesa – Map Matching – deve-se ao fato de não termos encontrado,
em língua portuguesa, expressão que representasse de forma fidedigna o conteúdo do
referido termo.
O módulo map matching possibilita o processo pelo qual a trajetória do
veículo é correlacionada com um mapa rodoviário digital, permitindo a localização do
veículo em relação ao mapa. Trata-se de tecnologia baseada num software e faz uso
extensivo do mapa digital armazenado no sistema (módulo “banco de dados de mapas
digitais”)383
. O mapa digital utilizado deve ser preciso vez que, caso contrário, o
sistema gerará posição equivocada, degradando severamente o seu desempenho.
383
ZHAO, Yilin. Vehicle location and navigation system. Londres: Artech House, 1997, p. 85.
157
Esse módulo desempenha um papel importante nos sistemas AVL, em
razão de que o emprego de mapa digital torna o sistema mais confiável, prático e
preciso. Entretanto, não basta a precisão do mapa, vez que a precisão do
posicionamento do veículo será crucial para o sucesso do resultado desse módulo, daí
a importância de um eficaz “módulo de posicionamento”. Tem-se, portanto, no map
matching um software capaz de, agregando as informações oferecidas pelo “módulo de
posicionamento” com os mapas digitais contidos no “módulo banco de dados de
mapas digitais”, oferecer ao usuário a visualização do local geográfico em que se
encontra, do caminho percorrido e do caminho a ser realizado.
Ao gestor de uma frota de veículos e, por consequência, controlador do
sistema AVL, o módulo map matching exibe de forma ilustrada e de fácil percepção
visual, conforme figura 25, a posição de cada veículo da frota no mapa digital do
sistema.
Figura 25. Aplicação do módulo Map Matching
Fonte: Positron Rastreadores (www.positron.com.br)
3.5 Módulo “Orientação de rota”
Orientação de rota é o processo de orientar o condutor ao longo da rota
gerada pelo módulo de planejamento de rotas, sendo que tal orientação pode ser dada
158
antes do início da viagem ou durante o curso da viagem (isto é, em tempo real) através
de instruções que incluem, entre outros, curvas, nomes de ruas, distâncias e pontos de
referência 384
.
A orientação anterior ao início da viagem é apresentada ao usuário do
sistema como se fosse um mapa impresso com a rota a ser percorrida, semelhante a
dicas de viagens prestadas por uma agência de viagem, mas com informações passo-a-
passo385
. Na orientação de rota em tempo real, conforme o veículo se movimenta,
instruções são prestadas em função da localização do veículo visando conduzir o
veículo ao destino escolhido. Apesar de muito mais útil, a orientação em tempo real
requer um módulo de banco de dados de mapa digital navegável e módulo de
posicionamento precisos e software apropriado386
.
O módulo de orientação de rota se utiliza de informações oriundas tanto do
módulo de planejamento de rotas quanto do módulo de posicionamento para guiar o
veículo na estrada, vez que depois que um determinado percurso foi gerado pelo
módulo de planejamento de rotas e a posição do veículo tenha sido determinada pelo
módulo de posicionamento, o módulo de orientação de rota precisa se coordenar
constantemente com os citados módulos para apresentar a devida orientação para o
motorista. Conforme o veículo se move, a orientação de rota em tempo real necessita
de uma comparação continuada da localização do veículo em função do tempo e da
rota escolhida pelo usuário como aquela a ser adotada387
.
O sistema de orientação em tempo real atualiza constantemente seu
conhecimento da posição em vigor do veículo e a direção de viagem, bem como a
estrada por onde o veículo está viajando. Assim, quando uma curva se aproxima ou
uma determinada manobra tem que ser realizada, o sistema de orientação alerta o
384
ZHAO, Yilin. Vehicle location and navigation system. Londres: Artech House, 1997, p. 129. 385
Idem. 386
Idem. 387
Ibidem, p.129-130.
159
usuário com sinais visuais, sinais acústicos ou instruções de condução388
, conforme
figura 26.
Figura 26. Orientação de rota
Instruções sobre a próxima manobra
Próxima Via
Via atual
Fonte: Adaptado de Apontador.com (http://www.apontadorgps.com.br/produtos/slimway-20)
3.6 Módulo de comunicação sem fio
A comunicação confiável é um componente vital para a melhoria do
desempenho e maior funcionalidade aos sistemas AVL, possibilitando o
compartilhamento dos mais variados dados entre o equipamento (hardware)
embarcado no veículo, o seu condutor e o gestor da frota de veículos, que gerenciará o
sistema AVL. Muitos serviços de qualidade podem ser oferecidos aos condutores dos
veículos e gestores de sistemas AVL em razão do atual estado da técnica dos meios de
comunicação sem fio, como, por exemplo, as unidades de navegação (equipamento
embarcado no veículo) podem receber informações atualizadas sobre o trânsito, os
gestores de sistemas AVL podem obter relatórios da localização e percurso de
determinado veículo para gestão do tráfego, previsões do tempo de viagem,
comunicação através de áudio e imagem entre o interior do veículo e o gestor do
sistema (conforme figuras 27 e 28), entre outros.
ZHAO, Yilin. Vehicle location and navigation system. Londres: Artech House, 1997, p.130.
160
Figura 27. Escuta de Cabine389
Figura 28. Comunicador390
Fonte: Satcom Rastreadores Fonte: Satcom Rastreadores
Aplicações de dados sem fio desempenham um papel crítico para tornar a
computação móvel uma realidade, havendo hoje um clima competitivo e de acelerada
demanda por ferramentas que permitam que as pessoas se comuniquem segundo a sua
própria conveniência e discrição391
. Buscam-se, cada vez mais, melhores aplicações de
comunicação de dados sem fio em altas velocidades, permitindo o intercâmbio de
dados (seja sob a forma sonora, de textos ou de imagens) em tempo real, daí
destacando-se principalmente a comunicação celular, cuja evolução tecnológica
passamos a analisar.
3.6.1 Telemática. Conceito e desenvolvimento
Nesse ambiente é que surge a telemática, que é a comunicação à distância
de um conjunto de serviços informáticos fornecidos através de uma rede de
telecomunicações. Trata-se de um conjunto de tecnologias da informação e da
comunicação resultante da junção entre os recursos das telecomunicações (telefonia,
satélite, cabos, fibras ópticas etc) e da informática (computadores, periféricos,
softwares e sistemas de redes), que possibilitou o processamento, a compressão, o
armazenamento e a comunicação de grandes quantidades de dados (nos formatos de
389
Permite ouvir o que ocorre no interior do veículo. 390
Permite a interlocução entre motorista e central de rastreamento. 391
ZHAO, Yilin. Vehicle location and navigation system. Londres: Artech House, 1997, p. 169-170.
161
texto, imagem e som), em curto prazo de tempo, entre usuários localizados em
qualquer ponto do Planeta Terra392
.
O termo “telemática” origina-se de “tele”, que significa comunicação e do
sufixo “mática” que é uma seção da palavra informática, motivo pelo qual telemática
se trata da manipulação e da utilização da informação através do uso combinado de
computador e meios de telecomunicação393
, capaz de romper com a problemática da
distância, ante a possibilidade de, graças à telemática, realizar-se a interoperação entre
os mais diversos grupos e pessoas distribuídos e interconectados independentemente
do continente onde os interagentes estejam fisicamente, caracterizando um “mundo
virtual “ com forte perspectiva de troca394
que, sem dúvida, traduz-se como um
elemento muito importante nas mais diversas áreas da atividade humana, inclusive na
relação de emprego.
Sobre a evolução da telemática e a possibilidade de comunicação em tempo
real como modificador do ambiente em que vivemos, vale transcrição das palavras de
Ada Ávila Assunção e Renato José de Souza:
Os progressos recentes, historicamente determinados, permitiram que
os grandes computadores se transformassem. As pequenas máquinas,
mais baratas e acessíveis estão em todos os ambientes, poderosas e
conectadas umas nas outras, com vários atores e aparatos entre elas.
Os satélites universais transmitem imagens e sons. Imbricam-se
computadores e telecomunicações – é a telemática. As conexões entre
computadores e transmissões de dados oferecem capacidades de
retorno de receptor para emissor em tempo real. Multiplicam-se os
serviços: base de dados, imagem de televisão, som radiofônico,
trechos de uma conversa telefônica... tudo a serviço da cadeia
global.395
392
ASSUNÇÃO, Ada Ávila e SOUZA, Renato José de. Telemática. Cadernos de Saúde do Trabalhador. São Paulo: INST (Instituto Nacional de Saúde no Trabalho), outubro de 2000, p. 12-13.
393
Instituto UFC Virtual. Universidade Federal do Ceará. Introdução à telemática. 2010. Disponível em: < http://www.vdl.ufc.br/catedra/telematica/padrao_telematica_frm.htm>. Acesso em: 12.abr.2011.
394
Ibidem. 395
ASSUNÇÃO, Ada Ávila e SOUZA, Renato José de. Telemática. Cadernos de Saúde do Trabalhador. São Paulo: INST (Instituto Nacional de Saúde no Trabalho), outubro de 2000, p. 6-7.
162
O alcance do atual grau de desenvolvimento da telemática se deve a
pesquisas realizadas por uma área da ciência denominada “Tecnologia da Informação
e da Comunicação (TIC)”, tratada por alguns simplesmente pela expressão
“Tecnologia da Informação(TI)”, referindo-se a uma ciência que, como ensina Adriana
Bottos, começou a se desenrolar durante o século XX e que conecta os seguintes
conceitos396
:
- Tecnologia: aplicação dos conhecimentos científicos para facilitar a realização das
atividades humanas, supondo a criação de produtos, instrumentos, linguagens e
métodos ao serviço das pessoas;
- Informação: dados que têm significado para determinados grupos. A informação é
fundamental para as pessoas, já que a partir do processo cognitivo da informação
obtido através dos órgãos do sentido humanos tomam-se as decisões que dão lugar a
todas as ações humanas;
- Comunicação: transmissão de mensagens entre pessoas. Como seres sociais, as
pessoas, além de receber informação das demais, necessitam comunicar-se para saber
mais, expressar seus pensamentos, sentimentos e desejos, coordenar os
comportamentos dos grupos em convivência etc397
.
Assim, quando se unem essas três palavras, faz-se referência aos avanços
tecnológicos que nos proporcionam a informática, as telecomunicações e as
tecnologias audiovisuais, que compreendem os desenvolvimentos relacionados aos
computadores, à internet, à telefonia, às aplicações multimídias e à realidade virtual,
396
BOTTOS, Adriana V. Teletrabajo: su protección em el derecho laboral – 1ª Ed. – Buenos Aires: Cathedra Jurídica, 2008, p. 26-27. Tradução nossa.
397
Ibidem, p. 26-27.
163
vez que essas tecnologias nos proporcionam ferramentas para que as informações
sejam processadas e canais de comunicação398
.
Relacionando-se a “telemática” à “tecnologia da comunicação”, podemos
afirmar que esta destina-se à produção de equipamentos (hardwares), métodos e
softwares que permitem a “telemática”(i.e. a comunicação à distância).
Para a efetivação de sistemas AVL com os recursos hoje existentes,
indispensável é que a comunicação tenha característica não só de agregar entes
distantes, mas de fazê-lo “sem fio”, vez que veículos em trânsito não estão conectados
a cabos ou fibras ópticas que permitam a comunicação com fio. É exatamente nesse
ponto que a tecnologia denominada “comunicação celular” ganha crucial importância,
merecendo um efetivo estudo nesse momento de desenvolvimento da tese.
3.6.1.1 Comunicação celular. Conceito, evolução e atual estado da técnica
O que se denomina, no campo das telecomunicações, de “celular” é nada
mais que um rádio que, como tal, permite a transmissão de dados através de ondas
eletromagnéticas. Mais especificamente, um sistema de comunicação móvel (rede
celular) tem por objetivo permitir o acesso ao sistema telefônico a partir de um
terminal portátil sobre um território extenso, utilizando uma ligação radioelétrica entre
o terminal móvel e a rede399
.
Para tal serviço estar disponível, é necessário que a ligação de rádio entre o
terminal e a rede seja de qualidade suficiente, o que gera a necessidade de uma grande
potência de transmissão, sendo que a fim de limitar a potência, os operadores da rede
celular colocam no território as chamadas “Estação Base”, para que o terminal esteja
sempre a menos de alguns quilômetros dessas bases. A área sobre a qual um terminal
398
BOTTOS, Adriana V. Teletrabajo: su protección em el derecho laboral – 1ª Ed. – Buenos Aires: Cathedra Jurídica, 2008, p. 26-27. Tradução nossa.
399
CARDOSO, Pedro Klecius Farias. Apostila de Redes Celulares. Ceará: Centro Federal de Educação Tecnológica do Ceará – Departamento de Ensino/Curso de Telemática. Disponível em: < http://www.cdvhs.org.br/sispub/image-data/1273/GSM-CMoveis_Cap1_7_0405.pdf>. Acesso em: 05.mai. 2011.
164
pode estabelecer uma ligação de rádio com uma “Estação Base” é chamada de
“célula”400
, daí a denominação dada ao sistema ora em estudo.
É denominada “estação móvel” todo equipamento terminal capaz de se
comunicar na rede celular. Uma estação móvel é composta de um emissor-receptor e
de uma lógica de controle, podendo ser um equipamento instalado num veículo ou um
equipamento portátil, de pequeno peso e de baixa potência, facilmente transportado401
.
Cada zona de abrangência de uma “Estação Base” tem um espaço de
alcance limitado, sendo que nas oportunidades em que um usuário sai da área de
abrangência de uma “Estação Base”, entra automaticamente na área coberta por outra
estação, e automaticamente é transferida a ligação para este, sem que o usuário
perceba, sendo desta forma que o sistema é interligado em todo o território nacional e
no exterior. As “Estações-Base” comunicam-se com a “Central de Comutação e
Controle”, que ajusta e controla o serviço, tendo conexão a outras “Estações-Base” e à
rede de telefonia fixa, permitindo a prestação do serviço para os usuários.
Como afirma Pedro Klecius Farias Cardoso, professor titular do Centro
Federal de Educação Tecnológica do Ceará, nos últimos anos os sistemas móveis
celulares se popularizaram mundialmente, evoluindo de analógicos para digitais,
objetivando maior eficiência, melhor qualidade de voz e integração de serviços, como
o acesso a filmes, informativos, câmeras de vídeo e de foto402
.
Sobre a evolução das técnicas de comunicação celular, constam detalhadas
informações no apêndice B desta tese.
3.6.1.2 A comunicação através de satélite
A transmissão de dados entre o equipamento embarcado no veículo e a
central de gestão da frota de veículos (base de operação) pode ser realizada através de 400
CARDOSO, Pedro Klecius Farias. Apostila de Redes Celulares. Ceará: Centro Federal de Educação Tecnológica do Ceará – Departamento de Ensino/Curso de Telemática. Disponível em: < http://www.cdvhs.org.br/sispub/image-data/1273/GSM-CMoveis_Cap1_7_0405.pdf>. Acesso em: 05.mai. 2011.
401
Idem. 402
Idem.
165
sistema baseado em satélite. Por esse método o equipamento embarcado transmite os
dados de localização, segurança e comunicação para o satélite, que os retransmite à
Central de Gerenciamento, sendo também possível o caminho inverso da
comunicação, vez que o sistema é bidirecional403
. Tem-se como grande vantagem
desse sistema a abrangência ilimitada, já que não necessita de instalação de
infraestrutura terrestre. Já a desvantagem se localiza no alto custo dessa
comunicação404
. Existem duas classes de satélites de comunicação utilizados em
sistemas AVL, quais sejam:
- os satélites geoestacionários, que se posicionam sobre o Equador, a uma altura
aproximada de 36 mil quilômetros, oferecendo cobertura continental, tendo-se como
exemplo, no Brasil, o Omnisat e o Inmarsat, que dão cobertura por todo o território
brasileiro405
;
- os satélites de órbita baixa (identificados pela sigla LEO, do inglês Low Earth Orbit)
têm características parecidas ao sistema GPS, embora a sua altitude seja de
aproximadamente 1.400 quilômetros (enquanto os satélites GPS encontram-se a mais
de 20.000 quilômetros de altura), tendo cobertura por todo o globo terrestre, tendo-se
como exemplo o GlobalStar e o Orbcomm406
.
Se de um lado os sistemas de comunicação através de satélite oferecem
extensa área de cobertura e monitoramento contínuo, de outro lado os altos custos do
equipamento embarcado, do serviço de comunicação e a possibilidade de obstrução
dos satélites, fazem com que esses sistemas sejam, na prática, menos utilizados que a
comunicação celular.
403
RODRIGUES, Marcos et alli. Rastreamento de Veículos. São Paulo: Oficina de Textos, 2009, p.31. 404
Ibidem, p.32. 405
Idem. 406
Idem.
166
3.7 O módulo de interface homem-máquina
A “interface homem-máquina” é um módulo que fornece ao usuário meios de
interagir com o sistema AVL, podendo não só receber informações como também
inserir no sistema dados necessários a sua utilização. Essa interligação entre o usuário
e o sistema pode ser realizada através de:
- tela, de cristal líquido, algumas, inclusive com função “touch screen”, permitindo o
acesso a funções mediante toque do usuário na tela;
- teclado, acoplado ou não ao equipamento central embarcado (conforme figura 29);
Figura 29. Teclado de equipamento AVL
Fonte: Positron Rastreamento (www.positron.com.br)
- interface baseado na voz, pelo método de processamento da voz que se compõe de:
codificação da voz(obtenção de compactas representações digitais de sinais de voz
para uma eficiente transmissão ou armazenamento), verificação do orador (que
verifica a identidade para acesso a áreas ou a funções restritas), reconhecimento de voz
(reconhecimento da fala e sinal sonoro para identificar a mensagem linguística
pretendida) e síntese de fala (geração de sinal acústico para transmitir uma mensagem
de uma máquina para um ser humano)407
.
407
ZHAO, Yilin. Vehicle location and navigation system. Londres: Artech House, 1997, pp. 159-160.
167
3.8 Os sensores
A inclusão de sensores como parte de um sistema AVL oferece valor
distinto para qualquer gestão de frota, vez que esses sensores têm a capacidade de
constatar se o trabalho contratado está realmente sendo realizado408
.
Sensores são dispositivos que recebem e respondem a sinais ou estímulos,
podendo ser utilizados para medir quantidades físicas, como temperatura e pressão, e
converter os dados obtidos em sinais eletrônicos409
. Pode-se, afirmar, assim, que um
sensor é um “tradutor” de um valor, geralmente não elétrico, para um valor elétrico
que pode ser canalizado, amplificado e modificado através de dispositivos eletrônicos
adequados410
.
Através de sinais emitidos por sensores instalados em veículos, um sistema
AVL é capaz de informar ao gestor do sistema diversas informações de grande
importância como:
- se o veículo encontra-se ligado ou desligado;
- quantidade de combustível no tanque;
- abertura e fechamento de portas;
- engate e desengate de carretas acopladas ao veículo;
- diagnóstico do motor do veículo;
- quilometragem;
- velocidade empreendida;
- identidade do motorista, através de sensor biométrico;
- freadas bruscas, entre outros dados.
408
BSM Wireless. Sensor Sensibility – Building the business care for incorporating external sensor as part of your automatic vehicle location solution. Acesso através do site www.bsmwireless.com/wp-content/uploads/Sensor-Sensibility1.pdf, p. 3. Acesso em 14/fevereiro/2011.
409
JOHNSON, Thienne M. Redes de Sensores Sem Fio (RSSF). Disponível em http://www.wirelessbrasil.org/wirelessbr/colaboradores/thienne_johnson/rssf-intro.htm. Acesso em 02 de maio de 2011.
410
SOUZA, Adriano Sampaio; CARVALHO, Paulo Simeão. Utilização de sensores no ensino das ciências. 2010. Disponível em http://eec.dgidc.min-edu.pt/documentos/acompanhamento_porto_utilizacao_sensores.pdf. Acesso em: 02.mai.2011.
168
Sensores, como os apresentados nas figuras 30 a 35, em comunicação com
um sistema AVL, podem monitorar um veículo, a rota do motorista, verificar se as
aberturas e fechamentos da porta dos motoristas compatibilizam-se com o momento de
partida, de paradas previstas e de chegada ao destino, monitorando a produtividade do
motorista e as suas horas de serviço411
.
Figura 30. Sensor de Aceleração Figura 31. Sensor biométrico
Fonte: Shangai Volboff Company Fonte: Techmag
Figura 32. Sensor de porta Figura 33. Válvula Selenóide
412
Fonte: SatCom Rastreadores Fonte: SatCom Rastreadores
Figura 34. Trava Baú413
Figura 35. Botão de Segurança
Fonte: SatCom Rastreadores Fonte: SatCom Rastreadores
411
BSM Wireless. Sensor Sensibility – Building the business care for incorporating external sensor as part of your automatic vehicle location solution. Acesso através do site www.bsmwireless.com/wp-content/uploads/Sensor-Sensibility1.pdf, p. 3. Acesso em 14/fevereiro/2011.
412
Permite a interrupção do fluxo de combustível no motor do veículo impedindo o seu funcionamento. 413
Executa o travamento de portas através de comandos enviados pela central de rastreamento.
169
4 Espécies de sistemas AVL
Existem quatro principais espécies de sistema AVL colocadas à disposição
no mercado atualmente. Passamos a analisar cada uma dessas espécies, destacando as
suas características essenciais:
4.1 Sistema AVL passivo
Também denominado de sistema de dados armazenados, o “sistema AVL
passivo” (figura 36) consiste num aparelho a bordo que grava os dados do sinal GPS
durante as operações do veículo, sendo que tal informação é armazenada para
recuperação e envio de informações para o computador principal de monitoramento de
frota quando do retorno do veículo à base414
. Trata-se de satisfatória solução para
armazenagem de informações em veículos que estão fora da base por semanas ou
meses.
Existem vantagens e desvantagens com esse tipo de sistema. Dentre as
vantagens destaca-se ser uma modalidade mais econômica, vez que não exige gastos
com serviços de comunicação sem fio. Como grande desvantagem tem-se a
impossibilidade de localização do veículo em tempo real.
Figura 36. Sistema AVL passivo
Fonte: Fleetboss Global Positioning Solutions. An introduction to GPS fleet management.
414
Fleetboss Global Positioning Solutions. An introduction to GPS fleet management. Acesso através do site http://www.fleetboss.com/index.php?option=com_content&view=article&id=35:white-papers&catid=56&Itemid=65. Acesso em 14/02/2011.
170
4.2 Sistema AVL ativo
O sistema AVL ativo tem como principal característica a informação em
tempo real. Há um receptor GPS embarcado no veículo com condução de
comunicação sem fio, como uma linha celular no interior do veículo. Em determinados
grupos de intervalo de tempo, o sistema transmite informação da localização
(longitude e latitude) do veículo, da velocidade e da direção da viagem através da rede
sem fio para um ponto dedicado à coleta de dados, como demonstra a figura 37. Esses
dados podem ser transmitidos diretamente para um escritório de controle de frota ou
compilado para transferência para um site na internet onde a empresa pode ver a
atividade de sua frota415
.
Como vantagens desse sistema, tem-se o fornecimento de informações de
localização num determinado intervalo, permitindo o rastreamento da atividade do
veículo independentemente de qualquer necessidade de comunicação com o motorista.
Como desvantagem destaca-se o maior custo desse sistema, em especial frente à
necessidade de contratação de serviço de comunicação sem fio.
Figura 37. Sistema AVL ativo
Fonte: Fleetboss Global Positioning Solutions. An introduction to GPS fleet management.
4.3 Sistema AVL híbrido
O sistema AVL na modalidade híbrida combina as funcionalidades dos
sistemas passivo e ativo num pacote que oferece ao gestor da frota a imediatidade de
informações sobre o veículo em tempo real como também o armazenamento de
informações contidas num sistema de dados, como ilustra a figura 38. 415
Fleetboss Global Positioning Solutions. An introduction to GPS fleet management. Acesso através do site http://www.fleetboss.com/index.php?option=com_content&view=article&id=35:white-papers&catid=56&Itemid=65. Acesso em 14/02/2011.
171
Através da combinação dos melhores recursos de cada sistema, o sistema
híbrido de monitoramento de frota é uma ferramenta ideal para oferecer aos gestores
de frota a localização de veículo a tempo real e atualizável, como também serviços de
armazenamento de informações para uso futuro, tendo nessa combinação a grande
vantagem dessa modalidade. A desvantagem encontra-se na necessidade de
contratação de serviço de comunicação sem fio e de conexão ativa de internet.
Figura 38. Sistema AVL híbrido
Fonte: Fleetboss Global Positioning Solutions. An introduction to GPS fleet management.
Apesar da necessária análise de todas as espécies de sistemas AVL
disponíveis no mercado, é importante destacar que, para esta tese, a referência serão os
sistemas que ofereçam informações em tempo real (sistema AVL ativo), mesmo que
também incluam serviço de armazenamento de dados (sistema AVL híbrido).
5 Os equipamentos embarcados necessários ao funcionamento de sistema
AVL
A quantidade de “módulos” que compõem um sistema AVL, com as suas
múltiplas funções que, há pouco tempo, assemelhavam-se a obras de ficção científica,
poderia levar à conclusão de que os equipamentos embarcados responsáveis pela
execução do sistema seriam de grande quantidade, tamanhos pouco práticos e alto grau
de complexidade no seu manuseio.
172
É certo, no entanto, que o atual estado da técnica dos equipamentos
(hardware) necessários à execução de um sistema AVL, mostra-nos peças de tamanho
bastante reduzido e que já condensam em si todos os módulos característicos do
sistema. Vejamos abaixo alguns exemplos de equipamentos embarcados:
a) Equipamento “Vehicle Tracker” modelo Global 600: comercializado no Brasil pela
empresa Rastreamento Global Limitada, trata-se de equipamento bastante
simplificado, como se verifica da figura 39, com medidas aproximadas de 10
centímetros de largura por 12 centímetros de comprimento.
Figura 39. Rastreador Global 600
Fonte: Rastreamento Global Ltda (www.rastreamentoglobal.com.br)
Dentre as principais características têm-se: rastreamento via GPRS,
relatório da posição atual, rastreamento por intervalo de tempo, recurso de corte de
combustível, de obtenção de fotos da cabine, botão de pânico, controle de velocidade,
relatórios à distância e comunicação bidirecional (possibilitando a comunicação entre
o condutor do veículo e o gestor do sistema e vice-versa)416
.
b) Equipamento S900-MS: Comercializado no Brasil, JCA Sistemas de Segurança
Ltda, caracteriza-se pelo tamanho bastante reduzido (6,50 cm de cumprimento, 4,5 cm
de largura e 1,5 cm de altura), conforme figura 40. Tem como características
416
RASTREAMENTO GLOBAL Ltda, conteúdo disponível no site www.rastreamentoglobal.com.br. Acesso em 01 de junho de 2011.
173
principais: rastreamento GPS com visualização em mapa pela internet e bloqueio
remoto a partir de qualquer telefone417
.
Figura 40. Rastreador S900-MS
Fonte: JCA Sistemas de rastreamento ( http://www.bloqueador.com.br)
c) Equipamento rastreador GPS 505 Sat: comercializado pela empresa “LocatorOne”,
o equipamento GPS 505 Sat (figura 41) permite o monitoramento de qualquer espécie
de veículo pelo computador, de maneira segura e em tempo real, através de tecnologia
de localização GPS, contando com importantes recursos como: bloqueio e desbloqueio
de veículo à distância, corte de combustível, acionamento de setas e sirene de voz,
fornecimento de informações detalhadas quanto à localização, à velocidade e à rota,
rastreamento pela internet, comunicação através de comunicação celular pela
modalidade GSM.
Figura 41. Rastreador GPS 505 Sat
Fonte: LocatorOne Rastreamento (www.locatorone.com.br)
d) Rastreador AlphaTrack Híbrido: destinado para frotas com rotas por toda a América
do Sul, o rastreador Alpha Track Híbrido (figura 42) é comercializado pela empresa
417
JCA SISTEMAS DE RASTREAMENTO. Disponível em <http://www.bloqueador.com.br>. Acesso em 01 de junho de 2011.
174
SatCom Rastreadores, utilizando de tecnologia de localização híbrida, isto é, tanto
através de GPS como através de satélites dedicados. No que se refere ao sistema de
comunicação, esse equipamento pode utilizar tanto a tecnologia GSM quanto a GPRS
e oferece recursos como:
- abertura de carroceria e baú, executada remotamente pelo operador na central de
monitoramento, trazendo para o sistema de rastreamento de caminhões segurança da
carga e uma capacidade inovadora no transporte e entrega de mercadorias em locais
pré-determinados pela empresa;
- desengate de carreta monitorado, com a finalidade de evitar separação não autorizada
do conjunto cavalo – carreta ou desengate de qualquer outro dispositivo, permitindo
alertar a central de monitoramento todas as vezes que houver o desengate da carreta,
sendo capaz de evitar extravio da carga ou trabalhos não autorizados;
- sensor de velocidade, a fim de inibir abusos na velocidade durante a condução do
veículo;
- sensor de porta de carona, permitindo acionar um alerta na central de monitoramento
todas as vezes que a porta for aberta sem prévia autorização do condutor do veículo.
Com esta função ativada o equipamento pode avisar o embarque no veículo de pessoas
não autorizadas, e com isso aumentar a segurança do veículo e da carga transportada;
- relatório de local trafegado, proporcionando ao usuário verificar as ruas, bairros,
municípios e estados por onde o veículo transitou num determinado intervalo de
tempo, verificando-se se o motorista está executando o roteiro definido;
- cerca eletrônica: considerada uma das mais avançadas funções do sistema de
rastreamento, permite limitar o trânsito a uma rota pré-definida. Com o veículo
limitado a uma cerca eletrônica o gestor do sistema poderá assegurar a permanência no
trajeto pré-determinado inibindo roubos e saídas de itinerários não autorizados;
- função “âncora”: semelhante à cerca eletrônica, limita o veículo a um perímetro
definido por um raio. Ao ativar esta função o proprietário pode assegurar que o veículo
175
não sairá, sem alertar a central de operações, além da distância previamente
programada, e assim inibir exageros por parte do condutor;
- computador de bordo: permite monitorar o acionamento de embreagem, pressão do
óleo, acionamento do limpador de para-brisa, atividades do freio convencional e do
motor, temperatura do motor alta ou baixa, nível de combustível e acionamento da
ignição;
- Sensores de abertura em geral: sensores instalados de forma oculta no veículo com a
finalidade de monitorar porta malas, baú, cofres, ignição, portas do motorista e do
carona etc, sendo excelente função para trazer uma maior tranquilidade nas ações que
são desencadeadas nas partes internas ou externas ao veículo.
Figura 42. Rastreador Alpha Track Híbrido
Fonte:SatCom Rastreadores (http://satcomrastreadores.com.br/rastreador/alfa_track_hibrido.html)
176
6 – Características práticas dos sistemas “Automatic Vehicle Location”
Objetivando verificar não só a acurácia e a precisão dos sistemas AVL,
como também a qualidade e a quantidade de dados fornecidos por tais sistemas,
utilizamos a técnica da observação direta intensiva (modalidade de técnica
metodológica que utiliza os sentidos na observação de determinados aspectos da
realidade, não consistindo apenas em ver e ouvir, mas também em examinar fatos ou
fenômenos que se deseja estudar418
).
6.1 Introdução
Com o objetivo acima traçado, realizamos a instalação do
equipamento denominado “TrackSat 3”, fornecido pela empresa “Tecgps Sistemas de
Rastreamento Ltda”419
. Referido equipamento é produzido na República Popular da
China pela empresa “Chainway Intelligent Transportation System Co., Ltd”(fabricante
profissional especializada em gestão de monitoramento de veículos e frotas, atuante
não só no desenvolvimento, como também na fabricação e na venda de dispositivos de
monitoramento420
), sendo originalmente identificado como “GPS Tracker CW-701
Support LCD Camera” (apesar de comercializado no Brasil como “TrackSat 3”) e
tendo estrutura bastante simplificada, conforme figura 43.
O equipamento instalado é um perfeito paradigma de equipamentos
disponíveis no mercado e habitualmente utilizados por empresas prestadoras de
serviço de transporte rodoviário, o que permite a universalização das conclusões
obtidas a partir dos dados oriundos de seu funcionamento.
418
LAKATOS, Eva Maria; MARCONI, Marina de Andrade. Metodologia do trabalho científico: procedimentos básicos, pesquisa bibliográfica, projeto e relatório, publicações e trabalhos científicos. 6ª edição. São Paulo: Atlas, 2001, p. 107.
419
Sociedade empresária cadastrada no CNPJ sob o no. 13.074.840/0001-40 e tendo sua sede na Avenida Juscelino Kubitschek de Oliveira, no.350, sala 224, na cidade de Taubaté, Estado de São Paulo. 420
Informações obtidas através do site < http://www.newtradein.com/company-home/Chainway-ITS-Co-Ltd--14860.html>. Acesso em 22.setembro.2011.
177
Figura 43. Equipamento “TrackSat 3”
Fonte: Site Oficial da empresa Chainway ITS (www.chainwayits.com)
O equipamento, juntamente com um “cartão de identificação de
condutor”421
(figura 44) foi adquirido através do site www.tecnologiagps.com.br pelo
valor de R$ 1.297,98 (um mil, duzentos e noventa e sete reais e noventa e oito
centavos), equivalente a 2,38 salários mínimos nacionais422
no dia 14 de junho de
2011, e instalado em veículo de titularidade do autor desta pesquisa (veículo modelo
Chevrolet, marca S-10, modelo “Rodeio”, cor prata, placa GIG0611, da cidade de
Santos).
Figura 44. Cartão de Identificação de Motorista
Uma vez adquirido o equipamento, o rastreamento é realizado
gratuitamente através do site www.tecnologiagps.com.br (figura 45) que oferece
software online com plataforma de rastreamento do veículo. O acesso do veículo à
internet é realizado através de chip instalado em slot próprio no módulo do
equipamento. No caso, para fins de acesso do equipamento à internet, estamos
utilizando o serviço pré-pago da empresa “Tim”, cujo custo é de R$0,50(cinqüenta
421
O “Cartão de Identificação de Condutor” é um acessório ao equipamento “TrackSat 3” que consiste num cartão com chip de memória instalado que, uma vez introduzido em slot próprio do equipamento, identifica o seu condutor. 422
O valor do salário mínimo nacional no dia 14/06/2011 era de R$ 545,00.
178
centavos) por dia de acesso. O usuário é detentor de login e senha que permite acesso
à plataforma de rastreamento, como se verifica das figuras 45, 46 e 47:
Figura 45. Site “Tecnologia GPS”
Figura 46. Tela de acesso à plataforma de rastreamento através do site www.tecnologiagps.com.br
179
Figura 47. Plataforma de rastreamento acessada através do site www.tecnologiagps.com.br
Para a obtenção dos dados abaixo apresentados, o autor da pesquisa,
tomando a posição de “gestor do sistema”, utilizou-se de viagem realizada no dia 11
de setembro de 2011 tendo como ponto de partida a Avenida Santino Faraone, no. 281,
na cidade de Americana/SP e como ponto de destino a Avenida Muniz de Souza, no.
1.130, na cidade de São Paulo/SP. A viagem iniciou-se às 17:12h e terminou às 19:34h
do mesmo dia, com duração, portanto, de 2(duas) horas e 22(vinte e dois) minutos sob
um trajeto de 142 quilômetros. O gestor do sistema, com o objetivo de verificar a
exatidão das informações do sistema, manteve-se, durante toda a viagem no banco
imediatamente atrás do motorista, munido de notebook com acesso à internet sem fio,
tendo acesso, através do sistema, aos mesmos dados e telas que teria em qualquer
localidade do Planeta Terra com acesso à internet, conforme ilustrações 48 e 49.
180
Figura 48. Posição do Gestor do Sistema durante a coleta de dados
Gestor do Sistema Motorista
Figura 49. Notebook com acesso à internet utilizado pelo Gestor do Sistema
Durante todo o processo não houve perda de sinal GPS pelo equipamento
embarcado, nem sequer perda de sinal de internet sem fio no notebook utilizado para
obtenção de dados. Todas as fotografias obtidas através do sistema refletem a
realidade do conteúdo do veículo e todos os demais dados fornecidos pelo sistema
compatibilizam-se com a realidade visual experimentada pelo Gestor do Sistema
durante o deslocamento.
6.2 Perguntas a serem respondidas através da observação direta intensiva
Focados no objetivo de saber a capacidade dos sistemas AVL de produzir
espaço ampliado e servir de efetivo instrumento de controle, pelo empregador, da
atividade laboral do motorista rodoviário que executa atividades externas, elaboramos
181
perguntas a serem respondidas com base nos dados colhidos no presente
procedimento. Eis as perguntas:
Questão 1. O sistema permite, de forma fidedigna e precisa, a localização, a qualquer
momento, do veículo monitorado com o efetivo controle do cumprimento de rota pré-
determinada?
Questão 2. O sistema viabiliza a verificação da identidade do condutor em quaisquer
dos momentos da operação?
Questão 3. O sistema permite ao gestor do sistema manter comunicação com o
condutor objetivando a transmissão de ordens?
Questão 4. O sistema possibilita, de forma objetiva, a verificação do cumprimento das
ordens impostas pelo gestor do sistema ao condutor do veículo?
6.3 Dos dados colhidos durante a operação
Os dados colhidos durante a viagem estão relatados nas 28(vinte e oito)
ocorrências abaixo, que objetivam explorar cada um dos principais recursos do sistema
AVL utilizado e cujos dados obtidos serão utilizados nas conclusões inerentes ao
presente trabalho. Para cada ocorrência há não só a descrição do objeto da mesma
como também ilustrações do conteúdo na plataforma de rastreamento no dado
momento da coleta de dados. As ilustrações foram obtidas a partir de impressões das
telas do notebook durante todo o trajeto, sendo tais impressões obtidas através do
software “Gadwin PrintScreen 4.6”, instalado no notebook de coleta de dados.
182
OCORRÊNCIA “1”
Descrição: Veículo rastreado aguardando o início da viagem no ponto de origem
(Avenida Santino Faraone, no. 281 – Cidade de Americana – Estado de São Paulo). O
gestor do sistema, com o objetivo de verificar a exatidão das informações do sistema,
manteve-se, durante toda a viagem, no banco imediatamente atrás do motorista,
munido de notebook com acesso à internet sem fio, tendo acesso, através do sistema,
aos mesmos dados e telas que teria em qualquer localidade do Planeta Terra com
acesso à internet.
Ilustrações representativas:
Veículo rastreado a espera do início da viagem
Equipamentos Embarcados:
Módulo de rastreamento
Visão frontal Visão traseira
183
Câmera :
Visão panorâmica do local de instalação Visão frontal
Monitor de Cristal Líquido (LCD) :
Visão do local de instalação Visão frontal detalhada
Microfone:
Visão do local de instalação (sobre o retrovisor) Visão frontal
184
Posição do Gestor durante a viagem para fins de coleta de dados e verificação de exatidão das
informações fornecidas pelo sistema:
Gestor do Sistema Motorista Notebook com acesso à internet utilizado pelo
Gestor do Sistema
185
OCORRÊNCIA “2”
Descrição: Tela de início do rastreamento. Início da viagem no dia 11/09/2011 às 17
horas, 12 minutos e 50 segundos, tendo como local de partida a Rua Santino Faraone,
no. 281 – na cidade de Americana, Estado de São Paulo sob as seguintes coordenadas:
-47.261 (longitude) e -22.725 (latitude).
Ilustrações descritivas:
Identificação do motorista Identificação do veículo
Velocidade Dia e Horário Localização do veículo
Visualização do ponto de partida através do GoogleEarth
186
OCORRÊNCIA “3”
Descrição: Obtenção de foto a fim de verificar quem está conduzindo o veículo. O
sistema oferece sequência de fotografias em tempo real. Nas ilustrações abaixo
constata-se informações como: localização do veículo, horário da localização,
identificação do veículo, velocidade do veículo e identificação visual do condutor do
veículo.
Ilustrações descritivas:
Solicitação de fotografia
187
Identificação do veículo Velocidade do veículo Posição do veículo
Fotografia obtida através do sistema, remotamente (via internet),
identificando visualmente o condutor
188
OCORRÊNCIA “4”
Descrição: Uso da ferramenta “escuta”, oferecida pelo sistema, que permite, através
da internet, ao gestor do sistema contato sonoro com o quanto ocorre no interior do
veículo.
Ilustração representativa:
Ferramenta de “escuta” do sistema
189
OCORRÊNCIA “5”
Descrição: Verificação das condições gerais do sistema (estado de funcionamento do
GPS e da comunicação celular GPRS) e do veículo (condição do motor e da bateria).
Ilustração descritiva:
Identificação do veículo Condições gerais do veículo e do sisema
190
OCORRÊNCIA “6”
Descrição: Verificação de todos os comandos realizados junto ao sistema, permitindo
a constante revisão de todos os atos de rastreamento realizados.
Ilustração descritiva:
Lista contendo todos os comandos realizados e cumpridos pelo sistema, com a especificação do exato momento de ocorrência
191
OCORRÊNCIA “7”
Descrição: Acompanhamento do deslocamento do veículo com identificação do
trajeto já realizado, que fica destacado em linha azul com pontos vermelhos
Ilustração descritiva:
Verificação do trajeto realizado pelo veículo e a sua localização atual
192
OCORRÊNCIA “8”
Descrição: Monitoramento de excesso de velocidade. O sistema é capaz de monitorar
a velocidade do veículo, podendo o gestor fixar velocidade máxima permitida, sendo
que, quando ultrapassado o limite fixado, o sistema automaticamente emite um alarme
indicando não só o excesso, como também o tempo do excesso e o espaço percorrido
na velocidade irregular.
Ilustrações descritivas:
Fixação de limite de velocidade e tempo de tolerância acima da velocidade limitada
193
Alarme de excesso de velocidade, incluindo o tempo em excesso e a distância
percorrida em excesso de velocidade
Lista de violações ao limite de velocidade
194
OCORRÊNCIA “9”
Descrição: Uso de sistema de envio de mensagens escritas pelo gestor do sistema ao
condutor do veículo. O condutor tem acesso à mensagem através de monitor de cristal
líquido (LCD) instalado no veículo.
Ilustrações representativas:
Comando de envio de mensagem
Monitor LCD instalado no veículo
195
OCORRÊNCIA “10”
Descrição: O recurso “configuração do terminal de rastreamento” permite verificar
todos os instrumentos colocados à disposição pelo equipamento embarcado no veículo,
fazendo com que o Gestor do Sistema possa, a qualquer momento, verificar a
habilitação de todos os instrumentos necessários ao monitoramento do veículo.
Ilustrações descritivas:
Tela de solicitação da configuração do terminal
196
Informações sobre a configuração do terminal
Informações de configuração destacadas para melhor visualização
197
OCORRÊNCIA “11”
Descrição: Recurso de verificação do “Status do Terminal”, isto é, das condições de
comunicação do terminal.
Ilustrações descritivas:
Solicitação do Status do Terminal
Tela do “Status do Terminal”
199
OCORRÊNCIA “12”
Descrição: Visualização da localização do veículo às 17:56h, objetivando demonstrar
a capacidade do sistema de localizar o veículo a qualquer momento.
Ilustração descritiva:
200
OCORRÊNCIA “13”
Descrição: Fixação de “Cerca Eletrônica”, recurso do sistema que permite a
determinação de espaço de percurso autorizado pelo Gestor do sistema. Na hipótese do
veículo ultrapassar os limites territoriais fixados, um alerta é transmitido ao Gestor do
sistema.
Ilustrações descritivas:
Tela de definição da cerca eletrônica Contornos da cerca eletrônica
201
Alarme de violação da cerca eletrônica Momento da violação
Visão detalhada da tela de alarme de violação de cerca eletrônica
203
OCORRÊNCIA “14”
Descrição: Visualização da localização através do “Google Earth”. O sistema utilizado
permite a visualização no “Google Earth” (que vincula o ponto de localização do
veículo à imagem do Planeta Terra obtida via satélite) da localização do veículo
monitorado.
Ilustrações descritivas:
Tela de solicitação da visualização através do “Google Earth”
205
OCORRÊNCIA “15”
Descrição: Monitoramento da quantidade de quilômetros percorridos durante o trajeto
do veículo monitorado.
Ilustrações descritivas:
Identificação do veículo monitorado período da verificação espaço percorrido (em Km)
206
OCORRÊNCIA “16”
Descrição: Histórico de posições. Através desse recurso do sistema são informadas as
posições do veículo monitorado (em intervalos próximos de 10 segundos), juntamente
com a velocidade empreendida pelo veículo no momento de cada uma das posições e o
total de espaço percorrido até cada dado momento de monitoramento.
Ilustrações descritivas:
Identificação do veículo Velocidade Momento da posição espaço percorrido posição
207
OCORRÊNCIA “17”
Descrição: Visualização da localização do veículo às 18:40h, objetivando demonstrar
a capacidade do sistema de localizar o veículo a qualquer momento.
Ilustrações descritivas:
Identificação do veículo momento da verificação localização velocidade
208
OCORRÊNCIA “18”
Descrição: Verificação, às 18:45h, da pessoa do condutor através de fotografia
fornecida pelo sistema em tempo real juntamente com a localização do veículo
monitorado.
Ilustração demonstrativa:
fotografia em tempo real momento da verificação localização do veículo
209
OCORRÊNCIA “19”
Descrição: Monitoramento da localização do veículo às 18:52h.
Ilustração descritiva:
Horário da verificação Localização do veículo
210
OCORRÊNCIA “20”
Descrição: Monitoramento da localização do veículo às 19:04h.
Ilustração descritiva:
211
OCORRÊNCIA “21”
Descrição: Monitoramento da localização do veículo às 19:11h, juntamente com
visualização do espaço através do GoogleEarth.
Ilustração descritiva:
212
OCORRÊNCIA “22”
Descrição: Monitoramento da localização do veículo às 19:14h.
Ilustração descritiva:
213
OCORRÊNCIA “23”
Descrição: Monitoramento da localização do veículo às 19:16h, com obtenção de foto
a fim de verificar a identificação visual do condutor do veículo.
Ilustração descritiva:
214
OCORRÊNCIA “24”
Descrição: Verificação do histórico do trajeto no intervalo entre o início da viagem e a
localização às 19:17h, permitindo verificar a qualquer momento o trajeto realizado
pelo veículo e, consequentemente, pelo condutor, inclusive com o apontamento da
localização em qualquer momento pretérito.
Ilustração descritiva:
215
OCORRÊNCIA “25”
Descrição: Monitoramento da localização do veículo às 19:22h.
Ilustração descritiva:
216
OCORRÊNCIA “26”
Descrição: Monitoramento da localização do veículo às 19:25h, juntamente com
visualização do espaço através do GoogleEarth.
Ilustração descritiva:
217
OCORRÊNCIA “27”
Descrição: Monitoramento da localização do veículo às 19:26h.
Ilustração descritiva:
218
OCORRÊNCIA “28”
Descrição: Monitoramento da localização do veículo às 19:34h, constatando-se a
chegada ao ponto de destino (Rua Muniz de Souza, no. 1.130 – Liberdade – São
Paulo/SP.
Ilustrações descritivas:
Visualização do local de destino através do GoogleEarth:
219
6.4 Das conclusões obtidas através da operação
Frente à totalidade dos dados colhidos durante a operação descrita,
apresentamos as respostas às perguntas inicialmente impostas, como abaixo apontado:
Questão 1. O sistema permite, de forma fidedigna e precisa, a localização, a
qualquer momento, do veículo monitorado com o efetivo controle do
cumprimento de rota pré-determinada?
Resposta: Sim, da observação das ocorrências 2, 12, 14, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 25,
26, 27 e 28 conclui-se que o gestor do sistema tem a possibilidade de, a qualquer
momento, verificar a localização do veículo, inclusive com a visualização da
localização através de imagem do GoogleEarth, conforme ocorrências 2, 14, 21, 26 e
28.
Além da informação instantânea quanto à localização presente do veículo, o
sistema também permite ao seu gestor a verificação das posições pretéritas,
relacionando-as com os respectivos momentos, como se verifica das ocorrências 16
(histórico de posições) e 17 (histórico do trajeto).
Questão 2. O sistema viabiliza a verificação da identidade do condutor em
quaisquer dos momentos da operação?
Sim, tal verificação pode ser realizada através de imagem fotográfica obtida
instantaneamente pelo sistema (ocorrências 3, 18 e 23), de sons colhidos do ambiente
interno do veículo através do instrumento “escuta” (ocorrência 4), de informação
colhida a partir da inserção do “cartão de identificação do condutor” no equipamento
embarcado.
220
Questão 3. O sistema permite ao gestor do sistema manter comunicação com o
condutor objetivando a transmissão de ordens?
Sim, como se verifica da ocorrência “9”, o sistema permite que o gestor
envie mensagens escritas ao condutor do veículo através do monitor de cristal líquido
embarcado, transmitindo, assim, ordens de como realizar a prestação do serviço, o que
pode ser realizado também através do instrumento “escuta”, descrito na ocorrência
“4”.
Questão 4. O sistema possibilita, de forma objetiva, a verificação do cumprimento
das ordens impostas pelo gestor do sistema ao condutor do veículo?
Sim, primeiramente pelo fato de ser possível avaliar se o condutor
transporta o veículo através da rota pré-determinada, como se verifica das ocorrências
2, 12, 14, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 25, 26, 27 e 28.
Segundo, porque o gestor pode fixar “cerca eletrônica”, determinando que
o sistema gere alerta na hipótese do condutor transportar o veículo por espaço não
permitido pelo gestor, como se verifica da ocorrência 13.
Terceiro, o sistema permite a verificação da velocidade do veículo a
qualquer momento e, inclusive, gera alerta ao gestor na hipótese da velocidade
máxima ser extrapolada, como se verifica da ocorrência 8.
Quarto, o sistema permite o “bloqueio” do veículo mediante comando do
gestor, o que pode ser realizado, por exemplo, na hipótese de reiterados
descumprimentos de ordens pelo condutor.
7 Os sistemas AVL e o controle de paradas do veículo
Questão sempre ventilada quando de discussão a respeito da capacidade dos
sistemas AVL de controlar a atividade laboral do motorista rodoviário é a existência
ou não de recursos nesses sistemas capazes de controlar as paradas realizadas ao longo
221
das viagens realizadas, motivo pelo qual não podemos deixar de, frente aos objetivos
desta tese, enfrentar tal questão.
No Brasil, há trabalho acadêmico tratando profundamente do assunto, de
autoria de Luciano Aparecido Barbosa, sob o tema “Previsão de Localização Futura de
Veículos Baseada em Dados de AVL”, apresentado como requisito parcial para a
obtenção de título de Mestre em Engenharia junto à Escola Politécnica da
Universidade de São Paulo no ano de 2010.
Afirma Luciano Aparecido Barbosa que o cresente desenvolvimento de
aplicações utilizadas por dispositivos móveis que fazem uso das tecnologias de
posicionamento via satélite e comunicação móvel, juntamente com a popularização
destes dispositivos, sejam eles celulares ou GPS automotivos reforçam ainda mais a
necessidade de representação e entendimento acerca das entidades móveis retratadas
nesses dispositivos e incentivam estudos que forneçam um significado do que a
simples representação posicional desses objetos, em especial no que tange à previsão
de localização futura423
.
Em sua dissertação, Luciano Aparecido Barbosa ensina que, considerando
as entidades móveis como veículos rastreados via satélite que fornecem sua posição
espacial, determinada por um par de coordenadas geográficas (latitude e longitude),
coletadas em intervalos de tempo regulares para sistemas AVL (Automatic Vehicle
Location) que são responsáveis pelo monitoramento do estado desses veículos, podem
ser desenvolvidas funções para a previsão da localização e geração de padrões dos
veículos monitorados por sistemas AVL. Para tanto, as paradas efetuadas pelos
veículos definirão regiões comuns de parada ocorridas durante um intervalo de tempo
passado e serão consideradas como um padrão de localização, enquanto que as
trajetórias serão utilizadas para definir o padrão de movimentação. Tal metodologia e
as funções desenvolvidas a partir dela fornecem uma camada inicial de inteligência aos
sistemas AVL, que proporciona aos controladores desses sistemas utilizarem consultas
423
BARBOSA, Luciano Aparecido. Previsão de localização futura de veículos baseada em dados de AVL. 2010. Dissertação (mestrado) – Departamento de Engenharia de Transportes, Escola Politécnica da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010.
222
preditivas, identificarem mais facilmente anomalias de comportamento, que possam
evidenciar alguma ocorrência incomum na movimentação do veículo424
.
Os atuais sistemas AVL comercializados no mercado brasileiro já contam
com recurso de controle de paradas programadas e constatação de paradas anômalas,
permitindo o controle de todos os momentos de “pausa” previstos na Lei 12.619/12
(como analisado no item “1.1” do Capítulo IV desta tese). Exemplifiquemos:
a) Sistema Serconfsat
Trata-se de sistema AVL fornecido pela empresa “Serconfsat Sistemas de
Rastreamento”, que conta com gerenciamento de frotas incluindo recurso de “Controle
Automático de Paradas”, controlando horários de início e fim de cada parada, paradas
programadas, acompanhamento on line do andamento da viagem com indicativo de
tempos (adiantado ou atrasado) e previsão de chegada425
. Segue abaixo imagem de
relatório fornecido pelo sistema Serconfsat contendo relatório completo e minucioso
das paradas:
Figura 48. Relatório de paradas.
Fonte: Site oficial da empresa “Serconfsat Sistemas de Rastreamento”.
424
BARBOSA, Luciano Aparecido. Previsão de localização futura de veículos baseada em dados de AVL. 2010. Dissertação (mestrado) – Departamento de Engenharia de Transportes, Escola Politécnica da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010.
425
Informações obtidas através do site oficial da empresa “Serconfsat Sistemas de Rastreamento”. Disponível em: < http://www.serconfsat.com.br/>. Acesso em 10.março.2012.
223
b) Sistema Global Unepxmil
Sistema AVL oferecido pela empresa Dessotti Rastreadores e Monitoramento
baseado num software desenvolvido para o Rastreamento e o Gerenciamento de Rotas
a partir de posições obtidas de um aparelho receptor GPS e transmitidas para o
servidor Global Unepxmil. Todo Gerenciamento de Rotas e o Rastreamento dos
veículos podem ser realizados on-line, em tempo real, o que garante controle contínuo
da operação, sendo que o software realiza o gerenciamento de todo o sistema, podendo
realizar ações corretivas nas rotas/condutores, de acordo com parâmetros pré-
configurados pelo usuário, sistema de controle total da jornada de trabalho, Sistema de
Manutenção Preventiva, que permite ao usuário controlar todos os itens de
manutenção do Veículo de acordo com sua necessidade426
.
Conta o sistema com módulo “Jornada de Trabalho”, que controla através da
Telemetria e da Biometria toda jornada de trabalho dos veículos e dos motoristas. Ao
inicio da jornada, todos os motoristas deverão digitar sua Senha no teclado de
operações. Tendo digitado a senha, será liberado um comando para a leitura de
impressão digital e após feita a leitura e o reconhecimento do cadastro do motorista o
caminhão será liberado automaticamente para o início da sua jornada. (Tudo isso em
fração de segundos). O mesmo procedimento será adotado na parada e volta das
refeições e no final da jornada de cada Veículo/Motorista427
.
Portanto, demonstrada a capacidade dos sistemas AVL, no atual estado da
técnica, de monitorar as paradas programadas e anômalas realizadas durante as
viagens.
426
Informações obtidas através do site oficial da empresa “Dessotti Rastreadores e Monitoramento”. Disponível em: < http://www.unepxmil.com.br/loja/dessotti/index.php?sistema=sobre.php> . Acesso em 10.março.2012. 427
Idem.
224
Capítulo IV- A MUTAÇÃO NORMATIVA DO ARTIGO 62, I, DA CLT EM
FUNÇÃO DA MUDANÇA DE REGIME DE VISIBILIDADE
Nos primeiros capítulos dedicamo-nos à apresentação das novas tecnologias
que permitem o atual estado da técnica dos sistemas AVL (Automatic Vehicle
Location), à verificação da atuação prática desses inovadores sistemas e ao
desenvolvimento do raciocínio quanto à existência de um novo regime de visibilidade
cultuado na sociedade atual e seus reflexos na construção (ou re-construção) das
normas jurídicas.
Neste capítulo dedicar-nos-emos à análise da mutação normativa sofrida
pelo inciso I do artigo 62 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) em razão da
mudança de regime de visibilidade cultuado na sociedade atual e que é por demais
diverso do regime de visibilidade cultuado em 01 de maio de 1943 quando da
introdução da CLT (Decreto-Lei 5.452, de 1º de maio de 1943) no Direito Positivo
brasileiro.
Para uma efetiva apreciação da mutação normativa do artigo 62, I, da CLT,
apresentaremos, como anteparo preparatório, a descrição do tratamento jurídico dado
pela Constituição Federal de 1988 e pela CLT à duração da jornada de trabalho, o que
nos permitirá uma efetiva análise sistemática da mutação normativa noticiada.
1 O contrato de trabalho e a jornada laboral
Importante destacar que o conteúdo a seguir é de caráter eminentemente
descritivo, objetivando apontar as principais características da normatização da
duração do trabalho no direito positivo brasileiro, daí a inexistência de preocupação
crítica, nesse momento, em relação ao conteúdo apontado.
No que se refere à duração da atividade dedicada pelo empregado ao
empregador, a doutrina destaca a existência de três institutos que, a despeito de serem
225
características de um mesmo objeto sob prismas diversos, merecem, todos, ser
apontados, quais sejam:
- jornada de trabalho: que é o lapso temporal diário em que o empregado se coloca à
disposição do empregador em virtude do respectivo contrato de trabalho, sendo a
medida principal do tempo diário de disponibilidade do obreiro em face de seu
empregador como resultado do cumprimento do contrato de trabalho que os vincula428.
Aliás, como destacado por Sergio Pinto Martins, a expressão “jornada” tem a sua raiz
etimológica no vocábulo italiano giornatta, que significa dia, acrescentando-se que em
francês utiliza-se a expressão jour para significar “dia” e journeé para se referir à
“jornada”429. Em suma, originalmente a expressão “jornada de trabalho” refere-se ao
lapso de prestação de atividade laboral durante um determinado dia, o número de horas
diários de trabalho que o empregado presta ao empregador.
- duração do trabalho: que é o lapso temporal de trabalho ou disponibilidade do
empregado perante seu empregador em virtude do contrato de trabalho, considerados
distintos parâmetros de mensuração: dia (duração diária ou jornada), mês (duração
mensal) ou ano (duração anual)430.
- horário de trabalho: que se refere ao lapso temporal entre o início e o fim de certa
jornada laborativa, à delimitação do início e fim da duração diária de trabalho com os
respectivos dias semanais de trabalho e correspondentes intervalos intrajornadas.
Utilizaremos na presente tese os termos “jornada de trabalho” e “duração de
trabalho” como sinônimos, indicando período de tempo em que o empregado encontra-
se exercendo as suas atividades laborais junto ao empregador e/ou tempo à disposição
do empregador aguardando ordens. Já o termo “horário de trabalho” será por nós
utilizado como fixação de horários de início e término da prestação laboral.
428
DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 3ª edição. São Paulo: LTr, 2004, p. 831. 429
MARTINS, Sergio Pinto. Direito do trabalho. 23ª edição. São Paulo: Atlas, 2007, p. 488. 430
DELGADO, Maurício Godinho. Op. Cit., p.835.
226
No que se refere aos critérios para fixação da jornada de trabalho, aponta-se
a existência de 3(três) critérios básicos, quais sejam: “tempo efetivamente trabalhado”
(que considera como componente da jornada de trabalho apenas o tempo efetivamente
trabalhado pelo empregado, excluindo-se do cômputo da duração da jornada eventual
tempo à disposição do empregador aguardando ordens mas sem labor efetivo, qualquer
tipo de intervalo intrajornada, e paralisações da atividade empresarial que inviabilizem
a prestação laboral431), “tempo à disposição (critério que determina que na jornada de
trabalho inclui-se o tempo em que o empregado encontra-se à disposição do
empregador a partir do momento em que o empregado chega à sede do empregador até
o momento em que dela se retira432. Como afirma Amauri Mascaro Nascimento, o
critério sob análise fundamenta-se na natureza do trabalho do empregado, isto é, na
subordinação contratual, de modo que o empregado é remunerado por estar sob a
dependência jurídica do empregador e não somente por que e quando está
trabalhando433). Finalmente, o critério do “tempo in itinere” (que computa a jornada de
trabalho desde o momento em que o empregado sai de sua residência para realização
da atividade laboral até quando a ela regressa ao fim da prestação laboral434).
Frente à exposição introdutória pode-se afirmar que o Direito Positivo
brasileiro adota, como constata Sergio Pinto Martins, um sistema híbrido das teorias
do tempo à disposição do empregador e do tempo in itinere (neste último somente para
a hipótese em que o local de trabalho seja de difícil acesso ou não servido por
transporte público e o empregador forneça a condução) para identificar a jornada de
trabalho do empregado435, como se verifica, por exemplo, da leitura do caput do artigo
4º e do parágrafo 2º do artigo 58, todos da CLT, abaixo transcritos:
431
DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 3ª edição. São Paulo: LTr, 2004, p.838. 432
MARTINS, Sergio Pinto. Direito do trabalho. 23ª edição. São Paulo: Atlas, 2007, p. 489. 433
NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Curso de direito do trabalho: história e teoria geral do direito do trabalho: relações individuais e coletivas do trabalho. 13ª edição. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 627.
434
MARTINS, Sergio Pinto. op.cit.. 23ª edição. São Paulo: Atlas, 2007, p.489. 435
Ibidem, p. 489.
227
CLT. Art. 4º. Considera-se como de serviço efetivo o período em que
o empregado esteja à disposição do empregador, aguardando ou
executando ordens, salvo disposição especial expressamente
consignada.
CLT. Art. 58... §2º. O tempo despendido pelo empregado até o local
de trabalho e para o seu retorno, por qualquer meio de transporte, não
será computado na jornada de trabalho, salvo quando, tratando-se de
local de difícil acesso ou não servido por transporte público, o
empregador fornecer a condução.
No que se refere à composição da jornada de trabalho, seguimos, nessa
descrição, o raciocínio de Maurício Godinho Delgado, para quem tal composição se
faz por um “tronco básico” (cujo conteúdo é o lapso temporal situado nos limites da
duração do trabalho pactuada entre as partes, isto é, aquilo que a prática designa como
jornada normal de trabalho436) e por “componentes suplementares” (nesses incluindo-
se todos os demais períodos trabalhados – designados pela prática como jornada
suplementar ou extraordinária - ou apenas à disposição plena ou parcial do
empregador reconhecidos pelos critérios de composição da jornada impostos pelo
direito positivo pátrio, assim como os intervalos remunerados437).
Em relação à jornada normal de trabalho, a Constituição Federal vigente
impõe como regra geral a duração de trabalho diária de 8(oito) horas e semanal de 44
(quarenta e quatro) horas, conforme inciso XIII do artigo 7º constitucional, o que é
acompanhado, no que se refere à fixação diária, pelo artigo 58, caput, da CLT.
Seguem transcrições dos dispositivos comentados:
CF/88. Art. 7º. São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além
de outros que visem à melhoria de sua condição social:
(...) XIII – duração do trabalho normal não superior a oito horas
diárias e quarenta e quatro semanais, facultada a compensação de
horários e a redução da jornada, mediante acordo ou convenção
coletiva de trabalho;
436
DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 3ª edição. São Paulo: LTr, 2004, p. 846. 437
Idem.
228
CLT. Art. 58. A duração normal do trabalho, para os empregados em
qualquer atividade privada, não excederá de 8(oito) horas diárias,
desde que não seja fixado expressamente outro limite.
É verdadeiro também que a própria Constituição Federal aponta exceção à
regra geral, como o faz em relação à duração normal da jornada de trabalho realizado
em turno ininterrupto de revezamento, conforme inciso XIV do artigo 7º
constitucional. Outras exceções também são feitas pela legislação infraconstitucional
como se verifica, por exemplo, em relação aos jornalistas profissionais e radialistas
(em que a jornada normal é de 5 horas diárias, conforme artigo 303 da CLT), aos
telefonistas sujeitos a horários variáveis (a quem é fixada jornada normal de 7 horas,
conforme artigo 229, caput, da CLT) e aos professores (para quem é fixada duração
normal de trabalho de 6 horas, como determina o artigo 318 da CLT). Vale transcrever
os enunciados prescritivos acima indicados:
CF/88. Art. 7º (...) XIV- jornada de seis horas para o trabalho
realizado em turnos ininterruptos de revezamento, salvo negociação
coletiva;
CLT. Art. 303. A duração normal do trabalho dos empregados
compreendidos nesta Seção438
não deverá exceder de 5(cinco) horas,
tanto de dia como à noite.
CLT. Art. 229. Para os empregados439
sujeitos a horário variáveis, fica
estabelecida a duração máxima de 7(sete) horas diárias de trabalho e
17(dezessete) horas de folga, deduzindo-se desse tempo 20(vinte)
minutos para descanso, de cada um dos empregados, sempre que se
verificar um esforço contínuo de mais de 3(três) horas.
CLT. Art. 318. Num mesmo estabelecimento de ensino, não poderá o
professor dar, por dia, mais de 4(quatro) aulas consecutivas, nem mais
de 6(seis) intercaladas.
No que se refere aos “componentes suplementares” da jornada de
trabalho, destaca-se o labor em lapso de tempo superior à jornada-padrão tida como
“normal” pelo direito positivo vigente, lapso esse intitulado pela legislação, pela
438
Trata-se da Seção XI do Capítulo I do Título III da CLT, que trata dos “jornalistas profissionais”. 439
O referido dispositivo refere-se àqueles que trabalham em atividade de Telefonia, de Telegrafia Submarina e Subfluvial, de Radiotelegrafia e Radiotelefonia.
229
doutrina e pela jurisprudência como “serviço extraordinário” ou “jornada
extraordinária” e a que a Constituição Federal fixa remuneração diferenciada de, no
mínimo, 50% superior ao valor da hora normal, conforme texto do inciso XVI do
artigo 7º constitucional abaixo transcrito:
CF/88. Art. 7º (...) XVI- remuneração do serviço extraordinário
superior, no mínimo, em cinquenta por cento à do normal;
E mais, a legislação infraconstitucional afasta a incidência de normas
referentes à duração do trabalho e à imposição de pagamento por serviço
extraordinário a atividades cuja realização não seja controlável pelo empregador. Daí
surgindo classificação das jornadas de trabalho em Controláveis e Não-
Controláveis440, pedindo-se vênia para transcrição, nesse ponto, do magistério de
Mauricio Godinho Delgado:
A presença ou não de controle e fiscalização pelo empregador é...
um marco distintivo fundamental entre as jornadas laborativas
obreiras. Em consequência, o Direito do Trabalho diferencia entre
jornadas controladas e não controladas. As primeiras (jornadas
controladas), em que a prestação do trabalho é submetida a efetivo
controle e fiscalização do empregador, podem ensejar a prestação de
horas extraordinárias, caso evidenciada a extrapolação da fronteira
temporal regular da jornada padrão incidente sobre o caso concreto.
As segundas (jornadas não controladas), em que a prestação do
trabalho não é submetida a real controle e fiscalização pelo
empregador, não ensejam o cálculo de horas extraordinárias, dado que
não se pode aferir sequer a efetiva duração do trabalho no caso
concreto.441
A regra geral, no Direito brasileiro, é que são controladas as
jornadas laborativas do empregado. E isso é lógico, à medida que
incide em benefício do empregador um amplo conjunto de
prerrogativas autorizadoras de sua direção, fiscalização e controle
sobre a prestação de serviços contratada (art. 2º, caput, CLT). Nesse
quadro, presume-se que tal poder de direção, fiscalização e controle
manifestar-se-á cotidianamente, ao longo da prestação laboral, quer no
440
Vale esclarecer que, apesar de muitos Autores utilizarem as expressões jornadas “controladas” e “não controladas”, como o faz, por exemplo, Mauricio Godinho Delgado na sua obra “Curso de Direito do Trabalho”, optamos pela utilização dos termos “controláveis” e “não controláveis”, vez entendermos que o regime jurídico especial conferido pelo artigo 62, inciso I, da CLT leva em consideração à impossibilidade de controle da jornada de trabalho (isto é, a características da jornada não ser controlável) e não simples faculdade do empregador em controlar ou não controlar a jornada desenvolvida pelo obreiro. 441
DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 3ª edição. São Paulo: LTr, 2004, p. 872.
230
tocante à sua qualidade, quer no tocante à sua intensidade, quer no
tocante à sua frequência.442
A ordem jurídica reconhece que a aferição de uma efetiva jornada de
trabalho cumprida pelo empregado supõe um mínimo de fiscalização e
controle por parte do empregador sobre a prestação concreta dos
serviços ou sobre o período de disponibilidade perante a empresa. O
critério é estritamente prático: trabalho não fiscalizado nem
minimamente controlado é insuscetível de proporcionar a aferição da
prestação (ou não) de horas extraordinárias pelo trabalhador. Nesse
quadro, as jornadas não controladas não ensejam cálculo de horas
extraordinárias, dado que não se pode aferir sequer a efetiva prestação
da jornada padrão incidente sobre o caso concreto.443
Quanto à previsão normativa, em caráter de exceção, de jornada não
controlável, a CLT prevê duas hipóteses específicas no seu artigo 62 da CLT, quais
sejam: a hipótese de “empregados que exercem atividade externa incompatíveis com a
fixação de horário de trabalho” e a situação dos daqueles exercentes de cargo de
confiança e, mais especificamente, “os gerentes, assim considerados os exercentes de
cargos de gestão, aos quais se equiparam ... os diretores e chefes de departamento ou
filial”, afastando tais empregados do regime de “Duração do Trabalho” fixado no
Capítulo II do Título II da CLT (compreendendo os artigos 57 a 75). Vale transcrição
do artigo 62 da CLT:
CLT. Art. 62. Não são abrangidos pelo regime previsto neste
Capítulo:
I- os empregados que exercem atividade externa incompatível com a
fixação de horário de trabalho, devendo tal condição ser anotada na
Carteira de Trabalho e Previdência Social e no registro de
empregados;
II- os gerentes, assim considerados os exercentes de cargos de gestão,
aos quais se equiparam, para efeito do disposto neste artigo, os
diretores e chefes de departamento ou filial.
Parágrafo único. O regime previsto neste Capítulo será aplicável aos
empregados mencionados no inciso II deste artigo, quando o salário
do cargo de confiança, compreendendo a gratificação de função, se
houve, for inferir ao valor do respectivo salário efetivo acrescido de
40%(quarenta por cento).
442
DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 3ª edição. São Paulo: LTr, 2004, p. 873. 443
Ibidem, p. 874.
231
Como já reiterado no decorrer desta tese, o foco da pesquisa em
desenvolvimento tem como objeto o inciso I do artigo 62 da CLT, sendo certo que a
breve descrição das características da normatização pátria a respeito da duração do
trabalho serve para realização de análise global do objeto da pesquisa, apresentando-se
o contexto onde se situa o objeto específico da pesquisa.
1.1 A Lei 12.619/12 e a jornada de trabalho do motorista rodoviário
Em 30 de abril de 2012 fora publicada a Lei 12.619, que dispõe sobre o
exercício da profissão de motorista, alterando a Consolidação das Leis do Trabalho em
vários de seus dispositivos, inclusive e principalmente para regular e disciplinar a
jornada de trabalho e o tempo de direção do motorista profissional, bem como
acrescentando disposições ao Código de Trânsito Brasileiro (Lei 9.503/97). A Lei
12.619/12 não possui especificação no que tange a período de vacância, havendo,
assim, de se aplicar os termos do artigo 1º do Decreto-Lei 4.657/42444
(também
conhecido como Lei de Introdução ao Código Civil), motivo pelo qual o início de
vigência da lei inicia-se em 45(quarenta e cinco dias) a contar da data de sua
publicação (30 de abril de 2012).
Encontram-se submetidos à Lei 12.619/12, conforme seu artigo 1º, os
motoristas profissionais de veículos automotores cuja condução exija formação
profissional (cujo exercício da profissão é livre, desde que atendidas as condições e
qualificações profissionais445
estabelecidas na própria Lei 12.619/12, reiterando os
termos do artigo 5, XIII446
, da Constituição Federal) e que exerçam a atividade
mediante vínculo empregatício, seja no transporte rodoviário de passageiros, seja no
444
Decreto-Lei 4.657/42. Art. 1º Salvo disposição contrária, a lei começa a vigorar em todo o País, 45(quarenta e cinco) dias depois de oficialmente publicada”). 445
Algumas dessas condições para o exercício de atividade laboral de motorista para transporte de passageiros e de cargas encontram-se no Código de Trânsito Brasileiro (Lei 9.503/97), como se verifica, por exemplo, do artigo 145 do referido Código (que exige condições para a habilitação necessária ao transporte coletivo e passageiros e de produtos perigosos). 446
Constituição Federal. “Art. 5º... XIII- é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer;”
232
transporte de cargas, enquadrando-se o “empregado motorista rodoviário com
atividade laboral eminentemente externa”, que é objeto desta tese, à aplicabilidade da
lei sob análise.
O artigo 2º da Lei 12.619/12 assegura direitos aos motoristas profissionais,
como acesso gratuito a programas de formação e aperfeiçoamento profissional,
atendimento profilático, terapêutico e reabilitador, especialmente em relação às
enfermidades que mais os acometam, não responder perante o empregador por
prejuízo patrimonial decorrente da ação de terceiro, ressalvado o dolo ou a desídia do
motorista no cumprimento de suas funções, e receber proteção estatal contra ações
criminosas que lhes sejam dirigidas no efetivo exercício da profissão.
Acrescenta a referida Lei os artigos 235-A a 235-H, dando origem ao
Capítulo III-A (“Da condução de veículos por motoristas profissionais”) do Título III
(“ Das normas especiais de Tutela do Trabalho”) da Consolidação das Leis do
Trabalho, além lhe acrescentar o parágrafo 5º ao seu artigo 71447
.
Também alterado fora o Código de Trânsito Brasileiro (Lei 9.503/97),
acrescentando-lhe os artigos 67-A a 67-C (que tratam de regras sobre o tempo de direção
dos motoristas profissionais rodoviários), o parágrafo único ao seu artigo 145 (impondo,
como requisito para habilitação necessária à condução coletiva de passageiros, de escolares,
de emergência ou de produto perigoso, a participação em curso especializado nos termos da
normatização do CONTRAN), o inciso XXIII ao seu artigo 230 (considerando infração
gravíssima o desrespeito à regra da proibição do motorista profissional, no exercício de seu
labor, dirigir por mais de 4(quatro) horas ininterruptas, à exceção de situações extraordinárias
em que tal limite pode ser prorrogado por até 1(uma) hora).
Especificamente no que tange à jornada de trabalho do motorista
rodoviário, determina a lei que:
447
O artigo 71, parágrafo 5º, da CLT prevê a possibilidade do intervalos intrajornada de que trata o seu caput e e parágrafo 1º sejam fracionados quando compreendido entre o término da primeira hora trabalhada e o início da última hora trabalhada, desde que previsto em convenção ou acordo coletivo de trabalho, ante a natureza do serviço e em virtude das condições especiais do trabalho a que são submetidos estritamente os motoristas, cobradores, fiscalização de campo e afins nos serviços de operação de veículos rodoviários, empregados no setor de transporte coletivo de passageiros, mantida a mesma remuneração e concedidos intervalos para descanso menores e fracionados ao final de cada viagem, não descontados da jornada.
233
a) a jornada diária de trabalho será estabelecida na Constituição Federal ou mediante
instrumentos de acordos ou convenção coletiva de trabalho, conforme artigo 235-A,
acrescido pela Lei em comento. Obviamente que, sob pena de inconstitucionalidade
(frente ao disposto no artigo 7º, XIII e XIV, da Constituição Federal), o instrumento
produto da negociação coletiva de trabalho não poderá aumentar a jornada laboral
normal além daquela fixada constitucionalmente, estando autorizado somente a reduzi-
la. No mais, como regra, mantém-se como jornada normal dos motoristas aquela
prevista no artigo 7º, XIII, da Constituição Federal (não superior a oito horas diárias e
quarenta e quatro horas semanais), salvo hipótese de regime de compensação de
horários e turno ininterrupto de revezamento (artigo 7º, XIV, da Constituição Federal);
b) a prorrogação da jornada de trabalho é limitada a 2(duas) horas extras diárias,
conforme recém-inserido artigo 235-C, parágrafo 1º, da CLT, que deverão ser
indenizadas com o adicional constitucional ou aquele pactuado em negociação coletiva
(art. 235-C, §4º, da CLT), salvo compensação de horas de trabalho que somente
poderá ser estabelecida através de instrumento coletivo (afastando-se a possibilidade
de fixação da compensação através acordo individual expresso ou tático) na forma do
artigo 235-C, §6º, da CLT, e caso de força maior, quando a duração da jornada poderá
ser elevada pelo tempo necessário para sair da situação extraordinária e chegar a um
local seguro ou ao seu destino, conforme artigo 235-E, §9º, da CLT;
c) a limitação do conceito de “período em que o empregado esteja à disposição do
empregador, aguardando ou executando ordens” previsto no artigo 4º, caput,da
CLT448
, excluindo do mesmo o intervalo para refeição (o que já ocorria na forma do
artigo 71,§2º, da CLT449
), repouso, espera e descanso;
d) criação de momentos específicos de exercício da atividade do motorista, quais
sejam:
448
CLT. Art. 4º. “Considera-se como de serviço efetivo o período em que o empregado esteja à disposição do empregador, aguardando ou executando ordens, salvo disposição especial expressamente consignada...” 449
CLT. Art. 71...§2º. “Os intervalos de descanso não serão computados na duração do trabalho.”
234
“tempo de direção”: que, na forma do artigo 67-A do Código de Trânsito Brasileiro,
introduzido pela Lei 12.619/12, é o período em que o motorista está efetivamente ao
volante de um veículo em curso entre a origem e seu destino. Esse tempo não poderá
ser superior a 4(quatro) horas, salvo situações excepcionais que não comprometam a
segurança rodoviária, quando então tal limite pode se prorrogar por mais 1(uma) hora;
“Intervalo entre tempos de direção”: conforme §1º do artigo 67-A do Código de
Trânsito Brasileiro e artigo 235-D, I, da CLT, deverá o motorista gozar de intervalo
mínimo de 30(trinta) minutos de descanso a cada 4(quatro) horas de tempo de direção,
sendo facultado o fracionamento do tempo de direção e do intevalo de descanso, desde
que não completadas 4(quatro) horas contínuas no exercício da condução. Tais
intervalos não serão considerados como tempo à disposição do empregador;
“Intervalo para refeição e descanso”: conforme artigo 235-D, II, da CLT, deverá o
motorista gozar de intervalo intrajornada para refeição de 1(uma) hora, que, conforme
§5º do artigo 71 da CLT, poderão ser fracionados em intervalos menores ao final de
cada viagem, não descontados da jornada. Não ocorrendo o fracionamento, o intervalo
para refeição não será considerado como tempo à disposição do empregador, conforme
artigo 235-C, §2º, da CLT;
“Tempo de Espera”: são, conforme artigo 235-C, §8º, da CLT, as horas que
excederem à jornada normal de trabalho do motorista de transporte rodoviário de
cargas que ficar aguardando para carga ou descarga do veículo no embarcador ou
destinatário ou para fiscalização da mercadoria transportada em barreiras fiscais ou
alfandegárias. Tal tempo de espera não é computado como horas extras, sendo
indenizado, na forma do artigo 235-C, §9º, com base no salário-normal acrescido de
30%(trinta por cento);
“Tempo de reserva”: trata-se, conforme artigo 235-E, §6º, da CLT, do tempo que
exceder a jornada normal de trabalho em que o motorista estiver em repouso no
veículo em movimento, quando o empregador adotar revezamento de motoristas
trabalhando em dupla no mesmo veículo. O “tempo de reserva” será remunerado à
razão de 30%(trinta por cento) da hora normal;
235
“Tempo no interior de veículo transportado”: é o período de tempo em que o
motorista tem que acompanhar o veículo transportado por qualquer meio onde ele siga
embarcado. Caso a embarcação disponha de alojamento para o gozo do intervalo de
repouso diário previsto no artigo 235-C, §3º, da CLT (intervalo no importe de
11(onze) horas a cada 24(vinte e quatro) horas), o “tempo no interior do veículo
transportado” não será considerado como jornada de trabalho, a não ser que exceda às
11(onze) horas de que trata o artigo 235-C, §3º, da CLT.
d) Possibilidade de manutenção de sistema de 12(doze) horas de trabalho por 36(trinta
e seis) horas de descanso, desde que haja previsão em instrumento coletivo, em razão
da especificidade do transporte, da sazonalidade ou de característica que o justifique,
conforme artigo 235-F da CLT;
e) Na forma do artigo 2º, V, da Lei 12.619/12, é direito dos motoristas profissionais ter
a jornada de trabalho e o tempo de direção controlados de maneira fidedigna pelo
empregador, que poderá valer-se de anotação em diário de bordo, papeleta ou ficha de
trabalho externo, ou de meios eletrônicos idôneos instalados nos veículos, a critério do
empregador. A inclusão de “meios eletrônicos” como meio idôneo de controle da
jornada de trabalho é resultado não só da mudança de regime de visibilidade, como
também dos termos do parágrafo único do artigo 6º da CLT (introduzido pela Lei
12.551/11) que formalizou o uso de “meios telemáticos e informatizados” no exercício
da fiscalização e do controle das atividades laborais, equiparando-os “aos meios
pessoais e diretos de comando, controle e supervisão do trabalho alheio. Trataremos,
no item “10” deste Capítulo IV, da relação entre os sistemas AVL e o artigo 2º, V, da
Lei 12.619/2012.
2 Análise histórica do enunciado prescritivo constante do inciso I do artigo 62 da
CLT
Quando do início de vigência da Consolidação das Leis do Trabalho
(Decreto-Lei no. 5.452, de 1º de maio de 1943) tinha originalmente o artigo 62 a
seguinte redação:
236
CLT. Art. 62. Não se compreendem no regime deste Capítulo:
a) os vendedores pracistas, os viajantes e os que exercerem, em geral,
funções de serviço externo não subordinado a horário, devendo tal
condição ser, explicitamente, referida na carteira profissional e no
livro de registo de empregados, ficando-lhes de qualquer modo
assegurado o repouso semanal;
b) os vigias, cujo horário, entretanto, não deverá exceder de dez horas,
e que não estarão obrigados à prestação de outros serviços, ficando-
lhes, ainda, assegurado o descanso semanal;
c) os gerentes, assim considerados os que investidos de mandato, em
forma legal, exerçam encargos de gestão, e, pelo padrão mais elevado
de vencimentos, só diferenciem aos demais empregados, ficando-lhes,
entretanto, assegurado o descanso semanal;
d) os que trabalham nos serviços de estiva e nos de capatazia nos
portos sujeitos a regime especial.
Em 17 de maio de 1985 foi publicada a Lei Federal Ordinária 7.313/85, que
suprimiu a original alínea “b” da redação original, determinando a renumeração das
demais alíneas do dispositivo que, então, passou a ter a seguinte redação:
CLT. Art. 62. Não se compreendem no regime deste Capítulo:
a) os vendedores pracistas, os viajantes e os que exercerem, em geral,
funções de serviço externo não subordinado a horário, devendo tal
condição ser, explicitamente, referida na carteira profissional e no
livro de registo de empregados, ficando-lhes de qualquer modo
assegurado o repouso semanal;
b) os gerentes, assim considerados os que investidos de mandato, em
forma legal, exerçam encargos de gestão, e, pelo padrão mais elevado
de vencimentos, só diferenciem aos demais empregados, ficando-lhes,
entretanto, assegurado o descanso semanal;
c) os que trabalham nos serviços de estiva e nos de capatazia nos
portos sujeitos a regime especial.
237
Em 27 de dezembro de 1994 foi publicada a Lei Federal Ordinária 8.966/94
que, revogando a redação anterior do artigo 62 da CLT, inaugurou nova redação, com
o seguinte conteúdo:
CLT. Art. 62. Não são abrangidos pelo regime previsto neste
Capítulo:
I- os empregados que exercem atividade externa incompatível com a
fixação de horário de trabalho, devendo tal condição ser anotada na
Carteira de Trabalho e Previdência Social e no registro de
empregados;
II- os gerentes, assim considerados os exercentes de cargos de gestão,
aos quais se equiparam, para efeito do disposto neste artigo, os
diretores e chefes de departamento ou filial.
Parágrafo único. O regime previsto neste Capítulo será aplicável aos
empregados mencionados no inciso II deste artigo, quando o salário
do cargo de confiança, compreendendo a gratificação de função, se
houver, for inferir ao valor do respectivo salário efetivo acrescido de
40%(quarenta por cento).
Do quanto acima exposto, importante é a constatação de que o não
enquadramento dos “trabalhadores externos” no regime jurídico de controle de jornada
de trabalho e pagamento de horas extraordinárias sempre fez parte do conteúdo do
artigo 62 da CLT, desde o seu nascedouro, a despeito das modificações legislativas
realizadas em 1985 e 1994, havendo, no entanto, com a redação lavrada pela Lei
8.966/94, a qualificação da atividade externa como “incompatível com a fixação de
horário” em substituição à anterior expressão “não subordinado a horário”.
A modificação do qualificativo do trabalho externo para efeito de não
enquadramento no regime jurídico de horas extras (de “não subordinado a horário”
para “incompatível com a fixação de horário”) gerou uma maior vinculação ao
“regime de visibilidade”. Mais especificamente, por “não subordinado a horário”
podemos compreender situação em que, independentemente do motivo, a jornada de
trabalho do empregado não é controlada pelo empregador, ainda que fosse esta
238
controlável, fiscalizável, considerando-se como “direito potestativo”450
do empregador
a decisão de controlar ou não a jornada de trabalho. Nessa qualificação histórica do
“trabalhador externo”, a possibilidade ou impossibilidade de fiscalização e controle da
jornada de trabalho não é uma referência para o enquadramento do caso concreto ao
dispositivo legal de exceção. Já sob o manto do adjetivo “incompatível com o controle
de jornada”, o foco do enquadramento normativo afasta-se do exercício de mero
direito potestativo do empregador e passa a ser a possibilidade ou impossibilidade
fática do empregador fiscalizar e controlar a jornada realizada externamente pelo
empregado, daí a absoluta necessidade de compatibilidade do conteúdo normativo com
o regime de visibilidade (valor incidente) cultuado pela sociedade no momento da
subsunção normativa.
3 A elasticidade semântica do enunciado contido no artigo 62, I, da CLT e as
hipóteses interpretativas
Como afirma Gregorio Robles, o texto jurídico é um texto prescritivo, o que
significa, sobretudo, que o texto jurídico está dotado, como uma totalidade, de uma
função pragmática determinada que o converte num conjunto de mensagens, cujo
sentido intrínseco é dirigir, é orientar, é regular as ações humanas451
. Assim, não se
poderia iniciar o procedimento de interpretação do artigo 62, I, da CLT, senão através
de sua análise gramatical que tem a característica de ser ponto de início da atividade
interpretativa, valendo transcrição do pensamento de Tercio Sampaio Ferraz Junior
sobre tal técnica interpretativa:
Quando se enfrenta uma questão léxica, a doutrina costuma falar em
interpretação gramatical. Parte-se do pressuposto de que a ordem das
palavras e o modo como elas estão conectadas são importantes para
obter-se o correto significado da norma. Assim, dúvidas podem existir
quando a norma conecta substantivos e adjetivos ou usa pronomes
450
A expressão “direito potestativo” é aqui tratada sob o conceito de direito subjetivo sobre o qual não cabe contestação, caracterizando-se como prerrogativa jurídica de impor a outrem, unilateralmente, a sujeição ao seu exercício. 451
ROBLES, Gegorio. O direito como texto: quatro estudos de teoria comunicacional do direito. Tradução de Roberto Barbosa Alves. Barueri: Manole, 2005, p. 29.
239
relativos. Ao valer-se da língua natural, o legislador está sujeito a
equivocidades que, por não existirem nessas línguas regras de rigor
(como na ciência), produzem perplexidades... É óbvio que as
exigências gramaticais da língua, por si, não resolvem essas dúvidas.
A análise das conexões léxicas, por uma interpretação dita gramatical,
não se reduz, pois, a meras regras da concordância, mas exige regras
de decidibilidade... No fundo, pois, a chamada interpretação
gramatical tem na análise léxica apenas um instrumento para mostrar e
demonstrar o problema, não para resolvê-lo452
.
Procedendo-se à técnica gramatical de interpretação do enunciado
prescritivo constante do inciso I do artigo 62 da CLT (CLT. Art. 62. Não são abrangidos
pelo regime previsto neste Capítulo: os empregados que exercem atividade externa
incompatível com a fixação de horário de trabalho, devendo tal condição ser anotada na
Carteira de Trabalho e Previdência Social e no registro de empregados;), explorando-se, em
especial, a pluralidade semântica dos termos “incompatível” e “fixação de horário de
trabalho” extraem-se as seguintes hipóteses interpretativas:
a) Estão afastados do direito à percepção de eventuais horas extraordinárias e adicional
noturno todos os empregados que exercem atividade externamente (fora do território
físico do estabelecimento do empregador) e não se encontram submetidos a controle
de horário, independentemente da possibilidade ou não de efetivo controle de jornada,
vez que, em relação à atividade externa, a realização de fiscalização da jornada de
trabalho é faculdade do Empregador;
b) Estão afastados do direito de percepção de eventuais horas extraordinárias e
adicional noturno todos os empregados que exercem atividade externamente (fora do
território físico do estabelecimento do empregador), sem que haja a possibilidade
concreta do empregador realizar, in loco (isto é, fisicamente, através da interação
direta entre a imagem real do ambiente de trabalho e o órgão da visão do Empregador
452
FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 5ª edição. São Paulo: Atlas, 2007, p. 289-290.
240
ou de preposto seu) e a qualquer momento, a fiscalização da atividade laboral
desempenhada pelo Empregado;
c) Estão afastados do direito de percepção de eventuais horas extraordinárias e
adicional noturno todos os empregados que exercem atividade externamente (fora do
território físico do estabelecimento do empregador), sem que haja a possibilidade
concreta do Empregador realizar, a qualquer momento, in loco (isto é, fisicamente,
através da interação direta entre a imagem real do ambiente de trabalho e o órgão da
visão do Empregador ou de preposto seu) ou através de sistemas que ofereçam “espaço
ampliado” que permitam não só a identificação do empregado no exercício de sua
atividade laboral, como também a verificação da qualidade e da quantidade do serviço,
a transmissão de ordens e a verificação do cumprimento de ordens.
Apresentadas as hipóteses interpretativas do dispositivo em análise, é de se
apreciar cada uma dessas hipóteses frente às demais técnicas e princípios
interpretativos.
4 Da relação entre a norma jurídica oriunda do artigo 62, I, da CLT e os Direitos
Fundamentais contidos no artigo 7º, IX e XVI, da Constituição Federal
Como concluído no item 2.4.2 do Capítulo I desta tese, são Direitos
Fundamentais de Segunda Geração não só os direitos trabalhistas mínimos contidos
nos incisos do artigo 7º da Constituição Federal, como também as demais normas
jurídicas que regulam os direitos mínimos dos trabalhadores na relação de emprego
constantes da legislação infraconstitucional. Tem-se, pois, que a norma jurídica
contida no artigo 7º, XVI, da Constituição Federal453
, que assegura como direito de
todos os trabalhadores a percepção de horas extras (com um adicional de, no mínimo,
cinquenta por cento) na hipótese de prestação labora em excesso ao módulo 453
Constituição Federal. Art. 7º. São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: ... XVI- remuneração do serviço extraordinário superior, no mínimo, em cinquenta por cento à do normal;”
241
diário/semanal normal, é um Direito Fundamental, possuindo, por corolário, as
características de universalidade, indivisibilidade e interdependência, historiciedade e
unidade, bem como se submete às técnicas de interpretação típicas de tal gênero de
normas jurídicas.
Dentre as limitações no procedimento de interpretação de enunciados
prescritivos introdutores de Direitos Fundamentais, já concluímos, na alínea “a” do
item 2.4.3 do Capítulo I desta tese, que se deve “excluir hipóteses interpretativas que
criem limitação subjetiva à aplicabilidade da norma jurídica, destinando a aplicação da
norma jurídica somente a determinados sujeitos, excluindo a aplicação sobre outros
sujeitos que se encontrem na mesma situação objetiva”, garantindo-se, dessa forma, a
“universalidade” do direito fundamental.
Ora, o fato objetivo gerador do direito de percepção de horas extras ( que,
na verdade, é o antecedente454
da norma jurídica contida no artigo 7º, XVI, da
Constituição Federal) é a prestação de atividade laboral em excesso (em quantidade
superior aos limites legais tidos como “normais”), sendo, a priori, equivocado o
afastamento de tal Direito Fundamental a determinados sujeitos que, objetivamente,
praticaram o antecedente da norma jurídica sob análise. Merece igual raciocínio a
norma jurídica contida no artigo 7º, IX, da Constituição Federal455
, que assegura o
direito a adicional noturno.
O artigo 62, I, da CLT, ao prever o afastamento dos Empregados que
“exercem atividade externa incompatível com a fixação de horário de trabalhos” do regime
jurídico do Capítulo II (“Da duração do trabalho”) do Título I (“Das normas gerais de tutela
do trabalho”) da Consolidação das Leis do Trabalho, que contém os artigos 57 a 75, cria
exceção à universalidade dos Direitos Fundamentais à percepção de horas extraordinárias(art.
7º, XVI, da Constituição Federal) e de adicional noturno (art. 7º, IX, da Constituição Federal),
vez que os artigos 58 a 61 e 73, de aplicabilidade afastada na hipótese do artigo 62, I, da CLT,
454
Sobre o conceito de “antecedente da norma jurídica”, remete-se o Leitor ao item “1” do Capítulo I desta tese. 455
Constituição Federal. Art. 7º. São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: ...IX- remuneração do trabalho noturno superior à do noturno;”
242
referem-se, respectivamente, ao regime de jornadas normal e extraordinária e ao trabalho
noturno, respectivamente.
O enunciado prescritivo contido no artigo 62, I, da CLT enquadra-se na classe dos
“textos legais infraconstitucionais introdutores de normas jurídicas limitadoras da aplicação
objetiva de Direitos Fundamentais”, razão pela qual, como já demonstrado no item 2.4.3 do
Capítulo I desta tese, frente à universalidade e à busca da máxima efetividade dos Direitos
Fundamentais, deve ser interpretado restritivamente, limitando a idoneidade das hipóteses
interpretativas (surgidas frente à elasticidade semântica do texto normativo) àquelas que
indiquem a não aplicação, num caso concreto específico, de determinado Direito Fundamental
em razão exclusiva de efetiva impossibilidade concreta de verificação quantitativa
(constatação da quantidade) e/ou verificação quantitativa (constatação da qualidade) de fatos
do mundo fenomênico capazes de se enquadrarem no antecedente de uma norma jurídica
introdutora de Direito Fundamental.
Especificamente em relação ao artigo 62, I, da CLT, somente há de se considerar,
para efeito da construção da norma jurídica, hipóteses interpretativas que evidenciem, no
mundo fenomênico, a efetiva impossibilidade de controle da jornada de trabalho (isto é, a
impossibilidade efetiva, em concreto, de verificação quantitativa do fato do fato do mundo
fenomênico no caso, tempo de prestação de atividade laboral no exercício das obrigações
inerentes à relação de emprego – que preenche o antecedente da norma jurídica introdutora do
Direito Fundamental de percepção de horas extras). Fixamos, assim, entendimento de que
qualquer norma jurídica construída a partir do enunciado prescritivo do artigo 62, I, da CLT
que se baseie em hipótese interpretativa que não se enquadre como idônea (na forma acima
apontada) será materialmente inconstitucional.
5 Das hipóteses interpretativas do artigo 62, I, da CLT frente ao princípio in
dubio pro operario
Como já concluído na alínea “c” do item 4 do Capítulo I desta tese, o
enunciado prescritivo contido no artigo 62, I, da CLT enquadra-se à classe dos
enunciados prescritivos de Direito do Trabalho, motivo pelo qual à interpretação do
mesmo devem incidir os princípios interpretativos típicos do Direito do Trabalho,
especialmente o princípio in dubio pro operario.
243
Portanto, frente às várias hipóteses interpretativas que podem ser extraídas
do artigo 62, I, da CLT, cujo rol se encontra no item “3” deste Capítulo IV da tese,
deve-se preferir a interpretação mais favorável ao trabalhador que, in casu, é a
hipótese interpretativa “c” do item 3 deste Capítulo (isto é, estão afastados do direito de
percepção de eventuais horas extraordinárias e adicional noturno todos os empregados que exercem
atividade externamente (fora do território físico do estabelecimento do empregador), sem que haja a
possibilidade concreta do Empregador realizar, a qualquer momento, in loco (isto é, fisicamente,
através da interação direta entre a imagem real do ambiente de trabalho e o órgão da visão do
Empregador ou de preposto seu) ou através de sistemas que ofereçam “espaço ampliado” que
permitam não só a identificação do Empregado no exercício de sua atividade laboral, como também a
verificação da qualidade e da quantidade do serviço, a transmissão de ordens e a verificação do
cumprimento de ordens), vez que se trata da hipótese mais restritiva à limitação de
aplicabilidade das normas jurídicas geradoras de direitos à percepção de horas extras e
de adicional noturno.
6 Da natureza jurídica do poder empregatício e a interpretação do artigo 62, I, da
CLT
Na forma do raciocínio desenvolvido no item “1.2” do Capítulo II desta
tese, frente à uma Constituição que impõe a dignidade da pessoa humana e os valores
sociais do trabalho e da livre iniciativa como fundamentos do Estado (art. 1º, III e IV,
da Constituição Federal), que fixa como objetivos fundamentais do Estado a
construção de uma “sociedade livre, justa e solidária”, a erradicação da pobreza e da
marginalização e a redução das desigualdades sociais e regionais (art. 3º, I e III, da
Constituição Federal) e exige que a ordem econômica seja fundada na valorização do
trabalho humano juntamente com a livre iniciativa, observando, entre outros
princípios, a função social da propriedade e a redução das desigualdades regionais e
sociais (art. 170, caput e incisos III e VII, da Constituição Federal), não há como se
conceber a existência de poder empregatício que garanta a exclusividade de imposição
de vontade de somente uma das partes da relação jurídica de emprego para que a
referida parte privilegiada, no exercício de seu exclusivo interesse, escolha os efeitos
jurídicos a serem alcançados na manutenção da relação de emprego (daí a
244
impossibilidade de se admitir as teorias do direito potestativo e do direito subjetivo).
Também absolutamente contraditória com o texto constitucional a concepção de poder
empregatício que viabilizasse a relação empregador-empregado sob enfoque de
propriedade ou senhorio (não se admitindo, pois, a teoria do status jurídico).
Assim, frente às exigências do arcabouço constitucional vigente no Estado
brasileiro, somente as teorias do direito-função e da relação jurídica complexa são
capazes de prosperar como viáveis, motivo pelo qual, na interpretação do enunciado
prescritivo contido no artigo 62, I, da CLT, serão tais teorias consideradas na
valoração da distribuição de deveres e obrigações das partes da relação jurídica
empregatícia.
Aplicando-se o raciocínio acima exposto frente às hipóteses interpretativas
do artigo 62, I, da CLT elencadas no item “3” deste Capítulo IV, não há como se
admitir a prevalência da hipótese interpretativa descrita na letra “a” do citado item
(Estão afastados do direito à percepção de eventuais horas extraordinárias e adicional noturno
todos os empregados que exercem atividade externamente -fora do território físico do
estabelecimento do empregador- e não se encontram submetidos a controle de horário,
independentemente da possibilidade ou não de efetivo controle de jornada, vez que, em
relação à atividade externa, a realização de fiscalização da jornada de trabalho é faculdade do
Empregador), vez que baseada na teoria do poder empregatício como direito potestativo
que, como já apreciamos, incompatibiliza-se com o arcabouço Constitucional
brasileiro.
7 Aplicação do princípio da unidade do Direito Positivo. Necessidade de
interpretação do inciso I do artigo 62 da CLT frente ao conteúdo das demais
normas jurídicas vigentes
Já tivemos a oportunidade de, em estudo anterior já publicado456, afirmar
que o direito positivo é um sistema, um conjunto de elementos que se inter-relacionam
456
HERMIDA, Denis Domingues. As normas de proteção mínima da integridade física do trabalhador – e a sua proteção nos direitos individual e coletivo do trabalho. São Paulo: LTr, 2007.
245
e se harmonizam em razão de uma determinada referência, de um determinado valor.
Analisado como um sistema, o Direito Positivo abrange, como elementos
constitutivos, as normas jurídicas que se inter-relacionam não só pelo aspecto formal,
ante a obediência às regras de construção normativa, como também pelo aspecto
material, ante o respeito à regra da hierarquia das fontes do direito, onde aparece,
como suprema, a Constituição Federal457, conforme princípio da supremacia da
Constituição458.
E são exatamente essas necessárias interrelação e harmonização que nos
impedem de realizar uma interpretação levando em consideração tão somente o
aspecto gramatical do texto normativo, tão somente a letra crua e isolada do texto
normativo459. Frente a tais fundamentos, e na forma do princípio interpretativo da
unidade da Constituição460, passamos a fazer uma análise sistemática dos termos do
inciso I do artigo 62 da Constituição Federal, levando em consideração não só as
normas constitucionais como também as normas infraconstitucionais de potencial
influência na atividade interpretativa do citado dispositivo ante o tema do mesmo.
7.1 Os “Valores Sociais do Trabalho” e a “Dignidade da Pessoa Humana” como
fundamentos da República Federativa do Brasil e, consequentemente, das normas
jurídicas vigentes
Determina o artigo 1º da Constituição Federal que “A República Federativa
do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito
457
HERMIDA, Denis Domingues. As normas de proteção mínima da integridade física do trabalhador – e a sua proteção nos direitos individual e coletivo do trabalho. São Paulo: LTr, 2007, p. 176.
458
Determina o princípio da supremacia da Constituição que, pelo fato da Constituição ser a norma superior do ordenamento jurídico, não se dá conteúdo à Constituição a partir das leis, mas destas a partir da Constituição. A forma a ser adotada para a descrição de conceitos deve operar sempre “de cima para baixo”, o que serve para dar efetiva segurança às conceituações jurídicas. 459
HERMIDA, Denis Domingues. Op. Cit., p. 176. 460
Por princípio da Unidade da Constituição entende-se a obrigação do intérprete de considerar a Constituição na sua globalidade e de procurar harmonizar os espaços de tensão existentes entre as normas constitucionais a concretizar. Trata-se de uma consequência de uma visão sistêmica das normas constitucionais, em que todas elas são elementos de um mesmo sistema, harmonizando-se e se inter-relacionando.
246
Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (...)
III – a dignidade da pessoa humana; IV- os valores sociais do trabalho e da livre
iniciativa;...”.
Não se pode deixar de destacar a importância da “dignidade da pessoa
humana” e dos “valores sociais do trabalho” na estrutura constitucional do Estado
brasileiro, definido como Estado Democrático de Direito pelo artigo 1º acima
transcrito parcialmente, que aponta tais institutos como uns dos fundamentos da
República Federativa do Brasil. A qualidade de “fundamento” do Estado brasileiro
somente pode, verdadeiramente, ser valorizada quando buscamos o real significado do
termo “fundamento” que, segundo Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, é “base,
alicerce, razões em que se funda, razão, motivo”461. Assim, não há como se admitir,
seja política, seja juridicamente, qualquer ato jurídico462 praticado no Brasil que não
cumpra o requisito de reconhecer e proteger a dignidade da pessoa humana e os
valores sociais do trabalho e, partindo-se do princípio de que o funcionamento estatal
não depende exclusivamente dos atos da administração pública, todos os atos dos
cidadãos, em especial os caracterizados pela intersubjetividade (onde age o Direito),
devem, da mesma forma, zelar pela dignidade da pessoa humana e pelos valores
sociais do trabalho463. É de se acrescentar que a Constituição Federal, no caput de seu
461
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Minidicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 3ª edição, 1993, p. 413.
462
Sobre o conceito de ato jurídico, Marcos Bernardes de Mello afirma existirem os conceitos lato sensu e stricto sensu de ato jurídico, aquele como sendo “o fato jurídico cujo suporte fático tenha como cerne uma exteriorização consciente da vontade, dirigida a obter um resultado juridicamente protegido ou não-proibido e possível” e este (stricto sensu) como “fato jurídico que tem por elemento nuclear do suporte fático manifestação ou declaração unilateral de vontade cujos efeitos jurídicos são prefixados pelas normas jurídicas e invariáveis, não cabendo às pessoas qualquer poder de escolha da categoria jurídica ou de estruturação do conteúdo das relações jurídicas respectivas (Cf. MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico. 6ª edição. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 115 e 135). Custódio da Piedade Ubaldino Miranda esclarece que quando se falar em ato jurídico sem qualquer outra designação complementar, tanto se pode querer significar uma simples atuação da vontade, um comportamento de que resultam certos efeitos jurídicos por exclusiva obra da lei, ainda que o seu autor os não tenha querido ou previsto, como se pode querer significar o negócio jurídico, que consiste numa declaração que exterioriza um certo conteúdo de vontade e mediante a qual o seu autor se propõe obter determinados efeitos que a lei dota de juridicidade (Cf. MIRANDA, Custódio da Piedade Ubaldino. São Paulo: Atlas, 1991, p. 21-22). Esclarece-se também que nesse trabalho utilizados o termo ato jurídico tanto como ato jurídico lato sensu quanto como ato jurídico stricto sensu ou negócio jurídico, envolvendo não só os atos de particulares, como também os estatais, inclusive aqueles referentes à produção normativa. 463
HERMIDA, Denis Domingues. As normas de proteção mínima da integridade física do trabalhador – e a sua proteção nos direitos individual e coletivo do trabalho. São Paulo: LTr, 2007, p. 41 e 42.
247
artigo 170, abaixo transcrito, insere a “valorização do trabalho humano”, juntamente
com a “livre iniciativa” como fundamentos da ordem econômica nacional.
CF/88. Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do
trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos
existência digna, conforme os ditames da justiça social...
E, assim, claro que tais fundamentos são valores que devem ser
considerados na interpretação dos enunciados prescritivos vigentes no direito positivo
brasileiro. Passamos a seguir, de forma específica, a apreciar a dignidade da pessoa
humana e os valores sociais do trabalho, encontrando, de forma objetiva, o
significado de cada um deles para posterior aplicação na interpretação do atual
enunciado do artigo 62, I, da CLT.
7.1.1 A Dignidade da Pessoa Humana
Em nossa pesquisa intitulada “O direito à vida como limitação material à
negociação coletiva de trabalho” desenvolvida em sede de mestrado e publicada sob o
título “As normas de proteção mínima da integridade física do trabalhador – e a sua
proteção nos direitos individual e coletivo do trabalho”464, já desenvolvemos estudo
buscando o significado de tal princípio e a sua aplicabilidade interpretativa, apontando
a seguir os dados por nós coletados e as conclusões resultantes.
A inclusão do princípio da dignidade da pessoa humana nas Constituições é
tendência que tomou força no período pós-Segunda Guerra Mundial como forma de
responder às atrocidades nazistas que até hoje marcam a consciência humana,
reconhecendo o ser humano como o centro e o fim do direito. Essa informação
histórica é bastante relevante para constatarmos que a proteção da dignidade da pessoa
humana surge como uma resposta ao estigma da destruição humana patrocinada pelo
nazismo, que influenciará a conceituação do princípio em discussão. Ganha vulto no
mundo a importância da pessoa humana – expressão que melhor evoca os valores
464
HERMIDA, Denis Domingues. As normas de proteção mínima da integridade física do trabalhador – e a sua proteção nos direitos individual e coletivo do trabalho. São Paulo: LTr, 2007.
248
éticos de que os temos indivíduo, cidadão, homem – como categoria filosófica porque
muitas vezes é o próprio valor do ser humano que está sendo posto em causa. Assim, a
pessoa humana é hoje considerada como o mais notável, senão raiz, de todos os
valores, devendo por isso mesmo e dentro de uma visão antropocêntrica, ser o objetivo
final da norma jurídica, ser a base do Direito, revelando, assim, critério essencial para
conferir legitimidade a toda ordem jurídica465.
Se de um lado é incontestável a importância da dignidade da pessoa
humana, de outro há que se destacar a abstração que circunda o conceito desse
instituto, principalmente porque o artigo 1º da CF/88, a despeito de introduzi-lo como
fundamento do Estado brasileiro, não apresenta o seu conceito, deixando ao intérprete
essa função. Aliás, esse modelo de omissão é adotado pelos Constituintes de vários
Estados. Para tal constatação, basta leitura do artigo 3º da Constituição da República
Italiana (“Tutti cittadini hanno pari dignitá sociale e sono eguali davante allá
lege...”466), do artigo 1º da Constituição da República Portuguesa (“Portugal é uma
República soberana, baseada, entre outros valores, na dignidade da pessoa humana e
na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e
solidária”), do artigo 1º, item 1, da Constituição Alemã (“Die würde des Menschen ist
unantastbar. Si zu achten und zu scützen is verpflichtung aller staalichen Gewalt”467) e
do artigo 1ª, item 1, da Constituição Espanhola (“La dignidad de la persona, los
derechos inviolables que le son inherentes, el libre desarrolo de la personalidad, el
respeto a la ley y a los derechos de los demás son fundamento del orden político y de
la paz sociale”468).
465
FAGUNDES JÚNIOR, José Cabral Pereira. Limites da ciência e o respeito à dignidade humana. In: SANTOS, Maria Celeste Cordeiro Leite. Biodireito: ciência da vida, os novos desafios. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 271 .
466
Tradução nossa: “Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são protegidos perante a lei...”. 467
Tradução nossa: “A dignidade do ser humano é intangível. Todos os poderes públicos têm a obrigação de a respeitar e a proteger.” 468
Tradução nossa: “a dignidade da pessoa humana, os direitos invioláveis que lhe são inerentes, o livre desenvolvimento da personalidade, o respeito pela lei e pelos direitos dos outros são fundamentos da ordem política e da paz social.”
249
Nesse sentido, cabe ao intérprete da Constituição a busca do real conteúdo
do princípio da dignidade da pessoa humana, não sendo fácil tal missão ante a
polissemia da expressão. Fernando Ferreira dos Santos apresenta a existência de
3(três) concepções da dignidade da pessoa humana: o individualismo, o
transpersonalismo e o personalismo, com as seguintes características469:
- o individualismo, que se caracteriza pelo entendimento de que cada homem,
cuidando dos seus interesses, protege e realiza, indiretamente, os interesses coletivos.
Seu ponto de partida é, portanto, o indivíduo. Trata-se de uma concepção liberalista
(individualismo burguês), onde os direitos fundamentais seriam inatos e anteriores ao
próprio Estado e impostos como limites à atividade estatal. Por essa concepção,
interpretar-se-á a lei com o fim de salvaguardar a autonomia do indivíduo,
preservando-o da autonomia do Poder Público. Num conflito entre o Indivíduo e o
Estado, privilegia-se o indivíduo.
- o transpersonalismo, que é uma concepção oposta ao individualismo, defendendo que
é realizando o bem de todos que se salvaguardam os interesses individuais. Inexistindo
harmonia espontânea entre o bem do indivíduo e o bem do todo, devem prosperar,
sempre, os valores coletivos. Nega-se, por essa concepção, a pessoa humana como
valor supremo e tem como conseqüência a tendência de, na interpretação do direito,
limitar-se a liberdade em favor da igualdade470.
- o personalismo, que rejeita as concepções individualista e coletivista, negando a
espontaneidade da harmonia entre indivíduo e sociedade. Busca a compatibilização
entre valores individuais e valores coletivos, partindo da distinção entre indivíduo e
pessoa. Se no individualismo exalta-se o homem abstrato, típico do liberalismo-
burguês, no personalismo, o indivíduo “não é apenas uma parte. Como uma pedra-de-
469
SANTOS, Fernando Ferreira dos. Princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. 2001. Disponível em: <http://jusnavegandi.com.br>. Acesso em: 22.jun. 2002.
470
Idem.
250
edifício no todo, ele é, não obstante, uma forma do mais alto gênero, uma pessoa, em
sentido amplo – o que uma unidade coletiva jamais pode ser”471.
Importante, nesse momento, apontarmos uma modificação na nossa forma
de conceber o princípio da dignidade da pessoa humana. Mais especificamente,
quando da apresentação de nossa dissertação472 de mestrado junto ao Programa de Pós-
Graduação Stricto Sensu da PUC/SP, em fevereiro de 2006, entendíamos por uma
concepção de dignidade da pessoa humana concentrada no “individualismo”, como se
verifica do trecho abaixo transcrito, extraído da citada dissertação:
A despeito de opiniões diversas, entendemos que a concepção
individualista é a que melhor se compatibiliza com a dignidade da
pessoa humana prevista na CF/88. Manoel Gonçalves Ferreira Filho
relaciona a dignidade da pessoa humana como o reconhecimento de
que, para o direito constitucional brasileiro, a pessoa humana tem uma
dignidade própria e constitui um valor em si mesmo, que não pode ser
sacrificado a qualquer interesse coletivo473
.
Nesse sentido, o conceito de dignidade da pessoa humana aproxima-
se do direito que cada indivíduo tem de alcançar a própria
“felicidade”, não de simplesmente existir, mas de lhe ser garantida a
busca por uma existência feliz, como explica Luiz Alberto David
Araujo:
A vida em sociedade objetiva deve permitir que os indivíduos
encontrem sua felicidade, seu bem-estar. E, no caso do transexual, a
felicidade só poderá ser conquistada com a cirurgia para a mudança de
sexo, caso seja de seu interesse. Ao analisar os pedidos, portanto, o
Poder Judiciário deve interpretar a Constituição, conforme os
princípios constitucionais, especialmente o fundamento do Estado
Democrático de direito, que tem como objetivo assegurar a dignidade
da pessoa humana.474
471
SANTOS, Fernando Ferreira dos. Princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. 2001. Disponível em: <http://jusnavegandi.com.br>. Acesso em: 22.jun. 2002.
472
HERMIDA, Denis Domingues. O direito à vida como limitação material à negociação coletiva de trabalho. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Dissertação de mestrado apresentada à banca examinadora em 16 de fevereiro de 2006, sob orientação da Dra. Carla Tereza Martins Romar.
473
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Comentários à Constituição do Brasil. Volume I. São Paulo: Saraiva, 1990, p.19.
474
ARAUJO, Luiz Alberto David. A proteção constitucional do transexual. São Paulo: Saraiva, 2003, p.105.
251
Neste momento, em especial frente ao aprofundamento no estudo da Teoria
Tridimensional do Direito, entendemos a concepção “personalista” como a mais
adequada à caracterização da dignidade da pessoa humana. Expliquemos: a dignidade
da pessoa humana enquadra-se, na forma da Teoria Tridimensional, como um “valor”,
sendo que este não tem a sua raiz única e exclusivamente na individualidade exclusiva
de cada ser humano, mas na coletividade. É a interação entre os interesses individuais
e os coletivos que, em última instância, fixa os “valores” que, juntamente com o fato e
a norma, constituirão a experiência jurídica em sua completude. Nesse sentido,
vincular-se um “valor” única e exclusivamente a um interesse individual exclusivo
seria efetivo equívoco, devendo-se construir o conceito de “dignidade da pessoa
humana” a partir da composição entre o individual e o coletivo. Nesse
desenvolvimento do raciocínio, vale transcrição de trecho de estudo realizado por
Viviane Machado de Paiva que, apreciando o princípio da dignidade da pessoa
humana frente ao personalismo destacado por Miguel Reale, conclui que:
É a dignidade que faz do homem um ser acima das coisas, dotado
de consciência racional e moral. Sendo assim, o Estado não pode se
colocar no mesmo plano que o indivíduo, nem limitá-lo aos mesmos
direitos e obrigações. Pois, “o dever resulta da necessidade de dar-se
significação prática ao exercício de um outro direito”475
. Nesse
sentido, o Estado existe em função das pessoas e não as pessoas em
função do Estado. (...)Pelas inúmeras dúvidas que surgem ao tentar-se
individualizar ou coletivizar a essência da dignidade humana é que
Miguel Reale constata a existência de três concepções, quais sejam, o
individualismo, transpersonalismo e personalismo.(...) Na última
concepção, o personalismo, a que melhor se encaixa em nosso
ordenamento jurídico, não existe uma preponderância entre o
indivíduo e o coletivo, e sim o reconhecimento do valor da pessoa
humana. “O indivíduo deve ceder ao todo, até e enquanto não seja
ferido o valor da pessoal, ou seja, a plenitude do homem enquanto
homem”476
. O que vale ressaltar, nesta concepção, é que não existe o
melhor para uma coletividade e nem para um indivíduo sozinho, mas
sim, o valor do indivíduo como pessoa fazendo tudo para uma vida
harmoniosa consigo mesma e com o próximo.
Com tudo isso, chega-se à conclusão que o importante é a
satisfação humana e que “todo ser dotado de vida é indivíduo, isto é:
475
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional. 15ª edição. São Paulo: Saraiva, 1994, p.276. 476
REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 20ª edição. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 279.
252
algo que não se pode dividir, sob pena de deixar de ser”477
. Sendo
assim, o que prevalece é o livre arbítrio que cada indivíduo tem para
saber até onde os direitos do outro não excedem os seus próprios
limites. Pois, a própria dignidade humana é a limitação da vontade.478
7.1.2 Os “Valores Sociais do Trabalho” e a “Valorização do Trabalho Humano”
Como já apontado anteriormente, a valorização do trabalho é identificada
pela Constituição Federal precipuamente em 2(dois) panoramas:
- como fundamento do Estado brasileiro (art. 1º, IV, da CF/88) sob um enfoque social
caracterizado pela expressão “valores sociais do trabalho” e vinculado à necessidade
de composição com os valores da “livre iniciativa”;
- como fundamento da ordem econômica brasileira (art. 170, caput, da CF/88) sob
enfoque individual fundado na expressão “valorização do trabalho humano”.
Nosso foco é tornar, no máximo possível, objetivo o conteúdo desses
valores constitucionais, facilitando a sua aplicação no processo interpretativo-
normativo principalmente em relação ao dispositivo legal que discutimos na presente
pesquisa: o artigo 62, I, da CLT.
Partimos, a fim de alcançar o objetivo traçado, da relação entre “trabalho” e
“ser humano”, abeberando-nos nos ensinamentos de Orlando Teixeira da Costa no
sentido de que o Homem, defrontando-se com a natureza, conseguiu dominá-la para,
aproveitando-se da mesma, alcançar a sua subsistência e a satisfação de suas
necessidades, sendo que essa atividade de domínio do homem sobre a natureza é que
se constitui o “trabalho”. O trabalho, portanto, não passa de uma forma de dominação:
a dominação do homem sobre a natureza. Essa atividade humana importa no dispêndio
de energias e, consequentemente, em cansaço. Para amenizá-lo, o homem associou o
seu esforço ao de outros animais e constatou que de todos os seres vivos aquele que
mais lhe oferecia vantagens no trabalho era o seu semelhante, porque dispunha de 477
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 32ª edição. São Paulo: Malheiros, 2009, p.194.
478
PAIVA, Viviane Machado de. A dignidade da pessoa humana. 2007. Disponível em:<www.jurisway.org.br/v2/dhall.asp?id_dh=405>. Acesso em: 08.out. 2011.
253
raciocínio, daí ter concebido uma estrutura social de dominação para poder satisfazer
às suas necessidades sem o dispêndio de energias próprias, que seriam supridas pela
subjugação de outros homens, e foi nessa manifestação mais primitiva do trabalho
subordinado que se encontra entranhada a etimologia da palavra “trabalho”, oriunda da
raiz latina trabs, trabis, que designava a trave ou carga que se impunha aos escravos
para obrigá-los ao serviço. Os povos mais ligados ao regime da escravidão buscaram
na raiz trabs, trabis, a denominação para o trabalho. Outros povos que associaram
mais freqüentemente a atividade humana à força de animais irracionais, como o
cavalo, o jumento ou o boi, optaram por outra raiz latina – labor, laboris – associada
às atividades nobres, daí labour, em inglês, e lavoro, em italiano479.
Com o advento do cristianismo, portador de mensagem doutrinária de
respeito à dignidade da pessoa humana e de fraternidade universal, começou um lento
processo de aniquilamento da escravidão, apesar dela ter persistido e até se
incrementado com os descobrimentos marítimos. Evoluída a civilização, a
Organização Internacional do Trabalho, através das Convenções 29/1930 e 105/1957 e
das Recomendações 36/1930 e 136/1970, reprimiu o trabalho forçado, principalmente
pela citada Convenção 136/1970, que obrigou os Estados ratificadores a não fazerem
uso de nenhuma forma de trabalho forçado. Assim, hoje a escravidão é
internacionalmente condenada480.
Nos países em que a escravidão foi sendo aniquilada em razão dos escravos
adquirirem aos poucos a qualidade de “pessoa” e, consequentemente, a capacidade de
serem sujeitos de relações jurídicas, surgiu um novo regime de trabalho: a servidão,
caracterizada pela vinculação do servo à terra, não podendo dela ser desapossado, nem
abandoná-la. A condição de servo é hereditária, isto é, determinada pelo nascimento e
se transmite de geração em geração, sujeitando-se os servos aos poderes econômico e
479
COSTA, Orlando Teixeira da. O direito do trabalho na sociedade moderna. São Paulo:Ltr, 1998, p.15. 480
Idem, p. 16 e 17.
254
político do senhor feudal, sendo aqueles uma fonte de rendimento e uma reserva
militar deste481.
Nos meados da Idade Média Européia ocorre a transição para o trabalho
livre no âmbito das corporações de ofício, quando, então, o Homem trabalhador, que
até então trabalhava com exclusividade para o senhor da terra, passa a exercer sua
atividade profissional de forma organizada através de grêmios ou corporações
medievais, que associavam trabalhadores por conta própria e empresários de
trabalhadores por conta alheia, livres. Nesse sistema, a relação de trabalho não se
estabelece entre o trabalhador e o grêmio, mas entre o empresário e o trabalhador,
ambos componentes do grêmio. Com o tempo, as relações de trabalho individual nas
corporações transcenderam para os tipos coletivos de regulamentação, o que ocorreu
por meio do estabelecimento de uma hierarquia profissional e da instituição da
aprendizagem. O contrato de aprendizagem gremial conferia fortes poderes
disciplinares ao mestre sobre o aprendiz. A duração da aprendizagem era longa e, uma
vez concluída, o aprendiz alcançava o grau imediatamente superior, que era o de
oficial, e assim ocorrendo sucessivamente até alcançar o último escalão, que era o de
mestre, somente adquirido depois de rigoroso exame de aptidão482.
A corporação caracterizava-se como um grupo social auto-regulamentado,
vez que estabelecia a própria regulamentação das condições de trabalho. A
regulamentação, entretanto, era baixada pelo mestre e dela não participavam os
oficiais e muito menos os aprendizes. Com o passar do tempo, o caráter autônomo da
regulamentação vai perdendo consistência, à medida que se passa a exigir a sua
aprovação por órgãos públicos. A luta entre as corporações pela garantia de privilégios
levou esses organismos à crise que acabou por extingui-los483. Descreve, ainda,
Orlando Teixeira da Costa, que a gênese mais próxima da atual forma de trabalho
regulada pelo Direito do Trabalho decorreu da invenção da máquina, a ferramenta que
481
COSTA, Orlando Teixeira da. O direito do trabalho na sociedade moderna. São Paulo:Ltr, 1998, p.17. 482
Idem. 483
Idem.
255
era utilizada pelo trabalhador foi substituída pela máquina, daí decorrendo a
concentração dos meios de produção. Ao mesmo tempo em que se operava essa
mudança, a produção aumentava e barateava, desestimulando as atividades meramente
artesanais, o que resultou na privação dos instrumentos de trabalho dos antigos
artesões, pois o custo da maquinaria só se tornou acessível a quem podia dispor de
capital vultoso. Concomitantemente, os proprietários das máquinas só puderam operá-
las recrutando mão-de-obra indispensável. Como, entretanto, essa mão de obra era
abundante, a contratação passou a ser feita preço vil, vez que sujeita às leis da oferta e
da procura, em que o trabalho humano é visto como uma mercadoria. As condições e
os locais de trabalho eram os piores possíveis, o que implicava verdadeira afronta à
dignidade da pessoa humana do trabalhador e, com isso, o nível de vida do obreiro
reduziu-se a níveis nunca antes atingidos. A tudo isso o Estado assistia impassível,
como mero espectador encarregado de manter a ordem quando necessário, pois o seu
papel resumia-se a garantir o livre exercício da economia segundo os padrões liberais
vigentes à época484.
Havia a necessidade de proporcionar uma acomodação, em face da ausência
do Estado para resolver a chamada questão social emergente. Tal processo de
acomodação foi operado pelos próprios interessados, mediante a adoção de
procedimentos negociais capazes de solucionar o conflito existente em termos
razoáveis, e foi dessas negociações que resultaram as primitivas formas de pactuação
laboral coletiva, que acabaram por criar as primeiras normas jurídicas genuinamente
trabalhista, vez que aplicáveis a quem prestasse trabalho subordinado ou a quem o
recrutasse, daí surgindo o Direito do Trabalho. Com isso, estabeleceu-se um modus
vivendi amparado por um preceito ético, que era a melhoria das condições de vida dos
trabalhadores; uma preocupação, caracterizada pela proteção jurídica daqueles que se
apresentavam numa posição extremamente desvantajosa no contexto de uma relação; e
por uma técnica, consubstanciada na superação relativa da inferioridade econômica do
trabalhador, ante a superioridade econômica do patrão, por meio de uma forma de
484
COSTA, Orlando Teixeira da. O direito do trabalho na sociedade moderna. São Paulo:Ltr, 1998, p.18.
256
compensação jurídica, que acabou por esboçar a função essencial do Estado junto às
relações de trabalho485.
É de se afirmar, frente à observação da realidade fática que nos aparece no
mundo atual, que a obtenção dos recursos econômicos necessários para o indivíduo
garantir a sua subsistência, bem como alcançar os seus mais diversos objetivos
materiais, ordinariamente tem como origem: o exercício pelo indivíduo de atividade
econômica em caráter individual ou em sociedade (isto é, sendo detentor dos meios de
produção), a prática de atividade laboral em caráter autônomo, sem vínculo
empregatício (em que, apesar de não ser o indivíduo detentor dos meios de produção,
não há o preenchimento dos requisitos para a caracterização de relação jurídica
empregatícia) ou a manutenção de vínculo empregatício486. O que levará determinado
indivíduo a percorrer uma dessas alternativas de obtenção de recursos materiais serão,
entre outros, as oportunidades que lhe forem oferecidas, a vocação que lhe é inata ou
até mesmo a condição financeira a que se expõe. Tem-se, portanto, que,
independentemente de qualquer caráter enobrecedor do trabalho, o que leva o
indivíduo à sua prática é a necessidade de subsistência, de angariar recursos materiais
que, na sociedade atual, são absolutamente necessários não só à manutenção de sua
existência, mas também ao alcance de uma vida digna.
É esse mesmo trabalho, em especial aquele realizado como objeto de uma
relação jurídica empregatícia (que é a espécie de relação em que se foca esta pesquisa),
que pode ser, em razão da própria subordinação que o caracteriza, instrumento de
afronta à dignidade da pessoa humana do trabalhador. Isso porque, frente ao princípio
da livre iniciativa487 (que também é um dos fundamentos do Estado e da ordem
485
COSTA, Orlando Teixeira da. O direito do trabalho na sociedade moderna. São Paulo:Ltr, 1998, p. 18 e 19. 486
Vínculo de emprego ou relação jurídica empregatícia são aqui considerados, na forma dos artigos 2o e 3o da CLT, como espécie do gênero relação de trabalho e corresponde à prestação de serviço subordinado por uma determinada pessoa, sendo tal elemento (subordinação) indissociável da relação de emprego, não se podendo esquecer dos demais requisitos para a sua formação, isto é, a habitualidade na prestação da atividade laboral, a necessária pessoalidade no exercício das atividades inerentes à relação, além da remuneração. 487
Livre iniciativa é aqui conceituada como a faculdade, daquele que pretende desenvolver ou já desenvolve uma atividade econômica, de não só escolher a atividade a ser realizada, como também de organizar essa atividade da forma que melhor lhe aprouver, obedecendo, é claro, os limites normativos impostos pelo direito pátrio, com o fito de alcançar os melhores resultados possíveis. A livre iniciativa não é absoluta, mas relativa,
257
econômica brasileiros, conforme artigos 1º, IV, e 170, caput, ambos da Constituição
Federal), cabe ao empregador a determinação do processo de trabalho, isto é, o
conjunto de atos praticados com o objetivo de se realizar determinada tarefa, processo
esse que se desenvolve num posto de trabalho(local onde o trabalhador executa a sua
tarefa, bem como os componentes que formam a estrutura física do local e com os
quais os obreiros interagem diretamente) mediante uma determinada organização do
trabalho (forma pela qual o trabalho é distribuído no tempo e a maneira pela qual a
prestação laboral deve ser executada, definindo-se quem faz o quê, como, quando,
onde e em que condições físicas, organizacionais e gerenciais), oferece ao trabalhador
certa condição de trabalho (são as condições físicas, químicas, biológicas e sociais a
que estão expostos os trabalhadores durante o processo do trabalho, em razão de uma
determinada organização do trabalho) e uma condição econômica (que é a resultante
da contraprestação econômica do empregador frente à atividade laboral prestada pelo
empregado num determinado lapso de tempo).
Ora, apresentados os conhecimentos preliminares referentes à natureza do
“trabalho”, formas de sua realização e a livre iniciativa como instrumento de fixação
do processo de trabalho dirigido ao empregado, sentimo-nos preparados para buscar o
sentido das expressões constitucionais “valores sociais do trabalho” e “valorização do
trabalho humano”, iniciando-se pela análise semântica que, por óbvio, não pode deixar
de apreciar o conteúdo das palavras “valor” e “valorização”.
Constam, no Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa488, como
significados possíveis do suporte físico “valor”, dentre outros: “recebimento ou paga
em bens, serviços ou dinheiro por algo trocado”, “quantidade monetária equivalente a
no sentido de que demais normas jurídicas limitam a extensão dessa liberdade, como, por exemplo, as normas de natureza trabalhista que garantem condições mínimas ao empregado no contrato de trabalho (dentre elas as constantes do artigo 7º da Constituição Federal), a necessária “valorização do trabalho humano” (conforme caput do artigo 170 da Constituição Federal que, inclusive, eleva à mesma condição de fundamentos da ordem econômica a livre iniciativa e a valorização do trabalho humano, demonstrando efetivo objetivo do Constituinte em impor, na seara empresarial e trabalhista, uma efetiva harmonização entre esses dois valores que, a priori, poderiam se mostrar diametralmente opostos) e a imposição de que sejam respeitados os “valores sociais do trabalho” (que, conforme artigo 1º, IV, da Constituição Federal é um dos fundamentos do Estado brasileiro, também num mesmo grau de importância da “livre iniciativa”). 488
DICIONÁRIO HOAISS DA LÍNGUA PORTUGUESA. Versão eletrônica. Disponível em: <http://houaiss.uol.com.br/busca.jhtm>. Acesso em: 09.out. 2011.
258
uma mercadoria, em função de sua capacidade de ser negociada no mercado”, “
qualidade que confere a um objeto material a natureza de bem econômico, em
decorrência de satisfazer necessidades humanas e ser trocável por outros bens”, “
medida variável de importância que se atribui a um objeto ou serviço necessário aos
desígnios humanos e que, embora condicione o seu preço monetário, frequentemente
não lhe é idêntico”, “ determinação quantitativa obtida através de cálculo ou
mensuração”, “qualidade humana de natureza física, intelectual ou moral, que desperta
admiração ou respeito”, “reconhecimento, de um ponto de vista afetivo, da
importância ou da necessidade (de algo ou alguém)”. E, o termo “valorização”,
segundo a mesma edição, tem como significado “ato de valorizar”.
Frente ao próprio princípio da unidade da Constituição, não devemos, no
ato de interpretação de dispositivo constitucional, deixar de levar em consideração os
demais suportes físicos que formam a Constituição Federal e, inclusive, seu
preâmbulo, onde consta:
Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia
Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado
a assegurar o exercícios dos direitos sociais e individuais, a liberdade,
a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça
como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem
preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem
interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias,
promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte Constituição da
República Federativa do Brasil.
Mostra-se absolutamente pertinente também, em razão da temática, a
apreciação da valorização do trabalho sob a égide dos objetivos fundamentais do
Estado brasileiro fixados no artigo 3º, além dos direitos sociais mínimos descritos no
artigo 6º e as necessidades básicas de que trata o artigo 7º, IV, todos da Constituição
Federal:
CF/88. Art. 3º. Constituem objetivos fundamentais da República
Federativa do Brasil:
I- construir uma sociedade livre, justa e solidária;
II- garantir o desenvolvimento nacional;
III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades
sociais e regionais;
259
IV- promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo,
cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
CF/88. Art. 6º. São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a
moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à
maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma
desta Constituição.”
CF/88. Art. 7º. (...) IV- salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente
unificado, capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de
sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer,
vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes
periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua
vinculação para qualquer efeito;
Conjugando-se os objetivos do Estado brasileiro com os direitos sociais
mínimos que são, na forma da Constituição, garantidos a todo cidadão, e o próprio
princípio da dignidade da pessoa humana (cujo conteúdo já foi objeto de análise),
podemos extrair algumas conclusões preliminares, quais sejam:
- valorizar o “trabalho humano” é proibição de tratamento de tal atividade como
“coisa”, “como objeto”, afastando-se a condição de “escravização”, bem como
qualquer tipo de tratamento desumano ou degradante à figura do trabalhador,
assegurando-se a integridade física e mental;
- valorizar o “trabalho humano” é reconhecer, de um ponto de vista afetivo, a
importância e a necessidade da atividade laboral exercida pelo indivíduo;
- valorizar o “trabalho humano” é determinar a sua extensão, de forma quantitativa e
qualitativa, através de cálculo ou mensuração, com o fito de contraprestação justa.
Não se duvida que os “valores sociais do trabalho”, a que se refere o
artigo 1º, IV, da Constituição Federal tratam do trabalho humano (agregando-se ao seu
conteúdo o quanto já exposto em relação à “valorização do trabalho humano”) que,
além de dever ser valorizado frente ao indivíduo que o exerce, também deve destinar-
se ao alcance daquilo que a sociedade é capaz de extrair da atividade laboral, dentre
outros:
260
- realização dos direitos sociais mínimos previstos nos artigos 6º e 7º, IV, da
Constituição Federal, a saber: educação, saúde, moradia, lazer, segurança, previdência
social, higiene, alimentação, vestuário e transporte;
- a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, compreendendo-se, nesse
ponto, justiça e solidariedade como proibição de exploração do ser humano, de sua
exposição e utilização como objeto, assim como a imposição de atividade ativa, não só
pelo Poder Publico, mas também por toda a coletividade, no sentido de colaboração
mútua entre todos os membros da sociedade, a fim de se construir a sociedade livre
que a Constituição Federal pretende;
- o desenvolvimento nacional, sendo o trabalho juntamente com o capital as válvulas
propulsoras do desenvolvimento, seja econômico, seja social, da nação brasileira, deles
dependendo a realização do objetivo contido no artigo 3º, II, da Constituição Federal;
- a erradicação da pobreza e da marginalização, bem como a redução das
desigualdades sociais e regionais, o que só pode ser efetivamente realizado através de
uma situação de pleno emprego em todas as regiões do país, com contraprestações
remuneratórias justas e plenas condições de trabalho; e
- promover o bem de todos, que é o principal objetivo do Estado, permitindo que todos
tenham os recursos materiais e sociais necessários ao alcance da própria felicidade.
No que se refere à valorização do trabalho no atual grau de
desenvolvimento de nosso raciocínio, importante é a transcrição do magistério de
Amauri Mascaro Nascimento em sua obra “Direito Contemporâneo do Trabalho”,
onde, analisando os diversos conceitos de justiça, busca apontar aquela que é
objetivada pelo direito do trabalho:
O direito do trabalho tem como fim a realização da justiça. As leis
trabalhistas são justas? Os estudos sobre o conceito de justiça são
antigos (Platão, 427-346 a. C) e sua polêmica com os sofistas a
célebre A República, na qual vincula à maneira como deve ser
organizado o Estado e compreendendo-a em caráter essencialmente
moral como virtude.
Compara o Estado a um organismo animal no qual haverá uma
relação harmônica entre os seus diferentes órgãos, cada qual
261
exercendo a função que lhe compete, sem se intrometer em funções de
outros órgãos. Assim como no indivíduo existem três faculdades – a
inteligência, que esclarece; a vontade, que obra; e os sentimentos, que
obedecem -, no Estado há três classes: os filósofos, que com sua
inteligência são destinados a mandar; os guerreiros, que com a força o
defendem; e os artesões, que devem nutrir o organismo social.
A justiça é compreendida também de outros modos:
a) como virtude específica do social, no qual se destaca a nota da
alteridade, que tem como princípio reitor a igualdade (Aristóteles,
384 – 322 a.C., Ética a Nicômaco) em suas duas espécies: a justiça
distributiva, segundo a qual cada um deve receber na proporção de seu
mérito, com o que igualdade exige proporcionalidade, e a justiça
corretiva ou equiparadora, tanto nas relações entre particulares (justiça
comutativa), com a equivalência de trocas, como na justiça social,
quando o juiz procede a esse tipo de equiparação;
b) como alteridade e igualdade (Santo Tomás de Aquino, 1225-1275),
sendo distributiva a justiça devida pela comunidade aos seus membros
e comutativa aquela em que os particulares se devem entre si;
c) como ideia reguladora permanente de harmonia na conduta social
(Stammler), valor absoluto e universal e ideia transcendente do nível
empírico da experiência, sendo comutativa a justiça de uma
comunidade de homens livres.
(...) Não há uniformidade na ideia de justiça. O direito do trabalho
tenta promover a realização da justiça social. A expressão vem do
jusnaturalismo, para a qual a sua realização leva em conta três
aspectos: as necessidades do trabalhador, as possibilidades do
empregador e o bem comum. O qualificativo social está associado à
imagem da dívida que tem a sociedade para aqueles que são chamados
excluídos e que vivem em nível de pobreza. No direito do trabalho, o
social refere-se aos trabalhadores e aos direitos que devem ter. Se por
justiça individual o que se deve entender é dar a cada um é que é seu,
justiça social é dar aos trabalhadores aquilo que é seu.489
Entendemos que a característica de ter o Direito do Trabalho o objetivo de
realização de “justiça social” no sentido de dar ao trabalhador aquilo que é dele, como
apontado por Amauri Mascaro Nascimento, é extraída da própria necessidade do
Direito do Trabalho (visto como divisão didática da ciência do direito e/ou como parte
específica do Direito Positivo pátrio) ter que cumprir os objetivos fixados ao Estado
brasileiro no artigo 3º da Constituição Federal.
489
NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Direito Contemporâneo do Trabalho. 1ª edição. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 35 e 36.
262
Temos na “valorização do trabalho” sob o enfoque de determinação da sua
extensão, de forma quantitativa e qualitativa, através de cálculo ou mensuração, com o
fito de contraprestação justa, um elemento absolutamente importante na interpretação
dos enunciados prescritivos típicos do direito do trabalho e, mais especificamente, do
conteúdo do inciso I do artigo 62 da CLT. A proporcionalidade entre a extensão da
atividade laboral desenvolvida (pelo empregado) e a contraprestação remuneratória
(prestada pelo empregador ao empregado) é um dos instrumentos essenciais para
realização, na relação de emprego, da justiça social pretendida constitucionalmente,
daí entendermos que o caráter sinalagmático da relação de emprego é absolutamente
necessário, sob pena de inconstitucionalidade. O caráter sinalagmático da relação de
emprego, no contexto ora apresentado, quer representar não somente a bilateralidade
do negócio jurídico490 que dá origem à relação, mas também à sua comutatividade, no
sentido de que para cada dever de uma parte há uma contraprestação recíproca da
outra. Somente uma efetiva comutatividade entre atividades laborais e
contraprestações dos empregados e dos empregadores é capaz de gerar o cumprimento
da “valorização do trabalho humano” e a consagração dos “valores sociais do
contrato”.
Portanto, frente a várias interpretações possíveis a um determinado
enunciado prescritivo de natureza trabalhista/empregatícia, há de se escolher, para
efetiva aplicação ao caso concreto, somente aquelas que sejam capazes de garantir
efetiva reciprocidade entre os interesses, inclusive e principalmente – frente ao
contexto da presente exposição – econômicos, do empregado e do empregador,
realizando-se efetiva interpretação conforme a Constituição e respeitando os princípios
interpretativos da unidade e da supremacia da Constituição. A respeito do instituto da
“interpretação conforme a Constituição”, vale transcrição dos ensinamentos de Lênio
Luiz Streck e Rui Medeiros:
490 De origem da palavra grega "synnalagmatikos", significa uma relação de obrigação contraída entre duas
partes de comum acordo de vontades, onde cada parte condiciona a sua prestação à contraprestação da outra. Além da bilateralidade, há destaque também para a comutatividade dessa relação, no sentido de efetiva proporcionalidade entre direitos e deveres das partes que caracterizam a relação sinalagmática.
263
A interpretação conforme a Constituição constitui-se em mecanismo
de fundamental importância para a constitucionalização dos textos
normativos infraconstitucionais. A verfassungskonforme Auslegung,
como é denominada na Alemanha, é um princípio constitucional,
justamente em face da força normativa da Constituição, no dizer de
Hesse, para quem, "segundo esse princípio, uma lei não deve ser
declarada nula quando pode ser interpretada em consonância com a
Constituição. Essa consonância existe não só então, quando a lei, sem
a consideração de pontos de vista jurídico-constitucionais, admite uma
interpretação que é compatível com a Constituição. No quadro da
interpretação conforme a Constituição, normas constitucionais são,
portanto, não só normas de exame, mas também normas materiais para
a determinação do conteúdo das leis ordinárias".
Entendo que, alçada à categoria de princípio, a interpretação
conforme a Constituição é mais do que princípio imanente da
Constituição, até porque não há nada mais imanente a um
Constituição do que a obrigação de que todos os textos normativos do
sistema sejam interpretados de acordo com ela. Desse modo, em sendo
um princípio (imanente), os juízes e tribunais não podem (continuar a)
(só)negar a sua aplicação, sob pena de violação da própria
Constituição.491
Veja-se o caso de uma decisão que estenda os direitos de uma
categoria profissional a outra ou que deixe de considerar como
incidente determinada alíquota de imposto; no primeiro caso houve
uma adição de sentido, que tanto pode receber chancela de
interpretação conforme como de uma sentença aditiva; no segundo
caso, houve nulidade, sem a redução do texto, de uma hipótese de
incidência, o que pode configurar uma sentença redutiva. Uma
questão, entretanto, parece indiscutível, qual seja, a de que processo
hermenêutico é sempre produtivo. Quando se adiciona sentido ou se
reduz o sentido (ou a própria incidência de uma norma), estar-se-á
fazendo algo que vai além ou aquém do texto da lei, o que não
significa afirmar que o Tribunal estará legislando. Pelo contrário. Ao
adaptar o texto legal à Constituição, a partir de diversos mecanismos
interpretativos existentes, o juiz ou tribunal estará tão-somente
cumprindo sua tarefa de guardião da constitucionalidade das leis. 492
A supremacia da Constituição, sua força normativa e seu papel de
topos conformador da atividade hermenêutica pode ser entendida,
segundo Medeiros, sob quatro diferentes funções: 1o) uma função de
apoio ou de confirmação de um sentido da norma já sugerido pelos
restantes elementos de interpretação; 2o) uma função de escolha entre
várias soluções que não se mostram incompatíveis com a letra da lei,
servindo para excluir um sentido possível e para optar por um outro
491 STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica. Uma nova crítica do direito. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2002, p.443. 492
Ibidem, p. 444-445.
264
igualmente compatível com a letra da lei; 3a) uma função de correção
dos sentidos literais possíveis; 4o) uma função de revisão da lei
através da atribuição à Constituição de um peso decisivo e superior
aos demais elementos tradicionais de interpretação”493 494
7.2 A inexistência de exceção constitucional expressa aos termos do artigo 7º,
XVI, da Constituição Federal além da hipótese do parágrafo único do mesmo
artigo 7o
Outro ponto que entendemos absolutamente necessário como condição
prévia para a interpretação do artigo 62, I, da CLT é a constatação de que o texto
constitucional especifica “padrões” para a duração normal de trabalho (conforme art.
7º, XIII e XIV, da CF/88, já transcritos e analisados no item”1” deste capítulo), bem
como “padrão mínimo” para a remuneração do “serviço extraordinário”(lapso de
tempo superior à jornada-padrão tida como “normal” para determinada categoria
profissional) no importe de 50%(cinqüenta por cento) superior ao valor da hora
trabalhada durante a “jornada normal”, como se verifica do inciso XVI do artigo 7º da
Constituição (também já transcrito e analisado no item “1” deste capítulo).
A exceção constitucional à aplicação da regra de que o labor realizado em
sobrejornada (serviço extraordinário) seja remunerado, inclusive, em valor superior ao
do “serviço normal” é taxativamente prevista no parágrafo único do artigo 7º da
Constituição Federal e dirigida exclusivamente à categoria dos trabalhadores
domésticos, como abaixo transcrito:
CF/88. Art. 7º. (...) Parágrafo único. São assegurados à categoria dos
trabalhadores domésticos os direitos previstos nos incisos IV, VI,
VIII, XV, XVII, XVIII, XIX, XXI e XXIV, bem como a sua
integração à previdência social.495
493
MEDEIROS, Rui. A decisão de inconstitucionalidade. Lisboa: Universidade Católica, 2000, p.301. Apud STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica. Uma nova crítica do direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002, p. 445
. 494
STRECK, Lenio Luiz. Op. Cit., p. 445. 495
É de se observar que o parágrafo único do artigo 7º da Constituição Federal limita, do ponto de vista constitucional, os direitos trabalhistas dos empregados domésticos àqueles constantes dos incisos IV, VI, VIII,
265
Muitos argumentariam que não caberia à Constituição Federal traçar
minúcias a respeito de exceções às regras gerais construídas pelo Constituinte,
cabendo tal tarefa ao legislador infraconstitucional na tarefa de regulamentar as
normas constitucionais. No entanto, frente ao quanto já exposto nos itens 7.1.1 e 7.1.2
deste capítulo (incidência necessária do princípio da dignidade da pessoa humana e a
necessária “valorização do trabalho humano” e busca dos “valores sociais do
trabalho”, gerando necessária comutatividade entre as atividades do empregado e a
contraprestação oferecida pelo empregador), entendemos que qualquer exceção
infraconstitucional à regra de direito à percepção de contraprestação pelo empregado
em razão de sobrejornada somente pode se justificar pela extraordinariedade do fato
excetuado. Nesse sentido, vale transcrição dos ensinamentos de Mauricio Godinho
Delgado sobre “jornada não controlada”:
A ordem jurídica reconhece que a aferição de uma efetiva jornada de
trabalho cumprida pelo empregado supõe um mínimo de fiscalização e
controle por parte do empregador sobre a prestação concreta dos
serviços ou sobre o período de disponibilidade perante a empresa. O
critério é estritamente prático: trabalho não fiscalizado nem
minimamente controlado é insuscetível de propiciar a aferição da real
jornada laborada pelo obreiro – por essa razão é insuscetível de
proporcionar a aferição da prestação (ou não) de horas extraordinárias
pelo trabalhador. Nesse quadro, as jornadas não controladas não
ensejam cálculo de horas extraordinárias, dado que não se pode aferir
sequer a efetiva prestação da jornada padrão incidente sobre o caso
concreto.
Critério prático – reconhecido pelo Direito, como síntese de lógica e
sensatez socialmente ajustadas. Não critério de eleição de
discriminação – que seria, de todo modo, inconstitucional (art. 5º,
caput, e 7º, XIII e XVI, CF/88).496
A contrario sensu, inexistindo “extraordinariedade” (caracterizada pela
efetiva impossibilidade de controle da jornada de trabalho, seja por absoluta
impossibilidade física, seja por inexistência de tecnologia de vigilância disponível no
mercado e acessível a todos os empregadores), resta absolutamente inconstitucional
XV, XVII, XVIII, XIX, XXI e XXIV, excluindo de tal categoria a “jornada-padrão” do inciso XIII e o direito à percepção pelo serviço extraordinário previsto no inciso XVI. 496
DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 3ª edição. São Paulo: LTr, 2004, p.874.
266
qualquer exceção prevista em normas infraconstitucionais que afaste do trabalhador o
direito à percepção das horas extras efetivamente laboradas (a não ser na hipótese de
empregado doméstico, a que a própria Constituição Federal destina caráter de
exceção).
8 O atual regime de visibilidade e a sua influência na interpretação do inciso I do
artigo 62 da CLT
Como detalhadamente analisado no Capítulo II desta tese, o avanço
tecnológico impresso principalmente na última década, em especial no que tange aos
sistemas de localização de coisas e pessoas, e à transmissão de dados à distância
através de redes sem fio, criou uma nova forma dos seres humanos verem e serem
vistos, forma essa que conceitualmente denominou-se “espaço ampliado”, que é
caracterizado por representações sob a forma de imagens, sons e até mesmo sensações
táteis, de uma realidade que é fisicamente distante do cidadão comum (isto é, realidade
que lhe seria inatingível naturalmente pela visão), permitindo ao cidadão não só ter
efetivo acesso à essa realidade, como também com ela interagir.
Houve, pois, na sociedade moderna, uma modificação no denominado
“regime de visibilidade”(entendido como forma pela qual “se vê e se é visto” na
sociedade) que, antes, baseava-se exclusivamente no alcance do campo ocular humano
frente a situações fáticas que se encontravam à sua volta, sendo que hoje tal regime se
baseia também em “espaços ampliados”, que não se fundam no espaço físico ou nos
limites do alcance do olho humano, mas, sim, em espaço informacional (que é o
resultado de serviços e tecnologias baseados em localização e transmissão de dados).
Integrando-se tal mudança do “regime de visibilidade” à experiência
jurídica, já fixamos, no item “3” do Capítulo II desta pesquisa, que um “regime de
visibilidade” é próprio de determinada sociedade e de certo “momento histórico”, é um
valor cultuado pela sociedade em realidades factuais que se apresentem e que,
portanto, fazem parte da experiência jurídica, devendo, frente ao princípio da
“Eticidade” (método de incidência, na construção da norma jurídica – que envolve não
267
somente a atividade legislativa de produção de enunciados prescritivos, como também
a atividade de interpretação com vistas à aplicação da norma jurídica ao caso concreto
– de valores incidentes na realidade factual no momento da aplicação da norma
jurídica), incidir sobre os fatos normados gerando a escolha de uma das possibilidades
semânticas do texto normativo interpretado (sendo que tal escolha terá como vertente a
incidência do “valor” ao fato concreto em análise) levando em consideração a sua
“elasticidade semântica”(a sua polissemia, capacidade de um mesmo suporte físico
referir-se a mais de um significado).
A mudança, numa sociedade, do regime de visibilidade é capaz de gerar
“mutação normativa”497 (entendida como modificação do conteúdo de uma norma
jurídica, a despeito da manutenção do enunciado prescritivo – texto legislativo -, e que
tem como principal instrumento a interpretação jurídica) especialmente naquelas
normas cujos elementos baseiam-se na visibilidade. Assim, tendo em vista que a
norma extraível do inciso I do artigo 62 da CLT enquadra-se perfeitamente no
conjunto das “normas cujos elementos se baseiam na visibilidade” (e a expressão
“atividade externa incompatível com a fixação de horário de trabalho”, que
entendemos ser o principal elemento do texto normativo em análise, não gera dúvida
quanto à essencialidade da “visibilidade” no ato de sua concretização), não há como se
deixar de concluir pela existência de mutação normativa do citado dispositivo.
Mais especificamente, a interpretação da expressão “atividade externa
incompatível com a fixação de horário de trabalho” não pode ser realizada sem levar-
se em consideração o novo “regime de visibilidade” baseado em “espaço ampliado”,
sob pena de incompatibilidade da norma construída com a experiência jurídica
497
O conceito de “mutação normativa” apresentado por nós nesse contexto é uma generalização (com o objetivo de aplicabilidade em qualquer espécie de norma jurídica e não exclusivamente às constitucionais) do instituto da “mutação constitucional” conceituado como nada mais que “as alterações semânticas dos preceitos da Constituição, em decorrência de modificações no prisma histórico-social ou fático-axiológico em que se concretiza a sua aplicação... são decorrentes... da conjugação da peculiaridade da linguagem constitucional, polissêmica e indeterminada, com os fatores externos, de ordem econômica, social e cultural, que a Constituição – pluralista por antonomásia -, intenta regular e que, dialeticamente, interagem com ela, produzindo leituras sempre renovadas das mensagens enviadas pelo constituinte.” (Cf. MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 2ª edição. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 129-130).
268
vivenciada no momento de sua aplicação. Prosseguindo tal raciocínio, uma vez sendo
possível, através de “espaço ampliado”, o controle da atividade laboral realizada
externamente, não há como se cogitar o enquadramento do caso fático à norma de
exceção capsulada no inciso I do artigo 62 da CLT.
Com base no presente raciocínio, não há como prosperar a hipótese
interpretativa descrita sob a letra “b” do item “3” deste Capítulo IV (“Estão afastados do
direito de percepção de eventuais horas extraordinárias e adicional noturno todos os
empregados que exercem atividade externamente -fora do território físico do estabelecimento
do empregador-, sem que haja a possibilidade concreta do Empregador realizar, in loco - isto
é, fisicamente, através da interação direta entre a imagem real do ambiente de trabalho e o
órgão da visão do Empregador ou de preposto seu - e a qualquer momento, a fiscalização da
atividade laboral desempenhada pelo Empregado;”).
É de se acrescentar, ainda, que, sendo possível o “controle da jornada de
trabalho” através de “espaço ampliado”, restaria absolutamente inconstitucional
qualquer conclusão normativa no sentido de se afastar do empregado controlado o seu
direito à percepção de horas extras laboradas, sendo que tal conclusão resulta das
seguintes premissas já descritas e detalhadas no item “7” deste Capítulo:
- frente ao princípio interpretativo da unidade da Constituição e, mais especificamente,
frente à necessária compatibilização do inciso I do artigo 62 da CLT com os “valores
sociais do trabalho”(art. 1º, IV, da CF/88) e com a “valorização do trabalho humano
(art. 170, caput, da CF/88), que, como já vimos, leva-nos à conclusão da absoluta
necessidade de, em regra, a relação jurídica empregatícia ser comutativa (no sentido de
que para cada atividade laboral do empregado deve haver a devida contraprestação
remuneratória do empregador);
- tendo em vista que a Constituição Federal especifica “padrões” para a duração
normal de trabalho (conforme art. 7º, XIII e XIV, da CF/88), bem como “padrão
mínimo” para a remuneração do “serviço extraordinário” (tido como lapso de tempo
superior à jornada padrão tida como “normal” para determinada categoria profissional)
no importe de 50%(cinquenta por cento) superior ao valor da hora trabalhada durante a
269
“jornada normal” (como se verifica do art. 7º, XVI, da CF/88), apontando como única
exceção de inaplicabilidade de tais dispositivos a categoria dos
“domésticos”(conforme art. 7º, parágrafo único, da CF/88) e que somente uma
“extraordinariedade” (no sentido de efetiva impossibilidade de controle da jornada de
trabalho, seja por absoluta impossibilidade física, seja por inexistência de tecnologia
de vigilância disponível no mercado e acessível aos empregadores) seria capaz de
permitir à legislação infraconstitucional criar exceções à percepção de horas extras
além daquela (exceção) prevista constitucionalmente.
No que se refere ao efetivo potencial de exercício de “Poder de Controle”
do empregador em relação à atividade do empregado-motorista rodoviário que labora
externamente, através de sistemas AVL (Automatic Vehicle Location), cujos
conteúdo, funcionamento, acurácia e precisão já foram descritos no Capítulo III desta
tese, vale transcrição das conclusões obtidas na pesquisa de observação direta retratada
no item “6” do Capítulo III:
- Os sistemas AVL à disposição no mercado brasileiro permitem, de forma fidedigna e
precisa, a localização, a qualquer momento, do veículo monitorado com o efetivo
controle do cumprimento de rota pré-determinada. Como se verifica da observação das
ocorrências 2, 12, 14, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 25, 26, 27 e 28 descritas no item 6.3
do Capítulo III, o gestor do sistema tem a possibilidade de, a qualquer momento,
verificar a localização do veículo, inclusive com a visualização da localização através
de imagem do GoogleEarth, conforme ocorrências 2, 14, 21, 26 e 28. Além da
informação instantânea quanto à localização presente do veículo, o sistema também
permite ao seu gestor a verificação das posições pretéritas, relacionando-as com os
respectivos momentos, como se verifica das ocorrências 16 (histórico de posições) e
17 (histórico do trajeto);
- Os sistemas AVL à disposição no mercado brasileiro permitem a verificação do
condutor em quaisquer dos momentos da operação, vez que tal verificação pode ser
270
realizada através de imagem fotográfica obtida instantaneamente pelo sistema
(ocorrências 3, 18 e 23 descritas no item 6.3 do Capítulo III), de sons colhidos do
ambiente interno do veículo através do instrumento “escuta” (ocorrência 4) e de
informação colhida a partir da inserção do “cartão de identificação do condutor” no
equipamento embarcado;
- Os sistemas AVL à disposição no mercado brasileiro permitem ao gestor do sistema
manter comunicação com o condutor objetivando a transmissão de ordens. Como se
verifica da ocorrência “9” descrita no item 6.3 do Capítulo III, o sistema permite que o
gestor envie mensagens escritas ao condutor do veículo através do monitor de cristal
líquido embarcado, transmitindo, assim, ordens de como realizar a prestação do
serviço, o que pode ser realizado também através do instrumento “escuta”, descrito na
ocorrência “4”;
- Os sistemas AVL à disposição no mercado brasileiro permitem, de forma objetiva, a
verificação do cumprimento das ordens impostas pelo empregador (gestor do sistema)
ao condutor do veículo (empregado), o que pode ser demonstrado pelos seguintes
fatos: é possível avaliar se o condutor transporta o veículo através da rota pré-
determinada, como se verifica das ocorrências 2, 12, 14, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 25,
26, 27 e 28 descritas no item 6.3 do Capítulo III; o gestor pode fixar “cerca
eletrônica”, determinando que o sistema gere alerta na hipótese do condutor
transportar o veículo por espaço não permitido pelo gestor, como se verifica da
ocorrência 13; o sistema permite a verificação da velocidade do veículo a qualquer
momento e, inclusive, gera alerta ao gestor na hipótese da velocidade máxima ser
extrapolada, como se verifica da ocorrência 8, além de que o sistema permite o
“bloqueio” do veículo mediante comando do gestor, o que pode ser realizado, por
exemplo, na hipótese de reiterados descumprimentos de ordens pelo condutor.
Ora, o “Poder de Controle” típico da relação jurídica empregatícia
caracteriza-se como conjunto de prerrogativas do empregador dirigidas a propiciar o
271
acompanhamento contínuo da prestação do trabalho e a própria vigilância efetiva,
vinculando não só o caráter fiscalizatório (acompanhamento contínuo das atividades
do empregado), como também a efetiva capacidade do empregador interagir com o
empregado e coagi-lo no sentido de cumprimento efetivo dos comandos externados498.
Em relação ao “rastreamento e monitoramento” permitidos através de sistemas AVL
(Automatic Vehicle Location), verificam-se:
- efetivo poder de fiscalização das atividades do condutor-empregado, permitindo a
verificação da sua identidade, da sua real localização, dos movimentos realizados e
palavras faladas no interior do veículo, bem como acesso a informações a respeito da
forma como o veículo é conduzido;
- efetivo poder de comunicação entre o empregador e o empregado-condutor durante
todo o período de labor externo, seja através de contatos sonoros, seja através de
mensagens escritas, o que permite não só a transmissão de ordens a qualquer momento
e em tempo real, como também a reprimenda imediata pelo não cumprimento de
eventual ordem exteriorizada;
- efetivo poder de coerção do empregador durante toda a jornada externa, no sentido
de exigência de cumprimento das ordens exteriorizadas pelo empregador. Tal poder de
coerção se baseia, inclusive, na possibilidade de bloqueio automático do veículo
através de simples comando do empregador-gestor do sistema.
Tem-se, portanto, que através dos sistemas AVL disponíveis atualmente no
mercado brasileiro, e de acordo com o atual estado da técnica de tais sistemas, é
absolutamente possível ao empregador controlar a frequência, o cumprimento de
ordens e a qualidade do serviço do empregado-motorista rodoviário com atividade
498
Nesse ponto, afirma Amauri Mascaro Nascimento que “O poder de controle dá ao empregador o direito de fiscalizar o trabalho do empregado. A atividade deste, sendo subordinada e mediante direção do empregador, não é exercitada do modo que o empregado pretende, mas daquele que é imposto pelo empregador. A fiscalização é inerente ao poder diretivo e alcança, desde que razoável, o modo como o trabalho é prestado e o comportamento do trabalhador”. Cf. NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Direito do Trabalho Contemporâneo. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 344.
272
externa, não se justificando mais o afastamento do direito a horas extras a essa
categoria de empregados sob fundamento de enquadramento no inciso I do artigo 62
da CLT.
9 A Lei 12.551/2011 e a incorporação expressa do novo regime de visibilidade ao
contrato de trabalho
Como reflexo da evolução tecnológica, em especial das técnicas de
transmissão de dados à distância (telemática), há algum tempo, no plano internacional,
existe a preocupação com a normatização do denominado “trabalho à distância”.
Desponta, nessa esfera, a Convenção 177 da Organização Internacional do Trabalho
(OIT). No plano do Direito Positivo brasileiro, o artigo 6º da Consolidação das Leis do
Trabalho, em sua redação original, equiparava o trabalho realizado no estabelecimento
do empregador e o executado no domicílio do empregado, desde que caracterizada a
relação de emprego, sem se referir a trabalho à distância (que não o realizado no
domicílio do empregado), o que foi modificado pela Lei 12.551/2011, que não só
incluiu o trabalho à distância de forma genérica dentre as formas de prestação na
relação de emprego que se equiparam (juntamente com o trabalho realizado no
estabelecimento do empregador e aquele realizado no domicílio do empregado), como
também formaliza a aplicação de instrumentos baseados na atual tecnologia telemática
nas atividades de comando, controle e supervisão típicos da relação de emprego.
9.1 A Convenção 177 da OIT e as normas internacionais de regulação do trabalho
à distância
A Convenção 177 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), datada
de 04 de junho de 1996 e que não foi ratificada pelo Brasil499
(não tendo, portanto,
499
Até 16 de janeiro de 2012, a Convenção 177 da OIT fora ratificada somente pelos seguintes países: Albânia, Argentina, Bosnia e Herzegovina, Bulgária, Finlândia, Irlanda e Países Baixos. Conforme Site Oficial da OIT na Internet (http://www.ilo.org/ilolex/cgi-lex/convds.pl?C177). Acesso em 16.janeiro.2012.
273
vigência em território brasileiro500
, na forma do “Artigo 12”501
da própria Convenção)
fixa normas sobre trabalho a domicílio tratando não só do conceito de “trabalho a
domicílio”, como também da forma como deve ser tratada, pelos Estados que aderiram
à Convenção, tal modalidade de prestação laboral, destacando-se as seguintes normas:
- o conceito de “trabalho à domicílio”, constante do “Artigo 1” da Convenção, qual
seja: trabalho que uma pessoa, designada como trabalhador a domicílio realiza em seu
domicílio ou em outros locais distintos dos estabelecimentos do empregador, mediante
uma remuneração, com o fim de elaborar produto ou prestar serviço conforme as
especificações do empregador, independentemente de quem proporcione a equipe, os
materiais e outros elementos utilizados pelo empregado, a não ser que essa pessoa
(trabalhador) tenha autonomia e independência econômica necessárias para ser
considerada como trabalhador autônomo em virtude da legislação nacional ou decisões
judiciais.
Tem-se, portanto, que “trabalho à domicílio”, para efeito de aplicação da
Convenção sob exame, não se limita à prestação laboral no domicílio do empregado,
mas inclui também as demais modalidades de prestação laboral fora do
500
A respeito desse tema, é de se transcrever entendimento divergente consubstanciado no Enunciado no. 3, aprovado na 1ª Jornada de Direito Material e Processual do Trabalho, realizado em 23.11.2007 pela ANAMATRA – Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho - :
3. FONTES DO DIREITO – NORMAS INTERNACIONAIS. I. – FONTES DO DIREITO DO TRABALHO. DIREITO COMPARADO. CONVENÇÕES DA OIT NÃO RATIFICADAS PELO BRASIL. O Direito Comparado, segundo o art. 8º da Consolidação das Leis do Trabalho, é fonte subsidiária do Direito do Trabalho. Assim, as Convenções da Organização Internacional do Trabalho não ratificadas pelo Brasil pdoem ser aplicadas como fontes do direito do Trabalho, caso não haja norma de direito interno pátrio regulando a matéria. II- FONTES DO DIREITO DO TRABALHO. DIREITO COMPARADO. CONVENÇÕES E RECOMENDAÇÕES DA OIT. On uso das normas internacionais, emanadas da Organização Internacional do Trabalho, constitui-se em importante ferramenta de efetivação do Direito Social e não se restringe à aplicação direta das Convenções ratificadas pelo país. As demais normas da OIT, como as Convenções não ratificadas e as Recomendações, assim como os relatórios dos seus peritos, devem servir como fonte de interpretação da lei nacional e como referência a reforçar decisões judiciais baseadas na legislação doméstica. (Cf. Enunciados aprovados na 1ª Jornada de Direito Material e Processual da Justiça do Trabalho em 23.11.2007. Disponível em
http://www.anamatra.org.br/jornada/enunciados/enunciados_aprovados.cfm. Acesso em: 10.fev.2010) 501
“Artigo 12 1. Esta convenção obrigará somente aqueles Membros da Organização Internacional do Trabalho cujas ratificações tenham sido registradas junto ao Diretor Geral da Organização Internacional do Trabalho. 2. Entrará em vigor doze meses após a data em que as ratificações de dois Membros tenham sido registradas pelo Diretor-Geral. 3. Desde o dito momento, esta Convenção entrará em vigor, para cada Membro, doze meses depois da data em que tenha sido registrada sua ratificação.” (tradução nossa)
274
estabelecimento do Empregador, daí que a denominação fixada pela Convenção
(“trabalho à domicílio”) é excessivamente restritiva, enquadrando-se melhor a
denominação genérica “trabalho à distância”, sendo certo que, objetivando manter
fidelidade aos termos da Convenção, utilizaremos, nesta análise, a expressão “trabalho
à domicílio”.
- Na medida do possível, conforme “Artigo 4”, a política a ser adotada por cada
Estado aderente à Convenção em matéria de “trabalho à domicílio” deverá promover a
igualdade entre o trato daqueles que exercem “trabalho à domicílio” e daqueles que
praticam outras modalidades de prestação laboral tipicamente empregatícia, levando
em consideração as características particulares, devendo tal igualdade de tratamento
ser estimulada em particular no que se refere: ao direito dos trabalhadores a domicílio
de constituírem ou se afiliarem a organizações que escolham e de participarem de suas
atividades; à proteção frente à discriminação; à proteção em matéria de seguridade
social e de saúde no trabalho; à remuneração; ao acesso à informação; à idade mínima
de admissão e à proteção à maternidade.
Importante destacar que dentre os pontos de igualdade de tratamento
impostos pela Convenção 177 não se encontra a duração do trabalho, sua limitação e
percepção de remuneração pela prática de jornada extraordinária.
- a política nacional dos Estados aderentes dirigida ao “trabalho à domicílio” deve ser
aplicada, na forma dos “Artigo 5” e “Artigo 6” da Convenção, através de legislação,
convenções coletivas, laudos arbitrais ou qualquer outro meio compatível com a
prática do trato jurídico-laboral do referido Estado, devendo ser tomadas as medidas
cabíveis para a inclusão do “trabalho à domicílio” nas estatísticas sobre condições
laborais.
- a legislação normatizadora do “trabalho à domicílio” adotada pelos Estados aderentes
deverá fixar as responsabilidades dos intermediários de mão-de-obra e dos
empregadores, conforme “Artigo 8”, bem como criar sistema de inspeção para garantia
de cumprimento das normas aplicáveis a tal modalidade laboral, com a aplicação de
sanções nas hipóteses de infrações, como determina o “Artigo 9”.
275
9.2 A modificação do artigo 6º da Consolidação das Leis do Trabalho pela Lei
12.551/2011
O artigo 6º da Consolidação das Leis do Trabalho, em sua redação original,
impunha que “Não se distingue entre o trabalho realizado no estabelecimento do
empregador e o executado no domicílio do empregado, desde que esteja caracterizada
a relação de emprego”.
A Lei 12.551/2011, publicada em 15 de dezembro de 2011 e com início de
vigência na data da publicação, modificou a redação do artigo 6º da Consolidação das
Leis do Trabalho, não só incluindo o trabalho à distância de forma genérica dentre as
formas de prestação na relação de emprego que se equiparam (juntamente com o
trabalho realizado no estabelecimento do empregador e aquele realizado no domicílio
do empregado), como também formalizando a aplicação de instrumentos baseados na
atual tecnologia telemática nas atividades de comando, controle e supervisão típicos da
relação de emprego, passando o citado artigo a ter a seguinte redação:
Art. 6o Não se distingue entre o trabalho realizado no estabelecimento
do empregador, o executado no domicílio do empregado e o realizado
à distância, desde que estejam caracterizados os pressupostos da
relação de emprego.
Parágrafo único. Os meios telemáticos e informatizados de comando,
controle e supervisão se equiparam, para fins de subordinação
jurídica, aos meios pessoais e diretos de comando, controle e
supervisão do trabalho alheio.
Passamos a analisar cada um dos efeitos gerados no Direito Positivo
brasileiro pela nova redação do artigo 6º da CLT.
a) Do enquadramento do “trabalho realizado à distância” dentre as formas de
prestação laboral na relação de emprego que se equiparam
O artigo 6º da CLT, na atual redação, veda a distinção entre trabalho
realizado no estabelecimento do empregador, o realizado no domicílio do empregado e
aquele realizado à distância. No que se refere ao trabalho realizado à distância, tem-se
276
uma conotação genérica, no sentido de abarcar qualquer atividade laboral, realizada
sob os moldes de relação de emprego, cumprida fora do estabelecimento do
empregador (o que incluiria também, mesm se não houvesse a inserção específica no
texto legal, o trabalho realizado no domicílio do empregado). Em realidade, apesar do
Brasil não ter ratificado a Convenção 177 da Organização Internacional do Trabalho
(OIT), introduziu, na prática, em seu sistema jurídico-trabalhista, conteúdo próximo à
redação do “artigo 4” daquela convenção, qual seja:
Artigo 4
1. Na medida do possível, a política nacional em matéria de trabalho
a domicílio deverá promover a igualdade de trato entre os
trabalhadores à domicílio e os outros trabalhadores assalariados,
tendo em conta as características particulares do trabalho a
domicílio e, quando proceda, as condições aplicáveis a um tipo de
trabalho idêntico ou similar efetuado numa empresa.502
A redação imposta pela Lei 12.551/11 trata de forma genérica a vedação de
distinção entre as formas de prestação laboral nos contornos físicos do estabelecimento
do empregador e fora desses limites territoriais. Se no “artigo 4” da Convenção 177 da
OIT é utilizada a expressão relativizadora “na medida do possível”, no texto atual do
caput do artigo 6º celetista não é utilizada qualquer limitação, fazendo-se uso inclusive
da forma imperativa “não se distingue”.
Ora, o verbo “distinguir” tem sentido denotativo de diferenciar-se, separar,
discriminar503
, permitindo-nos conceber, num primeiro momento, a norma sob análise
como a proibição de qualquer diferença no trato jurídico das formas de prestação
laboral, sujeitando-as às mesmas normas jurídicas, conferindo aos seus exercentes os
mesmos direitos e as mesmas obrigações. É certo, entretanto, que tal concepção leva
em conta exclusivamente a redação do caput do dispositivo legal, sem considerar que a
Consolidação das Leis do Trabalho é um sistema (onde todos os seus elementos devem
502
Tradução nossa, a partir do texto em espanhol da referida convenção. 503
HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Versão Eletrônica. Disponível em < http://houaiss.uol.com.br/gramatica.jhtm>. Acesso em 16.janeiro.2012.
277
se interrelacionar e harmonizar), vedando a interpretação de um artigo considerando
única e exclusivamente a sua redação e impondo que a interpretação de qualquer um
dos dispositivos seja realizada levando em consideração os demais dispositivos
constantes do diploma legal.
Realizando-se interpretação sistemática do artigo 6º da CLT, há de
confrontar a sua redação com a de outros artigos que também tratam do trabalho à
distância, como o artigo 62, I, da CLT, cujo conteúdo afasta o direito a horas extras de
alguns empregados que realizam atividade laboral externa incompatível com o
controle da jornada de trabalho, resultando-se numa relativização da “proibição de
distinção”, vez que alguns direitos trabalhistas podem ser afastados de exercentes de
determinadas atividades laborais externas aos contornos físicos do estabelecimento do
Empregador.
Se de um lado conclui-se pela relativização da “proibição de distinção”
entre formas de prestação laboral interna e externa, de outro lado é de se observar que
as exceções (que levam à relativização) devem ser consideradas em caráter restrito,
como situações extraordinárias e taxativas, daí afirmarmos que somente há de se
conferirem direitos trabalhistas diferentes entre empregados exercentes de labor
interno (dentro dos contornos físicos do estabelecimento do empregador) e aqueles que
realizam trabalho externo nas estritas hipóteses legais (isto é, impostas por normas
jurídicas específicas), que devem ser interpretadas restritivamente (objetivando-se
conferir distinção somente em situações efetivamente extraordinárias), procedimento
esse que é adotado nesta tese ao interpretar-se restritivamente o artigo 62, I, da CLT504
.
504 Vide item “7.2” do Capítulo IV desta tese, onde consta: “A contrario sensu, inexistindo “extraordinariedade”
(caracterizada pela efetiva impossibilidade de controle da jornada de trabalho, seja por absoluta impossibilidade física, seja por inexistência de tecnologia de vigilância disponível no mercado e acessível a todos os empregadores), resta absolutamente inconstitucional qualquer exceção prevista em normas infraconstitucionais que afaste do trabalhador o direito à percepção das horas extras efetivamente laboradas (a não ser na hipótese de empregado doméstico, a que a própria Constituição Federal destina caráter de exceção)”.
278
b) A introdução formal da tecnologia de transmissão de dados à distância como
instrumento de exercício poder empregatício
Se antes da vigência da Lei 12.551/11 inexistia qualquer impedimento
normativo para que o Empregador se utilizasse dos instrumentos tecnológicos
existentes para o exercício de seu “poder empregatício”, com a atual redação do
parágrafo único do artigo 6º da CLT formalizou-se o uso de “meios telemáticos e
informatizados” no exercício da fiscalização e do controle das atividades laborais,
equiparando-os “aos meios pessoais e diretos de comando, controle e supervisão do
trabalho alheio”.
A mensagem trazida pelo parágrafo único do artigo 6º da CLT é a
atualização do Direito Positivo brasileiro em relação ao novo regime de visibilidade
cultuado pela sociedade contemporânea, que se baseia não exclusivamente no espaço
físico ou nos limites do alcance do olho humano, mas também se funda no espaço
informacional e que é denominado como “espaço ampliado”, conforme exposição
detalhada constante do item “2” do Capítulo II desta tese, que conceituamos como
representações, sob a forma de imagem, sons e até mesmo de sensações táteis, de uma
realidade que é física e naturalmente distante do cidadão comum (isto é, realidade que
lhe seria inatingível naturalmente pela visão e demais órgãos dos sentidos), permitindo
ao cidadão não só ter efetivo acesso à essa realidade, como também com ela interagir
através de instrumentos baseados no atual estado da técnica da tecnologia telemática,
que permitem a transmissão de dados a distâncias ilimitadas (como smartphones,
notebooks equipados com modem de acesso à internet, sistemas “Automatic Vehicle
Location”, entre outros).
A equiparação de “meios telemáticos e informatizados de comando,
controle e supervisão” com “meios pessoais e diretos de comando, controle e
supervisão do trabalho alheio” para “fins de subordinação jurídica” tem como
significado que:
- a apresentação de ordens pelo empregador (comando), bem como a fiscalização
quanto ao seu cumprimento pelo empregado (controle e supervisão) podem ser
279
realizadas tanto através de instrumentos baseados na tecnologia telemática
(transmissão de dados à distância) como de forma fisicamente presencial (como
tradicionalmente sempre se viu);
- a realização de comando, controle e supervisão por meios “telemáticos e
informatizados” gera os mesmos efeitos jurídico-trabalhistas que a realização das
mesmas atividades por meio fisicamente presencial. Assim, o controle da jornada de
trabalho (foco de nosso trabalho) realizada à distância tem o mesmo valor jurídico
daquele realizado “presencialmente”;
- do ponto de vista de imposição e cumprimento de normas jurídicas, as informações
obtidas através de instrumentos baseados na tecnologia “telemática” e “informatizada”
têm as mesmas idoneidade (expressão aqui utilizada no sentido de possuir todas as
qualidades necessárias ao alcance de um determinado fim) e fidedignidade (capacidade
de exprimir a verdade) que as informações obtidas de forma fisicamente presencial,
equiparando-se o “valor probatório” desses métodos de transmissão e recebimento de
informações, inlusive para fins de enquadramento no artigo 2º, V, da Lei 12.619/12;
- como resultado da equiparação entre os meios “tecnológicos” (baseados na
informatização e na telemática) e os meios tradicionais (baseados na observação
físico-presencial) de exercício do poder empregatício, passa o Empregador a ter o
“ônus”505
de se utilizar dos “meios tecnológicos” disponíveis no mercado capazes de
permitir o exercício do poder empregatício à distância, não se justificando a falta do
exercício do poder empregatício por inércia no uso dos “meios tecnológicos” como
meio de afastar a incidência de norma jurídica que concede direito trabalhista ao
Empregado.
Ademais, há absoluta compatibilidade da argumentação ora apresentada
frente os termos do artigo 2º, V, da Lei Ordinária Federal no. 12.619, de 30 de abril de
2012 (que dispõe sobre o exercício da profissão de motorista, alterando, inclusive, a
505
O termo “ônus” é aqui utilizado como “ônus processual”, caracterizado por escolhas feitas pela parte que podem lhe trazer prejuízos, principalmente no que tange ao resultado da demanda (cf. DONIZETTI, Elpídio. Curso didático de direito processual civil. 14ª edição. São Paulo: Atlas, 2010, p. 159).
280
CLT para regular e disciplinar a jornada de trabalho e o tempo de direção do motorista
profissional), abaixo transcrito:
Lei 12.619/12. São direitos dos motoristas profissionais, além
daqueles previstos no Capítulo II do Título II e no Capítulo II do
Título VIII da Constituição Federal: (...)
V- jornada de trabalho e tempo de direção controlados de
maneira fidedigna pelo empregador, que poderá valer-se de
anotação em diário de bordo, papeleta ou ficha de trabalho
externo, nos termos do §3º do art. 74 da Consolidação das Leis
do Trabalho-CLT, aprovada pelo Decreto-Lei no. 5.452, de 1º de
maio de 1943, ou de meios eletrônicos idôneos instalados nos
veículos, a critério do empregador.
10 Dos contornos constitucionais do princípio da livre iniciativa e do ônus do
Empregador (contratante de empregados-motoristas rodoviários de atividade
externa) de instalar sistemas AVL (Automatic Vehicle Location) nos veículos de
sua frota
A Constituição Federal encabeça o instituto da “livre iniciativa” como
fundamento do Estado brasileiro (art. 1º, IV, da CF/88) e como fundamento da ordem
econômica brasileira (art. 170, caput, da CF/88). A doutrina constitucionalista é
uníssona ao fixar o conteúdo da livre iniciativa como a liberdade, estendida a todos os
cidadãos, de exercer livremente qualquer atividade econômica, independentemente de
autorização dos órgãos públicos, salvo nos casos expressamente previstos em lei506 507.
A livre iniciativa envolve não só a liberdade de exercer determinada atividade
econômica, como também a liberdade de organização dessa atividade (organizando a
cadeia produtiva interna, fixando quem fará o quê e de quê forma para o fim de
alcance do objetivo da atividade, que é, em última instância, o lucro, o aumento de
506
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 19ª edição. São Paulo: Atlas, 2006, p. 723. 507
Neste mesmo sentido, Luiz Alberto David Araujo e Vidal Serrano Nunes Júnior, que apontam a livre iniciativa como liberdade-função de destinar capital para a exploração de uma atividade econômica específica, segundo critérios subjetivamente definidos de organização da produção e livre disposição negocial (Cf. ARAUJO, Luiz Alberto David; SERRANO JÚNIOR, Vidal Serrano. Curso de Direito Constitucional. 11ª edição. São Paulo: Editora Saraiva, p. 465-466).
281
capital). É certo, porém, que a livre iniciativa não é um instituto absoluto, ilimitado,
mas relativo ante a necessidade de efetiva composição com outros comandos
constitucionais (frente aos princípios da unidade da Constituição e harmonização da
normas constitucionais508).
Tanto verdadeira é a assertiva de relatividade da livre iniciativa que a
própria constituição a eleva à condição de fundamento sempre acompanhada de outro
instituto que lhe é absolutamente inibidor. Exemplifiquemos: no artigo 1º, IV, da
Constituição Federal, a livre iniciativa é fundamento do Estado brasileiro juntamente
com os “valores sociais do trabalho”; no artigo 170, caput, da Constituição Federal a
livre iniciativa é elevada a fundamento da ordem econômica brasileira juntamente com
a “valorização do trabalho humano”.
Nesse sentido, a livre iniciativa é relativizada por normas jurídicas,
introduzidas no Direito Positivo brasileiro, que impõem determinadas obrigações
àquele que exerce atividade econômica, fixando, assim, limitações à sua liberdade.
Tais limitações podem estar relacionadas à própria atividade exercida (nas situações
em que norma jurídica impõe, para o exercício de determinada atividade, prévia
autorização executiva), aos instrumentos que compõem a cadeia produtiva (como, por
exemplo, veículos utilizados no exercício da atividade econômica e que transportam
carga ou pessoas, sob determinadas características, devem estar equipados com disco
tacógrafo, como determinam as Resoluções do Contran509 no 14, de 06/02/1988, n
o 87,
de 06/02/1998 e no 92, de 04/05/1999) e também ao cumprimento de normas de
natureza trabalhista (como, por exemplo, a necessária entrega de Equipamentos de
508
Como afirma Celso Ribeiro Bastos, “através do princípio da harmonização se busca conformar as diversas normas ou valores em conflito no texto constitucional, de forma que se evite a necessidade da exclusão (sacrifício) total de um ou alguns deles. Se acaso viesse a prevalecer a desarmonia, no fundo, estaria ocorrendo a não aplicação de uma norma, o que evidentemente é de ser evitado a todo custo. Deve-se sempre preferir que prevaleçam todas as normas, com a efetividade particular de cada uma das regras em face das demais e dos princípios constitucionais... Assim, o postulado da harmonização impõe que a um princípio ou regra constitucional não se deva atribuir um significado tal que resulte ser contraditório com outros princípios ou regras pertencentes à Constituição. Também não se lhe deve atribuir um significado tal que reste incoerente com os demais princípios ou regras”. Cf. BASTOS, Celso Ribeiro. Hermenêutica e interpretação constitucional. 2ª edição. São Paulo: Celso Bastos Editor, p. 106.
509 Conselho Nacional de Trânsito, cuja competência é fixada pelo artigo 12 do Código de Trânsito Brasileiro (Lei
9.502/97), incluindo-se o poder de “XI - aprovar, complementar ou alterar os dispositivos de sinalização e os dispositivos e equipamentos de trânsito;
282
Proteção Individual aos empregados e a fiscalização de seu efetivo uso na forma do
artigo 166 da CLT).
Em relação à instalação de sistema AVL (Automatic Vehicle Location) em
veículos pertencentes à frota (própria ou agregada510), conduzidos por empregados
seus, justificamos a existência de ônus511 do empregador nesse sentido, sob os
seguintes argumentos:
a) uma vez demonstrado no Capítulo III desta tese que através dos sistemas AVL
disponíveis atualmente no mercado brasileiro, e de acordo com o atual estado da
técnica de tais sistemas, é absolutamente possível ao empregador controlar a
freqüência, o cumprimento de ordens e a qualidade do serviço do empregado-
motorista rodoviário com atividade externa, não se justifica mais o afastamento do
direito a horas extras a essa categoria de empregados sob fundamento de
enquadramento no inciso I do artigo 62 da CLT, incluindo-se tais empregados no
regime geral de percepção de horas extras previsto na CLT.
b) o artigo 74, parágrafo 2º, da CLT, abaixo-transcrito, determina que a prova da
jornada de trabalho é eminentemente documental, pré-constituída, especialmente para
os empregadores com mais de dez empregados. Tal prova pré-constituída é
corporificada pela anotação obrigatória da hora de entrada e de saída, em registro
manual, mecânico ou eletrônico, na forma de instruções expedidas pelo Ministério do
Trabalho e Emprego, cabendo ao empregador o encargo não só de produzir tais
documentos, como também de mantê-los sob guarda para efetivo uso probatório.
CLT. Art. 74. (...)§2o Para os estabelecimentos de mais de dez
trabalhadores será obrigatória a anotação da hora de entrada e de
saída, em registro manual, mecânico ou eletrônico, conforme
instruções a serem expedidas pelo Ministério do Trabalho, devendo
haver pré-assinalação do período de repouso.
510
O termo “agregado” é aqui utilizado no sentido de procedimento comum em empresas de transporte rodoviário de integrar na sua frota veículos pertencentes a terceiras pessoas, que passam a ser utilizados para o efetivo exercício da atividade econômica da empresa que os agrega. 511
O termo “ônus” é aqui utilizado como “ônus processual”, caracterizado por escolhas feitas pela parte que podem lhe trazer prejuízos, principalmente no que tange ao resultado da demanda (cf. DONIZETTI, Elpídio. Curso didático de direito processual civil. 14ª edição. São Paulo: Atlas, 2010, p. 159)
283
Sobre o artigo em exame, vale transcrição do magistério de Arnaldo
Süssekind:
O registro da permanência dos empregados em livro de ponto, fichas
ou sistemas eletrônicos tem por finalidade, no interesse dos
contratantes, a comprovação do tempo que aqueles ficaram à
disposição do empregador: início e fim da jornada e do
correspondente intervalo. Aliás, nos estabelecimentos com mais de
dez empregados é obrigatória a adoção de controle da observância do
horário de trabalho, seja através desses livros, de registros mecânicos
ou eletrônicos (§2º do art. 74 da CLT). Se o empregador não mantiver
tais livros ou registros, estará infringindo norma legal de ordem
pública, que o sujeitará a penalidade de natureza administrativa,
aplicável pelo Ministério do Trabalho. E estará, igualmente,
dificultando a prova, pelos empregados, de eventuais prestações de
trabalho extraordinário. A obrigatoriedade da instituição de
mecanismos de controle do horário de trabalho visa, portanto, a
proteger o empregado. Daí o Enunciado no. 338 do TST...512
Assim, não contando o empregador com sistemas AVL instalados em
veículos de sua frota conduzidos por empregados seus, estará o mesmo deixando de
exercer, por negligência sua, a fiscalização e o controle possíveis em relação à
atividade do empregado, correndo por sua própria conta e risco a omissão no
cumprimento dos termos do artigo 74, parágrafo 2º, da CLT, ensejando,
processualmente, a presunção relativa de veracidade de jornada declinada na peça
inicial, na hipótese de contenda judicial com pedido de pagamento de horas extras,
conforme entendimento já pacificado pelo Tribunal Superior do Trabalho através da
Súmula 338, que, em seu inciso I, determina:
TST. Súmula 338. Horas extras. Ônus da prova. I- É ônus do
empregador que conta com mais de 10(dez) empregados o registro da
jornada de trabalho na forma do art. 74, §2º, da CLT. A não-
apresentação injustificada dos controles de freqüência gera presunção
relativa de veracidade da jornada de trabalho, a qual pode ser elidida
por prova em contrário...
De fato, tanto o artigo 74, §2º, da CLT quanto a Súmula 338 do TST são
instrumentos de aplicação do princípio da aptidão para a prova, no sentido de que a
512
SÜSSEKIND, Arnaldo et alli. Instituições de direito do trabalho. 19ª edição. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 818.
284
prova deverá ser produzida por aquela parte que a detém ou que tem acesso à mesma,
sendo inacessível à parte contrária513
. Destaca a doutrina a originalidade da introdução
desse princípio ao direito processual do trabalho ao jurista mexicano Armando Porras
López que, em sua obra Derecho Procesal del Trabajo, descreve:
a) La carga de la prueba es una obligación, um derecho y un deber,
em la ciencia procesal moderna; b) Debe probar, el que este en
aptitude de hacerlo, independientemente de que sea el actor o el
demandado; c) Para la distribuición de la carga de la prueba debe
atenderse no tanto a la situación de los contendientes, sino a la
finalidad del proceso, ya que quien ofrezca mejores pruebas, obtendrá
una sentencia favorable; d) Las pruebas se dirigen al juez, a fin de que
este resuelva los juicios “secundum allegata et probata”514
A respeito da aplicação deste princípio ao processo do trabalho brasileiro,
merece citação Estêvão Mallet:
As regras relativas ao ônus da prova, para que não constituam
obstáculo à tutela processual dos direitos, hão de levar em conta
sempre as possibilidades, reais e concretas, que tem cada litigante de
demonstrar suas alegações, de tal modo que recaia esse ônus não
necessariamente sobre a parte que alega, mas sobre a que se encontra
em melhores condições de produzir a prova necessária à solução do
litígio, inclusive com inversão do ônus da prova. Com isso, as
dificuldades para a produção da prova, existentes no plano do direito
material e decorrentes da desigual posição das partes litigantes, não
são transpostas para o processo, ficando facilitado inclusive o
esclarecimento da verdade e a tutela de situações que de outro modo
provavelmente não encontrariam proteção adequada.515
Acrescente-se que o artigo 2º, V, da Lei 12.619/12, abaixo transcrito,
assegura ser direito dos motoristas profissionais, além daqueles previstos na
Constituição, “jornada de trabalho e tempo de direção controlados de maneira
fidedigna pelo empregador”, o que, tratando-se de controle de jornada de motorista
rodoviário com labor externo, somente será realizado, “de maneira fidedigna”, através
513
PAULA, Carlos Alberto Reis de. A especificidade do ônus da prova no processo do trabalho. São Paulo: LTr, 2001, p. 139.
514
LÓPEZ, Armando Porras. Derecho Procesal del Trabajo. Puebla: Editorial José Cajica, 1956, p. 251. 515
MALLET, Estêvão. Discriminação e processo do trabalho. Revista do TST. Rio de Janeiro. V. 65, n.1, p. 148-159, out/dez 1999, p. 154.
285
de sistemas AVL, ante as características informativas já pormenorizadamente
apontadas nesta tese.
Lei 12.619/12. São direitos dos motoristas profissionais, além
daqueles previstos no Capítulo II do Título II e no Capítulo II do
Título VIII da Constituição Federal: (...)
V- jornada de trabalho e tempo de direção controlados de maneira
fidedigna pelo empregador, que poderá valer-se de anotação em diário
de bordo, papeleta ou ficha de trabalho externo, nos termos do §3º do
art. 74 da Consolidação das Leis do Trabalho-CLT, aprovada pelo
Decreto-Lei no. 5.452, de 1º de maio de 1943, ou de meios eletrônicos
idôneos instalados nos veículos, a critério do empregador.
O termo “fidedigna” é utilizado no texto legislativo sob análise como
adjetivo, qualificando a maneira como “jornada de trabalho e tempo de direção”
devem ser controlados. Ora, o sentido denotativo de “fidedigno” é digno de crédito, de
confiança, de fé516, sinônimo de “verdadeiro”, tendo-se, assim, que a melhor
interpretação da parte inicial do artigo 2º, V, da Lei 12.619/12 é no sentido de que o
controle de jornada dos motoristas rodoviários com jornada externa deve ser realizada
através de instrumento capaz de demonstrar, em realidade, o perfil da atividade
exercida pelo motorista durante a sua jornada diária externa, não se conhecendo outro
instrumento cumpridor de tal requisito senão os sistemas AVL – Automatic Vehicle
Location–.
A mesma sorte tem a “papeleta” em poder do empregado motorista
rodoviário de que trata o artigo 74, §3º, da CLT(“Se o trabalho for executado fora do
estabelecimento, o horário dos empregados constará, explicitamente, de ficha ou papeleta em
seu poder..”), que deve conter marcação de horários extraídos de fonte fidedigna (ante a
necessidade de compatibilização entre as normas jurídicas contidas no artigo 2º, V, da
Lei 12.619/12 e no artigo 74, §3º, da CLT), devendo tal fonte ser um sistema AVL,
vez tratar-se do único instrumento idôneo para refletir a realidade da jornada de
trabalho desempenhada pelo motorista rodoviária com atividade eminentemente
externa.
516
HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Disponível em: < http://houaiss.uol.com.br/busca.jhtm?verbete=fidedigno&stype=k>. Acesso em: 02.maio.2012.
286
Independentemente do ônus processual assumido pelo empregador ao não
se utilizar de sistemas AVL para monitorar os seus empregados-motoristas rodoviários
(vez que tal ônus, entendemos e defendemos, existe pelo próprio conteúdo do artigo
74, §2º, da CLT e do artigo 2º, V, da Lei 12.619/12 e a interpretação dada ao seu não
cumprimento através da Súmula 338 do TST), que a legislação de trânsito, através das
Resoluções nos
330, de 14/08/2009 e 111 do Conselho Nacional de Trânsito, de
28/04/2011 (transcritas nos anexos A e B), já fixa obrigatoriedade de instalação de
sistemas AVL em veículos automotores novos, a partir de 15 de agosto de 2012,
tornando-se a partir da referida data, a manutenção de tais equipamentos (em veículos
produzidos a partir de 15 de agosto de 2012) uma obrigatoriedade, ensejando, o seu
descumprimento, infração de trânsito, na forma do artigo 105, caput, e artigo 230, IX,
da Lei 9.503/97517 (Código de Trânsito Brasileiro).
Por fim, da pesquisa realizada e das conclusões alcançadas, constatamos
que, in casu, o avanço tecnológico resultou em maior efetivação das normas jurídicas
trabalhistas, incluindo um leque maior de trabalhadores sujeitos ao regime de controle
e de percepção de horas extras, num movimento contrário àquele inicialmente
apontado por Amauri Mascaro Nascimento em sua recente obra “Direito do Trabalho
Contemporâneo”:
... o direito do trabalho contemporâneo, embora conservando a sua
característica inicial centralizada na idéia de tutela do trabalhador,
procura não obstruir o avanço da tecnologia e os imperativos do
desenvolvimento econômico, para modificar alguns institutos, e a
principal meta dos sindicatos passa a ser a defesa do emprego e não
mais a ampliação de direitos trabalhistas... 518
517
Lei 9.503/97. Art. 230. Conduzir o veículo: (...) IX - sem equipamento obrigatório ou estando este ineficiente ou inoperante; (...) Infração - grave; Penalidade - multa; Medida administrativa - retenção do veículo para regularização;
Lei 9.503/97. “Art. 105. São equipamentos obrigatórios dos veículos, entre outros a serem estabelecidos pelo CONTRAN...”
518
NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Direito do Trabalho Contemporâneo. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 18-19.
287
CONCLUSÃO
Frente ao problema apresentado e todos os pontos detalhadamente
apresentados nos quatro capítulos desta tese, concluímos que:
1) Os sistemas “Automatic Vehicle Location”, geralmente identificados pela sigla
AVL, são resultado de uma montagem de tecnologias e equipamentos que permitem o
conhecimento da posição de um determinado veículo, bem como a realização de
operações associadas, como a transmissão de informações disponíveis a bordo, obtidas
através de dispositivos de aquisição de dados. O atual estado da técnica de tais
sistemas permite aos seus usuários o acesso a informações fidedignas com alto grau de
precisão e em tempo real;
2) As tecnologias fundadas em dispositivos móveis (como telefones celulares,
smartphones e GPS), redes telemáticas sem fio (como wi-fi, wi-max e bluetooth) e
sensores geraram uma mudança no regime de visibilidade(forma como os indivíduos
vêem e são vistos na sociedade) antes existente, criando um regime que se baseia não
no espaço físico ou nos limites do alcance do olho humano, mas fundado no espaço
informacional e que é denominado como “espaço ampliado”, que conceituamos como
representações, sob a forma de imagem, sons e até mesmo de sensações táteis, de uma
realidade que é física e naturalmente distante do cidadão comum (isto é, realidade que
lhe seria inatingível naturalmente pela visão), permitindo ao cidadão não só ter efetivo
acesso a essa realidade, como também com ela interagir;
3) Os sistemas “Automatic Vehicle Location” proporcionam ao seu gestor
(Empregador) um “espaço ampliado” do ambiente de trabalho, que extrapola em muito
o limitado território físico da sede da empresa e é ilimitado, no sentido de acompanhar
288
o deslocamento do veículo e de seu condutor (Empregado), bem como o
comportamento realizado pelo condutor no transcurso da atividade laboral externa;
4) A “eticidade” é um método de incidência, na construção da norma jurídica (que
envolve não só a atividade legislativa de produção de enunciados prescritivos, como
também a atividade de interpretação com vistas à aplicação da norma jurídica ao caso
concreto), de valores incidentes na realidade fatual(no momento da aplicação da norma
jurídica) sob o prisma do fato a ser normado e do sistema jurídico como um todo;
5) O regime de visibilidade (forma como os indivíduos se vêem e são vistos na
sociedade, que se caracteriza como a forma como certa sociedade considera verdadeiro
discurso baseado numa determinada imagem, numa determinada exposição produzida
a partir dos recursos tecnológicos disponíveis na respectiva época) é um valor cultuado
pela sociedade em realidades fatuais que se apresentem e que, portanto, faz parte da
experiência jurídica, devendo, frente à “eticidade”, incidir sobre os fatos normados,
gerando a escolha de uma das possibilidades semânticas do texto normativo
interpretado (tal escolha terá como vertente a incidência do “valor” ao fato concreto
em análise) levando-se em consideração a sua “elasticidade semântica”(a sua
polissemia, capacidade de um mesmo enunciado referir-se a mais de um significado);
6) A mudança, numa sociedade, do regime de visibilidade é capaz de gerar mutação
normativa – entendida como modificação do conteúdo da norma jurídica a despeito da
manutenção do enunciado prescritivo(texto legislativo) -, especialmente naquelas
normas cujos elementos baseiam-se na visibilidade (capacidade de se ver ou ser visto);
7) O não-enquadramento dos “trabalhadores externos” no regime jurídico de controle
de jornada de trabalho e pagamento de horas extraordinárias sempre fez parte do
289
conteúdo do artigo 62 da CLT, apesar das modificações legislativas implementadas em
1985 (pela Lei 7.313/85) e em 1994 (através da Lei 8.966/94), havendo, no entanto,
com a redação lavrada pela Lei 8.966/94, a qualificação da atividade externa como
“incompatível com a fixação de horário” em substituição a anterior expressão “não
subordinado a horário”. Tal modificação no qualificativo do trabalho externo para
efeito de não enquadramento no regime jurídico de horas extras gerou uma maior
vinculação ao “regime de visibilidade”. Assim, o principal elemento para o
enquadramento de determinada situação fática ao inciso I do artigo 62 da CLT sob o
manto do adjetivo “incompatível com o controle de jornada” afasta-se do mero direito
potestativo do empregador e passa a ser a possibilidade ou impossibilidade fática do
empregador fiscalizar e controlar a jornada de trabalho realizada externamente pelo
empregado, daí a absoluta necessidade de compatibilidade do conteúdo normativo com
o regime de visibilidade (valor incidente) cultuado pela sociedade no momento da
subsunção normativa;
8) Frente às exigências do arcabouço constitucional vigente no Estado brasileiro,
somente as teorias do poder empregatício como direito-função e como relação
jurídica complexa são capazes de prosperar como viáveis, motivo pelo qual, na
interpretação do enunciado prescritivo contido no artigo 62, I, da CLT, tais teorias
devem ser consideradas na valoração da distribuição de deveres e obrigações das
partes da relação jurídica empregatícia. E, aplicando-se o raciocínio acima exposto
frente às hipóteses interpretativas do artigo 62, I, da CLT, não há como se admitir a
prevalência de hipótese interpretativa que vincula a direito potestativo do Empregador
de realizar controle de jornada de trabalho o enquadramento do caso concreto na
hipótese excepcional descrita no artigo 62, I, da CLT;
9) Tendo em vista a natureza de Direitos Fundamentais de 2ª Geração das normas
jurídicas construídas a partir dos incisos IX(referente ao adicional noturno) e
XVI(pertinente ao direito a horas extras) do artigo 7º da Constituição Federal e sendo a
norma jurídica contida no artigo 62, I, da CLT hipótese de exceção à aplicabilidade, no
caso concreto, dos referidos Direitos Fundamentais, somente há que se considerar,
para efeito de construção da norma jurídica contida no artigo 62, I, da CLT, hipóteses
290
interpretativas que evidenciem, no mundo fenomênico, a efetiva impossibilidade de
controle da jornada de trabalho (isto é, a impossibilidade efetiva, em concreto, de
verificação quantitativa e/ou qualitativa da prestação laboral);
10) O texto constitucional especifica “padrões” para a duração normal de trabalho
(conforme art. 7º, XIII e XIV, da CF/88), bem como “padrão mínimo” para a
remuneração do “serviço extraordinário” no importe de 50%(cinquenta por cento)
superior ao valor da “hora normal” (conforme art. 7º, XVI, da CF/88), sendo que a
exceção constitucional à aplicação da regra de que o labor realizado em sobrejornada
seja remunerado é taxativamente prevista no parágrafo único do artigo 7º da
Constituição Federal e é dirigida exclusivamente à categoria dos trabalhadores
domésticos. Assim, qualquer exceção infraconstitucional à regra de direito à percepção
de contraprestação pelo empregado em razão de sobrejornada somente pode se
justificar pela extraordinariedade do fato excetuado, caracterizada pela efetiva
impossibilidade de controle de jornada, seja por absoluta impossibilidade física, seja
por inexistência de tecnologia de vigilância disponível no mercado e acessível a todos
os empregadores, sob pena de inconstitucionalidade;
11) A “valorização do trabalho” - classe em que se incluem as espécies “valores
sociais do trabalho” (art. 1º, IV, da CF/88) e “valorização do trabalho humano” (art.
170, caput, da CLT) -, sob o enfoque de determinação da sua extensão, de forma
quantitativa e qualitativa, através de cálculo ou mensuração, com o fito de
contraprestação justa, é um elemento absolutamente importante na interpretação dos
enunciados prescritivos típicos do direito do trabalho. A proporcionalidade entre a
extensão da atividade laboral desenvolvida (pelo empregado) e a contraprestação
remuneratória (prestada pelo empregador ao empregado) é um dos instrumentos
essenciais para a realização, na relação de emprego, da justiça social pretendida
constitucionalmente, daí que o caráter sinalagmático (representando também a
291
comutatividade entre os direitos e obrigações das partes da relação de emprego) é
absolutamente necessário, sob pena de inconstitucionalidade;
12) Em razão de necessidade de respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana
(art. 1º, III, da CF/88) e as necessárias “valorização do trabalho humano”(art. 170,
caput, da CF/88) e “valorização social do trabalho” (art. 1º, IV, da CF/88), frente a
várias interpretações possíveis a um determinado enunciado prescritivo de natureza
trabalhista/empregatícia, há de se escolher, para efetiva aplicação ao caso concreto,
somente aquelas possibilidades interpretativas que sejam capazes de garantir efetiva
reciprocidade entre os interesses, inclusive e principalmente econômicos, do
empregado e do empregador, realizando-se a efetiva interpretação conforme a
Constituição e respeitando os princípios interpretativos da unidade e da supremacia da
Constituição;
13) A norma jurídica construída a partir do inciso I do artigo 62 da CLT enquadra-se
perfeitamente no conjunto das “normas cujos elementos se baseiam na visibilidade” (e
a expressão “atividade externa incompatível com a fixação de horário de trabalho”,
que entendemos ser o principal elemento do texto normativo em análise, não gera
dúvida quanto à essencialidade da “visibilidade” no ato de sua concretização), não há
como se deixar de concluir pela existência de mutação normativa em relação ao citado
dispositivo. Mais especificamente, a expressão “atividade externa incompatível com a
fixação de horário de trabalho” não pode ser realizada sem levar-se em consideração o
novo “regime de visibilidade” baseado em “espaço ampliado”, sob pena de
incompatibilidade da norma construída com a experiência jurídica vivenciada no
momento de sua aplicação. Prosseguindo tal raciocínio, uma vez sendo possível,
através de “espaço ampliado”, o controle da atividade laboral realizada externamente,
não há como cogitar-se o enquadramento do caso fático à norma de exceção capsulada
no inciso I do artigo 62 da CLT.
292
14) Através dos sistemas “Automatic Vehicle Location” disponíveis atualmente no
mercado brasileiro, e de acordo com o atual estado da técnica de tais sistema, é
absolutamente possível ao empregador controlar a frequência, o cumprimento de
ordens e a qualidade do serviço do empregado-motorista rodoviário com atividade
externa, não mas se justificando o afastamento do direito a horas extras à essa
categoria de empregados sob o fundamento de enquadramento no inciso I do artigo 62
da CLT, tendo-se como verdadeira a hipótese “a”519
levantada na “Introdução” desta
tese.
15) A equiparação de “meios telemáticos e informatizados de comando, controle e
supervisão” com “meios pessoais e diretos de comando, controle e supervisão do
trabalho alheio” para “fins de subordinação jurídica”, na forma do parágrafo único do
artigo 6º da CLT (introduzido pela Lei 12.511/11) tem como significado que:
- a apresentação de ordens pelo empregador (comando), bem como a fiscalização
quanto ao seu cumprimento pelo empregado (controle e supervisão) podem ser
realizadas tanto através de instrumentos baseados na tecnologia telemática
(transmissão de dados à distância) como de forma fisicamente presencial (como
tradicionalmente sempre se viu);
- a realização de comando, controle e supervisão por meios “telemáticos e
informatizados” gera os mesmos efeitos jurídico-trabalhistas que a realização das
mesmas atividades por meio fisicamente presencial. Assim, o controle da jornada de
519 Hipótese “a” apresentada na “Introdução” desta tese: “o sistema de posicionamento global em
combinação com comunicação celular e softwares de gerenciamento de frota, constituindo sistemas AVL torna
“compatíveis com o controle de jornada” as atividades externas exercidas por motoristas rodoviários,
afastando dessas atividades o alcance da norma contida no artigo 62, I, da CLT. A “compatibilidade com
controle de jornada” não exige a presença física do empregado aos olhos do Empregador ou preposto seu, mas
tão somente a existência de mecanismo que confira ao Empregador a certeza do efetivo exercício da atividade
laboral pelo Empregado durante um determinado período de tempo, sendo capaz de se fixarem os momentos
de inicio e de término diários das atividades realizadas, bem como os eventuais intervalos realizados. A
circunstância desse mecanismo se basear em dados transmitidos via web (rede mundial de computadores) não
afasta a sua idoneidade, a certeza de veracidade das informações apresentadas”.
293
trabalho (foco desta tese) realizada à distância tem o mesmo valor jurídico daquele
realizado “presencialmente”;
- do ponto de vista de imposição e cumprimento de normas jurídicas, as informações
obtidas através de instrumentos baseados na tecnologia “telemática” e “informatizada”
têm a mesma idoneidade (expressão aqui utilizada no sentido de possuir todas as
qualidades necessárias ao alcance de um determinado fim) que as informações obtidas
de forma fisicamente presencial, equiparando-se o “valor probatório” desses métodos
de transmissão e recebimento de informações;
- como resultado da equiparação entre os meios “tecnológicos” (baseados na
informatização e na telemática) e os meios tradicionais (baseados na observação
físico-presencial) de exercício do poder empregatício, passa o Empregador a ter o
“ônus”520
de se utilizar dos “meios tecnológicos” disponíveis no mercado capazes de
permitir o exercício do poder empregatício à distância, não se justificando a falta do
exercício do poder empregatício por inércia no uso dos “meios tecnológicos” como
meio de afastar a incidência de norma jurídica que concede direito trabalhista ao
Empregado.
16) O empregador tem o ônus de instalar sistema “Automatic Vehicle Location” em
veículos pertencentes à sua frota conduzidos por empregados seus, tendo em vista que,
como já apontado no item “14” desta conclusão, através dos sistemas AVL disponíveis
no mercado brasileiro é absolutamente possível ao empregador controlar a frequência,
o cumprimento de ordens e a qualidade do serviço do empregado-motorista rodoviário
com atividade externa, não mas se justificando o afastamento do direito a horas extras
a essa categoria de empregados sob o fundamento de enquadramento no inciso I do
artigo 62 da CLT, além de que o artigo 74, parágrafo 2º, da CLT determina que a
prova da jornada de trabalho é eminentemente documental, pré-constituída,
especialmente para os empregadores com mais de dez empregados, constituída pela
anotação obrigatória da hora de entrada e de saída, em registro manual, mecânico ou
520
O termo “ônus” é aqui utilizado como “ônus processual”, caracterizado por escolhas feitas pela parte que podem lhe trazer prejuízos, principalmente no que tange ao resultado da demanda (cf. DONIZETTI, Elpídio. Curso didático de direito processual civil. 14ª edição. São Paulo: Atlas, 2010, p. 159).
294
eletrônico, na forma de instruções expedidas pelo Ministério do Trabalho e Emprego,
cabendo ao empregador o encargo não só de produzir tais documento, como também
de os manter sob guarda para efetivo uso probatório. Assim, não contando o
empregador com sistemas AVL instalados em veículos de sua frota conduzidos por
empregados seus, estará o mesmo deixando de exercer, por negligência sua, a
fiscalização e o controle possíveis em relação à atividade do empregado, correndo por
sua própria conta e risco tal omissão, o que enseja, processualmente, a presunção
relativa de jornada declinada na peça inicial, na hipótese de contenda judicial com
pedido de pagamento de horas extras, conforme entendimento já pacificado pelo
Tribunal Superior do Trabalho através da Súmula 338;
17) O artigo 2º, V, da Lei 12.619/12 assegura ser direito dos motoristas profissionais,
além daqueles previstos na Constituição, “jornada de trabalho e tempo de direção
controlados de maneira fidedigna pelo empregador”, o que, tratando-se de controle de
jornada de motorista rodoviário com labor externo, somente será realizado, “de
maneira fidedigna”, através de sistemas AVL, ante as características informativas já
pormenorizadamente apontadas nesta tese. O termo “fidedigna” é utilizado no texto
legislativo sob análise como adjetivo, qualificando a maneira como “jornada de
trabalho e tempo de direção” devem ser controlados. Ora, o sentido denotativo de
“fidedigno” é digno de crédito, de confiança, de fé521
, sinônimo de “verdadeiro”,
tendo-se, assim, que a melhor interpretação da parte inicial do artigo 2º, V, da Lei
12.619/12 é no sentido de que o controle de jornada dos motoristas rodoviários com
jornada externa deve ser realizada através de instrumento capaz de demonstrar, em
realidade, o perfil da atividade exercida pelo motorista durante a sua jornada diária
externa, não se conhecendo outro instrumento cumpridor de tal requisito senão os
sistemas AVL – Automatic Vehicle Location–.
521
HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Disponível em: < http://houaiss.uol.com.br/busca.jhtm?verbete=fidedigno&stype=k>. Acesso em: 02.maio.2012.
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306
APÊNDICE A – Técnicas de posicionamento de objetos e pessoas
Modernamente e graças ao desenvolvimento da eletrônica, há várias
técnicas de posicionamento de objetos móveis na superfície da Terra com alto grau de
precisão. Passamos, a seguir, à análise da técnicas de posicionamento mais conhecidas:
1 Técnica Dead Reckoning
Um sistema de localização automática de veículos projetado sob “dead
reckoning” emprega em cada unidade móvel (veículo) instrumentos que medem a
distância percorrida e a mudança na direção do movimento, utilizando-se, para
executar tais medidas, o odômetro e a bússola, que funcionam simultaneamente para
produzir uma medida contínua do vetor deslocamento do veículo em relação a um
ponto de inicialização522
.
Para aferir a determinação da localização do veículo através da técnica em
estudo, é necessário conhecer-se a posição da unidade móvel em relação a um ponto
de referência fixo, como uma construção, um cruzamento ou uma rua, criando-se,
assim, o tempo “0” (t=0). Esse passo é conhecido como inicialização da posição
(identificado normalmente, em linguagem formalizada, como “I”). Posteriormente,
quando o veículo se afasta do ponto de inicialização ( I ), pares de aumento de
distância (identificados como “di”) e ângulos de curvas (representados pelo símbolo
“ i “) são formados e somados vetorialmente. Isso resulta num acúmulo contínuo de
resultados estimados contendo várias mudanças de direção que, finalmente, terminam
num determinado local (identificado como “L”) e num determinado momento (“T”),
permitindo-se, assim, através de cálculos vetoriais, a efetiva constatação do
posicionamento do veículo523
, como pode ser verificado na figura abaixo.
522
SKOMAL, Edward N. Automatic location systems. New York: Van Nostrand Reinhold Company, 1981, p. 5. 523
Idem.
307
Figura. Determinação de posicionamento através do uso da técnica “Dead Reckoning”
Fonte: SKOMAL, Edward N. Automatic location systems. New York: Van Nostrand Reinhold Company. 1981. p. 6
Um sistema AVL que tenha o seu módulo de posicionamento baseado na
técnica dead reckoning requer apenas alguns simples instrumentos montados em cada
veículo (odômetro e bússola, como já exposto) e a instalação de um modesto
processador de dados no controle central do sistema. Os dados da instrumentação
fornecidos por cada unidade móvel devem ser transmitidos via rádio ao controle
central do sistema para a realização do processamento, da análise e da visualização da
posição. Assim, também são necessários um transmissor de rádio e um receptor de
ondas de rádio instalados em cada veículo a ser rastreado. O receptor serve para
receber os comandos do controle central, além de fornecer um canal de comunicação
entre o operador do sistema e o condutor do veículo para transmissão de mensagens524
.
2 Técnica Proximity Detection
Um sistema de localização AVL que obtém estimativas dos dados de
posição de cada unidade (veículo) através da técnica proximity detection emprega o
princípio da navegação de direção de referência fixa. Nessa modalidade de
posicionamento, ondas de rádio são distribuídas em toda a área operacional da frota de
524
SKOMAL, Edward N. Automatic location systems. New York: Van Nostrand Reinhold Company, 1981, p. 64.
308
veículos rastreados. Dispositivos denominados “signposts”, em grande número e
precisamente posicionados ao longo de caminhos possíveis de movimento dos
veículos, emitem sinais de rádio-frequência devidamente codificados. Todos os
veículos estão equipados com instrumentos (equipamentos de rádio especializados em
recebimento de sinais e que podem detectar e decodificar as transmissões de sinais de
um signpost. Tais equipamentos emitem sinais codificados, que identificam a placa do
veículo) para interagir com cada “signpost”. Quando da passagem de um determinado
veículo da frota por um certo “signpost”, a central de controle do sistema recebe dados
a respeito da passagem, permitindo, assim, a localização do veículo registrando,
inclusive, o momento (tempo) da passagem525
, como se verifica da ilustração abaixo.
Figura. Posicionamento através do uso da técnica “Proximity Detection”
Fonte: SKOMAL, Edward N. Automatic location systems. New York: Van Nostrand Reinhold Company. 1981. p. 6
3 Técnica Radio Signal Time-Difference Determination
A técnica denominada “Radio Signal Time-Difference Detemination”
baseia-se na velocidade constante de um sinal de rádio no percurso entre um
transmissor e um receptor de rádio.
A velocidade de propagação de um sinal eletromagnético é apenas muito
ligeiramente afetada por mudanças nas condições atmosféricas ou da superfície da
Terra. Os efeitos combinados das variações de umidade atmosférica, temperatura,
525
SKOMAL, Edward N. Automatic location systems. New York: Van Nostrand Reinhold Company, 1981, p. 5-7.
309
pressão, condutividade superficial e constante elétrica introduzem uma variação
aleatória nos valores da velocidade de propagação do sinal eletromagnética inferior a
uma parte de mil em toda a gama completa de ocorrência dessas variáveis. Portanto, a
velocidade do sinal de rádio pode ser tratada como uma constante ao longo do
percurso e das zonas de dezenas de quilômetros em dimensão. Este grau de constância
na velocidade de sinal de rádio, combinado com o fato de que essas ondas se
propagam em linhas retas sobre os caminhos sem obstáculo, proporciona um meio
preciso para medir a distância de separação entre um transmissor e um receptor. O
requisito para a execução de uma medida de distância é apenas que seja possível
determinar a diferença de tempo entre o sinal que é transmitido a partir de um ponto e
o momento em que é recebido num outro ponto526
.
A distância de separação entre o emissor e o receptor é dada pela
multiplicação da velocidade conhecida do sinal de propagação do rádio e o tempo
gasto entre o momento em que sinal saiu do emissor e alcançou o receptor. Se o
transmissor é fixado com o objetivo de assegurar a cobertura de rádio dentro de uma
área metropolitana e se o receptor é montado sobre um veículo em movimento na área,
a localização instantânea do veículo pode ser descrita como estando num ponto num
raio de círculo centrado no local de emissão do sinal527
, como se verifica da ilustração
a seguir.
Figura. Posicionamento através do uso da técnica “Proximity Detection”
Fonte:SKOMAL, Edward N. Automatic location systems. New York: Van Nostrand Reinhold Company.1981. p. 10
526
SKOMAL, Edward N. Automatic location systems. New York: Van Nostrand Reinhold Company. 1981, p. 7-8 527
Idem.
310
4 A técnica Global Positioning System (GPS)
O GPS (Global Positioning System), também denominado NAVSTAR-GPS
(Navigation Satellite with Time and Ranging), tem sua origem no Departamento de
Defesa dos Estados Unidos da América, inicialmente com o objetivo de ser o principal
sistema de navegação das forças armadas daquele país. Em realidade, o GPS é o
resultado da fusão de dois programas financiados pelo governo norte-americano, quais
sejam: o Timation, de responsabilidade da Marinha, e o System 621B, de incumbência
da Força Aérea norte-americana528
. As bases do sistema foram criadas na década de
1960, sendo certo que somente em 1995 foi o sistema declarado integralmente
operacional. Inicialmente, em razão inclusive do próprio investimento para
desenvolvimento (fala-se em aproximadamente 35 bilhões de dólares), o seu uso era
estritamente militar, sendo que posteriormente passou-se a disponibilizá-lo para
práticas civis.
Tendo em vista o alto grau de precisão oferecido pelo GPS, acompanhado
de grande desenvolvimento da tecnologia envolvida nos receptores GPS, uma grande
comunidade usuária surgiu nos mais variados segmentos da sociedade civil como em
navegação, no posicionamento geodésico, na agricultura, no controle de frotas etc529
.
528
MONICO, João Francisco Galera. Posicionamento pelo Navstar-GPS. Descrição, fundamentos e aplicações. São Paulo: Editora Unesp, 2000, p. 21.
529
Idem.
311
APÊNDICE B- Técnicas de calibração de antenas GPS
No que se refere às formas de calibração das antenas GPS, têm-se as seguintes
técnicas: calibração em câmaras anecóicas, calibração relativa e calibração absoluta530
.
Analisemos as características principais de cada uma dessas técnicas:
- Calibração em câmaras anecóicas: a caracterização de antenas GPS no interior de
câmaras anecócias (ambiente adaptado para testar equipamentos eletrônicos sob
condições de laboratório, onde há a minimização da quantidade de reflexão ou
reverberação das ondas de diferentes características) consiste em simulações de sinais
GPS que incidem uniformemente nas antenas, que são inclinadas e rotacionadas para
se obter todas as configurações possíveis de recepção do sinal531
;
- Calibração Relativa: nesta técnica, as variações do centro de fase da antena são
determinadas em relação aos parâmetros de uma antena de referência, sendo que
ambas as antenas (a de referência e aquela em processo de calibração) são dispostas
numa linha de base curta e precisamente conhecida, sendo que os dados GPS dessa
linha de base são utilizados para determinar a posição do centro de fase conforme o
ângulo de elevação e de azimute do sinal incidente532
;
- Calibração Absoluta: baseia-se nas observações GPS não-diferenciadas de dias
consecutivos, sendo que a informação básica para a calibração encontra-se na
diferença entre as observações da constelação GPS de forma repetida de dois dias
siderais médios (dia sideral é o tempo que o Planeta Terra leva para completar uma
rotação com relação a uma determinada estrela, tendo valor médio de 23 horas, 56
minutos e 4,06 segundos) e, assim, em condições invariáveis na estação, esses efeitos
530
FREIBERGER JUNIOR, Jaime. Antenas de receptores GPS: características gerais. Material teórico de apoio ao Curso de Extensão Error sources in Highly Precise GPS Positioning da Universidade Federal do Paraná, 2004, p. 11. Disponível em: < http://www.geomatica.ufpr.br/docentes/ckrueger/pessoal/D_antenas.pdf>. Acesso em: 02.mai.2011.
531
Idem. 532
Idem.
312
se repetem nos mesmos períodos, podendo ser eliminados ao se formar a diferença
entre as observações de dois dias siderais consecutivos533
.
533
FREIBERGER JUNIOR, Jaime. Antenas de receptores GPS: características gerais. Material teórico de apoio ao Curso de Extensão Error sources in Highly Precise GPS Positioning da Universidade Federal do Paraná, 2004, p. 11. Disponível em: < http://www.geomatica.ufpr.br/docentes/ckrueger/pessoal/D_antenas.pdf>. Acesso em: 02.mai.2011.
313
APÊNDICE C – Outros “Sistemas Globais de Navegação por Satélite”
O sistema GPS é uma das espécies de “Sistemas Globais de Navegação por
Satélite” (atendendo pela sigla GNSS, do inglês Global Navigtation Satellite Systems),
havendo, entretanto, outros sistemas caracterizados como GNSS, destacando-se, dentre
eles, o GLONASS, o GALILEO e o COMPASS, cujas principais características são
apresentadas a seguir.
a) O sistema GLONASS: a sigla GLONASS advém do inglês Global Navigation
Satellite System e do russo Global’naya Navigatsionnaya Sputnikovaya Sistema,
referindo-se a um sistema, de origem soviética, cujo desenvolvimento iniciou-se cerca
de 30 anos atrás com características semelhantes ao GPS (NAVSTAR-GPS), fruto,
inclusive, da guerra fria entre Estados Unidos da América e, à época, a União das
Repúblicas Socialistas Soviéticas. Se de um lado os EUA desenvolviam o GPS, de
outro a URSS desenvolvia o GLONASS. Atualmente, o sistema é de responsabilidade
da Federação Russa534
.
O segmento espacial do GLONASS consiste originalmente numa
constelação de 24 satélites ativos e um reserva, distribuídos em três planos orbitais. O
primeiro satélite GLONASS foi lançado em Outubro de 1982, tendo o GLONASS sido
declarado operacional em Setembro de 1993, com uma primeira constelação de 12
satélites. A constelação prevista de 24 satélites apenas ficou operacional em Janeiro de
1996. A capacidade operacional do GLONASS foi alcançada no ano de 1996, no
entanto, a constelação completa dos 24 satélites operacionais do GLONASS apenas
esteve disponível durante curto espaço de tempo no mesmo ano de 1996535
. Devido ao
tempo de vida de cada satélite ser de 3 anos, e às sucessivas falhas no programa de
534
MORUJÃO, Daniela Maria Barbosa. Resolução instantânea da ambigüidade da fase no posicionamento cinemático preciso com os sistemas globais de navegação por satélite. Tese de doutoramento em ciências geofísicas e da geoinformação junto à Universidade de Lisboa, 2009, p. 35.
535
Ibidem, p.73.
314
reposição, a constelação operacional, no final de 2002, atingiu um mínimo de 7
satélites536
.
O segmento de controle e monitoramento consiste num sistema de controle
central, localizado na região de Moscou, que dissemina o sistema de tempo
GLONASS, um sistema de controle de freqüência(fase) que monitora o tempo e o
desvio das frequências, fazendo também parte desse segmento três estações de
comando e de rastreio, todas situadas em território russo537
, que medem as trajetórias
dos satélites e enviam suas efemérides, dois satélites a base de laser que rastreiam e
periodicamente calibram os dispositivos de medidas de distância e uma unidade de
campo para controle da navegação dos satélites, que monitora eventuais anomalias do
sistema538
.
O sistema GLONASS passa por um processo de reconstrução e
modernização, objetivando-se futuramente ter um desempenho ao nível do GPS.
b) O sistema GALILEO: o fato do governo norte-americano não autorizar que outras
nações participem conjuntamente do controle de uma configuração básica do GPS
levou a União Européia a desenvolver uma solução própria, o sistema GALILEO539
,
que está sendo desenvolvido pela Agência Espacial Européia (ESA) com o objetivo de
fornecer serviços de tempo e posicionamento em tempo real com diferentes níveis de
exatidão, integridade e disponibilidade em nível mundial, também composto, assim
como o GPS e o GLONASS, por três segmentos: o espacial, o de controle e o de
usuário540
.
536
MORUJÃO, Daniela Maria Barbosa. Resolução instantânea da ambigüidade da fase no posicionamento cinemático preciso com os sistemas globais de navegação por satélite. Tese de doutoramento em ciências geofísicas e da geoinformação junto à Universidade de Lisboa, 2009, p.36.
537
Ibidem, p. 35.
538 MONICO, João Francisco Galera. Posicionamento pelo Navstar-GPS. Descrição, fundamentos e aplicações. São
Paulo: Editora Unesp, 2.000, p.265 539
Ibidem, p. 273. 540
Ibidem, p. 30.
315
O segmento espacial, quando estiver completamente implementado,
consistirá numa constelação de 30 satélites (27 operacionais e 3 sobressalentes),
fornecendo uma cobertura adequada em torno de todo o globo terrestre. O segmento de
controle compreenderá dois centros de controle GALILEO, sendo um responsável pelo
controle de satélites e pela geração de dados de navegação e tempo e outro responsável
pelo controle da integridade do sistema. O segmento do usuário consistirá nos
diferentes tipos de receptores e nos centros que estabelecem a comunicação entre os
fornecedores dos serviços GALILEO e os seus utilizadores541
.
A perspectiva é de que o GALILEO atinja a sua capacidade operacional
completa em 2013, podendo, então, fornecer os seus serviços a uma ampla variedade
de usuários em todo o mundo542
.
c) O sistema COMPASS: a República Popular da China anunciou, em outubro de
2006, o desenvolvimento e a construção de um sistema próprio de navegação global,
denominado COMPASS que, assim como o GPS, o GLONASS e o GALILEO,
fornecerá serviços também a usuários civis, além de que possuirá muitos aspectos em
comum com o GPS e o GALILEO, fornecendo o material para a integração desses
sinais num eventual receptor GPS/GALILEO/GLONASS/COMPASS543
.
Lançado o primeiro satélite da constelação em 14 de abril de 2007, a
expectativa é de que a constelação completa do COMPASS estará completa no ano de
2015544
.
541
MONICO, João Francisco Galera. Posicionamento pelo Navstar-GPS. Descrição, fundamentos e aplicações. São Paulo: Editora Unesp, 2000, p. 31-34.
542
MORUJÃO, Daniela Maria Barbosa. Resolução instantânea da ambigüidade da fase no posicionamento cinemático preciso com os sistemas globais de navegação por satélite. Tese de doutoramento em ciências geofísicas e da geoinformação junto à Universidade de Lisboa, 2009, p. 35.
543
Ibidem, p.37-38. 544
Ibidem, p. 39.
316
APÊNDICE D – A evolução da técnica de comunicação celular
O estado atual da técnica da comunicação celular se dá graças à constante
evolução desse setor das telecomunicações, podendo-se, inclusive, classificar as redes
celulares em gerações da seguinte maneira:
-1G (primeira geração): caracterizada por redes celulares analógicas545
;
-2G (segunda geração): redes celulares digital baseadas em comutadores de circuitos,
como utilizado nas redes CDMA, TDMA e GSM;
-2,5G (geração intermediária entre a segunda e a terceira): redes de segunda geração,
mas com transmissão de pacotes de média/alta velocidade, voltados para transmissão
de dados, como nos sistemas GPRS e EDGE ;
-3G (terceira geração): redes de altíssima velocidade, com possibilidades de
videoconferência, transmissões em tempo real e jogos online.
Passamos a analisar cada um dos passos de evolução da comunicação
celular:
a) A primeira geração (1G). Redes analógicas de telefonia móvel
A primeira geração de telefonia móvel, que ficou conhecida como “1G”
utilizava a modulação de sinais analógicos numa portadora de rádio-frequência e
operava sobre redes com tecnologia de comutação de circuito, que se caracteriza pelo
fato de um circuito de voz ser alocado permanentemente enquanto dura a chamada546
.
545 Os aparelhos analógicos funcionam com um microfone, convertendo a voz em sinais elétricos. Esses sinais
causam vibrações em ondas eletromagnéticas que são captadas por uma central e retransmitidas a um outro aparelho, onde um auto-falante reconstrói o som. Já os celulares digitais transformam a voz em impulsos elétricos, representados por uma seqüência de números (código binário), sendo que a mesma onda pode carregar até 3 conversas diferentes até a central, que retransmite para o aparelho. O próprio celular transforma a onda e o código em voz.
546
CARDOSO, Pedro Klecius Farias. Apostila de Redes Celulares. Ceará: Centro Federal de Educação Tecnológica do Ceará – Departamento de Ensino/Curso de Telemática. Disponível em: < http://www.cdvhs.org.br/sispub/image-data/1273/GSM-CMoveis_Cap1_7_0405.pdf>. Acesso em: 05.mai.2011.
317
Nessa primeira geração o acesso é obtido através principalmente da tecnologia AMPS
(Advanced Mobile Phone Service), um sistema telefônico móvel desenvolvido nos
Estados Unidos da América cujos sinais de voz são modulados em freqüência
(Frequency Modulation –FM), sua sinalização opera na taxa de 10Kbps547
, e tanto o
sinal de voz quanto a sinalização ocupam uma largura de banda correspondente a
30KHz548
. Trata-se de tecnologia que só permite transmissão de som.
b) A Segunda Geração (2G). Introdução do sistema digital.
Tendo em vista as limitações da tecnologia AMPS que sustentava a
primeira geração de celulares, o sistema analógico havia atingido o limite de sua
capacidade, havendo a necessidade de sistemas digitais com maior capacidade, dando-
se origem à segunda geração da tecnologia celular, de caráter digital e que apresenta
muitas vantagens sobre o sistema analógico, como: codificação digital de voz mais
poderosa, maior eficiência espectral549
, melhor qualidade de voz, facilidade da
comunicação de dados e criptografia550
. Nessa segunda geração, três grupos evolutivos
principais se formam, que são o TDMA, o CDMA e o GSM.
547
Importante, nesse ponto, tratar das medidas de tamanho de arquivos de dados e de velocidade de
transmissão de dados. No que se refere ao tamanho dos arquivos, temos “Bit” (que é a menor unidade de dados que pode ser armazenada ou transmitida), “Byte”(cada Byte possui 8 bits), Kilobyte (que também atende por “Kbyte” e “KB”, correspondendo a 1024 bytes), Megabyte (também denominado “MByte” e “ MB”: corresponde a 1024 Kbytes) e Gigabyte (que atende também por “GByte” e “GB”, correspondendo a 1024 megabytes). Quanto às medidas de velocidade de dados, tem-se: Kbps (que significa kilobits por segundo, correspondendo 1.000 bits por segundo), KBps (que significa kilobyte por segundo, correspondendo a 1.000 bytes por segundo, sendo que, como um byte possui 8 bits, 1 KBps possui uma velocidade de 8000 bits por segundo). 548
Hertz, que atende pelo símbolo “Hz”, é a unidade de freqüência que expressa em termos de ciclos (que são as repetições do padrão de uma onda) por segundo a frequência de um evento periódico, oscilações (vibrações) ou rotações por. Um de seus principais usos é descrever ondas senoidais, como as de rádio ou sonoras. Um Hz significa 1 ciclo por segundo, 100 Hz significa 100 ciclos por segundo e 1KHz refere-se a 1000 ciclos por segundo.
549
Eficiência espectral se trata de uma técnica de modulação em que a largura de banda usada para transmissão é muito maior que a banda mínima necessária para transmitir a informação. 550
Criptografia é técnica pela qual a informação é transformada da sua forma original para outra ilegível, de forma que possa ser conhecida apenas por seu destinatário, que detém um código secreto, o que a torna difícil de ser lida por alguém não autorizado.
318
O TDMA (Time Division Multiple Access) é uma tecnologia de acesso que
funciona dividindo um canal de freqüência em vários intervalos de tempo distintos,
sendo que cada usuário ocupa um espaço de tempo específico na transmissão,
impedindo-se, assim, problemas de interferência. Nesse sistema um canal de voz
utiliza um par de canais: um chamado direto(para comunicação no sentido antena
dispositivo móvel) e outro reverso (no sentido dispositivo móvel antena), ambos
com largura de 30KHz e distância entre eles de 45MHz551
.
A tecnologia CDMA (Code Division Multiple Access), ao contrário da
técnica anterior, utiliza a técnica de espalhamento espectral, na qual para um
determinado canal é usada toda a largura de banda disponível (no caso, 1,23 MHz),
muitas vezes maior do que a necessária, a princípio, para uma transmissão de um único
sinal. O que parece ser uma desvantagem, torna-se uma vantagem poderosa, quando se
consideram as condições em que esse canal de banda larga é utilizado. Como diversos
usuários podem utilizar a mesma banda ao mesmo tempo, a diferenciação entre cada
assinante no sistema CDMA é feita por códigos especiais associados a cada
transmissão552
, permitindo que um grande número de usuários acesse simultaneamente
um único canal sem que haja interferência.
A tecnologia GSM (Global System form Mobile Communication) foi
desenvolvida na Europa e adotada em boa parte do mundo, diferenciando-se das outras
tecnologias pelo uso de cartões de memória “SIM Cards”, conforme figura 36, nos
aparelhos, o que possibilita levar as características do usuário para outro aparelho ou
rede GSM553
. Trata-se de um sistema de celular digital baseado em divisão de tempo,
como o TDMA, e é considerada a evolução desse sistema, permitindo acesso à
internet. É tecnologia utilizada como padrão para a telefonia celular digital na Europa
551
CARDOSO, Pedro Klecius Farias. Apostila de Redes Celulares. Ceará: Centro Federal de Educação Tecnológica do Ceará – Departamento de Ensino/Curso de Telemática. Disponível em: < http://www.cdvhs.org.br/sispub/image-data/1273/GSM-CMoveis_Cap1_7_0405.pdf>. Acesso em: 05.mai.2011.
552
SILVA, Jackson Luiz. A evolução da Comunicação Celular. 2009. Disponível em: < HTTP://pessoal.educacional.com.br>. Acesso em 20.abr.2011, p.2.
553
Ibidem, p.2.
319
desde 1992 e está presente nas Américas desde 1993, motivo pelo qual é o sistema de
maior cobertura em todo o mundo554
.
Figura. Exemplo de SIM Card
Fonte: Grupo de Teleinformática e Automação da Universidade Federal do Rio de Janeiro
c) A geração 2,5G, intermediária entre as segunda e terceira gerações
A principal característica dos sistemas típicos da geração “2,5G” é a
integração com a transmissão de pacotes de dados555
, devido à forte demanda de
serviços de acesso à internet para ambiente wireless, com uma técnica avançada de
modulação, permitindo a comutação de pacotes ao invés de circuitos. Diferentemente
da comutação por circuito que aloca um circuito durante toda a transmissão, a
comutação de pacotes só utiliza o caminho quando de fato há dados para transmitir,
trazendo um uso mais eficiente da banda disponível e promovendo o meio de
transporte mais apropriado para a navegação de aplicações na internet a partir de
dispositivos wireless. As técnicas mais utilizadas nessa geração são a GPRS e a
EDGE.
554
CARDOSO, Pedro Klecius Farias. Apostila de Redes Celulares. Ceará: Centro Federal de Educação Tecnológica do Ceará – Departamento de Ensino/Curso de Telemática. Disponível em http://www.cdvhs.org.br/sispub/image-data/1273/GSM-CMoveis_Cap1_7_0405.pdf. Acesso em 05 de maio de 2011.
555 Na Internet, a rede divide uma mensagem de e-mail em partes de um certo tamanho em bytes. Estes são os
pacotes. Cada pacote carrega a informação que ajudará a chegar a seu destino: o endereço IP do emissor, o endereço IP do destinatário pretendido, algo que informe à rede em quantos pacotes essa mensagem de e-mail foi dividida e o número desse pacote em particular. Os pacotes carregam os dados nos protocolos usados pela Internet: protocolo de controle de transmissão/protocolo Internet (TCP/IP). Cada pacote contém parte do corpo da mensagem. Um pacote típico contém entre 1000 ou 1500 bytes. Cada pacote é então enviado para seu destino por meio da melhor rota disponível: uma rota que pode ser seguida por todos os outros pacotes na mensagem ou por nenhum deles. Isso torna a rede mais eficiente. Primeiro, a rede pode equilibrar a carga através de seus diversos equipamentos em uma base de milissegundos. Segundo, se houver um problema em um equipamento na rede enquanto uma mensagem estiver sendo transferida, os pacotes podem utilizar outra rota, assegurando a entrega da mensagem inteira.
320
A tecnologia GPRS (General Packet Radio) trouxe aos sistemas GSM
características como a comutação de pacotes e o acesso à internet em alta velocidade –
acima de 9,6Kbps. Seu funcionamento se baseia em pacotes de dados com conexão
permanente – denominado always on -, sem a necessidade de reserva permanente de
espaço de tempo para o transporte de dados, acumulando características como: taxa de
transporte de dados máxima de 26 a 40 Kbps, podendo chegar a 171,2 Kbps e conexão
de dados sem necessidade de se estabelecer um circuito telefônico, o que permite a
cobrança por utilização e não por tempo de conexão556
.
A tecnologia EDGE (Enhanced Data-rates for Global Evolution) é uma
extensão da GPRS, tanto que também é denominada “GPRS ampliada (E-GPRS)”, que
pode alcançar taxas de pico superiores a 384 Kbps, oferecendo qualidade de serviço e
aplicações em tempo real, fornecendo aos usuários uma conexão permanente para
transmissão de dados. As taxas médias de velocidade são rápidas o suficiente para
permitir serviços de dados avançados, como streaming557
de áudio e vídeo e acesso
rápido à internet558
.
d) A geração 3G. As redes de altíssima velocidade
O denominado padrão 3G de telefonia celular se baseia em pesquisas
realizadas na Europa patrocinadas pelo ITUR (International Telecommunications
Union Radiocommunications Sector) e pelo ETSI (European Telecommunications
556
SARMENTO, Wellington Wagner Ferreira. Integração de um Ambiente Virtual de Aprendizagem com Aplicações Móveis de Suporte à Educação à Distância. Dissertação de mestrado. Universidade Federal do Ceará. Departamento de Engenharia de Teleinformática. Programa de Pós Graduação em Engenharia de Teleinformática. Fortaleza: 2007,p. 28-29
557
Streaming é uma forma de distribuição de informação multimídia numa rede através de pacotes, sendo frequentemente utilizada para distribuir conteúdo multimídia através da internet. Em streaming, as informações da mídia não são usualmente arquivadas pelo usuário que está recebendo a stream - a mídia geralmente é constantemente reproduzida à medida que chega ao usuário se a sua banda for suficiente para reproduzir a mídia em tempo real. 558
SARMENTO, Wellington Wagner Ferreira. Integração de um Ambiente Virtual de Aprendizagem com Aplicações Móveis de Suporte à Educação à Distância. Dissertação de mestrado. Universidade Federal do Ceará. Departamento de Engenharia de Teleinformática. Programa de Pós Graduação em Engenharia de Teleinformática. Fortaleza: 2007, p.29.
321
Starndard Institute) para a criação do denominado UMTS (Universal Mobile
Telecommunications System)559
, oferecendo aos usuários um leque de avançados
serviços, vez que possuem uma capacidade de rede maior por causa de uma melhora
na eficiência espectral( que se trata de uma técnica de modulação em que a largura de
banda usada para transmissão é muito maior que a banda mínima necessária para
transmitir a informação). Entre os serviços oferecidos há a telefonia por voz e a
transmissão de dados a longas distâncias, tudo em um ambiente móvel oferecido
normalmente em altíssimas taxas de velocidade (com taxas entre de 5 a 10 megabits
por segundo).
Da exposição sobre a evolução da comunicação celular, conclui-se que há
tecnologia, já amplamente consolidada no mercado, que permite ao “módulo de
comunicação sem fio” de um sistema AVL oferecer ao gestor do sistema dados em
tempo real, não só sob a forma de áudio ou de mensagens escritas, mas também de
imagens do veículo rastreado e, inclusive, de seu condutor.
559
CARDOSO, Pedro Klecius Farias. Apostila de Redes Celulares. Ceará: Centro Federal de Educação Tecnológica do Ceará – Departamento de Ensino/Curso de Telemática. Disponível em http://www.cdvhs.org.br/sispub/image-data/1273/GSM-CMoveis_Cap1_7_0405.pdf. Acesso em 05 de maio de 2011.
322
APÊNDICE E – Erros relacionados à propagação dos sinais no sistema GPS
Como os sinais (ondas eletromagnéticas) emitidos pelos satélites
propagam-se através da atmosfera, atravessando camadas de diferentes naturezas e
com estados variáveis, há o sofrimento de influências que provocam variações na
direção da propagação, na velocidade de propagação, na polarização e até mesmo na
potência do sinal. O movimento de rotação da Terra também gera efeitos nas
coordenadas do satélite durante a propagação do sinal. Tais efeitos têm como fatos
geradores a refração troposférica, a refração ionosférica, a perda de ciclos e a rotação
da Terra, sendo que o atual estado da técnica do sistema GPS permite a correção de
todos esses erros através de técnicas apropriadas. Passamos, abaixo, à analise
detalhada dos erros gerados por tais efeitos (mais especificamente a refração
troposférica, a refração ionosférica, a perda de ciclos e a rotação da Terra) e à
exposição da forma de correção de tais erros.
a) Quanto à refração troposférica, tem-se que o meio no qual ocorre a propagação
das ondas eletromagnéticas emitidas pelos satélites consiste na troposfera (camada
atmosférica mais próxima da superfície terrestre, situada de 10 km a 12 km de altitude,
na qual a temperatura decresce rapidamente com a altitude e se formam correntes de
convecção560
e as nuvens561
) e na ionosfera (parte superior da atmosfera terrestre, onde
se realiza a ionização, situada acima da estratosfera562
, entre 80 e 550 quilômetros de
altitude), ilustradas através da figura a seguir.
560
Convecção é processo de transporte de massa caracterizado pelo movimento de um fluido devido à sua diferença de densidade, especialmente por meio de calor; é o tipo de transmissão de energia térmica em que essa energia é transmitida por massas fluidas que se deslocam de uma região para outra em virtude da diferença de densidade dos fluidos existentes nessas regiões (Conforme material denominado “Energia – A essência dos fenômenos” elaborado através do Programa “Pró Ciências” da FAPESP sob coordenação do Professor Doutor Gil da Costa Marques. Disponível no site http://www.cepa.if.usp.br/energia/energia1999/Grupo2B/Refrigeracao/conveccao.htm. Acesso em 01 de maio de 2011). 561
Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Versão digital disponível através do site http://biblioteca.uol.com.br/. Acesso em 01 de maio de 2011.
562
MONICO, João Francisco Galera. Posicionamento pelo Navstar-GPS. Descrição, fundamentos e aplicações. São Paulo: Editora Unesp, 2000, p.126.
323
Figura. Camadas da atmosfera terrestre
Camadas da atmosfera terrestre: (a) troposfera; (b) estratosfera; (c) mesosfera; (d) ionosfera; (e)
exosfera.
Fonte: Ática Educacional(http://www.aticaeducacional.com.br/htdocs/secoes/acervo.aspx?cod=186)
A troposfera comporta-se, para freqüências abaixo de 30GHz, como um
meio não-dispersivo, de modo que a refração é independente da freqüência do sinal
transmitido, dependendo apenas das propriedades termodinâmicas do ar. Já a ionosfera
caracteriza-se por ser um meio dispersivo, cuja refração depende da freqüência563
.
Concentrando-nos no efeito da troposfera, é correto afirmar que tal efeito
pode variar de poucos metros até 30 metros, dependendo da densidade da atmosfera,
do ângulo de elevação do satélite e da massa gasosa que se concentra nas baixas
camadas da atmosfera terrestre (que são compostas por uma camada de gases secos –
denominada de componente hidrostático- e por uma outra camada composta de vapor
d’água – denominada componente úmido-)564
.
São exatamente os componentes hidrostático (camada de gases secos) e
úmido (camada de vapor d’água) que geram o chamado atraso troposférico. No
primeiro caso (componente hidrostático) o atraso ocorre principalmente em razão das
quantidades de nitrogênio e oxigênio e corresponde a aproximadamente 2,3 metros no
seu ponto mais elevado e varia com a temperatura e a pressão atmosférica do local. No
563
MONICO, João Francisco Galera. Posicionamento pelo Navstar-GPS. Descrição, fundamentos e aplicações. São Paulo: Editora Unesp, 2000, p. 126.
564
Ibidem, p.128.
324
segundo caso (componente hidrostático) o atraso ocorre pela influência do vapor
d’agua e é da ordem de 1,0 a 30,0 centímetros no seu ponto mais elevado565
.
Tem-se, pois, que o atraso troposférico é, aproximadamente, a soma dos
efeitos dos componentes hidrostático e úmido expressos como o produto do atraso
vertical com uma função de mapeamento, que relaciona o atraso vertical(atraso
zenital) com o atraso para outros ângulos de elevação, como abaixo demonstrado566
:
T rs= [TZH x mh(E) + TZW x mW(E)], tal que:
TZH é o atraso zenital567
do componente hidrostático;
TZW é o atraso zenital da componente úmido;
mh(E) e mW(E) são, respectivamente, as funções de mapeamento que relacionam o
atraso das componentes hidrostática e úmida com o ângulo de elevação (E) do satélite;
As estimativas desse atraso troposférico podem ser obtidas utilizando
processos estocásticos adequados a partir das observáveis GPS, havendo diversos
programas computacionais científicos que podem ser empregados para estimar tal
atraso, como o GOA II568
, valendo acrescentar que a RBMC (Rede Brasileira de
Monitoramento Contínuo dos Satélites GPS) possui várias estações de coleta de dados
GPS que podem ser utilizadas para obter a estimativa do atraso troposférico no
território brasileiro569
.
565
MONICO, João Francisco Galera. Posicionamento pelo Navstar-GPS. Descrição, fundamentos e aplicações. São Paulo: Editora Unesp, 2000, p.128. 566
Ibidem, p.129. 567
Atraso zenital é o resultado da conversão do atraso na direção satélite-receptor para a direção zenital (conforme SAPUCCI, Luiz Fernando; MACHADO, Luiz Augusto Toledo; MONICO, João Francisco Galera. Previsões do atraso zenital troposférico para a América do Sul: Variabilidade sazonal e Avaliação da qualidade. Disponível em: < http://www.rbc.ufrj.br/_pdf_58_2006/58_03_8.pdf>. Acesso em: 01.mai. 2011. 568
Sistema que utiliza métodos de processamento sofisticados e possibilita a modelagem de vários efeitos incidentes sobre os sinais GPS, sendo uma importante ferramenta que permite realizar tarefas específicas quando o trabalho requer alta precisão, como é o caso da estimativa do atraso zenital troposférico (conforme SILVA, Amanda Ferreira da; SAPUCCI, Luiz Fernando; MONICO, João Francisco Galera. Estimativa do atraso zenital troposférico utilizando dados GPS da RBMC. Disponível em < http://www.cartografia.org.br/xxi_cbc/233-g43.pdf>. Acesso em 01.mai. 2011). 569
SILVA, Amanda Ferreira da; SAPUCCI, Luiz Fernando; MONICO, João Francisco Galera. Estimativa do atraso zenital troposférico utilizando dados GPS da RBMC. Disponível em: < http://www.cartografia.org.br/xxi_cbc/233-g43.pdf>. Acesso em: 01.mai.2011.
325
Figura. Projeção do atraso troposférico na direção zenital
As funções de mapeamento têm por função projetar a atraso troposférico na direção satélite-receptor (traço
azul) para a direção zenital (traço vermelho) permitindo a modelagem da influência troposférica a partir das
medidas de temperatura, pressão e umidade do perfil vertical troposférico.
Fonte: Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais – Divisão de Satélites e Sistemas Ambientais.
b) Quanto à refração ionosférica, a mesma depende da freqüência e,
conseqüentemente, do índice de refração, que é proporcional ao TEC(Conteúdo Total
de Elétrons – do inglês Total Electron Contents), isto é, ao número de elétrons
presentes ao longo do caminho percorrido pelo sinal emitido pelo satélite até o
receptor. Como o TEC varia no tempo e no espaço em razão de muitas variáveis
(como a ionização solar, a atividade magnética, o ciclo de manchas solares, estação do
ano, localização do usuário e direção do raio vetor do satélite) tem-se um efetivo
problema, vez que tais variações podem fazer com que o receptor GPS perca a sintonia
com o satélite pelo enfraquecimento do sinal570
.
Inúmeros modelos têm sido desenvolvidos para estimar a densidade de elétrons,
mas é difícil encontrar um que estime o TEC com precisão, tendo-se como a melhor
alternativa para correção do erro causado pelo atraso ionosférico a estimação a partir
de observações simultâneas dos sinais transmitidos pelos satélites GPS em duas
freqüências diferentes571
, existindo, inclusive, programas computacionais para
570
MONICO, João Francisco Galera. Posicionamento pelo Navstar-GPS. Descrição, fundamentos e aplicações. São Paulo: Editora Unesp, 2000, p.135.
571
Ibidem, p.139.
326
avaliação estimativa do TEC, que se baseiam no formato IONEX (Ionosphere Map
Exchange)572
, ilustrado na figura 23, para construção de mapas globais da ionosfera
(que atendem pela sigla GIM, do inglês Global Inosphere Maps)573
, provendo a
estimativa realizada pelos órgãos componentes do segmento de controle do sistema
GPS afastando os erros ou os reduzindo a efeitos desprezíveis. Nesse sentido vale
transcrição de trecho da pesquisa científica realizada por Wesley Sato Rodrigues,
Paulo O. Camargo, William R. Dal Poz e Fabrício S. Prol publicada sob o título
“Mapas da Inosfera para o Brasil: produção e disponibilização em tempo quase real”
onde se concluiu:
Por meio desses mapas e arquivos IONEX, os usuários do sistema
GNSS poderão ter uma idéia do comportamento da ionosfera e
analisar o impacto dos resultados de seus levantamentos, bem como
utilizar os arquivos para corrigir as observáveis da portadora L1. Além
disso, passarão a possuir um arquivo IONEX de caráter regional, que
irá proporcionar valores mais condizentes com a realidade brasileira,
devido à utilização de um grande número de estações GNSS ativas
localizadas sobre o país para o cálculo do TEC.574
Figura. Exemplo de mapa de VTEC utilizando dados no formato IONEX
-75 -70 -65 -60 -55 -50 -45 -40 -35 -30
Longitude Geográfica
10/JULHO/2007 (07-08 UT) (04-05 HL)
-35
-30
-25
-20
-15
-10
-5
0
5
Lat
itu
de
Geo
grá
fica
VT
EC
0
10
20
30
40
50
60
70
80
90
Fonte: RODRIGUES, Wesley Sato; CAMARGO, Paulo O.; POZ, William R. Dal; PROL, Fabricio S. Produção
de mapas da Ionosfera utilizando dados GPS da RBMC e da Rede GPS ativa do Estado de São Paulo
572
GURTNER, Werner; SCHAER, Stefan; FELTENS, Joachim. IONEX: The Ionosphere Map Exchange Format Verson 1. 2010. Disponível em: < http://igscb.jpl.nasa.gov/igscb/data/format/ionex1.pdf>. Acesso em: 01. Mai. 2011.
573
RODRIGUES, Wesley Sato; CAMARGO, Paulo O.; POZ, William R. Dal; PROL, Fabricio S. Mapas da ionosfera para o Brasil: produção e disponibilização em tempo quase real. 2009. Disponível em: <http://prope.unesp.br/xxi_cic/27_22845377827.pdf>. Acesso em 01.mai.2011.
574
RODRIGUES, Wesley Sato; CAMARGO, Paulo O.; POZ, William R. Dal; PROL, Fabricio S. Mapas da ionosfera para o Brasil: produção e disponibilização em tempo quase real. 2009. Disponível em: <http://prope.unesp.br/xxi_cic/27_22845377827.pdf>. Acesso em 01.mai.2011.
327
c) Perdas de ciclos: no momento em que um receptor é ligado, é verificada a
diferença entre a portadora (onda eletromagnética) recebida do satélite e a sua réplica
gerada no receptor (essa diferença é denominada “parte fracionária”), sendo certo que
durante o rastreamento, o contador (de ciclos) é incrementado por um ciclo575
sempre
que a fase de batimento alcança o valor “0” e, por conseqüência, num determinado
momento, a fase observada é igual à soma da parte fracionária(medida quando o
receptor foi ligado) com o número de ciclos inteiros entre o satélite e o receptor576
.
Inexistindo interrupção da contagem no número inteiro de ciclos durante o
período de rastreamento, ele permanece constante. Num ambiente com amplo campo
de visão, as medidas de fase são habitualmente contínuas durante o período do
rastreamento. No entanto, essa continuidade não ocorre na maioria dos levantamentos
realizados com GPS, vez que pode ocorrer obstrução do sinal de um ou mais satélites
(obstrução essa que pode ser gerada por construções, árvores, pontes, montanhas,
variações bruscas da atmosfera, interferências de outras fontes de rádio, problemas
com o receptor, entre outros obstáculos à onda eletromagnética), impedindo que tal
sinal (ondas magnéticas) chegue até a antena do receptor, gerando, pois, perda de sinal
e acarretando também uma perda da contagem do número de ciclos medidos no
receptor, ocorrendo o que se denomina perda de ciclos577
. Tal situação é capaz de
gerar erro na localização do usuário, vez que, como já analisado, a fase da onda
portadora é uma das observáveis GPS.
Várias técnicas foram desenvolvidas para a detecção e correção do erro
gerado pela perda de ciclos. João Francisco Galera Monico, Eniuce Menezes de Souza
e Wagner Carrupto Machado no estudo denominado “Avaliação de Estratégias de
Detecção e Correção de Perdas de Ciclos Na Portadora GPS L1” ensinam que existem
vários métodos factíveis de identificação da ocorrência de perda de ciclos, sendo que o
575
Como já exposto no item 3.2.1.4.2 desta tese, denomina-se ciclo a repetição do padrão de uma determinada onda.
576
MONICO, João Francisco Galera. Posicionamento pelo Navstar-GPS. Descrição, fundamentos e aplicações. São Paulo: Editora Unesp, 2000, p. 149.
577
Ibidem, p. 149-150.
328
principal é o método das duplas diferenças que consiste em dados de dois receptores e
dois satélites com a aplicação da equação abaixo578
:
Tal que:
O método das duplas diferenças tem como principal vantagem o fato de que
a maioria dos erros comuns aos satélites e receptores é praticamente cancelada, sendo
o método normalmente utilizado no processamento de dados GPS, proporcionando a
melhor relação entre o ruído resultante e a eliminação de erros sistemáticos envolvidos
nas observáveis originais579
.
d) Erros gerados pela rotação da Terra: o cálculo das coordenadas do satélite
realizado durante o funcionamento do sistema GPS é realizado para um determinado
instante de transmissão do sinal e num certo sistema de coordenadas fixo à Terra.
Assim, é necessário efetuar a correção do movimento de rotação do Planeta Terra, vez
que durante a propagação da onda eletromagnética o sistema de coordenadas terrestres
rotaciona com relação ao satélite, modificando as suas coordenadas580
, como
demonstrado na figura a seguir.
578
MONICO, João Francisco Galera; SOUZA, Eniuce Menezes de; MACHADO, Wagner Carrupt. Avaliação de Estratégias de Detecção e Correção de Perdas de Ciclos na Portadora GPS L1. In “Boletim de Ciências Geodésicas ” , volume 15, no. 2, abril-junho de 2009. Curitiba: Universidade Federal do Paraná, p. 178-193.
579
Idem. 580
Idem. Posicionamento pelo Navstar-GPS. Descrição, fundamentos e aplicações. São Paulo: Editora Unesp, 2000, p. 151.
329
Figura. Efeitos da rotação da Terra na precisão do sistema GPS
Fonte: DEMARQUI, Edgar Nogueira. Observáveis GPS: características e erros.
Para a correção de tal erro, como ensina Galera Monico, as coordenadas
originais do satélite devem ser rotacionadas sobre o eixo Z de um ângulo α, definido
como o produto do tempo de propagação pela velocidade da rotação da Terra,
conforme equação abaixo581
, calculando-se as coordenadas corrigidas.
α = We . T
Tal que:
α = ângulo da rotação
We = velocidade de rotação da Terra
T= tempo de propagação da onda
O segmento de controle do sistema GPS procede à devida correção dos
erros relacionados à rotação da Terra, tendo-se como resultado, para o usuário,
informações que refletem a realidade, não gerando discrepâncias quanto à localização
de terminado móvel na superfície da Terra.
581
MONICO, João Francisco Galera. Posicionamento pelo Navstar-GPS. Descrição, fundamentos e aplicações. São Paulo: Editora Unesp, 2000, p. 151.
330
ANEXO A
RESOLUÇÃO Nº 330, DE 14 DE AGOSTO DE 2009, DO CONTRAN (Conselho
Nacional de Trânsito)
Estabelece o cronograma para a instalação do equipamento obrigatório definido na
Resolução nº 245/2007, denominado antifurto, nos veículos novos, nacionais e
importados.
O CONSELHO NACIONAL DE TRÂNSITO – CONTRAN, usando da competência
que lhe confere o art. 12, da Lei nº 9.503, de 23 de setembro de 1997, que instituiu o
Código de Trânsito Brasileiro – CTB, e conforme o disposto no Decreto nº 4.711, de
29 de maio de 2003, que trata da coordenação do Sistema Nacional de Trânsito – SNT;
Considerando o disposto no artigo 7º da Lei Complementar nº 121, de 09 de
fevereiro de 2006, que deu competência ao CONTRAN para estabelecer os
dispositivos antifurto obrigatórios e providenciar as alterações necessárias nos veículos
novos, saídos de fábrica, produzidos no país ou no exterior, a serem licenciados no
Brasil;
Considerando o disposto na Resolução nº 245, de 27 de julho de 2007, que definiu as
características do equipamento antifurto, e a necessidade de programação das
indústrias automotiva e de equipamentos, para fornecimento e instalação de forma
progressiva;
Considerando que o disposto no § 4º do artigo 105 do CTB, que trata dos
equipamentos obrigatórios, confere competência ao CONTRAN para estabelecer os
prazos para o atendimento da obrigatoriedade;
Considerando o resultado dos trabalhos dos Grupos Técnicos criados pelo
DENATRAN com a participação da ANFAVEA, ABRACICLO, Operadoras de
Telefonia Serviço Móvel Pessoal – SMP, Empresas de Monitoramento e Localização
de Veículos, Empresas Fabricantes de SIM Cards e Empresas Fabricantes de
Hardware;
Considerando o que consta do Processo nº 80000.016715/2009-60;
RESOLVE:
Art. 1º Referendar a Deliberação nº 83, de 22 de julho de 2009, do Presidente do
Conselho Nacional de Trânsito – CONTRAN, publicada no DOU de 23 de julho de
2009.
Art. 2° Implantar a Operação Assistida, com início em 1° de agosto de 2009 e término
em 31 de janeiro de 2010, com objetivo de validar o funcionamento de todo o sistema:
Bloqueio Autônomo, Bloqueio Remoto e a Função de Localização.
331
Art. 3º O DENATRAN criará um Grupo de Acompanhamento da Operação Assistida
– GA –, composto por integrantes dos órgãos e entidades que participaram dos Grupos
Técnicos criados para a implantação do sistema antifurto.
Art. 4° Estabelecer o seguinte cronograma mensal para a instalação do dispositivo
antifurto nos veículos novos produzidos e saídos de fábrica, nacionais e importados, a
serem licenciados no país:
I – Nos automóveis, camionetas, caminhonetes e utilitários:
a) a partir de 1° de fevereiro de 2010, 20% (vinte por cento) da produção total
destinada ao mercado interno;
b) a partir de 1º de julho de 2010, em 40% (quarenta por cento) da produção
total destinada ao mercado interno;
c) a partir de 1° de outubro de 2010, em 100% (cem por cento) da produção
total destinada ao mercado interno.
II – Nos caminhões, ônibus e microônibus:
a) a partir de 1° de fevereiro de 2010, em 30% (trinta por cento) da produção
total destinada ao mercado interno;
b) a partir de 1° de julho de 2010, em 60% (sessenta por cento) da produção
total destinada ao mercado interno;
c) a partir de 1° de outubro de 2010, em 100% (cem por cento) da produção
total destinada ao mercado interno.
III – Nos caminhões-tratores, reboques e semi-reboques a partir de 1° de
dezembro de 2010, em 100% (cem por cento) da produção total destinada ao mercado
interno.
IV - Nos ciclomotores, motonetas, motocicletas, triciclos e quadriciclos:
a) a partir de 1° fevereiro de 2010, em 15% (quinze por cento) por cento da
produção total destinada ao mercado interno;
b) a partir de 1° agosto 2010, em 50% (cinqüenta por cento) da produção
total destinada ao mercado interno;
c) a partir de 1° dezembro de 2010, em 100% (cem por cento) da produção
total destinada ao mercado interno.
Parágrafo único. Para efeito de produção total, consideram-se os veículos
produzidos no Brasil ou no exterior, destinados ao mercado interno.
Art. 5º Aos aparelhos automotores destinados a puxar ou arrastar maquinaria de
qualquer natureza ou executar trabalhos agrícolas e de construção ou de pavimentação
e aos reboques e semi-reboques previstos na ABNT NBR N° 10966 Categorias 1 e 2,
não se aplicam as disposições da Resolução nº 245/07.
Art. 6° A instalação do dispositivo antifurto será feita:
I - na respectiva fábrica, nos veículos produzidos no País;
332
II - em local sob responsabilidade do fabricante do veículo ou do importador, nos
veículos importados.
Art. 7º Os fabricantes e os importadores dos veículos objeto desta Resolução deverão
encaminhar ao CONTRAN, semestralmente, relatório demonstrativo do
cumprimento do cronograma estabelecido.
Art. 8º Esta Resolução entra em vigor na data de sua publicação, ficando
revogada a Resolução nº 295, de 28 de outubro de 2008.
333
ANEXO B
RESOLUÇÃO No. 111, DE 28/04/2011, DO CONTRAN (CONSELHO
NACIONAL DE TRÂNSITO)
Altera a Resolução nº 330, de 14 de agosto de 2009, que estabelece o cronograma
para a instalação do equipamento obrigatório definido na Resolução nº 245/07.
O Presidente do O Conselho Nacional de Trânsito, ad referendum do Conselho
Nacional de Trânsito - CONTRAN, no uso das atribuições que lhe confere o art. 12,
inciso I, da Lei nº 9.503, de 23 de setembro de 1997, que institui o Código de
Trânsito Brasileiro, combinado com o art. 6º do Regimento Interno daquele
Colegiado, e nos termos do disposto no Decreto nº 4.711, de 29 de maio de 2003,
que trata da coordenação do Sistema Nacional de Trânsito e,
Considerando o disposto no art. 7º da Lei Complementar nº 121, de 09 de
fevereiro de 2006, que deu competência ao CONTRAN para estabelecer os
dispositivos antifurto obrigatórios e providenciar as alterações necessárias nos
veículos novos, saídos de fábrica, produzidos no país ou no exterior, a serem
licenciados no Brasil;
Considerando o disposto na Resolução nº 245, de 27 de julho de 2007, que definiu
as características do equipamento antifurto, e a necessidade de programação das
indústrias automotiva e de equipamentos, para fornecimento e instalação de forma
progressiva;
Considerando o disposto no § 4º do art. 105 do CTB, que trata dos equipamentos
obrigatórios e confere competência ao CONTRAN para estabelecer os prazos para
o atendimento da obrigatoriedade;
Considerando o disposto na Resolução nº 330, de 14 de agosto de 2009, com as
alterações promovidas pela Resolução nº 343, de 05 de março de 2010 e pela
Resolução nº 364, de 24 de novembro de 2010;
Considerando o andamento da Operação Assistida e as reuniões entre a Anfavea,
Abraciclo, Sindipeças, Acel, Serpro, Gristec, Denatran e Mcidades;
Considerando os resultados observados durante a Operação Assistida e os prazos
necessários à entrada em operação da Infraestrutura de Telecomunicações do
DENATRAN;
334
Considerando o que consta do Processo nº 80000.041457/2010-93;
Resolve:
Art. 1º. O art. 2º da Resolução nº 330, de 14 de agosto de 2009, do CONTRAN,
passa a vigorar com a seguinte redação:
Art. 2º. Implantar a Operação Assistida, com início em 1º de agosto de 2009 e
término em 30 de novembro de 2011, com objetivo de validar o funcionamento de
todo o sistema: Bloqueio Autônomo, Bloqueio Remoto e a Função de Localização.
Art. 2º. O cronograma estabelecido no art. 4º da Resolução nº 330/2009, passa a ser
o seguinte:
I - Nos automóveis, camionetas, caminhonetes e utilitários:
a) a partir de 15 de janeiro de 2012, em 20% (vinte por cento) da produção total
destinada ao mercado interno;
b) a partir de 15 de março de 2012, em 40% (quarenta por cento) da produção total
destinada ao mercado interno;
c) a partir de 15 de junho de 2012, em 70% (setenta por cento) da produção total
destinada ao mercado interno;
d) a partir de 15 de agosto de 2012, em 100% (cem por cento) da produção total
destinada ao mercado interno.
II - Nos caminhões, ônibus e microônibus:
a) a partir de 15 de janeiro de 2012, em 20% (vinte por cento) da produção total
destinada ao mercado interno;
335
b) a partir de 15 de março de 2012, em 40% (quarenta por cento) da produção total
destinada ao mercado interno;
c) a partir de 15 de junho de 2012, em 70% (setenta por cento) da produção total
destinada ao mercado interno;
d) a partir de 15 de agosto de 2012, em 100% (cem por cento) da produção total
destinada ao mercado interno.
III - Nos caminhões-tratores, reboques e semi-reboques a partir de 15 de agosto de
2012, em 100% (cem por cento) da produção total destinada ao mercado interno.
IV - Nos ciclomotores, motonetas, motocicletas, triciclos e quadriciclos:
a) a partir de 15 de janeiro de 2012, em 5% (cinco por cento) da produção total
destinada ao mercado interno;
b) a partir de 15 de março de 2012, em 15% (quinze por cento) da produção total
destinada ao mercado interno;
c) a partir de 15 de abril de 2012, em 20% (vinte por cento) da produção total
destinada ao mercado interno;
d) a partir de 15 de novembro de 2012, em 50% (cinqüenta por cento) da produção
total destinada ao mercado interno;
e) a partir de 15 de janeiro de 2013, em 100% (cem por cento) da produção total
destinada ao mercado interno;
Art. 3º. Esta Deliberação entra em vigor na data de sua publicação, sendo facultado
antecipar sua adoção total ou parcial a partir da data de início da disponibilidade da
infraestrutura de telecomunicações necessária.
336
ÍNDICE
Introdução............................................................................................................1
Capítulo I – Interpretação e mutação normativa.................................................7
1 Norma jurídica. Conceito e estrutura....................................................................7
2 Interpretação jurídica. Conceito e características....................................................12
2.1 Os princípios como valores condutores da interpretação jurídica...................19
2.2 A interpretação constitucional e seus princípios..............................................22
2.3 As peculiaridades da interpretação de enunciados de natureza trabalhista............27
2.3.1 O princípio do protecionismo...............................................................27
2.3.1.1 A regra in dubio pro operario................................................31
2.3.1.2 A regra da norma mais favorável ao trabalhador.....................32
2.3.1.3 A regra da condição mais benéfica ao trabalhador...................33
2.4 A interpretação dos direitos fundamentais.......................................................34
2.4.1 Conceito e espécies de Direitos Fundamentais........................................34
2.4.2 As normas jurídicas de Direito do Trabalho como Direitos Fundamentais
de 2ª Geração....................................................................................38
2.4.3 A interpretação dos enunciados prescritivos introdutores de Direitos
Fundamentais.....................................................................................41
3. A Teoria Tridimensional do Direito de Miguel Reale e o fenômeno da mutação
normativa...........................................................................................................45
3.1 O ambiente temporal de desenvolvimento da Teoria Tridimensional do
Direito.....................................................................................................45
3.2 As espécies de Tridimensionalidade do Direito...............................................49
3.2.1 A Tridimensionalidade genérica e abstrata do Direito..............................49
3.2.2 A Tridimensionalidade específica..........................................................51
3.3 As características da Tridimensionalidade do Direito de Miguel Reale.............53
337
3.4 A “Eticidade” como reflexo da Teoria Tridimensional do Direito de Miguel
Reale.........................................................................................................57
3.4.1 Análise semântica do termo “Eticidade”................................................58
3.4.2 A polissemia da palavra “Ética”.............................................................59
3.4.3 A definição de ética para Miguel Reale................................................64
3.4.3.1 Conduta e valor........................................................................65
3.4.3.2 Fins e categorias do agir............................................................66
3.4.3.3 Momentos da conduta................................................................70
3.4.3.4 Especificidade da conduta ética..................................................71
3.4.3.5 Modalidades de conduta.............................................................72
3.4.4 O conceito e a aplicação de “Eticidade” em Miguel Reale.......................77
3.4.5 A Eticidade como instrumento de mutação normativa..............................79
4 Conclusões parciais..........................................................................................83
Capítulo II- O poder fiscalizatório do Empregador e as novas tecnologias de
vigilância............................................................................................85
1 O Poder Empregatício...........................................................................................85
1.1 Conceito e características do Poder Empregatício...........................................85
1.2 Natureza jurídica do Poder Empregatício......................................................89
2 Espaço Ampliado. Conceito e características........................................................92
3 O regime de visibilidade como “valor” e “fonte” de “mutação normativa”...........98
4 Conclusões parciais.............................................................................................99
Capítulo III – Os sistemas “Automatic Vehicle Location”(AVL)........................102
1 Os sistemas precursores do AVL.........................................................................102
2. Conceito de AVL..............................................................................................105
338
3. As partes componentes de um sistema AVL........................................................110
3.1. Módulo “Banco de Dados de Mapa Digital”.................................................113
3.2. Módulo de Posicionamento.........................................................................119
3.2.1. Técnicas de posicionamento............................................................120
3.2.1.1 GPS. Conceito e funcionamento ............................................121
3.2.1.1.1 As observáveis GPS:características, erros e soluções.........133
a) Erros relacionados aos satélites..........................................137
b) Erros relacionados à propagação do sinal............................139
c) Erros relacionados com o receptor e a antena......................140
d) Erros e correções relacionados com a estação.....................142
3.2.1.1.2 Tipos de posicionamento.............................................145
a) Posicionamento absoluto....................................................145
b) Posicionamento relativo.....................................................146
c) Posicionamento diferencial................................................151
3.2.1.2 Outros sistemas globais de navegação por satélite....................152
3.3 Módulo de “Planejamento de rota”...............................................................153
3.3.1 Conceitos de software e de hardware.................................................153
3.3.2 Sistemática de um módulo de planejamento de rota............................155
3.4 Módulo “Map Matching”............................................................................156
3.5 Módulo “Orientação de rota”......................................................................157
3.6 Módulo de “Comunicação sem fio”..............................................................159
3.6.1 Telemática. Conceito e desenvolvimento..............................................160
3.6.1.1 Comunicação celular. Conceito, evolução e atual estado da
técnica..............................................................................163
3.6.1.2 Comunicação através de satélite............................................164
3.7 Módulo de interface homem-máquina..........................................................166
339
3.8 Os sensores.................................................................................................167
4 Espécies de sistemas AVL..................................................................................169
4.1 Sistema AVL passivo...................................................................................169
4.2 Sistema AVL ativo......................................................................................170
4.3 Sistema AVL híbrido...................................................................................170
5 Os equipamentos embarcados necessários ao funcionamento do sistema
AVL.....................................................................................................................171
6 Características práticas dos sistemas “Automatic Vehicle Location”...................176
6.1 Introdução...................................................................................................176
6.2 Perguntas a serem respondidas através da observação direta intensiva...........180
6.3 Dados colhidos durante a operação...............................................................181
6.4 Das conclusões obtidas através da operação..................................................219
7 Os sistemas AVL e o controle de paradas do veículo.............................................220
Capítulo IV- A mutação normativa do artigo 62, I, da CLT em função da
mudança de regime de visibilidade........................................224
1. O contrato de trabalho e a jornada laboral.....................................................224
1.1. A Lei 12.619/12 e a jornada de trabalho do motorista rodoviário.........231
2. Análise histórica do enunciado prescritivo constante do inciso I do artigo 62
da CLT...........................................................................................................235
3. A elasticidade semântica do enunciado contido no artigo 62, I, da CLT e as
hipóteses interpretativas................................................................................238
4. Da relação entre a norma jurídica oriunda do artigo 62, I, da CLT e os
Direitos Fundamentais contidos no artigo 7º, IX e XVI, da Constituição
Federal...........................................................................................................240
5. Das hipóteses interpretativas do artigo 62, I, da CLT frente ao princípio in
dubio pro operario........................................................................................242
340
6. Da natureza jurídica do poder empregatício e a interpretação do artigo 62, I,
da CLT...........................................................................................................243
7. Aplicação do princípio da unidade do direito positivo..................................244
7.1 Os “Valores Sociais do Trabalho” e a “Dignidade da Pessoa Humana”
como fundamentos da República Federativa do Brasil e, consequentemente,
das normas jurídicas vigentes........................................................................245
7.1.1 A Dignidade da Pessoa Humana....................................................247
7.1.2 Os “Valores Sociais do Trabalho” e a “Valorização do Trabalho
Humano”.......................................................................................252
7.2 A inexistência de exceção constitucional expressa aos termos do artigo 7º,
XVI, da Constituição Federal além da hipótese do parágrafo único do
mesmo artigo 7º.........................................................................................264
8 O atual regime de visibilidade e a sua influência na interpretação do inciso I
do artigo 62 da CLT..................................................................................266
9 A Lei 12.551/2011 e a incorporação expressa do novo regime de visibilidade
ao contrato de trabalho..............................................................................272
9.1 A Convenção 177 da OIT e as normas internacionais de regulação do
trabalho à distância..................................................................................272
9.2 A modificação do artigo 6º da Consolidação das Leis do Trabalho pela Lei
12.551/2011.............................................................................................275
a) Do enquadramento do “trabalho realizado à distância” dentre as
formas de prestação laboral na relação de emprego que se
equiparam..........................................................................................275
b) A introdução formal da tecnologia de transmissão de dados à distância
como instrumento de exercício do poder
empregatício......................................................................................278
10 Dos contornos constitucionais do princípio da livre iniciativa e do ônus do
Empregador (contratante de Empregados-Motoristas rodoviários de atividade
externa) de instalar sistemas AVL (Automatic Vehicle Location) nos veículos
de sua frota....................................................................................................280
341
Conclusão.........................................................................................................287
Bibliografia.......................................................................................................295
Apêndice
Apêndice A – Técnicas de posicionamento de objetos e pessoas...............................306
Apêndice B- Técnicas de calibração de antenas GPS.................................................311
Apêndice C – Outros “Sistemas Globais de Navegação por Satélite”........................313
Apêndice D – A evolução da técnica de comunicação celular....................................316
Apêndice E – Erros relacionados à propagação dos sinais no sistema GPS...............322
Anexo
Anexo A - Resolução no. 330/2009 do CONTRAN.........................................330
Anexo B - Resolução no. 111/2011 do CONTRAN.........................................333
Índice................................................................................................................336